a riqueza e os outros bens que procuramos

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Texto de José Maria Castro Caldas (CES-UC) apresentado no Colóquio "Há mais vida para Além do PIB", organizado pela ATTAC a 16/01/2010

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Page 1: A Riqueza e os outros bens que procuramos

A riqueza e outros bens que procuramos

José Castro Caldas

Centro de Estudos Sociais da Universidades de Coimbra (CES)

A riqueza não é evidentemente o bem que procuramos…

Aristoteles, Ética a Nicomaco

I

O que o Produto Interno (seja ele bruto ou líquido) procura medir

não anda muito longe do que Adam Smith e outros filósofos

iluministas do século XVIII entendiam ser a riqueza: “o conjunto dos

bens necessários à vida e ao conforto produzidos pelo trabalho”.

Esta concepção de riqueza, referida à Nação e aos indivíduos, era

então inovadora. Antes disso a riqueza tinha sido um atributo da

grandeza (do status, como hoje diríamos) e do poder do soberano e

da nobreza, sendo muitas vezes confundida com tesouros em ouro e

prata com que se podem adquirir tanto os bens “necessários à vida”,

como outros necessários à guerra. Tudo o resto era subsistência.

Com a filosofia iluminista, a riqueza, assim concebida, transformou-

se num objecto apropriado de reflexão filosófica. Mais tarde,

constituir-se-ia em campo de uma ciência – a Economia.

Pensada como ciência da riqueza, a Economia, foi então burilando e

transformando o conceito: passou a distinguir entre fluxo e stock;

reservou o termo riqueza para o stock e designou por rendimento o

fluxo. Quando a Contabilidade Nacional foi inventada nos anos 30

do século XX o que o Produto Interno procurava medir era o fluxo,

não o stock.

O Produto Interno tornou-se então medida única do “progresso” e

base de todas as comparações no tempo e no espaço. No entanto,

antes de existir Produto Interno, já a grandeza que ele procura medir

– a riqueza – se havia transformado, apesar de todos os protestos,

no bem, por excelência, que todos procuramos.

Page 2: A Riqueza e os outros bens que procuramos

II

De um bem que evidentemente não é o que procuramos, em

Aristóteles, a bem, por excelência, que todos perseguimos, vai um

grande salto. Como aconteceu?

Na passagem de Aristóteles de que foi extraída a citação em epígrafe

pode ler-se: “A vida consagrada à aquisição de dinheiro é uma vida

forçada, a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos; é um

meio para a obtenção de outras coisas.”

Vemos assim que Aristóteles negava à riqueza valor intrínseco, ou

valor como fim, mas não ignorava a sua importância como meio para

outros fins. Por esta via se pode tentar compatibilizar Aristóteles

com os filósofos e os economistas que lhe viriam a conferir a

dignidade de objecto de reflexão filosófica e de investigação

científica, e que contribuíram, pelo menos no plano das ideias, para

transformar a riqueza, de simples meio, no bem que individual e

colectivamente devemos, sem dúvida, perseguir.

Pressupunham os filósofos iluministas e depois os economistas que

a persecução da riqueza individual e colectiva não conflituava com a

efectivação de outros bens, sendo antes uma pré-condição de todos

eles. Nisto divergiam do filosofo grego para quem a arte da aquisição

– a crematística – deveria estar subordinada à economia – a

provisão e uso da riqueza orientada para a “vida boa” (virtuosa) na

polis – sob pena de colapso da própria comunidade política.

Não quer isto dizer que entre os economistas de todos os tempos não

houvesse alguns, mesmo na tradição liberal, que questionassem a

ideia de progresso como acumulação ilimitada de riqueza. Dentre

eles, John Stuart Mill deve ser destacado. Para Mill o “estado

estacionário” – o fim do crescimento – antecipado e receado por

outros, nomeadamente David Ricardo, não era necessariamente

uma perspectiva lúgubre: se a estagnação do produto fosse

acompanhada de estabilidade demográfica, a humanidade poderia

colher os frutos do progresso, não sob a forma de mais bens de

consumo, mas na de redução do tempo de trabalho penoso, fruição

intelectual e estética, participação reforçada na vida da polis,

convívio com a natureza preservada.

Page 3: A Riqueza e os outros bens que procuramos

Mas o que fez caminho no pensamento económico e a partir dele se

tornou ideologia foi a ideia de progresso como crescimento. Notas de

reflexão crítica, como as de Stuart Mill, chegaram até nós em pés de

página obscuros de alguns manuais de História do Pensamento

Económico, como curiosidades ou aberrações.

III

Ao logo do século XX a experiência do crescimento a ritmos sem

precedente histórico foi revelando a futilidade da ideia de que a

persecução da riqueza individual e colectiva não conflitua com a

efectivação de outros bens. Por outras palavras, fomos descobrindo

colectivamente que a riqueza não está necessariamente

correlacionada com todos os outros bens.

Primeiro foi a descoberta de que crescimento não é necessariamente

desenvolvimento: o crescimento agregado da riqueza da nação não

significa necessariamente erradicação da pobreza seja ela relativa ou

absoluta (além do agregado ou da média, a distribuição também

conta); há dimensões do bem-estar que também são importantes,

como a saúde, a segurança, as liberdades e os direitos, a participação

cívica, os laços sociais….

Depois, a percepção cada vez mais clara de que o crescimento está a

desafiar limites ambientais e a pôr em causa a própria vida.

É este o ponto em que hoje estamos.

Quando um político improvável como o actual presidente francês

reconhece a futilidade do PIB como métrica do progresso e base para

comparações, e patrocina uma comissão para reflectir sobre os seus

limites e possíveis alternativas, não está senão a dar voz a um

sentimento muito difundido na sociedade que se traduz

normalmente em “estranhamento” relativamente às estatísticas

oficiais: não sentimos os “progressos” que as estatísticas registam

(embora possamos sentir os retrocessos).

IV

De há algum tempo a esta parte alguns cientistas sociais têm vindo a

trabalhar sobre a possibilidade de medir a felicidade tal como é

subjectivamente avaliada pelos indivíduos. Independente de dúvidas

Page 4: A Riqueza e os outros bens que procuramos

sobre a viabilidade deste empreendimento ou de considerações

acerca da própria noção de felicidade, é inegável que os dados que

até agora conseguiram compilar nos proporcionam um quadro

sugestivo.

Consideremos o gráfico seguinte (figura 1) que situa diferentes

países num plano “indicador de felicidade” x “PIB per capita 1995

(em PPP1)”:

Figura 1: Felicidade e PIB per capita (em PPP, 1995)

Fonte: Jackson, Tim (Coord.), Prosperity Without Growth? The Transition to a Sustainable Economy, UK Sustainable Development, 2009.

Esta representação sugere imediatamente duas conclusões:

(a) Para níveis baixos do PIB per capita, pequenos incrementos

do PIB resultam em grandes aumentos de “felicidade”;

(b) Para níveis altos do PIB, o incremento do PIB (seja ele qual

for) não tem efeito na “felicidade”.

1 Paridades de Poder de Compra.

Page 5: A Riqueza e os outros bens que procuramos

Diríamos portanto que a riqueza é importante até certo ponto e

deixa de o ser a partir de um limiar. Ou, dito de outra forma, a

riqueza estará correlacionada com (ou é pré-requisito de) outras

dimensões importantes da “felicidade” em situações de escassez

aguda e deixa de o estar (ou ser) em condições de afluência.

Isto sugere que os filósofos iluministas e os economistas clássicos

que viveram e escreveram em contextos que nada se assemelham às

sociedades afluentes actuais podem não ter errado absolutamente, e

que o erro reside em transportar os seus pressupostos para as

condições das sociedades afluentes que eles não conheceram e muito

menos podiam imaginar.

Temos assim que a adopção do PIB como medida única de

“progresso” se vai tornando mais problemática à medida que, com a

acumulação de riqueza, a correlação da riqueza com outras

dimensões do bem-estar se vai dissolvendo e que os conflitos com

outros bens importantes, nomeadamente os ambientais, vão

emergindo.

Nessas condições fazer do PIB a métrica única do progresso é o

mesmo que pilotar um navio com os olhos fixados apenas no

mostrador da velocidade. Sem bússola, mapa e medida do

carburante no depósito, navegamos certamente para o naufrágio.

V

Existe alternativa para o PIB? Ou, perguntado de outra forma, é

possível e desejável conceber uma outra medida do “progresso” que

o possa substituir como critério para comparações no tempo e no

espaço?

Provavelmente não. A agregação de diferentes dimensões de valor

(os diferentes bens que procuramos) num número que permita

comparações e ordenações, colide inevitavelmente com dificuldades

insuperáveis. Primeiro, a escolha de ponderadores para as diferentes

dimensões é um exercício que envolve sempre arbitrariedade.

Segundo, e mais fundamental, mesmo que fosse possível obter um

consenso quanto aos ponderadores a utilizar, a agregação envolve

Page 6: A Riqueza e os outros bens que procuramos

sempre um pressuposto de comensurabilidade entre os valores em

presença. Impor uma equivalência entre certos valores a que

atribuímos dignidade e outros, nomeadamente a riqueza, é privar os

primeiros da dignidade que lhes conferimos à partida. Qual é a

contrapartida em bens de consumo de danos ambientais que podem

ser irreversíveis?

Terceiro, como vimos com o caso da relação entre a riqueza e outros

bens, a importância relativa e a própria relação entre os múltiplos

bens é sempre contextual. Critérios de agregação contextualmente

definidos não permitem comparações.

Estamos assim condenados a viver com a ideia, familiar a

Aristóteles, de que os fins são múltiplos e de que a virtude reside na

forma como articulamos os múltiplos bens que procuramos.

Estamos condenados a pilotar o navio com o olhar em vários

“mostradores” ao mesmo tempo. A vida assim vivida não é simples.

Mas, por outro lado, é reconfortante constatar que a perda da

medida única de progresso e a necessidade de consideração de

múltiplas dimensões de avaliação trás consigo a exigência de uma

clarificação pública dos fins que queremos colectivamente

prosseguir, dos conflitos entre fins e das escolhas difíceis que temos

de enfrentar colectivamente. Pressupondo uma clarificação pública

democrática e participada, isso só pode facilitar a descoberta de

melhores meios e conduzir a escolhas colectivas mais inteligentes.