a revolução de saias

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5/16/2018 Arevoluodesaias-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-revolucao-de-saias 1/6 A revolução de saias A atuação das mulheres na Revolução Francesa foi marcada por uma marcha que forçou o rei a deixar Versalhes Tiago Cordeiro | 17/08/2010 05h35 Na história tradicional da Revolução Francesa, os grandes personagens são homens: Maximilien de Robespierre (1758-1794), Georges Jacques Danton (1759-1794), Jean-Paul Marat (1743-1793). Uma mulher brilha nos relatos, porém do lado da realeza: a rainha Maria Antonieta (1755-1793). Mas a participação feminina foi muito mais importante do que se imagina. "Sua presença na cena política foi tolerada e até incentivada no início da Revolução, porém reprimida em outubro de 1793, e depois novamente, de forma definitiva, em 1795", afirma a pesquisadora Tania Machado Morin em uma tese a respeito do assunto, defendida na Universidade de São Paulo - e um dos raros estudos sobre o tema já publicados no Brasil. As mulheres fundaram clubes políticos, discursaram na Assembleia Nacional, participaram das jornadas revolucionárias. Mas, acima de tudo, foi um grupo de 7 mil mulheres do povo que marchou 14 quilômetros de Paris a Versalhes, sob chuva, para protestar contra a escassez de pão, gritando: "Vamos buscar o padeiro (o rei), a padeira (a rainha) e o padeirinho (o príncipe delfim)". A Marcha das Mulheres alcançou o objetivo de trazer o rei Luís XVI e sua família para Paris. Poucos dias depois, a Assembleia Nacional também se mudou para a capital. Esse período de ativismo político foi pouco estudado até os anos 1980, quando as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa impulsionaram as pesquisas sobre o tema e fizeram justiça à ação pioneira das cidadãs revolucionárias francesas. Influência e liderança  Antes de 1789, só mulheres da aristocracia tiveram poder. Depois, surgiram lideranças nas classes populares e entre a burguesia Os irmãos Edmond (1822-1896) e Jules Goncourt (1830-1896) escreveram - com uma dose de exagero - sobre a mulher da aristocracia francesa no século 18: "Ela tinha o rei da França ao seu alcance; dava ordens na corte, mantinha as alianças políticas, a paz e a guerra, a literatura, as artes e a moda nas dobras de sua saia. Do começo ao fim do século, o governo da mulher foi o único governo visível e apreciável". Parte dessa descrição poderia se aplicar a madame de Pompadour, amante do rei Luís XV (1710-1774) durante 20 anos. A partir de 1789, em meio à efervescência social e política, uma geração de revolucionárias entrou na cena política. Muitas vinham das classes populares e tiveram papel importante em vários momentos cruciais da Revolução (leia abaixo). Surgiram as primeiras vozes feministas (o termo nem existia na época), como Olympe de Gouges (1748-1793), que escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, dizendo que, se a mulher tinha o direito de subir no cadafalso, também deveria ter o de subir na tribuna. Foi guilhotinada em 1793, acusada de se esquecer das virtudes de seu sexo. A baronesa holandesa Etta Palm d'Aelders (1743-1799) fez discursos em defesa dos direitos políticos da mulher, da educação feminina e do divórcio. Considerada suspeita, fugiu para a Holanda. Théroigne de Méricourt (1762-1817) declarou que as mulheres se armariam para mostrar aos homens que não tinham menos coragem que eles. Pronunciada louca em 1794, foi internada num hospício feminino até a morte. Mas foi na Marcha a Versalhes de 5 e 6 de outubro de 1789 que as mulheres irromperam na cena pública como protagonistas políticas. As militantes causaram escândalo dentro e fora da França e medo nas autoridades, que decretaram a lei marcial para pacificar a rebelião a força. "A marcha marcou o início do ativismo das mulheres do povo e sua integração ao movimento de massa revolucionário, coisa inédita na França e na Europa da época", diz a pesquisadora Tania Morin. Em agosto de 1792, muitas participaram do ataque ao palácio das Tulherias, em Paris, onde morava a família real desde 1789. O acontecimento levou à destituição e prisão do rei e ao início do regime republicano na França. Em 1793, Claire Lacombe e Pauline Léon fundaram o principal clube político feminino da

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A revolução de saiasA atuação das mulheres na Revolução Francesa foi marcada por uma marcha que forçou orei a deixar VersalhesTiago Cordeiro | 17/08/2010 05h35

Na história tradicional da Revolução Francesa, os grandes personagens são homens:Maximilien de Robespierre (1758-1794), Georges Jacques Danton (1759-1794), Jean-PaulMarat (1743-1793). Uma mulher brilha nos relatos, porém do lado da realeza: a rainha MariaAntonieta (1755-1793). Mas a participação feminina foi muito mais importante do que seimagina. "Sua presença na cena política foi tolerada e até incentivada no início da Revolução,porém reprimida em outubro de 1793, e depois novamente, de forma definitiva, em 1795",afirma a pesquisadora Tania Machado Morin em uma tese a respeito do assunto, defendida naUniversidade de São Paulo - e um dos raros estudos sobre o tema já publicados no Brasil.

As mulheres fundaram clubes políticos, discursaram na Assembleia Nacional, participaram dasjornadas revolucionárias. Mas, acima de tudo, foi um grupo de 7 mil mulheres do povo quemarchou 14 quilômetros de Paris a Versalhes, sob chuva, para protestar contra a escassez depão, gritando: "Vamos buscar o padeiro (o rei), a padeira (a rainha) e o padeirinho (o príncipedelfim)". A Marcha das Mulheres alcançou o objetivo de trazer o rei Luís XVI e sua família para

Paris. Poucos dias depois, a Assembleia Nacional também se mudou para a capital.

Esse período de ativismo político foi pouco estudado até os anos 1980, quando ascomemorações do bicentenário da Revolução Francesa impulsionaram as pesquisas sobre otema e fizeram justiça à ação pioneira das cidadãs revolucionárias francesas.Influência e liderança

 Antes de 1789, só mulheres da aristocracia tiveram poder. Depois, surgiram lideranças nasclasses populares e entre a burguesia

Os irmãos Edmond (1822-1896) e Jules Goncourt (1830-1896) escreveram - com uma dose deexagero - sobre a mulher da aristocracia francesa no século 18: "Ela tinha o rei da França ao

seu alcance; dava ordens na corte, mantinha as alianças políticas, a paz e a guerra, aliteratura, as artes e a moda nas dobras de sua saia. Do começo ao fim do século, o governoda mulher foi o único governo visível e apreciável". Parte dessa descrição poderia se aplicar amadame de Pompadour, amante do rei Luís XV (1710-1774) durante 20 anos. A partir de 1789,em meio à efervescência social e política, uma geração de revolucionárias entrou na cenapolítica. Muitas vinham das classes populares e tiveram papel importante em vários momentoscruciais da Revolução (leia abaixo).

Surgiram as primeiras vozes feministas (o termo nem existia na época), como Olympe deGouges (1748-1793), que escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, dizendoque, se a mulher tinha o direito de subir no cadafalso, também deveria ter o de subir natribuna. Foi guilhotinada em 1793, acusada de se esquecer das virtudes de seu sexo. Abaronesa holandesa Etta Palm d'Aelders (1743-1799) fez discursos em defesa dos direitos

políticos da mulher, da educação feminina e do divórcio. Considerada suspeita, fugiu para aHolanda. Théroigne de Méricourt (1762-1817) declarou que as mulheres se armariam paramostrar aos homens que não tinham menos coragem que eles. Pronunciada louca em 1794, foiinternada num hospício feminino até a morte.

Mas foi na Marcha a Versalhes de 5 e 6 de outubro de 1789 que as mulheres irromperam nacena pública como protagonistas políticas. As militantes causaram escândalo dentro e fora daFrança e medo nas autoridades, que decretaram a lei marcial para pacificar a rebelião aforça. "A marcha marcou o início do ativismo das mulheres do povo e sua integração aomovimento de massa revolucionário, coisa inédita na França e na Europa da época", diz apesquisadora Tania Morin. Em agosto de 1792, muitas participaram do ataque ao palácio dasTulherias, em Paris, onde morava a família real desde 1789. O acontecimento levou àdestituição e prisão do rei e ao início do regime republicano na França.

Em 1793, Claire Lacombe e Pauline Léon fundaram o principal clube político feminino da

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Revolução: a Associação das Republicanas Revolucionárias. Elas reivindicavam o porte dearmas para defender a pátria dos inimigos internos (um direito exclusivo dos cidadãos). Àépoca, havia 60 clubes políticos femininos ou mistos espalhados pelo país. Em outubro de1793, todos foram fechados e Pauline Léon passou seis meses na prisão.

Em maio de 1795 havia fome na capital. Suicidas se atiravam no rio Sena, inclusive mães com

filhos pequenos. Exasperadas pelo racionamento de pão e pela não aplicação da Constituiçãodemocrática de 1793, as mulheres dos bairros operários, apelidadas de "bota-fogos",instigaram um levante popular contra o governo da Convenção Nacional. Foi a gota d’água. Ainsurreição foi derrotada e as mulheres, alijadas da política nacional. A repressão severa é amaior prova de que elas incomodaram seriamente a ala masculina da Revolução.

Igualdade entre os sexos

Os principais momentos da revolução e a participação feminina 

1789-1790 Mulheres escrevem numerosas cartas e panfletos pedindo educação, treinamento profissionale igualdade para homens e mulheres perante a lei.

1789 5 de maio: Abertura dos Estados Gerais.14 de julho: Tomada da Bastilha. Entre os combatentes, ficaram registrados vários nomes demulheres.26 de agosto: Os deputados aprovam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.5 e 6 de outubro: Marcha das mulheres para Versalhes. O rei Luís XVI é forçado a se mudarpara Paris.

1790 2 de fevereiro: Surge a associação política Sociedade Fraternal dos Patriotas dos Dois Sexos.

19 de junho: A Assembleia Nacional suprime a nobreza hereditária, os títulos e os brasões.3 de dezembro: Luís XVI escreve ao rei da Prússia para pedir apoio.

1790-1791 Formação de associações políticas femininas. Os herdeiros são declarados iguais perante a lei.É o fim dos privilégios da primogenitura masculina.

1791 20-21 de julho: Fuga e prisão do rei em Varennes.

17 de julho: No Campo de Marte, massacre de manifestantes contrários à restauração do rei.

3 de setembro: Aprovação da Constituição de 1791, que inclui o sufrágio masculino censitário.

Setembro: Olympe de Gouges publica a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.

1792 6 de março: Pauline Léon apresenta à Assembleia uma petição de 319 parisiensesreivindicando a formação de uma guarda nacional feminina.

20 de abril: A França declara guerra ao rei da Hungria e da Boêmia.

10 de agosto: O palácio das Tulherias, onde morava o rei, é invadido pelo povo.

20 de setembro: Aprovação da lei do divórcio.

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21 de setembro: Fim da monarquia e início da república.

1795 20 a 24 de maio: Insurreição de Prairial, instigada pelas mulheres, que gritam o lema: "Pão eConstituição!".

- A Convenção proíbe as mulheres de frequentar as assembleias e de se reunir nas ruas emgrupos de mais de cinco.

26 de outubro: Fim da Convenção Termidoriana e início do governo do Diretório.

1794 4 de fevereiro: A Convenção decreta a supressão da escravidão nas colônias.

Fevereiro e março: Agitação das operárias das oficinas de fiação.

28 de julho: Robespierre e 22 seguidores são guilhotinados.

Setembro: Théroigne de Méricourt é declarada louca e internada.

1793 21 de janeiro: Execução de Luís XVI na guilhotina.

Abril: o deputado Guyomar propõe a igualdade política de homens e mulheres. Sua sugestãonão é aprovada pela Assembleia.

16 de outubro: Execução de Maria Antonieta na guilhotina.

30 de outubro: Proibição dos clubes políticos femininos.

Jornada revolucionária

Depois de um dia de marcha, negociações e violência na madrugada, as manifestantesconseguiram trazer o rei Luís XVI a Paris

Em setembro de 1789, faltava pão em Paris. As autoridades nada resolviam. As mulheresameaçavam tomar as rédeas da situação. Um incidente infeliz no palácio de Versalhesprecipitou a rebelião. Em 1º de outubro, durante uma recepção da família real a oficiais doregimento de Flandres, oficiais teriam pisoteado aos risos a cocarda (insígnia militar) tricolor,símbolo da revolução, e levantado brindes à cocarda austríaca, da terra natal da rainha MariaAntonieta. Notícias e boatos a respeito da ofensa percorreram Paris como um rastilho depólvora. A indignação do povo estava prestes a explodir.

Em 5 de outubro, as mulheres tomaram a iniciativa, batendo tambores e tocando os sinos dasigrejas para reunir a multidão. Mesmo após a queda da Bastilha, o rei ainda conservava certaaura de poder divino. O povo acreditava que sua presença resolveria a escassez. Por isso,causava irritação o isolamento de Luís XVI em Versalhes. Além disso, era intolerável suarecusa em assinar decretos importantes aprovados pela Assembleia Nacional, como aDeclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

As mulheres vieram em massa para o ponto de encontro na praça Luís XV, atual praça daConcórdia, armadas de lanças, foices, machados e mosquetões e puxando um canhão semmunição. Escolheram Maillard, oficial da Guarda Nacional e herói da Bastilha, para liderar amarcha. O grupo exigia a punição dos oficiais do banquete em Versalhes, o restabelecimentodo suprimento de trigo e a presença do monarca em Paris. Exaustas mas vitoriosas, as

mulheres do povo voltaram para a capital acompanhando a família real e trazendo a promessade providências para a crise do pão. Como disse o escritor Jules Michelet (1798-1874): "Oshomens tomaram a Bastilha, as mulheres tomaram o rei".

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 A ida

Reunidas e armadas, as manifestantes partiram na direção de Versalhes 

1. Concentração

Uma multidão se concentra em frente ao Hotel de Ville, sede da prefeitura de Paris à época,e denuncia o prefeito Bailly por corrupção. O grupo é formado por mulheres do povo:vendedoras, lavadeiras, costureiras, artesãs.

2. A Marcha começaDepois de tomar armas no Hotel de Ville com a ajuda de homens, o grupo se dirige à praçaLuís XV, atual praça da Concórdia. A massa aumenta ao longo do percurso, atraindo militares,operários e gente da burguesia. Dali, todos partem para Versalhes, a fim de falar com o rei ea Assembleia.

3. Chegada a VersalhesDepois de 14 quilômetros debaixo de chuva, 7 mil mulheres acompanhadas de soldados epopulares se concentram nos portões do palácio. O grupo conta com o apoio da Guarda

Nacional. O rei, que estivera caçando de manhã, fora avisado da manifestação e estava nopalácio.

4. Mulheres na AssembleiaParte das manifestantes se dirige à Assembleia Nacional, ao lado do palácio. Os deputados sãointerrompidos, as mulheres tomam a palavra e uma delas discursa da tribuna. Elas forçam aaprovação de medidas para diminuir o preço do pão.

5. Desmaio diante do reiDoze mulheres vão ao palácio pedir ao rei que resolva a falta de pão. A porta-voz do grupo,Louison Chabry, de 17 anos, fica tão emocionada diante de Luís XVI que só consegue dizer"pão!" e desmaia. O rei a socorre paternalmente. Louison entra revolucionária e saimonarquista.

6. Tentativa de fugaLuís XVI manda preparar as carruagens, reúne a família e tenta fugir pelos fundos. Membrosda Guarda Nacional dizem a ele que não podem garantir sua segurança fora do palácio.Impedido de sair, ele volta para a residência.

7. Declaração assinadaPressionado pelos gritos que vêm de fora e apreensivo com a iminente chegada de 15 milguardas nacionais, o rei enfim capitula: assina a Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão.

A volta

Com o rei a caminho da capital, o protesto se transformou em festa 

8. Invasão e morteDurante a noite, a população invade o palácio e ruma para os aposentos da rainha MariaAntonieta. Ela foge por uma passagem secreta direto para quarto do rei. O incidente provocaa morte de dois guardas.

9. O rei fala com o povoAcompanhado da rainha e do comandante La Fayette (1757-1834), o rei se apresenta nobalcão para os mais de 30 mil manifestantes que exigiam sua presença em Paris. Acuado, LuisXVI cede, com a condição de ser acompanhado pela rainha e pelos filhos.

10. Retorno a Paris

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Depois de uma madrugada tensa, a família viaja na carruagem real, em meio a mulheressentadas em canhões, manifestantes cantando "Viva o rei, viva a nação" e duas cabeçasdecapitadas em pontas de lança. Da procissão fazem também parte 100 deputados, guardasnacionais e carroças de trigo.

11. O cortejo real na capital francesa

Na chegada, Luís XVI recebe as chaves da cidade do prefeito Bailly e fala ao público do balcãodo Hotel de Ville. Depois ele se instala no palácio das Tulherias, um espaço muito menor queVersalhes e que estava abandonado havia 100 anos. Duas semanas depois, o preço do pãocairia.

Post-ScriptumPor Tania Machado Morin*

Legado escondidoO exemplo das revolucionárias só foi resgatado depois da Segunda Guerra

Uma patriota da cidade de Besançon declarou que as mulheres preferiam os elevados ideaisda Revolução às trivialidades do amor. Imbuídas dos princípios de liberdade, justiça eigualdade contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o entusiasmodaquelas mulheres era sincero, apesar de não terem oficialmente nenhuma das prerrogativasda cidadania, como o direito ao voto e às armas. A ruptura revolucionária abriu espaçosinéditos de expressão política a um grupo social antes excluído deles: as mulheres do povo,que estavam mais preparadas do que se imaginava para ocupá-los. Pressionadas pelascircunstâncias, elas saltaram da política de bairro para a cena nacional ao se dirigirem àsmais altas instâncias de poder em outubro de 1789: a Assembleia Nacional e o rei. Na sede doLegislativo, falaram de igual para igual com os deputados, subvertendo a ordem hierárquicatradicional. Ali nasceram as militantes francesas. Tendo combatido, não queriam ficar àmargem dos acontecimentos.

As autoridades pensavam diferente: era preciso transformar aqueles seres políticos emesposas e mães dedicadas à família. Em 1793, uma lei estipulou que as "patriotas de outubro"teriam lugar especial nas cerimônias cívicas, durante as quais deveriam tricotarpacificamente na companhia dos maridos e filhos. A moral republicana exigia uma divisãoclara entre papéis masculinos e femininos. Na Revolução, mulheres de todas as classesdesempenharam com orgulho a função materna, agora acrescida de uma dimensão política epatriótica. Não era pouco: sua missão era educar os futuros heróis da nação. As militantes nãoviam incompatibilidade entre a vida política e a doméstica. A pátria era uma extensão dafamília. Mas os líderes jacobinos não queriam compartilhar o espaço com as mulheres, e avocação materna foi a justificativa para a exclusão. Entretanto, as razões políticas não forammenos importantes para o silenciamento de adversárias estridentes que instigavam rebeliõespopulares e ameaçavam o poder.

O que restou de toda aquela experiência revolucionária? Os atos de cidadania femininos foramvarridos do mapa até meados do século 19. O exercício pleno dos direitos cívicos imaginadopelas patriotas só se materializou na França após a Segunda Guerra Mundial. Mas as lutas pelacidadania do início da Revolução inspiraram as futuras gerações. A Sociedade dasRepublicanas Revolucionárias foi o protótipo dos clubes políticos femininos que surgiram narevolução de 1848. Como salientou a historiadora americana Harriet Branson Applewhite,depois da Revolução Francesa, qualquer planejamento de guerra incluía pensões para asviúvas ou esposas de mutilados de guerra, uniformes e provisões para maridos e filhos noexército, oficinas de trabalho para as mães e esposas de combatentes.

A Revolução acentuou o papel das mulheres como barômetro das crises sociais. Elas tinham se

habituado a ir às galerias das assembleias exigir providências se suas reivindicações fossemnegadas. Mas não se pode falar em continuidade entre as revolucionárias e as feministascontemporâneas. Separa-as o século 19, marcado pela profunda desigualdade política, social

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e jurídica entre os dois sexos. Os tratados médicos do fim do século 18 apontaram umasubalternidade orgânica no gênio feminino, condenando-as a uma espécie de menoridadevitalícia. Tal é o fundamento científico da subordinação da mulher ao homem no Código Civilde Napoleão (1804). Essa legislação reafirmou a autoridade paterna, reinstituiu a supremaciamarital e tornou o divórcio mais punitivo para a esposa que para o marido. A teoria dadomesticidade e da debilidade física e mental da mulher custou ao sexo feminino a relativa

liberdade de que desfrutou nos primeiros anos da Revolução, sepultando por um século ossonhos políticos das mulheres livres de 1793. A marcha das mulheres foi longa e acidentada, eo legado das revolucionárias só foi resgatado pela geração das feministas do pós-guerra.

*Tania Machado Morin é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo e autora dadissertação Práticas e Representações das Mulheres na Revolução Francesa - 1789-1795.