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A revolta republicana de São José do Rio Pardo: uma proclamação republicana antecipada no oeste paulista Liliane Faria Corrêa Pinto 1 * São José do Rio Pardo – SP foi palco de uma revolta republicana em agosto de 1889 que envolveu fazendeiros, comerciantes, advogados, jornalistas, negros, imigrantes, empregados e capangas das fazendas, chamados de “povo”, entre os republicanos, praças e cabos da polícia paulista, entre os monarquistas. A chegada de Francisco Glicério à cidade desencadeou insatisfações entre os liberais e os praças que atacaram o Hotel Brasil onde os republicanos rio-pardenses recepcionavam Glicério. Analisaremos nesse trabalho os personagens envolvidos nesta pequena proclamação da república para discutir os papéis de cada grupo no contexto rio-pardense e do oeste paulista e o caráter setorial da revolta, que não se pretendia separatista e nem se consolidou enquanto movimento para além das fronteiras rio-pardenses, apesar da presença de Glicério. Palavras-chave: republica, oeste paulista, povo. In August 1889 happened a republican revolt in São José do Rio Pardo. This event involved among the republicans farmers, merchants, lawyers, journalists, blacks, immigrants, farm workers and thugs, called "people", and the police, among the royalists. The arrival of Glicério in the city initiated a dissatisfaction among the liberals and the soldiers who attacked the Hotel Brazil where the rio-pardense republicans were having dinner with Glicério. We will review in this paper the characters involved in this proclamation of the republic to discuss the roles of each group in the context in São José do Rio Pardo and west of São Paulo. We will discuss the local character of the revolt, which was not intended a separatist movement or consolidated itself to beyond the borders of the São José do Rio Pardo, despite the presence of Glicério. Key-words: republic, west of São Paulo, people. Nesse antigo identificaremos os atores envolvidos na república antecipada de São José do Rio Pardo a partir do inquérito policial arquivado no Arquivo do Estado de São Paulo, dos manuscritos do cel. Manoel Corrêa de Sousa Lima (cel. MCSL daqui em diante) “Nepomuceno – o seu início” e de uma entrevista concedida por ele ao Jornal Diário da Tarde em 1949. Para isso, vamos traçar uma pequena história de São José do Rio Pardo e da revolta republicana que aconteceu lá em agosto de 1889. Em seguida, vamos descrever alguns personagens principais e os grupos que 1 * Mestre em História Econômica pela USP, doutoranda em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV.

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A revolta republicana de São José do Rio Pardo: uma proclamação republicana

antecipada no oeste paulista

Liliane Faria Corrêa Pinto1*

São José do Rio Pardo – SP foi palco de uma revolta republicana em agosto de 1889 que envolveu fazendeiros, comerciantes, advogados, jornalistas, negros, imigrantes, empregados e capangas das fazendas, chamados de “povo”, entre os republicanos, praças e cabos da polícia paulista, entre os monarquistas. A chegada de Francisco Glicério à cidade desencadeou insatisfações entre os liberais e os praças que atacaram o Hotel Brasil onde os republicanos rio-pardenses recepcionavam Glicério. Analisaremos nesse trabalho os personagens envolvidos nesta pequena proclamação da república para discutir os papéis de cada grupo no contexto rio-pardense e do oeste paulista e o caráter setorial da revolta, que não se pretendia separatista e nem se consolidou enquanto movimento para além das fronteiras rio-pardenses, apesar da presença de Glicério.

Palavras-chave: republica, oeste paulista, povo.

In August 1889 happened a republican revolt in São José do Rio Pardo. This event involved among the republicans farmers, merchants, lawyers, journalists, blacks, immigrants, farm workers and thugs, called "people", and the police, among the royalists. The arrival of Glicério in the city initiated a dissatisfaction among the liberals and the soldiers who attacked the Hotel Brazil where the rio-pardense republicans were having dinner with Glicério. We will review in this paper the characters involved in this proclamation of the republic to discuss the roles of each group in the context in São José do Rio Pardo and west of São Paulo. We will discuss the local character of the revolt, which was not intended a separatist movement or consolidated itself to beyond the borders of the São José do Rio Pardo, despite the presence of Glicério.

Key-words: republic, west of São Paulo, people.

Nesse antigo identificaremos os atores envolvidos na república

antecipada de São José do Rio Pardo a partir do inquérito policial arquivado no Arquivo

do Estado de São Paulo, dos manuscritos do cel. Manoel Corrêa de Sousa Lima (cel.

MCSL daqui em diante) “Nepomuceno – o seu início” e de uma entrevista concedida

por ele ao Jornal Diário da Tarde em 1949. Para isso, vamos traçar uma pequena

história de São José do Rio Pardo e da revolta republicana que aconteceu lá em agosto

de 1889. Em seguida, vamos descrever alguns personagens principais e os grupos que

1 * Mestre em História Econômica pela USP, doutoranda em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV.

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compunham a revolta para compreendermos os papéis de cada grupo no contexto

regional e do oeste paulista.

São José do Rio Pardo se formou a partir de fazendeiros, em sua maioria

de origem mineira, que se instalaram nas terras férteis das margens do rio Pardo para a

produção de café. Com a entrada do terceiro quartel do século XIX, a plantação dos

cafezais se intensificou na região e o café passou a ser o principal produto da economia

riopardense. Nos anos de 1880, os proprietários de escravos de São José do Rio Pardo,

antevendo a abolição, contrataram italianos para substituir os cativos. Inúmeros

italianos chegaram a São José por volta do ano de 1880 e se estabeleceram nas fazendas

para o trabalho na lavoura (DEL GUERRA, 1999). Alguns deles não se adaptaram às

atividades agrícolas e deixaram o campo para se dedicarem ao artesanato, à manufatura

e ao comércio no distrito sede, outros vieram da Itália e Suíça diretamente para as

profissões urbanas e não chegaram a viver nas colônias. Na cidade, formou-se, então,

um conjunto cultural com elementos brasileiros, italianos e africanos que se dividiram

politicamente em monarquistas e republicanos. Os monarquistas eram, na maioria dos

casos, brasileiros, soldados da polícia e funcionários públicos que viviam na cidade,

além de alguns fazendeiros e brasileiros de famílias tradicionais. Os republicanos eram

italianos e fazendeiros brasileiros que pertenciam ou simpatizavam com o Partido

Republicano Paulista e compreendiam que a república traria o progresso almejado por

todos. Assim, nos anos de 1880, São José do Rio Pardo já tem a maioria de seus

personagens em interação para a revolta de agosto de 1889, composta por soldados,

imigrantes de diversas nacionalidades, fazendeiros e pequenos comerciantes.

Em São José do Rio Pardo, em julho de 1889, os italianos fizeram uma

solenidade para a inauguração da pedra fundamental da Sociedade Italiana XX de

Setembro, uma mútua criada para auxiliar os patrícios que se estabeleceram na cidade e

precisavam de apoio financeiro. Além das festividades da mútua, os italianos

manifestaram-se em prol da república andando pelas ruas do centro e cantando o hino

francês da marselhesa (DEL GUERRA, 1999). O primeiro confronto entre republicanos

e monarquistas ocorreu no dia 24 de junho. Foi um encontro do desfile de lançamento

da pedra fundamental da Sociedade Italiana, que seguia com os italianos cantando a

Marselhesa tocada pela banda Giuseppe Verdi, com os monarquistas do Partido Liberal

que saiam de uma reunião e seguiam pelas ruas ao som do Hino Nacional sonorizado

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pela banda Riopardense. As músicas se confundiram e a Giuseppe Verdi tocou mais

uma vez a Marselhesa. Por fim, o delegado mandou que a banda dos italianos parasse de

tocar e houve gritos e xingamentos entre os dois grupos. No dia 25, os republicanos

seguiram para a estação ferroviária com a banda Giuseppe Verdi para vaiar o delegado e

o Dr. Fortunato dos Santos Moreira, de Pindamonhangaba, que era candidato a

deputado provincial. Em outra versão, o delegado José Vasconcelos Bittencourt, o Dr.

Fortunato e alguns capangas teriam atacado os republicanos no evento comemorativo da

Sociedade Italiana, forçando-os a saudar a monarquia. Como os republicanos não

quiseram cumprir as ordens do delegado, os soldados e capangas bateram em Ananias

Barbosa, líder dos republicanos, mas foram combatidos pelo povo. O grupo

monarquista deixou o local e foi seguido pelos republicanos que cantavam a Marselhesa

e proferiam discursos. Na versão do cel. MCSL que aparece na reportagem concedida

ao Diário da Tarde, ele descreve o processo de qualificação dos eleitores e afirma que a

maioria riopardense era republicana e os republicanos fizeram um acordo com os

liberais, mas foram traídos. No dia do evento italiano, havia na cidade uma caravana

para uma conferência do Partido Liberal que seguiu em passeata pelas ruas, com

comícios e gritos de saudações aos liberais. Na frente da “Sociedade Italiana 20 de

Setembro”, um dos liberais invadiu a sede e da tribuna chamou a colônia italiana para a

causa liberal. Em represália, o republicano Sr. Cândido Prado retrucou o orador e falou

em prol da república. O Sr. José Theodoro Nogueira de Noronha, conhecido como Juca

Gordo, um fazendeiro liberal, tirou Prado da tribuna. Em troca da violência contra o

republicano, Ananias Barbosa, dono o hotel Brasil, deu bengaladas nos monarquistas,

debandou os liberais que se submeteram aos republicanos e sujeitaram-se a aceitar a

bandeira e hino a república.

O confronto entre republicanos e monarquistas de junho de 1889

indicava a instabilidade entre os dois grupos em São José do Rio Pardo. Quarenta e sete

dias depois, os ânimos entre monarquistas e republicanos ainda estavam exaltados e o

partido republicano local organizou uma visita de Francisco Glicério. A chegada do

político aqueceu novamente as divergências. Os republicanos foram à estação de São

José do Rio Pardo para receber o visitante que foi saudado com vivas à república.

Foram para o hotel Brasil onde jantaram e, em meio ao jantar, um cabo português foi

encontrado no quintal do hotel. Ananias Barbosa e alguns republicanos que estavam no

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hotel levaram o cabo de volta ao quartel e ali ele tocou o sino chamando os praças. Um

destacamento de praças invadiu e depredou o hotel. Os republicanos, reunidos com

Glicério, prenderam as autoridades locais como o presidente da Câmara, o cap.

Saturnino Frauzino Barbosa, o subdelegado e o oficial de justiça. Segundo o cel. MCSL,

“Somente eu comandava cem homens. Procuramos os liberais, alguns escondidos

debaixo da cama...” (TAVARES, 1949). Prenderam os soldados, desarmando-os. Um

deles resistiu, “atirando sobre o povo. A massa popular reagiu à bala.” (TAVARES,

1949). Por fim, a bandeira republicana foi hasteada nos prédios públicos e a cidade foi

declarada republicana. Na tarde do dia onze, o chefe de polícia da Província de São

Paulo chegou com cem praças e retomou a cidade. No mesmo dia, iniciou um inquérito

contra os líderes do movimento, entre eles, o cel. MCSL.

Um dos principais momentos da revolta com relação à participação

popular se refere à prisão do capitão Saturnino Barbosa. Ele era o presidente da Câmara,

líder do Partido Liberal e foi preso durante a revolta. Alguns depoimentos acusavam-no

de incitar os praças contra os republicanos. As versões acerca da prisão se

complementam e tentarei aqui reuni-las para compor as imagens das cenas.

Ananias Barbosa, proprietário do hotel Brasil, contou que, antes em julho,

o cap. Saturnino Barbosa disse a ele que “logo que subisse ao poder o partido liberal

havia de quebrar as bandeiras do depoente e seus correligionários e acabar com a

maioria do partido republicano desta Villa, pois para isso teria elementos” (SÃO

PAULO, 1889). Mesmo diante disso, Barbosa convidou-o para a festa de inauguração

do hotel e ele teria mandado o subdelegado impedir a celebração. Em um resumo das

versões, na noite de dez de agosto, Saturnino Barbosa estava em casa e se incomodou

com o barulho do sino, tocado pelo cabo Rego. Ele foi verificar o que estava

acontecendo e se encontrou com o farmacêutico Damazo Ribeiro Machado e outras

pessoas, mas ninguém sabia de nada. Seguiu em direção à cadeia e ouviu um barulho

vindo do hotel. Foi até lá e chegando próximo viu que do hotel atiravam em direção à

rua e uma aglomeração de reunia em frente com garrafas e pedras. Ele encontrou o

subdelegado que lhe explicou o que estava acontecendo e a necessidade de parar com a

desforra contra o proprietário do hotel. Os praças estavam “insubordinados ou

revoltosos” (SÃO PAULO, 1889) e ele tentou dissuadi-los de voltarem ao hotel, mas

não conseguiu, assim, pediu ao subdelegado que tentasse acalmar os soldados e avisasse

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a Ananias Barbosa sobre a decisão dos praças em retornar ao estabelecimento. O dono

do hotel afirma que o recado do subdelegado foi de que os praças matariam todos que

estivessem no local. Saturnino teria, então, voltado a sua casa e ido dormir. No dia

seguinte, ele conta que foi levar sua comadre a estação quando foi cercado por um

enorme grupo formado por capangas pretos, italianos e caboclos armados em frente a

casa de Vannucci. O grupo de pessoas era comandado por Ananias Barbosa, Dr. Muniz,

Dr. João Gomes da Rocha Azevedo, Francisco Xavier de Oliveira que deram voz de

prisão ao liberal. Saturnino Barbosa fugiu para a casa de Vannucci onde tentou se

esconder, mas o negro Valentin ou capitão Valentino entrou armado perseguindo-o para

levá-lo ao povo do lado de fora. O líder liberal pediu ao comerciante que encontrasse

uma pessoa séria no grupo para conversar e lhe foi sugerido Ananias Barbosa, Dr.

Muniz de Souza e o cel. MCSL e ele escolheu este último. Em conversa com o cel.

MCSL afirmou ter ficado sabendo que o povo acreditava que ele era o mandante do

ataque. Outros depoimentos afirmam que o “povo” acreditava que Saturnino Barbosa

estava tentando fugir para Casa Branca. Diante disso, o líder da câmara aceitou sair

preso para não ser assassinado pelos populares. Ele foi levado por Antonio Muniz de

Souza para o sobrado de Honório Dias onde estava o QG republicano. Saturnino deixa

um protesto em seu relato:

“era um despotismo e não passava de uma vil vingança de seus inimigos políticos que por mera suposição queriam vingar-se por esta forma, além disto protestava contra a palavra povo por que do grupo que o rodeava só via meia dúzia de seus inimigos políticos que o comandava e o resto compunha-se de gentes desconhecidas, pretos, italianos e mais caboclos, antes de terminar este diálogo entrou no lugar o Dr. Muniz de Souza e declarou ao depoente que estava preso em nome do povo, querendo o depoente ter as mesmas explicações com este último não lhe foi permitido, apenas promessas de garantia de sua vida.” (SÃO PAULO, 1889)

No depoimento de Saturnino Barbosa ele aborda o termo “povo” que não

condizia, para ele, com os seus inimigos políticos e “gentes desconhecidas, pretos,

italianos e mais caboclos” (SÃO PAULO, 1889), desconsiderando, assim, essas pessoas

de seu conceito de povo. É importante ressaltar que esse aglomerado de pessoas era

composto por homens das fazendas dos líderes da revolta, sendo a maioria das terras do

cel. MCSL e de Honório Luiz Dias, dono do sobrado que abrigou os republicanos.

Os outros depoimentos, em especial dos republicanos, descrevem esses

populares com mais detalhes. Em um intermédio entre os republicanos ativos e os

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monarquistas, temos o comerciante italiano Izidoro Vannucci que não dava identidade

nem sequer seriedade às pessoas que compunham o povo, mas este poderia ser

acalmado por alguém sério como Ananias Barbosa, Dr. Muniz de Souza ou o cel.

MCSL. O termo “sério” agrega o valor de militância republicana, como é o caso de

Ananias Barbosa, de conhecimento, para o Dr. Muniz que era advogado e jornalista e

relativo à riqueza, como o cel. MCSL, fazendeiro de café na região. Identificamos

Vannucci como pertencente ao grupo dos republicanos, mas ele não chegou a se

posicionar perante os eventos apesar de seu depoimento tender para o lado republicano.

Ainda assim, seu conceito de “povo” guarda certo desprezo como foi o caso da opinião

do cap. Saturnino Barbosa.

Ao contrário do cap. Saturnino Barbosa, o Dr. Antônio Muniz de Souza

descreve o povo que se reunia em frente a casa do comerciante Vannucci como “muitos

trabalhadores de roça armados, que haviam sido requisitados para garantir a população

contra a polícia, nacionais e estrangeiros e bem assim pessoas como não há mais dignas

nesta Vila pertencentes a diversos credos políticos” (SÃO PAULO, 1889). E o Dr.

Geraldino Campista definiu o povo “por pessoas capazes, trabalhadores estrangeiros e

nacionais e outras pessoas qualificadas” (SÃO PAULO, 1889). Nesses dois

depoimentos, o povo é identificado e qualificado. O termo povo tem um caráter de

aliado em contraposição à situação do presidente da câmara que se sentia subjugado

pelos seus inimigos políticos. O “povo” diferenciava-se da “população” e o primeiro

estava reunido para proteger a segunda da ação da polícia que foi mencionada por

diversos depoimentos como desertora e desordeira. Temos, então, um conjunto de

homens anônimos chamados de “povo” que se prontificou a auxiliar os republicanos

contra a força policial. Ao contrário do que afirma a historiografia, era um povo atuante

e que se posicionava fazendo escolhas.

Em relação ao caráter setorial da revolta, mesmo com a presença de

Glicério, ela não ultrapassou os limites de São José do Rio Pardo. Francisco Glicério era

uma grande liderança paulista, em especial do oeste de São Paulo, e chegou à vila para

uma reunião da propaganda republicana. Sua presença na cidade provavelmente acirrou

os ânimos já exaltados entre republicanos e monarquistas, culminando na revolta que

não havia sido preparada. De supetão, os líderes republicanos foram reunidos e

convocaram seus homens de confiança para tomar a cidade e combater os praças que

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simbolizavam ali os monarquistas. Nos testemunhos dos republicanos os policiais

gritavam “vivas à monarquia” e “morte aos republicanos”, “viva a monarquia, fora

Francisco Glicério e morra a república!” (SÃO PAULO, 1889). Acreditamos que os

republicanos já aguardavam alguma represália dos liberais por causa da presença de

Francisco Glicério na cidade. Assim, a ação de Ananias Barbosa em relação a presença

do cabo no quintal de sua casa, foi reativa, mas isso não quer dizer que ambos os grupos

estivessem preparando algum ataque ou atitudes violentas como acabou acontecendo

com ataque ao hotel Brasil e em contrapartida a tomada da cidade. A história de que o

cabo tentava ouvir conversas do hotel a mando do subdelegado de polícia foi

mencionada apenas por Ananias Barbosa o que poderia ser uma invenção para justificar

a atitude com o cabo. Na versão do cel. MCSL ele sugere a existência de uma

“revolução” republicana que aconteceu por acaso, em seus termos: “deu-se”. Quando

imaginamos o momento e como as coisas aconteceram podemos perceber que havia,

realmente, uma insatisfação entre republicanos e liberais, configurado, possivelmente,

pela chamada “traição” dos liberais com os republicanos na formação da Câmara de São

José do Rio Pardo (TAVARES, 1949). As festividades da inauguração da pedra

fundamental da sociedade italiana que se encontraram com a reunião do Partido Liberal

foi outro elemento que acreditamos tenha influenciado o aquecimento dos ânimos entre

os dois grupos rivais. O encontro do cabo Rego no quintal da casa de Ananias Barbosa

foi, então, a gota d’água para o confronto propriamente dito. O cel. MCSL não

menciona esse “detalhe” que teria desencadeado as ações dos praças e dos republicanos.

Em contrapartida, se o depoimento de Ananias Barbosa for verdadeiro, o cabo estava

dentro do terreno para ouvir as conversas da casa que recebia o republicano Francisco

Glicério. Aí, a presença do praça na casa era uma provocação e uma continuação das

manifestações de dias antes. Para o cel. MCSL, a memória da revolta republicana é de

um momento heroico, de grande importância para a nação, cujos feitos seriam punidos

com o exílio para exemplificar aqueles adeptos da república que insurgiram contra o

imperador. O ideal republicano aparece como um símbolo da liberdade. Ele disse: “A

cidade rejubilou-se e a bandeira republicana foi hasteada nos edifícios públicos”

(TAVARES, 1949). Essa consideração dá um aspecto de que os riopardenses estavam

felicíssimos com a tomada da cidade e que a república era esperada e bem vinda.

Provavelmente, isso era o que o cel. MCSL e os republicanos que oportunamente

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tomaram a cidade e hastearam suas bandeiras nos prédios públicos queriam. Em sua

entrevista anos depois, ele desprezou as nuances que fizeram da revolta um evento

ocasional e deram a ela o empenho e o fervor da opção política que ele tinha e seus

correligionários compartilhavam. Assim, o caráter regional da revolta se deu pelo sua

característica ocasional, apesar de refletir o sentimento republicano dos seus líderes da

revolta em contraposição à opção monarquista do presidente da câmara e seus

correligionários.

Bibliografia

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MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e

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SÃO PAULO. T.I. Processos Policiais. Cx. 18, Ordem 3219. Arquivo permanente do

Arquivo Estadual de São Paulo, 1889;

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TAVARES, Marcelo Coimbra. Proclamaram a república três meses antes do 15 de

novembro. Diário da Tarde, Belo Horizonte, 24 fevereiro, 1949, p. 1 e 5.