a revolta dos cegos

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E m 3 de março de 1985, Eneas começou a estudar. Morador de Nova Iguaçu, sua escola era longe de casa e funcionava em regime de internato, com cinco aulas por dia de segunda à sexta, a partir das sete horas da manhã. Pela tarde, aconteciam atividades ligadas à música, culinária e educação física. “Eu fazia todas”, diz Eneas, orgulhoso. Seu colégio atendia então a três mil alunos e lá, gente que antes que não sabia sequer amarrar um sapato pôde aprender a ler e escrever. Eneas concluiu os estudos em 1993. Ele hoje é auxiliar administrativo e trabalha em São Paulo. Vibrou quando um colega seu, Valmery Jardim Guimarães, passou em primeiro lugar num concurso para defensor público do estado do Rio de Janeiro. Eneas tem baixa visão. Ele é ex-aluno do Instituto Benjamim Constant, um prédio amarelo em estilo neoclássico localizado no número 350 da avenida Pasteur, em Botafogo. A instituição oferece vagas em turmas que vão da educação infantil até o nono ano para pessoas com deficiência visual. Às 09:34 do dia 30 de maio de 2011, Eneas era só mais um em meio a cerca de 50 pessoas que protestavam contra a meta quatro do Plano Nacional de Educação na porta do instituto. O plano proposto pelo governo prevê 20 metas a serem cumpridas até 2020. Entre elas, há medidas que visam a valorização do professor, o investimento de no mínimo 7% do PIB em educação até 2015 e a ampliação das matrículas na educação infantil e no ensino superior. Porém, matricular nem sempre é incluir, como sugeria uma das faixas expostas na pequena manifestação, já que o projeto prevê o fim da atividade educacional em espaços voltados para pessoas com deficiência como o Instituto Nacional de Ensino de Surdos (INES) e o próprio Instituto Benjamim Constant (IBC). Seus alunos seriam encaminhados para as escolas da rede pública. Eneas lembra o xará político quando fala do assunto. “Não aceito”, diz peremptoriamente dentro de sua camisa pólo vermelha com listras brancas. Segundo ele, vários amigos de sua época estavam vindo para a manifestação. Gente comum, que passa despercebida aos olhos desavisados. Para ele, o fechamento da casa é uma tristeza, pois ali ele tem uma vida, um lugar onde cresceu. Ao som pouco revolucionário de Charles Brown Jr., militantes do PSOL berravam em alto-falantes instalados num Pampa L1.8, enquanto mais cegos não paravam de chegar em táxis com suas bengalas. A revolta dos cegos Ex-alunos, pais e professores discutem proposta do governo de fechamento do Instituto Benjamim Constant

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Saulo Pereira Guimarães

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Page 1: A revolta dos cegos

Em 3 de março de 1985, Eneas começou a estudar. Morador

de Nova Iguaçu, sua escola era longe de casa e funcionava em regime de internato, com cinco aulas por dia de segunda à sexta, a partir das sete horas da manhã. Pela tarde, aconteciam atividades ligadas à música, culinária e educação física. “Eu fazia todas”, diz Eneas, orgulhoso. Seu colégio atendia então a três mil alunos e lá, gente que antes que não sabia sequer amarrar um sapato pôde aprender a ler e escrever. Eneas concluiu os estudos em 1993. Ele hoje é auxiliar administrativo e trabalha em São Paulo. Vibrou quando um colega seu, Valmery Jardim Guimarães, passou em primeiro lugar num concurso para defensor público do estado do Rio de Janeiro.Eneas tem baixa visão. Ele é ex-aluno do Instituto Benjamim Constant, um prédio amarelo em estilo neoclássico localizado no número 350 da avenida Pasteur, em Botafogo. A instituição oferece vagas em turmas que vão da educação infantil até o nono ano para pessoas com deficiência visual. Às 09:34 do dia 30 de maio de 2011, Eneas era só mais um em meio a cerca de 50 pessoas que protestavam contra a meta quatro do Plano Nacional de Educação na porta do instituto. O plano proposto pelo governo prevê 20 metas a serem cumpridas até 2020. Entre elas, há medidas que visam a valorização do professor, o investimento de no mínimo 7% do PIB em educação até 2015 e a ampliação das matrículas na educação infantil e no ensino superior. Porém, matricular nem sempre é incluir, como sugeria uma das faixas expostas na

pequena manifestação, já que o projeto prevê o fim da atividade educacional em espaços voltados para pessoas com deficiência como o Instituto Nacional de Ensino de Surdos (INES) e o próprio Instituto Benjamim Constant (IBC). Seus alunos seriam encaminhados para as escolas da rede pública.Eneas lembra o xará político quando fala do assunto. “Não aceito”, diz peremptoriamente dentro de sua camisa pólo vermelha com listras brancas.

Segundo ele, vários amigos de sua época estavam vindo para a manifestação. Gente comum, que passa despercebida aos olhos desavisados. Para ele, o fechamento da casa é uma tristeza, pois ali ele tem uma vida, um lugar onde cresceu. Ao som pouco revolucionário de Charles Brown Jr., militantes do PSOL berravam em alto-falantes instalados num Pampa L1.8, enquanto mais cegos não paravam de chegar em táxis com suas bengalas.

A revolta dos

cegosEx-alunos, pais e professores discutem proposta do governo de fechamento do Instituto Benjamim Constant

Page 2: A revolta dos cegos

A confusão é geral. Tudo sob os olhos vigilantes de alguns Pms descansados numa viatura há alguns metros do olho do furacão. No canteiro central da larga pista da Pasteur, mães seguram faixas com dizeres em prol da causa. Maíra dos Santos é uma delas. Sua filha se chama Aimée, tem 15 anos e estuda há sete no IBC. A menina sofre de múltipla deficiência visual. Maíra diz que a filha gosta de atividades ligadas à música e natação e afirma que teme o fechamento do instituto. “Lá fora não tem nada”, resume. Ela não sabe qual será o destino de Aimée se sua escola fechar. Nossa conversa é interrompida pelo alerta sonoro do sinal, que indica aos cegos que é tempo de atravessar e à Maíra que é hora de trabalhar. Lá vai ela carregando sua faixa com os dizeres “A inclusão é uma bela teoria”, na frente e um pouco abaixo de outra em que está escrito “ O Brasil é nosso e o IBC também.”Eram 10:03 quando um outro carro da PM deixou mais um policial no local e saiu. Ao som mais propício de Geraldo Vandré, o representante dos pais de alunos Humberto Beethoven clamava pela preservação do “último bem deixado pela monarquia”, num flagrante exagero em defesa da causa.

Saulo Pereira Guimarães - Técnicas de Reportagem 2 - Profª Cristina do Rego Monteiro

Mães de alunos mobilizam-se pela causa

Professores não se sentem preparados

A jóia que encantou Beethoven foi fundada pelo imperador Dom Pedro II em 1854. O interior do prédio tem uma entrada escura, mas organizada. Lá dentro, acontecem atendimentos médicos, capacitação de pessoal e pesquisa científica. Tudo voltado para a questão visual. Na parte destinada à educação, um idílico pátio entre as galerias amarelas tem um belo gramado verde e brinquedos coloridos e bem conservados, nos quais crianças se divertem numa rara mostra de ensino público de qualidade.

Há 750 metros dali fica a escola municipal Minas Gerais. Projetada junto com o bairro da Urca em 1922 para atender 200 alunos, o colégio não aparenta superlotação. Essa é talvez uma das razões para o 2º lugar alcançado no IDE Rio, avaliação da prefeitura de sua rede educacional. A média 5,9 só foi menor que o 6,1 obtido pela Escola Pedro Bruno, 1º lugar isolado pelas águas da Guanabara na ilha de Paquetá. Por trás de seus muros altos e do interfone ao lado da porta, a Minas Gerais esconde

profissionais altamente capacitados.O professor Antônio Cláudio Menezes é um deles. Leciona história e tem formação em sociologia. Numa sala com uma mesa de madeira maciça e uma réplica de Monalisa na parede ao lado de um violão, ele confessa a deficiência na formação de seus colegas de geração para trabalhar com deficientes. “Além disso, não temos uma infra-estrutura adequada”, acrescenta. Segundo ele, faltam condições materiais e pedagógicas para esse tipo de trabalho.Antônio conta uma experiência pessoal vivida por ele em sala de aula. Numa turma cheia, havia quatro deficientes visuais. Um deles, com melhor condição econômica, estudava com um laptop. Os outros três dependiam de barulhentas máquinas de escrita em braile, que atrapalhavam o andamento das aulas. Para ele, a posição dos professores sobre a inclusão de deficientes visuais na rede pública hoje é de certa cautela. “Isso quando não há mesmo preconceito”, afirma. O que se percebe é um temor geral em receber um público que exige cuidados e atendimento especial.Ao que tudo indica, nem alunos, nem seus pais, nem professores da rede pública estão interessados na proposta do governo. Resta aos representantes a ação com bom-senso e respeito ao interesse dos principais envolvidos na questão. Esse parece mais um daqueles casos que se você não entende, não vê e se você vê, não entende.