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A REVOLUÇÃO DE 1923 ATRAVÉS DAS IMAGENS: PRODUTORES E
PRODUTOS POLÍTICOS-VISUAIS DE UMA GUERRA CIVIL NO RIO
GRANDE DO SUL NA PRIMEIRA REPÚBLICA
RODRIGO DAL FORNO
Mestrando em História pelo PPGH/UFRGS
1. Considerações Iniciais
A chamada “Revolução de 1923”, também conhecida como “Revolução
Assisista” ou “Libertadora”, foi objeto de diversos registros e representações visuais
acerca de seus aspectos, personagens e acontecimentos. O conflito político-militar
recebeu ampla atenção por parte de fotógrafos em diferentes regiões do Rio Grande do
Sul, tanto no decorrer dos episódios armados durante o ano de 1923, como através de
publicações posteriores ao término das hostilidades no estado. As imagens sobre o
conflito atingiram ampla circulação em determinados setores da sociedade rio-
grandense, sendo reproduzidas e comercializadas em formatos e suportes variados, tais
como, álbum fotográfico, fotogravuras em jornais, reproduções em cartões-postais,
quadros, etc. Por outro lado, alguns destes artefatos também serviram como importantes
instrumentos de luta política para os grupos partidários rio-grandenses, especialmente
para os oposicionistas.
É acerca desta diversidade de olhares e produtos político-visuais sobre os quais
este artigo se debruça. O enfoque do texto consiste em explorar, de forma breve e
limitada, algumas possibilidades de reflexão e análise em torno de determinados
documentos históricos, os quais tive acesso1 ao longo de minhas investigações. Tratam-
se de algumas fontes visuais coletadas no desenvolvimento de um projeto de pesquisa
mais amplo, ainda em desenvolvimento, vinculado com a elaboração de minha
dissertação de mestrado. A pesquisa versa sobre o “Álbum dos Bandoleiros” e a atuação
1 Os documentos históricos apontados neste texto foram pesquisados pelo autor, com exceção do “Quadro
Pró-Paz” (ver nota nº6).
2
das oposições político-partidárias na guerra civil de 1923 e na formação e articulação da
Aliança Libertadora em 19242.
Para os fins da análise proposta neste texto, destacam-se os seguintes
documentos político-visuais: a) um álbum fotográfico impresso publicado pela Revista
Kodak no ano de 1924, intitulado de “Álbum dos Bandoleiros – Revolução Sul Rio-
grandense, 1923” e produzido em homenagem aos “bandoleiros” que atuaram na guerra
civil3; b) algumas fotogravuras publicadas pelo jornal Última Hora de Porto Alegre,
principal folha partidária dos oposicionistas da capital gaúcha e importante veículo de
comunicação, mobilização e informação para os “revolucionários” de 19234; c)
conjunto de cartões postais impressos com imagens fotográficas de retratos dos diversos
personagens da guerra civil e que foram utilizados como um mecanismo de
comunicação entre indivíduos envolvidos com o conflito5; e) um quadro, intitulado
como quadro “Pro-Paz”, produzido pela “Photografia Popular” de propriedade do
fotógrafo Carlos Gatti em Porto Alegre e constituído por 35 fotogravuras de retratos das
lideranças da guerra civil, essencialmente dos “chefes libertadores”6.
Partindo da reflexão acerca desta documentação, este artigo possui dois
objetivos principais. Em primeiro lugar, pretende-se discutir de que forma alguns destes
produtos visuais assumiram feições acentuadamente político-partidárias, sendo
2 Pesquisa de dissertação de mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa tem como objetivo analisar de que forma, o
“Álbum dos Bandoleiros”, contribuiu como um instrumento de poder simbólico para as oposições
político-partidárias estaduais em uma tentativa de forjar uma coesão e gerar mobilização entre os
segmentados setores oposicionistas rio-grandenses, além da buscar estabelecer uma determinada leitura e
memória da guerra civil de 1923 e dos “bandoleiros”. 3 As duas edições da publicação encontram-se disponíveis para a pesquisa em diversos acervo do estado,
dentre eles: Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa (Porto Alegre/RS), sendo que no ano
de 2013, o museu organizou uma edição digitalizada que foi lançada em formato de CD-ROM. Também
constam exemplares nos acervos do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS), no Setor
de Obras Raras da Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica-RS (Porto Alegre/RS), na
Bibliotheca Pública Pelotense (Pelotas/RS), entre outros. 4 A coleção preservada do jornal Última Hora, encontra-se bastante fragmentada, constando exemplares
esparsos dos anos de 1922, 1923, 1924 e 1926. Disponível para a pesquisa no Museu da Comunicação
Social Hipólito José da Costa (Porto Alegre/RS). 5 O conjunto de cartões-postais encontra-se disponível no Acervo Iconográfico do Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS), Pasta 17. 6 Infelizmente não encontrei nenhum exemplar deste item nos acervos que consultei. As informações
acerca de sua existência foram coletadas através de reproduções em livros e páginas da internet, além de
uma consulta aos jornais da época.
3
utilizados como instrumento e recurso político para as finalidades do grupo
oposicionista em sua disputa pelo poder estadual frente aos adeptos do Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR). Em segundo lugar, busca-se analisar como este
conjunto documental aponta para a evidência de que havia uma demanda de mercado
para este tipo de consumo (TRUSZ, 2013a, p. 14), assim como uma circulação e
interesse por parte de determinados setores da sociedade rio-grandense em torno de
representações visuais do conflito armado de 1923, especialmente no que tange a
atuação dos “libertadores” ou “bandoleiros” da guerra civil.
2. A Revolução de 1923 através das imagens: Fotografia e Política
A guerra civil de 1923 no Rio Grande do Sul se deflagrou após as eleições para
presidente estadual no ano de 1922. Para o pleito eleitoral ocorreu um movimento de
coalizão e rearticulação entre os diversos setores oposicionistas gaúchos (membros do
Partido Federalista, seguidores de Assis Brasil e Fernando Abbot e alguns dissidentes
recentes do próprio PRR, como os Menna Barreto e Pinheiro Machado). A frente única
formada pelos oposicionistas designou Joaquim Francisco de Assis Brasil como
candidato para concorrer contra Borges de Medeiros, principal liderança do Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR) e presidente do estado que buscava sua reeleição.
As eleições ocorreram de volta tumultuada, tendo sido Borges de Medeiros decretado
vencedor em meio a uma série de acusações de fraudes, violências e irregularidades.
Defendendo a ideia de suposta fraude eleitoral borgista, os oposicionistas
iniciaram em janeiro de 1923 uma guerra civil pelo território rio-grandense com o
intuito principal de convulsionar o estado para que o Presidente da República Arthur
Bernardes intervisse na região e depusesse Borges da comandância estadual7. A tão
esperada intervenção federal apenas ocorreu no mês de dezembro e de forma branda:
Bernardes enviou ao Rio Grande do Sul o Ministro de Guerra Setembrino de Carvalho
7 A crença oposicionista na intervenção federal e o ânimo opositor das campanhas de 1922 e 1923,
devem-se, principalmente, ao fato de que as relações entre Bernardes e Borges eram bastante tensas
durante aquele período. Nas eleições para presidente nacional em 1922, o chefe do PRR apoiou a chapa
de Nilo Peçanha contra Arthur Bernardes, na chamada Reação Republicana. Bernardes acabou como
vencedor daquele pleito nacional e a relação entre Borges e o poder federal fragilizada (LOVE, 1971,
p.216-7).
4
para que mediasse um acordo entre as partes divergentes e colocasse um fim ao conflito
armado. A guerra civil cessou e o pacto de paz foi assinado, entretanto, Borges de
Medeiros permaneceu no poder como presidente legalmente eleito8.
A luta armada se desenrolou em diversas localidades do território estadual
através da liderança de chefes político-militares que possuíam a capacidade de
mobilizar contingentes numerosos de seguidores e adeptos em suas hostes armadas.
Entre os chamados “Generais Libertadores” estavam Leonel Rocha e Menna Barreto na
região norte do estado, Felipe Portinho no nordeste, Honório Lemes na fronteira oeste e
Estácio Azambuja e Zeca Netto na zona central e sul. Em torno da atuação destas
lideranças, com seus “estado maior” e colunas militares é que se concentraram grande
parte da atenção dos olhares e registros fotográficos sobre a guerra civil9.
O mais complexo destes produtos político-visuais tratou-se do “Álbum dos
Bandoleiros”, álbum fotográfico impresso com fotogravuras10
e organizado e publicado
pela Revista Kodak11
sob direção de Fernando Barreto e Carlos Horácio Araújo. O
álbum foi publicado em duas edições distintas: a primeira no mês de janeiro de 1924 e a
segunda em abril, em uma reedição aumentada e chamada de “8ª edição”12
.
8 O chamado “Pacto de Pedras Altas” foi assinado no dia 14 de dezembro de 1923 no Castelo de Pedras
Altas, em Bagé, onde os opositores obtiveram vitórias significativas com o acordo, embora muitos chefes
“libertadores” acabaram decepcionados com o desfecho da revolta, tendo em vista que a principal
reivindicação dos insurretos era a deposição imediata de Borges de Medeiros, o que acabou não
ocorrendo. O acordo de paz, em linhas gerais, proibia a reeleição para presidente do estado e para
intendentes municipais; previa eleições diretas para vice-presidente; previa a adequação das eleições
municipais e estaduais a legislação federal; garantia a representação das minorias na Assembleia e no
Congresso; e concedia anistia aos opositores (ANTONACCI, 1981, p. 110; LOVE, 1975, p.223). 9 Cabe ressaltar que esta análise contempla apenas as representações visuais elaboradas sobre as tropas e
lideranças oposicionistas. Um mapeamento e análise de fontes visuais produzidas pelo e sobre o grupo
legalista durante a guerra, ainda por ser feito, traria importantes contribuições para a temática em estudo. 10
A fotogravura, amplamente utilizada em jornais, revistas ilustradas e álbuns fotográficos impressos no
período, trata-se de um processo de impressão gráfica de imagens que parte do negativo original
fotográfico para reproduzir fotografias sobre uma placa de zinco ou cobre através do uso de produtos
químicos. Através deste procedimento se obtém uma reticula que permite a publicação de imagens com
meios tons. A sua matriz era chamada na imprensa de clichê (BOND apud TRUSZ, 2013a, p.10). 11
Sobre a trajetória da Revista Kodak, ver as contribuições de Alice Trusz (2002; 2013a; 2013b). 12
Ao longo da pesquisa localizei apenas duas versões do “Álbum dos Bandoleiros”, as ditas 1ª e 8ª
edições. A lacuna de edições entre estas e a utilização da nomenclatura de “8ª”, quando na verdade trata-
se da 2ª versão da publicação, possivelmente se trate de alguma estratégia de comercialização e
repercussão do projeto.
5
A “8ª edição”, mais completa e extensa, conteve 96 páginas e aproximadamente
340 imagens fotográficas. Sua tiragem foi de 20.000 exemplares13
, número bastante
expressivo para publicações deste cunho daquela época, o que possivelmente contribuiu
para uma larga circulação do artefato pela sociedade gaúcha. Em anúncios publicado no
jornal Correio do Povo, os editores da publicação comunicavam que os exemplares
custavam 15$000 cada e estavam à venda na redação da Kodak e em diversos pontos de
comércio, além de serem disponibilizadas para revendedores e para envio pelo correio14
.
Em seu conteúdo, o “Álbum dos Bandoleiros” foi composto por um complexo
mosaico formado por imagens fotográficas acompanhadas de legendas contendo o uso
efusivo de adjetivos glorificantes para os “bandoleiros” e também de textos-
documentários acerca dos diversos personagens, curiosidades, localidades e
acontecimentos dos episódios da guerra civil. As fotografias impressas no álbum
possuíam temáticas bastante diversificadas, com destaque para algumas delas, tais
como, os retratos das principais lideranças oposicionistas da guerra civil e suas tropas,
líderes como Zeca Netto, Honório Lemes, Felipe Portinho, entre outros, são
representados como os “heróis” do Rio Grande do Sul; enfermeiros e médicos da “Cruz
Vermelha bandoleira” em hospitais ou posando em estúdios; retratos de políticos de
destaque na causa oposicionista, como Assis Brasil, Francisco Antunes Maciel, Arthur
Caetano, Fernando Abbot, entre outros; retratos de jornalistas propagandistas da guerra
civil, como Hugo Barreto, Lourival Cunha e Mario Sá do jornal Última Hora, além de
os próprios envolvidos com a publicação do álbum, Fernando Barreto, Carlos Horácio
Araújo e o colaborador fotográfico Affonso de Oliveira; e ainda alguns acontecimentos
e localidades em que se desenrolou a revolta, como as fotografias da tomada de Pelotas
por Zeca Netto, a cobertura fotográfica das viagens do Ministro de Guerra Setembrino
de Carvalho pelo estado para mediar os acordos de paz e das reuniões entre os chefes
“bandoleiros” na residência de Assis Brasil em Pedras Altas.
Através dos recursos visuais e textuais reproduzidos em suas páginas, o “Álbum
dos Bandoleiros” procurou construir uma representação dos “bandoleiros” e do
movimento de 1923 que destacasse o protagonismo dos opositores e perpetuasse uma
determinada leitura e memória daqueles acontecimentos. A construção desta visão
13
Álbum dos Bandoleiros, Porto Alegre, 1924, 8ªed. p.1 14
Correio do Povo, Porto Alegre, 29/04/1924, p.4; 01/05/1924, p.4
6
ocorreu em contraposição a uma versão antagônica operada anteriormente pelos seus
adversários políticos no decorrer da guerra civil. Durante o ano de 1923, os adeptos do
PRR, através de seu órgão de imprensa oficial, o jornal A Federação, insistiram na
construção de um discurso pejorativo acerca dos opositores, principalmente por meio da
criminalização do movimento armado com o uso de adjetivos negativos, como o de
“bandidos” ou “bandoleiros”, e a referência à guerra civil como uma prática
“criminosa”, “covarde” e esvaziada de qualquer sentido e embasamento político e
social15
.
Este intento de resposta e de construção de uma representação positiva do grupo
oposicionista e da guerra civil torna-se bastante evidente no texto-manifesto presente
nas primeiras páginas da publicação:
“BANDOLEIROS! Assim os escribas ditatoriais chamavam a elite
social do Estado, nobremente consagrada na tarefa ingente da redenção dos
costumes políticos gaúchos e na garantia da liberdade algemada, havia 30
anos, pela carta de 14 de Julho.
Realizaram tais escribas, a inversão significativa do vocábulo; -
porque, tão distinta era a gente assim designada pelo cornetim infamante da
ditadura (A Federação) que hoje, no Brasil, dizendo-se “bandoleiro” tem-se
dito elite, escol, ou qualquer outro sinônimo de honrosa investidura.
Provam o nosso acerto, as fotografias deste álbum.”16
No texto ressalta-se a importância das imagens fotográficas como um recurso
político. Segundo ele, as imagens fotográficas desempenhariam a função de testemunho
e de legitimação do discurso emitido pelo “Álbum dos Bandoleiros”. As fotografias
demonstrariam e provariam o “acerto” da publicação e da luta oposicionista, bem como
evidenciariam quem eram os verdadeiros “heróis” do Rio Grande, “a elite política e
militar redentora dos costumes políticos” que havia “honrando uma época de sua
geração”, conforme demonstra o conjunto de retratos das principais lideranças do
movimento que formavam uma espécie de “galeria dos heróis militares” da “cruzada
libertadora”:
15
Sobre esta construção pejorativa de “bandoleiros” de 1923 por parte da imprensa legalista. Ver: DAL
FORNO, Rodrigo. “Quem não é revolucionário nesta terra de tirania?”: O bandoleiro Leonel Rocha e a
Revolução de 1923 no norte do Rio Grande do Sul. Pelotas: UFPel, 2012. Monografia (Graduação em
História), Universidade Federal de Pelotas, 2012; DAL FORNO, Rodrigo; DOBKE, Pablo. A construção
da imagem dos bandoleiros maragatos da Revolução de 1923 através das páginas do jornal A Federação.
In: II Seminário de História Política: Olhares além das práticas, 2011, Rio Grande. Anais. Rio Grande:
Pluscom, 2011. v.1, p. 702-725 16
Álbum dos Bandoleiros, Porto Alegre, 1924, 8ªed, p.7.
7
Figura 1. “Honrando uma época de nossa geração” – Álbum dos Bandoleiros, Porto
Alegre, 1924, 1ªed, p.11 (Versão digitalizada pelo Museu da Comunicação Social Hipólito José
da Costa)
Esta concepção sobre o poder das fotografias e sua utilização como um
instrumento na política, estava ancorada em um entendimento específico sobre as
dimensões das imagens fotográficas durante aquele momento histórico. Desde seu
surgimento sob a égide do positivismo no século XIX, as fotografias incorporaram as
noções de “prova” e “testemunho”, associando-se a uma noção de “espelho do real”
(BARBOSA, 2006, p.42). Diante desta compreensão, as fotografias eram consideradas
como “expressões de verdades”, decorrente ao caráter objetivo daquilo que era
apreendido e congelado nas imagens fotográficas, com isto gerando um “status de
credibilidade” quase que inquestionável e irrefutável para os registros fotográficos
(KOSSOY, 1993, p.13; 2012, p.29).
Além deste “status de credibilidade e prova”, ao longo do século XX as imagens
fotográficas também desempenharam um importante papel nas lutas políticas,
movimentos sociais e políticas de construção de identidades sociais (MAUAD &
LOPES, 2011, p.273). Através deste entendimento, pode-se afirmar que as fotografias
8
reproduzidas no álbum tinham como intuito servir enquanto um instrumento político em
favor das oposições na sua luta frente ao PRR. Tendo em vista o potencial das imagens
fotográficas como um instrumento de manipulação e veiculação de ideias (KOSSOY,
1993, p.14), assim como sua capacidade em agenciar um discurso político que é capaz
de criar um imaginário social acerca daquilo que se registra e também de elaborar um
sentido que suscita mobilizações (MAUAD, 2008, p.37-44).
Outra importante publicação que utilizou e difundiu imagens visuais da guerra
civil foram os exemplares do jornal Última Hora de Porto Alegre17
. Assim como o
“Álbum dos Bandoleiros”, o jornal se colocou explicitamente como propagandista dos
interesses e objetivos das lutas oposicionistas no estado, além de fazer das fotografias
um instrumento de poder e convencimento dos leitores.
No ano de 1923 o jornal tinha como redator-chefe Hugo Barrete e como gerente
Francisco Niederauer Timm. Sua redação e oficina gráfica estavam localizadas na Rua
dos Andradas, nº 58 e 6018
. No desenrolar da revolta civil em 1923, o jornal participou
ativamente do movimento armado através de reportagens, entrevistas, manifestos e
ações, como por exemplo, na realização de campanhas de arrecadação de fundos e
suprimentos para enviar as tropas oposicionistas. As chamadas “Subscrições em favor
dos Libertadores”, tinham como objetivo arrecadar dinheiro para auxiliar soldados
feridos19
e prestar ajuda aos familiares de soldados mortos em combates20
.
As fotografias também desempenharam um papel significativo nas
manifestações político-partidárias do jornal. As diversas e apologéticas imagens
publicadas diariamente nas colunas do Última Hora eram sempre seguidas por uma
legenda repleta de adjetivos exaltando o grupo oposicionista, como o retrato do “heroico
tropeiro da liberdade Honório Lemes”21
, um retrato de Felipe Portinho “o intrépido
general da coluna serrana”22
, uma fotografia do “bravo general Zeca Netto e seu estado
17
Última Hora circulou em Porto Alegre a partir de 1914 sob fundação e direção de Lourival Cunha. O
jornal foi o porta-voz das oposições na campanha de 1922 e cobriu as notícias da guerra civil de 1923.
Deixou de circular alguns anos após este período (FRANCO, 2010, p. 205). 18
Última Hora, Porto Alegre, 19/11/1923, p.1. 19
Última Hora, Porto Alegre, Edição Vespertina, 06/07/1923, p.2; Última Hora, Porto Alegre,
06/05/1923, p.4; 10/05/1923, p.4; 18/05/1923, p.4; 23/05/1923, p.4; 21/06/1923, p.2; 16/10/1923, p.4. 20
Última Hora, Porto Alegre, 13/10/1923, p.4; 16/10/1923, p.4. 21
Última Hora, Porto Alegre, 15/10/1923, p.1; 22
Última Hora, Porto Alegre, 21/09/1923, p.1.
9
maior”23
, etc. Entre estas imagens, uma delas exibiu concepções significativas daquilo
que representou o uso político das fotografias pelo discurso oposicionista. Com
proximidade da concepção difundida posteriormente pelo “Álbum dos Bandoleiros”, o
jornal apresentou uma fotografia retratando uma reunião, em meio a um churrasco, entre
alguns chefes militares oposicionistas e o Ministro de Guerra Setembrino de Carvalho.
Figura 2. “A eloquência de uma fotografia”, Última Hora, Porto Alegre, 31/10/1923, p.1
A imagem, acompanhada do título de “A eloquência de uma fotografia”,
apresentou uma confraternização entre as tropas “libertadoras” e o governo federal (na
figura de Setembrino de Carvalho e seus ajudantes). Sua ênfase remete a dois aspectos,
por um lado, um indicio da intervenção e do importante reconhecimento do governo
federal acerca das motivações e do movimento político-militar realizado pelos
oposicionistas, com isto reconhecendo e consolidando a legitimidade da existência e
atuação do grupo oposicionista na política gaúcha e nacional. Por outro lado,
demonstrava que o elemento ausente e estranho desta elite política fotografada tratava-
se de Borges de Medeiros e seu grupo. Estes sim representariam os “problemas” que
levaram ao conflito armado no estado. Além disto, a fotografia também foi
acompanhada por um breve texto em defesa dos oposicionistas diante das críticas e
23
Última Hora, Porto Alegre, 23/05/1923, p.1.
10
acusações de A Federação. Em resposta aos epítetos de “bandoleiro-bandido”, o jornal
argumentava que:
“digam esses subservientes atrelados ao carro da usurpação, que somos
bandoleiros, que fazemos mashorca que nos reunimos para depredar, para
roubar, para matar! Aí está a simplicidade dessa fotografia o desmentindo; aí
está a evidente prova de quanto somos e valemos [...] aí esta na reprodução
fotográfica o desmentido a tudo: éramos tão relevantes nos nossos feitos,
tínhamos importância tamanha na nossa causa que o Ministro de Guerra
Setembrino de Carvalho, veio conferenciar com nossos chefes militares para
a pacificação do Rio Grande do Sul ”24
.
O exposto e defendido pela imagem e pelo texto seguiu a mesma lógica de
embate e resposta frente as acusações dos partidários do PRR. A fotografia servia como
legitimação e uma “evidente prova” das “qualidades” e do “valor” da causa e do grupo
oposicionista, assim como auxiliava na refutação, “desmentindo a tudo” as acusações
dos adversários.
Os clichês fotográficos publicadas nos jornais possivelmente atingiram
importantes parcelas da população, especialmente, da capital porto-alegrense. Não
obstante, estas fotografias além de estamparem diariamente as páginas do jornal,
também eram fixadas nos famosos “placards” da impressa da época. Espécie de quadro
colocado em frente ao prédio de redação dos jornais com os principais notícias do dia,
atraindo a curiosidade e os olhares dos transumantes que paravam para conferir os
comunicados. Aspecto que possivelmente colaborou para uma maior difusão e
conhecimento de aspectos visuais da guerra.
O terceiro produto político-visual trata-se do artefatos produzido e
comercializados pelo fotógrafo Carlos Gatti, proprietário do estúdio fotográfico
Photografia Popular de Porto Alegre. O fotógrafo foi um dos colaboradores comerciais
e anunciantes do projeto do “Álbum dos Bandoleiros” e através da “8ª edição” anunciou
que seu estúdio fotográfico possuía os originais de todos os clichês divulgados no álbum
e prestava o serviço de reprodução e encomendas de ampliação das fotografias25
.
O atelier fotográfico de Gatti estava localizado inicialmente na Rua Marechal
Floriano e em seguida abriu uma filial na Rua dos Andradas, principal artéria comercial
do centro da cidade (POSSAMAI, 2005, p. 55). No ano de 1924, Gatti passou a oferecer
24
Última Hora, Porto Alegre, 31/10/1923, p.1. 25
Álbum dos Bandoleiros, Porto Alegre, 1924, 8ªed, p.93.
11
ao público consumidor rio-grandense, além da reprodução e ampliação das fotografias
pertencentes ao álbum, outro artefato visual com imagens do movimento armado de
1923. Tratava-se de um grande quadro colorido, intitulado “´Pro-Paz”, impresso com
fotogravuras de retratos das lideranças oposicionistas da guerra civil, além das imagens
fotográficas de personagens importantes na articulação da pacificação do estado, como
o Ministro Setembrino de Carvalho, o arcebispo João Antônio Becker, o Senador Soares
dos Santos, entre outros. O fotógrafo anunciou seu serviço de produção do quadro no
jornal Correio do Povo, comunicando que estava à venda o: “Pro-Paz. Grande quadro
em 7 cores com 35 fotografias dos vultos mais proeminentes do movimento
revolucionário. Preço 3$500.”26
. Posteriormente, o produto teve seu preço reduzido e
passou a atender demandas em maiores quantidades: “Um quadro: 2$500, 100 cópias
200$000, 50 cópias 110$000”27
.
26
Correio do Povo, Porto Alegre, 01/02/1924, p.5; 5/02/1924, p.8. 27
Correio do Povo, Porto Alegre, 16/02/1924, p.5; 04/03/1924, p.9.
12
Figura 3. “Quadro Pró-Paz”. Imagem retirada de:
http://simposiorevolucaoassisista.blogspot.com.br/p/apresentacao.html. Acesso
em 10 jul. 2014.
A dimensão visual do “quadro” aponta para dois aspectos interessantes.
Primeiro, a importância da menção acerca da pacificação do estado pelo governo
federal, o que significou uma espécie de reconhecimento e diálogo entre o setor
oposicionista na política gaúcha com o setor situacionista da política nacional. Em
segundo, a ênfase em definir, designar e veicular os “vultos mais proeminentes do
movimento revolucionários”, os “verdadeiros heróis” do movimento político e armado
de 1923. Tratava-se de uma tentativa de estabelecer uma espécie de panteão político-
militar com os personagens mais destacados daquele evento e apresenta-los e difundi-
los pela sociedade gaúcha.
Não obstante, os produtos oferecidos por Gatti estão relacionados com um
contexto de ampliação e busca por alternativas dos fotógrafos de estúdio com o intuito
de viabilizar economicamente seu empreendimento. O oferecimento de diversificação
de seus artefatos tinha como objetivo atrair clientes e vencer a concorrência com outros
ateliers fotográficos, através do investimento na produção de artefatos fotográficos
diversificados, como ampliações, reproduções, encomendas para presente, etc.
(POSSAMAI, 2006, p.275)
Por último, cabe mencionar a existência de alguns cartões postais com a
fotografias retratando personagens e locais da guerra civil. Entre os diversos cartões
mapeados durante a pesquisa, encontra-se a imagem fotográfica que talvez seja a mais
conhecida e reproduzida sobre os “revolucionários” de 1923. Trata-se da fotografia dos
sete principais chefes libertadores, Mena Barreto, Chiquinote Pereira, Leonel Rocha,
Honório Lemes, Assis Brasil, Zeca Neto, Felipe Portinho e Estácio Azambuja,
acompanhados por Setembrino de Carvalho e Ângelo Pinheiro Machado na residência
de Assis Brasil durante as reuniões para tratar dos termos da pacificação do estado28
.
Os postais em análise apresentam na parte frontal imagens fotográficas em preto
e branco que retratam as tropas marchando sobre cidades ou em manobras militares,
soldados acampados, lideranças do conflito pousando em estúdios, etc. Já o verso do
cartão, além do espaço para o preenchimento do endereço postal, era reservado para a 28
Acervo Iconográfico do AHRS, Pasta 17, Item R1923 065.
13
escrita de poucas linhas que servissem como mensagem ao destinatário. Alguns cartões
apresentam no verso trocas de mensagens entre pessoas envolvidas com a luta armada e
que buscavam enviar notícias para familiares ou amigos distantes. Tendo em vista que
os postais, assim como outras correspondências, tinham como objetivo estabelecer uma
comunicação entre ausentes e restituir uma distância, através de mensagens com
declarações de amor, saudades e as convencionais informações sobre o bom estado de
saúde (LÔBO, 2004, p.43), principalmente em tempos de confrontos bélicos, onde os
cartões serviam como uma forma de comunicar os amigos e familiares sobre a
sobrevivência dos soldados (VASQUEZ, 2002, p.25).
Este é o caso específico de alguns cartões postais remetidos por um individuo
chamado Paulo, possivelmente um combatente do lado opositor, para a destinatária
Norma, aparentemente amiga próxima do emissor. Através dos postais, Paulo além de
transmitir e solicitar notícias aos amigos e familiares, também enviou imagens
fotográficas dos acontecimentos que ocorriam no estado:
“Passo Fundo, 6/12/923.
“Norma...
Desejando muita saúde a ti e todos de casa são meus votos.
Junto remeto quatro retratos de revolucionários aqui da serra. Sigo
amanhã para Carasinho e Não me Toque, peço não escreveres para estes
lugares, pois a correspondência é geralmente extraviada.
Escreva-me somente no dia 13 para Cachoeira.
Um abraço do amigo muito dedicado, Paulo.”29
A partir deste exemplo pode-se indicar que os postais fotográficos serviram
como um importante instrumento de circulação, distribuição e consumo acerca dos
registros visuais da guerra civil de 1923 por todo o estado. O emitente da
correspondência escreve poucas e simples linhas em sua mensagem, no entanto envia
quatro imagens fotográficas das tropas oposicionistas estacionadas na região de Passo
Fundo. Neste sentido, os postais não apenas foram utilizados como um mecanismo de
comunicação entre duas pessoas que estavam separadas pelos episódios da guerra, mas
também propiciaram aos indivíduos que se encontravam em longínquas regiões, o
acesso e o colecionismo de fotografias sobre aspectos e personagens da guerra civil
vivida no Rio Grande do Sul.
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Acervo Iconográfico do AHRGS, Pasta 17, Item R1923 073.
14
As fotografias reproduzidas nos cartões possivelmente ampliaram o consumo e
acesso visual da revolta, propiciando “olhar” e “conhecer” determinados aspectos da
guerra sem estar diretamente envolvido com as cenas do conflito armado. Da mesma
forma, se por um lado os postais serviram como mecanismos de comunicação e coleção
de imagens da guerra, também proporcionaram aos produtores visuais, os fotógrafos
espalhados pelo interior do estado, a possibilidade de fazer circular suas fotografias
através da utilização deste mecanismo de correspondência (KOSSOY, 1980, p.96).
3. Considerações Finais
Ao que tudo indica o “Álbum dos Bandoleiros” representou o principal e mais
bem elaborado produto político-visual da guerra civil de 1923, devido a uma série de
aspectos e questões que não cabem neste texto. Entretanto, o que importa ressaltar é que
ele coexistiu e dividiu o espaço de interesse e consumo do público rio-grandense com
diversos outros artefatos visuais produzidos durante o mesmo período. Este aspecto
demonstra a possibilidade de existência de uma circulação e comercialização destacada
de imagens fotográficas sobre o movimento armado de 1923, apontando para a
importância do conflito na sociedade e política do Rio Grande do Sul da Primeira
República. Assim como, esta presença expressiva de produtos em homenagem aos
“bandoleiros” de 1923 demonstra o prestigio e entusiasmo dos indivíduos identificados
com às oposições político-partidárias e como este grupo buscou se utilizar destas
representações visuais ao ser favor na luta política travada contra o PRR.
Para além do destaque destas duas possibilidades de reflexão, o estudo da
demanda e circulação de imagens fotográficas e o uso político das fotografias, outras
possibilidades podem se abrir através da análise destas fontes históricas, até então pouco
exploradas por historiadores. A análise destes produtos político-visuais pode ser muito
útil e enriquecedora na reflexão acerca dos aspectos políticos e culturais da revolta de
1923. Assim como, através destas imagens é possível atentar para o instigante ponto de
encontro entre o cultural e o político, abrindo-se novas possibilidades de debates e
estudos.
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4. Referências Bibliográficas
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Alegre: Mercado Aberto, 1981.
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interpretação da história visual da Revolução Mexicana (1900-1940). São Paulo:
UNESP, 2006.
FRANCO, Sérgio da Costa. Dicionário Político do Rio Grande do Sul 1821-1937.
Porto Alegre: Suliani Letra & Vida, 2010.
KOSSOY, Boris. Estética, Memória e Ideologia Fotográfica: Decifrando a realidade
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VASQUEZ, Pedro. Postais do Brazil. São Paulo: Metalivros, 2002.
5. Fontes Históricas
Álbuns:
Álbum dos Bandoleiros, Revolução Sul Rio-grandense – 1923. 1ª ed. Porto Alegre:
Kodak/Barreto & Araújo, 1924.
Álbum dos Bandoleiros – Revolução Sul Rio-grandense – 1923. 8ª ed. Porto Alegre:
Kodak/Fernando Barreto, 1924.
Cartões Postais:
Acervo Iconográfico do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – Fotografias da
Revolução de 1923, Pastas 17.
Jornais:
Correio do Povo, Porto Alegre, 1923, 1924.
Última Hora, Porto Alegre, 1922, 1923, 1924, 1926.