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A retórica entre a política e a filosofia Da amizade entre Sócrates e Aristóteles segundo Platão António Bento Universidade da Beira Interior Introdução Procuraremos fazer uma visita guiada à An- tiguidade a fim de ficarmos a saber um pouco mais do objecto da nossa disciplina (a Retó- rica). Assim, ensaiaremos uma breve genea- logia das relações e não-relações entre a filo- sofia e a retórica privilegiando o modo como quer uma quer outra se relacionam à política. Política essa que é, com alguma certeza, não só o que permite distingui-las, mas também o que permite divisar, senão a totalidade, pelo menos uma boa parte das respectivas fisio- nomias. Não é portanto de estranhar que fa- çamos uma cerrada marcação da política, no intuito de sabermos o que, sob esse conceito, pensavam e praticavam os gregos do tempo de Platão e de Aristóteles. * O abismo entre filosofia e política abriu-se historicamente com o julgamento e a conde- nação de Sócrates, que constituem um mo- mento decisivo na história do pensamento político, um pouco como o julgamento e a condenação de Cristo constituem um marco na história da religião. Poder-se-ia talvez di- zer que a nossa tradição de pensamento po- lítico teve início quando a morte de Sócra- tes fez com que Platão se desencantasse com a vida da polis e, consequentemente, duvi- dasse de certos princípios fundamentais dos ensinamentos socráticos. O facto de Sócrates não ter sido capaz de persuadir os juízes da sua inocência e do seu valor, tão óbvios, aparentemente, para os me- lhores e mais jovens cidadãos de Atenas, fez com que Platão duvidasse da validade da per- suasão. Donde, um imenso cepticismo, pre- sente em quase todos os seus diálogos, rela- tivamente aos propósitos e méritos científi- cos da retórica. Para nós, hoje, talvez seja um pouco difícil captar a importância da- quela dúvida, porque “persuasão” é uma tra- dução muito fraca e inadequada para a velha peithen, cuja importância política se torna patente no facto de Peithô, a deusa da per- suasão, ter tido um templo em Atenas. Persuadir, peithen, era a forma especifica- mente política de falar e, como os atenien- ses se orgulhavam de conduzir os seus as- suntos políticos pelo discurso e sem uso da violência – nisso se distinguindo dos bárba- ros –, acreditavam que a arte mais alta e ver- dadeiramente política era a retórica, a arte da persuasão. O discurso de Sócrates na Apo- logia é um dos grandes exemplos disso e é precisamente contra essa defesa que Platão escreve no Fédon uma espécie de “apolo- gia revista ou revisitada” que, não sem uma

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Page 1: A retórica entre a política e a filosofia · dadeiramente política era a retórica, a arte da persuasão. O discurso de Sócrates na Apo-logia é um dos grandes exemplos disso

A retórica entre a política e a filosofiaDa amizade entre Sócrates e Aristóteles segundo Platão

António BentoUniversidade da Beira Interior

Introdução

Procuraremos fazer uma visita guiada à An-tiguidade a fim de ficarmos a saber um poucomais do objecto da nossa disciplina (a Retó-rica). Assim, ensaiaremos uma breve genea-logia das relações e não-relações entre a filo-sofia e a retórica privilegiando o modo comoquer uma quer outra se relacionam à política.Política essa que é, com alguma certeza, nãosó o que permite distingui-las, mas também oque permite divisar, senão a totalidade, pelomenos uma boa parte das respectivas fisio-nomias. Não é portanto de estranhar que fa-çamos uma cerrada marcação da política, nointuito de sabermos o que, sob esse conceito,pensavam e praticavam os gregos do tempode Platão e de Aristóteles.

*

O abismo entre filosofia e política abriu-sehistoricamente com o julgamento e a conde-nação de Sócrates, que constituem um mo-mento decisivo na história do pensamentopolítico, um pouco como o julgamento e acondenação de Cristo constituem um marcona história da religião. Poder-se-ia talvez di-zer que a nossa tradição de pensamento po-lítico teve início quando a morte de Sócra-tes fez com que Platão se desencantasse com

a vida dapolis e, consequentemente, duvi-dasse de certos princípios fundamentais dosensinamentos socráticos.

O facto de Sócrates não ter sido capaz depersuadir os juízes da sua inocência e do seuvalor, tão óbvios, aparentemente, para os me-lhores e mais jovens cidadãos de Atenas, fezcom que Platão duvidasse da validade da per-suasão. Donde, um imenso cepticismo, pre-sente em quase todos os seus diálogos, rela-tivamente aos propósitos e méritos científi-cos da retórica. Para nós, hoje, talvez sejaum pouco difícil captar a importância da-quela dúvida, porque “persuasão” é uma tra-dução muito fraca e inadequada para a velhapeithen, cuja importância política se tornapatente no facto dePeithô, a deusa da per-suasão, ter tido um templo em Atenas.

Persuadir,peithen, era a forma especifica-mente política de falar e, como os atenien-ses se orgulhavam de conduzir os seus as-suntos políticos pelo discurso e sem uso daviolência – nisso se distinguindo dos bárba-ros –, acreditavam que a arte mais alta e ver-dadeiramente política era a retórica, a arte dapersuasão. O discurso de Sócrates naApo-logia é um dos grandes exemplos disso e éprecisamente contra essa defesa que Platãoescreve noFédon uma espécie de “apolo-gia revista ou revisitada” que, não sem uma

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ponta de ironia, ele afirma ser “mais persua-siva” (pithanoteron, 63 b), por terminar, jus-tamente, com um mito do Além, que incluíacastigos corporais e recompensas, um mitocalculado para amedrontar o público em vezde se limitar simplesmente a persuadi-lo.

A ênfase posta por Sócrates na sua defesaperante os cidadãos e juízes atenienses tema sua explicação no facto de o seu compor-tamento ter em vista o bem da cidade. NodiálogoCrítias, ele havia explicado aos seusamigos que não podia nem deveria, de ma-neira alguma, fugir, mas, pelo contrário, de-veria – justamente por razões políticas – sercondenado à morte. Ao que parece, não foiapenas aos juízes que ele não conseguiu per-suadir; também não conseguiu convencer osseus amigos. Por outras palavras, a lição atirar é a seguinte: afinal a cidade não preci-sava de um filósofo e, os amigos, não neces-sitavam de argumentação política.

Podemos então afirmar que, intimamenteligada à dúvida de Platão quanto à validadeda persuasão está a sua enérgica condenaçãodadoxa, a opinião, que não só atravessou porinteiro as suas obras políticas, como, alémdisso, se tornou numa pedra-de-toque do seuconceito de verdade. A verdade platónica,mesmo quando adoxanão é mencionada, ésempre entendida como justamente o opostoda opinião. Podemos portanto dizer que o es-pectáculo de Sócrates submetendo a sua pró-priadoxaàs opiniões irresponsáveis dos ate-nienses e sendo suplantado por uma maioriade votos, fez com que Platão desprezasse asopiniões e ansiasse por padrões absolutos. Oque prova a pouca afeição de Platão à demo-cracia e à opinião. Tais padrões, pelos quaisos actos humanos poderiam ser julgados e opensamento poderia atingir algum grau de fi-abilidade, tornaram-se, daí em diante, o im-

pulso primordial da sua filosofia política, in-fluenciando mesmo a doutrina puramente fi-losófica das ideias. Contudo, talvez não te-nhamos razões para pensar que a ideia domundo das ideias tenha sido antes de tudoe prioritariamente um conceito de padrõese de medidas; nem que a sua origem tenhasido fundamentalmente política. No entanto,esta interpretação tem a sua razão de ser eé mesmo bastante compreensível e justificá-vel, tendo em conta que foi o próprio Platãoo primeiro a usar as ideias para fins políticos,ou seja, a introduzir padrões absolutos na es-fera dos assuntos humanos – esfera essa, naqual, sem esses padrões transcendentes, tudose tornaria relativo. No entanto, como o pró-prio Platão salientou, não sabemos o que é agrandeza absoluta. Apenas percebemos algocomo maior ou menor em relação a algumaoutra coisa.

(Breve resumo daApologiade Sócrates)

Argumento

A Apologiaé o discurso pronunciado por Só-crates no tribunal, diante dos 501 juízes sor-teados para o julgarem. é uma composiçãode génese escritural, que deverá ter algumarelação com o discurso eventualmente pro-nunciado por Sócrates, mas que dificilmentese poderá entender como uma sua transcri-ção fiel.

A ironia marca-a profundamente, pois,caracterizando-se como uma peça contra aretórica, nem por isso – antes pelo contrá-rio – ignora as regras da arte. Na realidade, écomo se as reconstituísse num outro plano,procurando conferir-lhes um novo sentido.No entanto, a denegação de todo e qualquer

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valor epistemológico à persuasão traduz-setragicamente para Sócrates no facto mesmoda sua condenação à morte. Aplica-se aqui,à letra, a expressãoironia do destino. Aorecusar-se a persuadir, sob o modo retórico,os juízes e a assistência, insistindo obstina-damente em dizer a verdade, nada mais quea verdade e só a verdade, Sócrates acaba porassinar a sua própria condenação à morte. Averdade, porém, é que Sócrates não prescin-diu, para sua defesa, de usar os meios retó-ricos da linguagem. Nem podia prescindir.Pela simples razão de que, opondo a persu-asão à verdade, não poder deixar de ser per-suasivo: correndo assim o risco de ninguémo compreender e acreditar. Em qualquercaso, oter-algo-por-verdadeiropressupõe acrença na existência da verdade e, como tal,não pode prescindir do efeito da persuasão.Simplesmente asuaverdade e a opinião doverdadeiro na audiência e nos juízes que oescutavam não coincidiu. Azar o dele! Só-crates acabou por se defender usando as mes-mas palavras que costumava usar na praça,junto dos vendedores, argumentando, parasua defesa, que era estranho ao modo comose fala num tribunal. O que significa queafrontou, desprezou e insultou o tribunal su-gerindo ou insinuando que nele não se pro-cura a verdade, antes o efeito da opinião e dapersuasão. Letal acusação.

É o seguinte, o resumo do diálogo:17 a – 18 a – Contraposição da persuasão à

verdade, nos discursos da acusação e do pró-prio Sócrates: a excelência do orador con-siste em dizer a verdade.

18 a – 20 a – Distinção das antigas e dasmais recentes acusações: a sua motivação.

20 a – 20 c – O tema da sabedoria: aaretênum homem.

20 c – 21 b – O oráculo: Sócrates é o maissábio dos homens

21 b – 23 b – As inquirições socráticas:a sabedoria da ignorância – o valor nulo dasabedoria humana.

23 b – 24 a – A origem das calúnias: afilosofia e o seu efeito sobre os jovens.

24 b – 26 a – As recentes acusações: inter-rogatório de Meleto.

26 a – 28 a – Conclusões de Sócrates: Me-leto não se preocupa com a educação dos jo-vens e é ignorante no que diz respeito às coi-sas divinas.

28 a – 30 b – A inquirição sobre o valorda sabedoria humana, realizada em obediên-cia ao comando implícito do deus, constitui aprática do filósofo, que Sócrates toma comoa mais alta das missões que lhe foram confi-adas e de cujo cumprimento não desistirá.

30 c – 33 a – Sócrates é o único homemdisposto a persistir nessa missão, em defesada sua cidade; por essa razão, renunciou aoscargos políticos, embora, sempre que esteslhe tenham sido atribuídos, se tenha mos-trado tal como é na vida privada.

33 a – 35 d – Sócrates não é pago, nemhá testemunhas de que tenha corrompido al-guém, jovem ou velho. Recusa-se a suplicaro perdão dos juizes, entregando-se à sua de-cisão e à dos deuses.

Sócrates é julgado culpado, devendo agorapropor uma pena em alternativa à morte, pe-dida pelos acusadores.

35 d – 38 b – De entre as penas possí-veis, Sócrates considera o exílio ou o pa-gamento de uma multa, embora contra von-tade, pois, nenhum crime tendo cometido,nenhuma pena julga merecer. Recusando oexílio, aceita uma multa no valor de umamina (mais não poderá pagar), mas os ami-

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gos pedem-lhe que eleve para trinta minas oseu montante.

Condenado à morte, Sócrates dirige-se aosjuízes que abandonam o tribunal e, depois,aos amigos que o rodeiam.

38 c – 39 d – Os juizes não quiseram es-perar pela sua morte natural, que não deve-ria tardar. Nada ganharam com essa decisão,pois ele não teme a morte e os discípulos de-verão prosseguir a missão que lhe tinha sidoconfiada.

39 e – 42 a – Sócrates está certo de tudoter corrido pelo melhor, pois a voz que cos-tumava adverti-lo, na iminência do erro, nãose manifestou. Assim, a morte deverá ser umbem – a destruição ou a passagem da almaa outro lugar – em qualquer dos casos nãopodendo sobrevir nenhum mal a um homemjusto. é preciso ter esperança no que a mortenos traz, pois só os deuses poderão saber seela é ou não melhor do que a vida.

Verdade e opinião

A oposição entre verdade e opinião foi, semdúvida, a mais anti-socrática conclusão quePlatão tirou do julgamento de Sócrates. Aofracassar em convencer a cidade, Sócratesmostrara que a cidade não é um lugar se-guro para o filósofo, não só no sentido de quea sua vida não está garantida em virtude daverdade que possui, mas também no sentido,muito mais importante, de que não se podeconfiar à cidade a preservação da memóriado filósofo. Se os cidadãos puderam conde-nar Sócrates à morte, era muito provável queo esquecessem depois de morto. A sua imor-talidade terrestre só estaria salvaguardada seos filósofos se pudessem inspirar numa soli-dariedade própria, que se opusesse à solida-riedade dapolis e dos seus concidadãos. O

velho argumento contra ossophói, os sábios,recorrente tanto em Aristóteles quanto emPlatão – o argumento de que eles não sabemo que é bom para si próprios (o pré-requisitopara a sabedoria política) e de que parecemridículos quando se apresentam na praça pú-blica, tornando-se motivo de chacota, comoocorreu com Tales de Mileto, que, olhandopara os céus, caiu num poço que tinha sob osseus pés, fazendo rir uma jovem criada trá-cia -, foi dirigido por Platão contra a cidade.Assim procurou Platão inverter a relação en-tre o político e o filosófico, sendo este últimoo único capaz de oferecer critérios transcen-dentais, sem os quais tudo permaneceria de-sesperantemente relativo.

Para compreender a barbaridade da exi-gência platónica de que o filósofo se tor-nasse o governante da cidade, não podemosesquecer os preconceitos comuns que apo-lis tinha contra filósofos, embora os não ti-vesse contra artistas e poetas, por exemplo.Apenas osóphos– que não sabe o que ébom para si próprio – não poderá saber oque é bom para os outros, para apolis. Osóphos, o sábio como governante, deve servisto em oposição ao ideal corrente doph-ronimos, o homem de compreensão, cujosinsightssobre o mundo dos assuntos huma-nos (ta ton anthropon pragmata, nas pala-vras de Platão) o qualificam para liderar, em-bora, obviamente, não para governar:Le roiregne et ne gouverne pas, como diz a fór-mula teológico-política, deísta e liberal, diri-gida em 1600 contra Segismund III, Rei daPolónia. Isto, claro, do ponto de vista dePlatão. A filosofia, o amor à sabedoria, nãoera, de modo algum, tida como equivalentedesseinsights,dessaphronésis. Só o sábiose ocupa e preocupa com os assuntos exteri-ores àpolis. E Aristóteles, por exemplo, con-

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corda inteiramente com essa opinião públicaquando afirma: “Anaxágoras e Tales eramhomens sábios, mas não homens de compre-ensão. Não estavam interessados no que ébom para os homens (anthropina agatha)”(ética a Nicómaco, 1140 a, 25-30 e1141 b,4-8).

Platão não negava que as preocupações dofilósofo fossem as questões eternas e imutá-veis, as questões não humanas. Discordava,no entanto, de que isso o tornasse incapaz ouinapto para desempenhar um papel político.Discordava da conclusão, tirada pelapolis,de que o filósofo, sem a preocupação como bem humano, corria ele próprio o risco dese tornar um inútil. é de salientar, porém,que a noção de bem (agathos) de que aquise fala não tem qualquer conexão com o quese quer designar como bondade num sentidoabsoluto; esteagathossignifica exclusiva-mentebom-para-algo, benéfico ou útil (ch-résimon), sendo, portanto, instável e aciden-tal, contingente, uma vez que não é necessa-riamente o que é, podendo, a cada vez, sersempre diferente.

Como é sabido, a acusação de que a filo-sofia pode privar os cidadãos da sua aptidãopessoal está contida numa célebre declaraçãode Péricles, segundo a qual, “amamos o belosem exagero e amamos a sabedoria sem sua-vidade ou efeminação” <philokaloumen met’euteleias kaú philosophoumen aneu mala-kias>. Donde se deduz que também na filo-sofia se exige a virtude no seu sentido maisliteral e menos cristianizado, virtude comovirilidade, comovis ac potestas.

Diferentemente dos nossos próprios pre-conceitos modernos, em que a suavidade e aefeminação estão de certo modo ligadas aoamor ao belo, os gregos viam esse perigo nafilosofia. Foi, portanto, a filosofia,a preocu-

pação com a verdade independentementedos assuntos humanos– e não o amor aobelo, representado em toda a parte napolis,nas estátuas e na poesia, na música e nos jo-gos olímpicos (embora noFedro Platão in-sista, pela boca de Sócrates, que a verdade éo conteúdo essencial da beleza) -, que afas-tou os seus praticantes dapolis, tornando-osdesajustados.

Quando Platão reivindicou o governo parao filósofo, acreditando que só este poderiavislumbrar a ideia de bem, a mais alta dasessências eternas, opôs-se, por esse mesmogesto, àpolis. E isto, de duas maneiras: emprimeiro lugar, porque a preocupação do fi-lósofo com as coisas eternas não o fazia cor-rer o risco de se tornar um inútil – e pode-mos dizer que foi assim que Platão respon-deu ao riso da criada da Trácia; em segundolugar, porque argumentou que essas coisaseternas eram ainda mais “valiosas” do quebelas. Também por isso, quando, em res-posta a Protágoras, Platão diz que a medidade todas as coisas humanas não é um ho-mem, mas um deus, está apenas a dar umaoutra versão da mesma afirmação (Leis, 716d).

A ideia do bem, que Platão alça ao lugarmais elevado do mundo das ideias, a ideiadas ideias, e que ocorre na alegoria da ca-verna, deve ser compreendida nesse contextopolítico. Ela parece ser muito menos corri-queira do que nós, que crescemos no meiode todos os efeitos e radicalizações da tra-dição e herança platónicas, estamos inclina-dos a pensar. Platão orientava-se pelo pro-verbial ideal grego,Kalo’ K’agathon(o beloé o bom), e é portanto, significativo, que eletenha optado pelo bem, em vez do belo.

Do ponto de vista das ideias em si, defi-nidas como algo cujo simples desvelamento

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ilumina, o belo, que não pode ser usado,mas que apenas brilha, tinha, aparentemente,muito mais direito a tornar-se a ideia dasideias (para uma sintética elaboração destaquestão veja-se, de Hannah Arendt,The Hu-man Condition§31, pp.220-230).

A diferença entre o bem e o belo, não sópara nós, como, mais ainda, para os gregos,é que o bem pode ser posto em prática, con-tendo em si mesmo um elemento de uso. Pla-tão só poderia usar as ideias para fins políti-cos e erigir, nasLeis, a sua ideocracia – naqual as ideias eternas seriam traduzidas emleis humanas – se o mundo das ideias fosseiluminado pela ideia do bem.

Assim, o que aparece naRepúblicacomoum argumento estritamente filosófico foi ins-pirado numa experiência exclusivamente po-lítica – o julgamento e a morte de Sócra-tes -, e não foi Platão, mas Sócrates, o pri-meiro filósofo a ultrapassar o limite esta-belecido pelapolis para o sóphos, o ho-mem que se preocupa com as coisas eter-nas, não-humanas e não-políticas. A tragé-dia da morte de Sócrates repousa, portanto,num mal-entendido: o que Atenas não com-preendeu foi que Sócrates não se dizia umsóphos, um sábio. Por duvidar de que a sa-bedoria fosse coisa para os mortais, Sócratesinventou a ironia do oráculo de Delfos, quedizia que ele era o mais sábio de todos os ho-mens: o homem que sabe que os homens nãopodem ser sábios é o mais sábio de todos. Apolis não acreditou em Sócrates, exigindo-lhe que admitisse ser, como todos ossophói,um inútil do ponto de vista político. Mas,como filósofo, talvez ele não tivesse nada, defacto, a ensinar aos seus concidadãos.

A tirania da verdade

O conflito entre o filósofo e apolis haviachegado a um ponto crítico porque Sócratesfizera novas reivindicações para a filosofia,precisamente por não se pretender um sábio.E é nessa situação que Platão concebe a suatirania da verdade, segundo a qual o que devegovernar a cidade não é o temporariamentebom – de que os homens podem ser persua-didos -, mas sim a eterna verdade – de que oshomens não podem ser persuadidos.

Mas, se os homens não podem ser persu-adidos da eterna verdade, que é o que devegovernar a cidade, como justificar o lugar dafilosofia nos assuntos dapolis? Ora, o que setornara manifesto na experiência de Sócratesé que apenas a governação poderia assegu-rar ao filósofo aquela imortalidade terrestreque apolis deveria supostamente assegurara todos os seus cidadãos. E isto porque en-quanto o pensamento e as acções de todos oshomens estavam ameaçados pela sua insta-bilidade intrínseca e pelo esquecimento hu-mano, os pensamentos do filósofo estavamexpostos a um esquecimento deliberado. Amesmapolis, portanto, que garantia aos seushabitantes uma imortalidade e uma estabili-dade, que, sem aquela, eles jamais poderiamesperar, era uma ameaça e um perigo paraa imortalidade do filósofo. é, porém, ver-dade, que o filósofo, na sua relação com ascoisas eternas, era aquele que menos sentiaa necessidade da imortalidade terrestre. Essaeternidade, que era mais do que uma imor-talidade terrestre, entrava, no entanto, emconflito com apolis sempre que o filósofotentava chamar a atenção dos seus concida-dãos para as suas preocupações. Assim queo filósofo submetia àpolis a sua verdade, oreflexo do eterno, esta tornava-se imediata-

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mente uma simples opinião entre opiniões.Perdia, então, a sua qualidade distintiva, umavez que desaparecia qualquer marca que se-parasse a verdade da opinião. é como se nomomento em que o eterno fosse posto entreos homens ele se tornasse temporal, de modoque o simples facto de se o discutir com osoutros era suficiente para ameaçar a existên-cia do domínio em que se movem os aman-tes da sabedoria. Como refere Arendt ci-tando Madison, “a passagem da verdade ra-cional à opinião implica uma passagem dohomem no singular aos homens no plural; oque quer dizer uma passagem de um domínioem que (...) apenas se conta o ‘sólido racio-cínio’ de um espírito, para um domínio emque ‘a força da opinião’ é determinada pelaconfiança do indivíduo no ‘número que é su-posto ter as mesmas opiniões” (Arendt, H.,Verdade e Política, p. 20).

Ora, parece ter sido no processo de refle-xão sobre as implicações do julgamento deSócrates que Platão chegou ao seu conceitode verdade, o oposto de opinião, e também ànoção de uma forma de falar especificamentefilosófica, adialegesthai, oposta à persuasãoe à retórica.

A dialegesthai, de onde deriva a palavradialéctica, que significa “falar com”, “dis-correr”, “raciocinar”, pressupõe interlocuto-res – exactamente como ocorre no modo defilosofar da obra platónica, designada, aliás,por uma palavra da mesma família:diálogo.Por isso se pode dizer que o termo dialécticanão significa originariamente nada mais doque o processo de discussão oral por meio depergunta e resposta. Ainda assim, a palavrapassou do simples significado de “discorrer”para o de “discorrer com o fim de atingir averdade”, e este “discorrer” pode executar-seatravés de palavras entre duas pessoas ou ser

“o diálogo silenciosamente conduzido pelaalma consigo mesma” (Sofista263 e).

Ao começar aRetórica – que pertence,tanto quanto aética, aos seus escritos polí-ticos -, Aristóteles considera estas distinçõese oposições como factos usando a seguinteafirmação :hé rhétoriké esti’ antistrophos tédialektiké“a arte da persuasão – e, portanto,a arte do falar político – é a contrapartidada arte da dialéctica – a arte do falar filosó-fico” <hé rhétoriké esti’ antistrophos té dia-lektiké> (Retórica,1354 a 1.). Ora, a prin-cipal distinção entre persuasão e dialéctica éque a primeira dirige-se sempre a uma multi-dão ao passo que a segunda só é possível emum diálogo a dois. Em aApologia de Sócra-teso erro de Sócrates foi, por conseguinte,dirigir-se aos seus juizes de forma dialéc-tica, motivo pelo qual não pode persuadi-los. Por outro lado, uma vez que ele res-peitou as limitações inerentes à persuasão, asua verdade tornou-se uma opinião entre opi-niões, sem mais valor que as não verdadesdos juizes. Como já vimos, Sócrates insistiuem discutir o assunto com os seus juizes domesmo modo que falava de qualquer outracoisa, quer com cidadãos atenienses, indivi-dualmente, quer com os seus alunos; acre-ditava que podia chegar por esse caminho aalguma verdade e que dela pudesse persuadiros outros. A persuasão, entretanto, não vemda verdade, mas das opiniões (Fedro, 260 a),e só a persuasão leva em conta e sabe lidarcom a multidão. Persuadir a multidão signi-fica impor a sua própria opinião às múltiplasopiniões da multidão. Nesta maneira de a en-tender, a persuasão não é o oposto de gover-nar pela violência, é apenas uma outra formade fazer o mesmo.

Quanto aos mitos de uma vida futura comque Platão concluiu todos os seus diálogos

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políticos – exceptuando asLeis – não sãonem verdade nem mera opinião; foram con-cebidos para serem estórias para amedrontar,isto é, constituem uma tentativa de usar a vi-olência só com palavras.

Embora seja mais do que provável que Só-crates tenha sido o primeiro a usar de formasistemática adialegesthai(discutir algo atéao fim com alguém), ele provavelmente nãoa considerou o oposto ou mesmo a contra-partida da persuasão, e certamente não opôsos resultados da sua dialéctica àdoxa,à opi-nião.

Para Sócrates, como para os seus concida-dãos, adoxa era a formulação em fala da-quilo quedokei moi, daquilo que me parece.Essadoxanão possuía como tópico aquilo aque Aristóteles chamavaeikos, o provável,as muitasverisimilia (distintas daunum ve-rum, a verdade única, por um lado, e as fal-sidades ilimitadas, asfalsa infinita, por ou-tro), mas compreendia o mundo tal como elese abre para mim. Não era, portanto, fan-tasia subjectiva e arbitrariedade, e tão-poucoalguma coisa absoluta e válida para todos. Opressuposto era o de que o mundo se abre demodo diferente para cada homem, de acordocom a posição que nele ocupa; e que a pro-priedade do mundo de ser o “mesmo”, oseu carácter comum (Koinon, como diziamos gregos, qualidade de ser comum a to-dos), ou a sua “objectividade” (como diría-mos do ponto de vista subjectivo da meta-física moderna), reside no facto de que omesmo mundo se abre para todos, e que, adespeito de todas as diferenças entre os ho-mens e das respectivas posições no mundo– e consequentemente das suasdoxai (opi-niões) -, “tanto eu quanto o outro somos hu-manos”.

Quanto à palavradoxa, devemos dizer que

significa não só opinião, mas também glóriae fama. Como tal relaciona-se com o domí-nio político, que é a esfera pública em que,idealmente pelo menos, cada um pode apare-cer e mostrar quem é. Fazer valer a sua pró-pria opinião equivalia a ser capaz de mostrar-se, apresentar-se, ser visto e ouvido pelos ou-tros. Para os gregos, essa era uma grandediferença e um grande privilégio que se li-gava à vida pública e que faltava à privaci-dade doméstica, em que, em princípio, nãose é visto nem ouvido por outros: a família –mulher e filhos – e os escravos e empregadosnão eram, é claro, reconhecidos como plena-mente humanos. Na vida privada está-se es-condido e não se pode aparecer nem brilhar,não sendo permitida ali, portanto, qualquerdoxa.

Sócrates, que recusou a honra e o poderpúblicos, nunca se retirou para a vida pri-vada, ao que parece porque a sua mulher, denome Xantipa, não lhe o permitia; pelo con-trário, circulava pela praça pública, bem nomeio dessasdoxai, dessas opiniões. O quePlatão posteriormente chamoudialegesthai,o próprio Sócrates chamava maiêutica, a arteda obstetrícia; queria ajudar os outros a darà luz o que eles próprios pensavam; queriaajudá-los a descobrirem a verdadena suadoxa.

A importância deste método residia numadupla convicção: todo o homem tem a suaprópriadoxa, a sua própria abertura para omundo, logo, Sócrates precisava de come-çar sempre com perguntas; não se pode sa-ber de antemão que espécie dedokei moi, de“parece-me”, o outro possui. Precisava de seassegurar da posição do outro no mundo co-mum. Mas, assim como ninguém pode saberde antemão adoxado outro, também não háquem possa saber por si só, sem um esforço

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adicional, a verdade inerente à sua própriaopinião. Sócrates queria gerar essa verdadeque cada um possui em potência. Fiéis à suametáfora da maiêutica filosófica, talvez pos-samos dizer: Sócrates queria tornar a cidademais verdadeira fazendo com que cada cida-dão desse à luz as suas verdades. Ora, o mé-todo para o conseguir é adialegesthai, dis-cutir até ao fim; essa dialéctica, no entanto,não extrai a verdade destruindo adoxa, ouopinião, mas, pelo contrário, revela adoxana sua própria verdade. O papel do filósofonão é, então, governar a cidade, mas ser oseu “moscardo”, não é dizer verdades filosó-ficas, mas tornar os seus cidadãos mais ver-dadeiros.

Sócrates dizia-se a si mesmo um “mos-cardo” ou uma “parteira”, e, segundo Pla-tão, alguém o chamou certa vez “arraia-eléctrica”, um peixe que paralisa e torna osoutros dormentes ao seu simples contacto.

Analisemos, rapidamente, estas três com-parações. Primeiro, temos Sócrates comoum moscardo: quer dizer, ele sabe como fer-roar os cidadãos, que, sem ele, “continua-rão adormecidos e calmos para o resto dassuas vidas”, a não ser que alguém os venhadespertar. E o que faz Sócrates para os fer-roar, para os picar? Pensar, examinar ques-tões, uma actividade sem a qual, para ele, avida, além de não valer a pena, nem sequerera propriamente vida.

Em segundo lugar, Sócrates é uma par-teira. Como ele não se cansava de repetir,nada ensinava, pelo simples facto de nada tera ensinar; era simplesmente “estéril” comoas parteiras da Grécia, mulheres que já ha-viam ultrapassado a idade de dar à luz. Ora,esta “esterilidade”, que tinha como contra-partida uma especial aptidão e perícia parafazer dar à luz os pensamentos dos outros,

isto é, para revelar as consequências das suasopiniões, é comparável à função da parteiragrega de decidir se a criança estava ou nãoapta para a vida, se, para usar a linguagemsocrática, não passava de uma “barriga devento”, da qual a mãe precisava de se ver ex-purgada.

De uma maneira geral, se examinarmos osdiálogos socráticos, vemos que não há en-tre os seus interlocutores um só que não te-nha produzido um pensamento que não equi-valesse a uma barriga de vento. Portanto,nada mais do que falsos alarmes de gravi-dez! Na verdade, o parteiro de almas, fazia oque Platão, certamente pensando em Sócra-tes, atribuía aos sofistas: livrava as pessoasdas suas “opiniões”, isto é, daqueles precon-ceitos não examinados que os impediriam deverdadeiramente pensar, sugerindo que sabe-mos o que não só não sabemos, como nãopodemos saber, ajudando-os, como observaPlatão, a livrar-se do que neles há de mau,das suas opiniões, e, sem com isso os tornarnecessariamente bons, dando-lhes a verdade.

Em terceiro lugar, Sócrates, não obstantesaber que nada sabe, não dá as questões porencerradas. Pelo contrário, mais se apegaàs suas perplexidades, e, tal como a “arraia-eléctrica”, adormece os seus inimigos, assimele paralisa, com essas perplexidades, qual-quer um que com ele entre em contacto. Ora,à primeira vista, a arraia-eléctrica parece sero oposto do moscardo: enquanto o moscardodá ferroadas, a arraia-eléctrica paralisa comos seus choques. No entanto, aquilo que doponto de vista exterior, do ângulo do cursohabitual dos assuntos humanos, só pode servisto como paralisia, é sentido como aexpe-riência do mais alto grau de vida, como ovivívelna sua máxima intensidade. Sócrates

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sente-se, então, compelido a conferir as suasperplexidades com as dos seus semelhantes.

Rememorando, poderíamos dizer que,contrariamente a Platão, Sócrates não queriaeducar os cidadãos; estava, antes de mais, in-teressado em aperfeiçoar-lhes asdoxai, queconstituíam a vida política em que ele de al-guma forma tomava parte. Para Sócrates,a maiêutica era uma actividade política, umdar e receber baseado fundamentalmente naestrita igualdade, algo cujos frutos não po-diam ser medidos pelo resultado obtido aochegar-se a esta ou àquela verdade geral.Portanto, o facto de os diálogos de Platão se-rem frequentemente concluídos de forma in-conclusiva, sem um resultado prático, insere-os na mais pura tradição socrática. Ter discu-tido alguma coisa até ao fim, ter falado sobrealguma coisa, sobre adoxade algum cida-dão, já parecia um resultado suficiente.

O diálogo entre amigos

Parece óbvio que este tipo de diálogo, quenão precisa de uma conclusão para ter sig-nificado, é mais adequado aos amigos e poreles frequentemente mantido. Na verdade,a amizade consiste, em grande parte, nessefalar sobre algo que os amigos têm em co-mum. Ao falarem sobre o que lhes é comum,isso de que falam torna-se-lhes muito maiscomum. Como nos diz Gilles Deleuze, “fo-ram os gregos a confirmar a morte do sábio ea substituí-lo pelo filósofo, o amigo da sabe-doria, o que procura o saber mas que o nãopossui formalmente” (O que é a filosofia?,p.10). Continua Deleuze: “Designaria amigouma certa intimidade competente, uma espé-cie de gosto material e uma potencialidade,como a do marceneiro com a madeira: será obom marceneiro madeira em potência, será

o amigo da madeira? A questão é impor-tante, visto que o amigo tal como aparecena filosofia não designa já uma personagemextrínseca, um exemplo ou uma circunstân-cia empírica, mas uma presença intrínseca aopensamento, uma condição de possibilidadedo próprio pensamento, uma categoria viva,uma vivência transcendental (...) é neste pri-meiro traço que a filosofia parece uma coisagrega e coincide com o contributo das cida-des: ter formado sociedades de amigos ouiguais, mas ter igualmente promovido entreelas e dentro de cada uma relações de riva-lidade, que opõem entre si pretendentes emtodos os domínios, no amor, nos jogos, nostribunais, nas magistraturas, na política e atémesmo no pensamento, cuja condição não seencontraria apenas no amigo, mas tambémno pretendente e no rival. A rivalidade doshomens livres, um atletismo generalizado: oagôn” ( Ibidem, p.11).

Temos, portanto, que, com a amizade, nãosó o assunto ganha a sua articulação especí-fica, como se desenvolve, se expande e, fi-nalmente, no decorrer do tempo e da vida,começa a constituir um pequeno mundo par-ticular nela compartilhado. Dito de outraforma, Sócrates tentou tornar amigos os ci-dadãos de Atenas, e esse parece ser real-mente um objectivo compreensível numapo-lis cuja vida consistia numa intensa e ininter-rupta competição de todos contra todos, deaei aristeuein, em que incessantemente cadaum procurava demonstrar ser o melhor de to-dos.

Adentro deste espírito agonístico que, nodizer dos historiadores, acabaria por levar àruína as cidade-estado gregas, porquanto, aotornar praticamente impossível o estabeleci-mento de alianças, envenenava a vida do-méstica dos cidadãos com a inveja e o ódio

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(e a inveja era, ao que parece, um verdadeirovício nacional da antiga Grécia), o bem pú-blico era constantemente ameaçado, uma vezque o que de comum havia no mundo po-lítico só se constituía graças aos muros dacidade e aos limites das suas leis. Oco-mum– e este ponto é importante – não eravisto ou sentido nas relações entre os cida-dãos, nem no mundo que existiaentreeles,que sendo comum a todos, se abria, no en-tanto, de modo diferente para cada homem.

Utilizando a terminologia aristotélica paramelhor se compreender Sócrates – e pode-mos dizer, sem abusar dos textos, que partesconsideráveis da filosofia política de Aristó-teles, particularmente aquelas em que este seergue em oposição explícita a Platão, repre-sentam, de um ou outro modo, um retorno aSócrates -, podemos citar um trecho daéticaa Nicómaco(1133 a 14) em que Aristóte-les explica que a comunidade não é feita deiguais, mas, pelo contrário, de pessoas quesão diferentes e desiguais. é apenas atravésdo igualar-se, doisasthénai, que a comuni-dade pode nascer. Esta igualação ocorre emqualquer troca, como a que se dá entre o mé-dico e o quinteiro, e baseia-se no dinheiro.Em contrapartida, a igualação e emulaçãopolítica, não-económica, procede por ami-zade, pelaphilia.

O facto de Aristóteles pôr em relevo a ana-logia existente entre a amizade e a neces-sidade e a troca, prende-se com a sua con-cepção materialista da filosofia política, ouseja, com a sua convicção de que, em últimaanálise, a política é necessária por causa dasnecessidades da vida, das quais os homensse procuram libertar. De modo que, assimcomo comer não é a vida mas a condiçãopara viver, a vida em conjunto napolis nãoé a boa vida, mas a sua condição material.

Deste modo, Aristóteles vê a amizade es-sencialmente do ponto de vista do cidadãoindividual, e não do cidadão dapolis: A suajustificação suprema da amizade é que “nin-guém escolheria viver sem amigos, aindaque possuísse todos os outros bens” (éticaa Nicómaco, 1155 a 5). Como é evidente,a igualação na amizade não significa queos amigos se tornem os mesmos, ou sejamiguais entre si, mas, antes, que se tornem par-ceiros igualmente rivais num mundo comum– que, juntos, constituam uma comunidade.O que a amizade consegue, o seu mérito, éque é por meio dela que se alcança a comuni-dade, sendo no entanto claro que essa igua-lação contém, como ponto polémico, a di-ferenciação sempre crescente dos cidadãos,como é próprio de uma vida agonística.

Aristóteles conclui que é a amizade, e nãoa justiça (ao contrário do que dizia Platãoem a República, o grande diálogo sobre ajustiça), que parece ser o vínculo das co-munidades. Para Aristóteles, a amizade estáacima da justiça, porque a justiça deixa deser necessária entre amigos (ética a Nicó-maco,1155 a 20-30).

Ora, o elemento político, na amizade, re-side no facto de que, no verdadeira, cada umdos amigos pode compreender a verdade ine-rente à opinião do outro. Mais do que oseu amigo como pessoa, um amigo compre-ende como e em que articulação específicao mundo comum aparece para o outro que,como pessoa, será sempre desigual ou dife-rente. Esta espécie de compreensão – em quese vê o mundo do ponto de vista do outro – éo tipo deinsight, instinto, em português, po-lítico por excelência. Assim, se quiséssemosdefinir, em termos tradicionais, a única vir-tude importante do estadista, poderíamos di-zer que ela consiste em compreender o maior

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número e a maior variedade possível derea-lidades(com toda a carga positiva do termo)– não de pontos de vista subjectivos, que na-turalmente também existem, mas que aquinão nos dizem respeito -, o modo como essasrealidades se abrem às várias opiniões doscidadãos e, ao mesmo tempo, em ser capazde comunicar com os cidadãos e de captar assuasdoxai, de modo que a qualidade comumdeste mundo se torne manifesta. Ora, Sócra-tes parece ter acreditado que a função polí-tica do filósofo era ajudar a estabelecer essetipo de mundo comum, construído sobre acompreensão daphilia , em que nenhum go-verno é necessário.

Para isso, Sócrates contava com doisin-sights, com duas intuições maiores, estandoum dessesinsightscontido na célebre pala-vra do oráculo de Delfos,gnôthi sauthon,“conhece-te a ti mesmo”, e o outro expostopor Platão e com eco em Aristóteles: “é me-lhor estar em desacordo e oposição com amaioria das pessoas do que, sendo um, estarem dissonância e contradição comigo pró-prio” (Górgias, 482 c).

Antes, porém, de passarmos a uma aná-lise mais demorada destas duas sentenças,atenhamo-nos um pouco à questão dadoxae ao seu, por assim dizer, estatuto epistemo-lógico: “Diz-se muitas vezes que, desde Pla-tão, os gregos opõem a filosofia, como umsaberque compreende também as ciências, àopinião-doxa, que eles remetem para os so-fistas e os retóricos. Mas talvez, como já vi-mos, não se trate de uma oposição simplestão definida. Afinal como é que os filóso-fos possuiriam o saber, eles que não podemnem querem restaurar o saber dos sábios, esão apenas amigos? E como é que a opi-nião poderia ser completamente uma coisaou um assunto dos sofistas e dos retóricos,

uma vez que, como também já vimos, ad-quire umvalor-de-verdade?

“Além do mais, parece que os gregos ti-nham da ciência uma opinião bastante clara,que não se confundia com a filosofia: era umconhecimento da causa, da definição, umaespécie, já, de função. Neste caso, todo oproblema era: como se pode chegar às defi-nições, a essas premissas do silogismo cien-tífico e lógico? Ora, era graças à dialéctica:uma busca que tendia, sobre um tema dado,a determinar, entre as opiniões, as maisvero-símeispela qualidade que manifestavam, asmaissábiaspelos sujeitos que as proferiam.Mesmo em Aristóteles, a dialéctica das opi-niões era necessária para determinar as pro-posições científicas possíveis e, em Platão, a“opinião verdadeira” era o requisito do sabere das ciências. Já Parménides não colocavao saber e a opinião como duas vias disjunti-vas. Democratas ou não, os gregos não opu-nham tanto o saber à opinião quanto se de-batiam no campo das opiniões, e não se opu-nham uns aos outros, não rivalizavam unscom os outros no domínio da pura opinião.Ainda que os sofistas e os retóricos não pu-dessem alcançar o que havia de “verdadeiro”numa opinião, o que os filósofos lhes repro-vavam não era o facto de se aterem àdoxa,mas antes o facto de escolherem mal a quali-dade a retirar das percepções e o sujeito ge-nérico a extrair das afecções. A acusação eraa de que quer uns quer outros permaneciamprisioneiros do vivido. Os filósofos acusa-vam os sofistas e os retóricos de se aterema uma qualquer qualidade sensível, em rela-ção a um homem individual, ou em relaçãoao género humano, ou em relação aonomos,à lei dapolis. Só que eles, os filósofos pla-tónicos, tinham uma extraordinária respostaque lhes permitia, pensavam eles, seleccio-

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nar as opiniões, e assim distinguir as boasdas más.Era necessário escolher a quali-dade que fosse como que a manifestação doBelo numa determinada situação vivida, etomar por sujeito genérico o Homem inspi-rado pelo Bem. Era necessário que as coisasse manifestassem no belo, e que os seus uten-tes se inspirassem no bem para que a opiniãoalcançasse o Verdadeiro. O belo na Naturezae o bem nos espíritos iriam definir a filoso-fia como função da vida variável. Assim, afilosofia grega é o momento do belo; o beloe o bem são as funções de que a opinião é ovalor de verdade. A opinião é um valor deverdade das funções do belo e do bem. Era,portanto, necessário levar a percepção até àbeleza do percepcionado e a afecção até à ex-periência do bem para chegar à opinião ver-dadeira.: esta não seria já a opinião instávele arbitrária, em suma, a opinião dos sofistase dos retóricos, mas umaopinião originária,umaproto-opiniãoque nos devolveria à pá-tria esquecida do conceito. Onde, pelo con-trário, o sensível se apresentasse sem beleza– e como poderia na verdade apresentar-se osensível com beleza? -, e o espírito sem bem,entregue ao simples prazer, a própria opiniãopermaneceria sofística e retórica, em suma,falsa. No entanto, esta procura apaixonadada opinião verdadeira levará os platónicos auma aporia, precisamente aquela que se ex-prime no, talvez, mais espantoso diálogo, oTeeteto. é necessário que o saber seja trans-cendente, que se acrescente à opinião e sedistinga dela para a tornar verdadeira, masé necessário que ele seja imanente para queela seja verdadeira como opinião. Podemosentão dizer que a filosofia grega permaneceainda ligada a essa velha Sabedoria prontaa manifestar a sua transcendência, ainda queda transcendência só tenha a amizade, a afec-

ção. é necessária a imanência, mas que elaseja imanente a algo de transcendente, a ide-alidade. Ora, o belo e o bem não cessam denos remeter para a transcendência. é comose a opinião verdadeira reclamasse ainda umsaber que ela, no entanto, destituiu” (O queé a filosofia?, pp. 131-132).

Podemos, então, dizer que esta ruptura en-tre a filosofia e a retórica caracteriza o que sepassou no tempo de Platão. Para Sócratessó vale a pena falar quando se procura di-zer a verdade. Ao invés, nos Sofistas, assisti-mos a uma teoria e a uma prática do discursoque é essencialmente estratégica: os homensconstróem os seus discursos e argúem nãopara chegar à verdade, mas para vencer. éum efectivo jogo, com consequências: quemperderá, quem vencerá? é por isso que a lutaentre Sócrates e os sofistas é muito impor-tante. E se para os sofistas falar, discutir, ar-guir é procurar chegar à vitória, não importaa que preço – às vezes à custa das armadi-lhas mais grosseiras, mas eficazes -, é porquepara eles a prática do discurso é indissociáveldo exercício do poder. Este ponto é decisivo:falar é exercer um poder, é arriscar o seu po-der, falar é arriscar na vitória ou tudo perder.

Há aqui uma coisa interessante: é que nosocratismo e no platonismo falar deixa de serum exercício de um poder para se transfor-mar num exercício da memória. E esta pas-sagem do poder à memória é algo de muitoimportante. Há ainda outra coisa igualmenteimportante que é o facto de os sofistas en-tenderem ologos, o discurso, como qual-quer coisa que possui uma existência mate-rial. Isto significa que nos jogos sofísticos, apartir do momento em que uma coisa é dita,é dita. Quer dizer, fica dita. No jogo entreos sofistas discute-se mais ou menos assim:“- Tu disseste isto. E porque o disseste fi-

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cas preso ao que disseste pelo simples factode o teres dito. Não podes fugir, libertar-te,do que disseste.” E isto acontece, não porcausa de um princípio de contradição – como qual, de resto, os sofistas se preocupavammuito pouco -, mas, de uma certa maneira,porque aquilo que cada um disse, fica dito,materialmente. Aquele que o disse, disse-omaterialmente, e já não pode fazer nada.

A propósito desta materialidade: foram ossofistas os primeiros a perguntar: “Será quequando eu digo a palavra carro, o carro passaefectivamente na minha boca?” Porque seum carro não pode passar através da minhaboca, então é porque eu não posso pronun-ciar a palavra carro. Enfim, foram os sofis-tas os primeiros a jogar com esta dupla ma-terialidade: aquela de que falamos, e a daprópria palavra. De resto, para eles, olo-gosera ao mesmo tempo um acontecimentoe um acontecimento irreversível, logo quea batalha tivesse começado e os dados hou-vessem sido lançados. Se a frase tinha sidodita, tinha sido dita. No fundo, temos aquia grande oposição entre o filósofo-orador eo pensador-decisor que é o conflito entre afilosofia e a retórica.

No nosso tempo, e numa disciplina comoa nossa, o problema está em saber como éque esta reintrodução da retórica, do orador,da luta do discurso no campo de análise podeser avaliada: não para fazermos, à maneirados linguistas, uma análise sistemática dosprocedimentos retóricos ou dos tropos, maspara estudar o discurso, mesmo e sobretudoo discurso de verdade, como performativi-dade retórica, maneiras de vencer, de produ-zir acontecimentos, de produzir decisões, deproduzir batalhas, de alcançar vitórias. Para,se assim podemos dizê-lo, “retoricizar” a fi-losofia.

Voltando às duas sentenças atrás referidas( gnôthi sauthon, “Conhece-te a ti mesmo”e “é melhor estar em desacordo e oposiçãocom a maioria das pessoas do que, sendo um,estar em dissonância e contradição comigopróprio”), podemos dizer que na compreen-são socrática o conhece-te a ti mesmo délficosignificava o seguinte: apenas ao conhecer oque me aparece – só a mim, e que, como tal,permanece sempre relacionado com a minhaexistência concreta – eu poderei algum diacompreender a verdade. Isto significa que,a verdade absoluta, que seria a mesma paratodos os homens, e que, por conseguinte,não se relacionaria com a existência de cadahomem, dela sendo independente, não podeexistir para os mortais. Por conseguinte, oimportante, para os mortais, é tornar adoxaverdadeira, é ver em cadadoxaa verdade, efalar de maneira tal que a verdade da opiniãode um homem se revele, a si e aos outros.

à sua maneira, sempre ambígua, o oráculode Delfos celebrou Sócrates como o mais sá-bio de todos os homens por ter aceite as li-mitações da verdade para os mortais, limita-ções dadas pelasdokein, pelas aparências, epor ter descoberto ao mesmo tempo – coin-cidindo, ao que parece, aqui, aparentemente,com os sofistas – que adoxanão era nem ilu-são subjectiva nem distorção arbitrária, mas,ao invés, era aquilo a que a verdade invariá-vel e materialmente aderia.

Se a quinta-essência do ensinamento dossofistas consistia nodya logoi, na insistênciade que se pode falar sempre sobre cada ques-tão de duas maneiras diferentes, com doisargumentos distintos, então Sócrates era omaior e o mais refinado dos Sofistas – umavez que ele pensava que havia, ou deveriahaver, tantoslogoi diferentes quantos os ho-mens existentes, e que todos esseslogoi jun-

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tos formam o mundo humano, já que os ho-mens vivem juntos no modo de falar. é deresto esse o retrato que dele e da sua es-cola nos dá admiravelmente Aristófanes nasua comédiaAs Nuvens. Um retrato, diga-se, em que os “filósofos profissionais” nãoousam pegar.

Para Sócrates, o principal critério parao homem que diz a sua própriadoxa comverdade é “que esteja de acordo consigomesmo” – que ele não se contradiga e nãodiga coisas contraditórias, que é o que a mai-oria das pessoas faz, e, no entanto, o quecada um de nós, de certa forma, tem medode fazer.

Este medo arcaico da contradição pareceproceder do facto de que cada um de nós,“sendo um”, poder ao mesmo tempo falarconsigo mesmocomo sefosse dois. Porquesou sempre e já “dois-em-um”, pelo menosquando tento pensar, posso ter a experiên-cia de que um amigo, para usar a definiçãode Aristóteles, é como um “outro eu” (he-teros gar autos ho philos estin). Só alguémque tenha tido a experiência de falar consigomesmo é então capaz de ser amigo, de adqui-rir um outro eu. Embora, a menos que se sejacompletamente idiota – o que não é de todoo caso dos filósofos, que são gente muito in-teligente! -, qualquer um possua esta facul-dade. E embora um tal “embora” seja, nocaso, politicamente decisivo.

A condição é a de que esse alguém es-teja de comum acordo consigo mesmo, por-que alguém que se contradiz, na perspec-tiva de Sócrates, não é digno de confiança.A faculdade da fala e a pluralidade humanacorrespondem-se, não só porque usamos aspalavras para comunicarmos com aquelescom quem estamos no mundo, mas tambémporque, como sugere Aristóteles, vivo junto

comigo mesmo (ética a Nicómaco,11666 a10-15 e 1170 b 5-10).

Há a hipótese, não de todo despicienda, deo constituinte axioma da contradição, como qual Aristóteles fundou a lógica ociden-tal, poder remontar a essa descoberta funda-mental de Sócrates. A ideia de Sócrates émais ou menos esta: já que eu sou um, nãoirei contradizer-me. Mas posso contradizer-me porque em pensamento soudois-em-um;logo, não vivo apenas com os outros, en-quanto um, mas também comigo mesmo.

Uma vez mais, o medo da contradição é omedo que eu tenho de me fragmentar, de nãocontinuar a ser um, ou de poder deixar deser um, e é esta a razão pela qual o axiomada contradição se pôde tornar a regra funda-mental do pensamento. E é também este omotivo pelo qual a pluralidade dos homensjamais pode ser abolida, porque, ainda quesó eu exista, a partir do momento em que meentrego ao pensar, passo a serdois-em-um.é, portanto, por isso, que a saída do filósofoda pluralidade é sempre uma ilusão, uma vezque ainda que eu tivesse que viver inteira-mente sozinho, estando vivo, viveria sempresob a condição da pluralidade. Não tenho,então, outro remédio que não o de me su-portar, e não há lugar em que oeu-comigo-mesmose mostre mais claramente do que nopensamento puro, que é sempre, de uma ma-neira ou de outra, um diálogo entre os doisque eu sou. Por isso, o filósofo que, procu-rando escapar à condição humana da plurali-dade, fugisse para um solidão total, entregar-se-ia, de uma forma ainda mais radical doque qualquer outra criatura, a essa plurali-dade inerente a todo e qualquer ser humano,porque o filósofo é aquele quepensa por an-tonomásia.

Vejamos agora, por momentos, o modo

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sublime como Fernando Pessoa formula estaquestão para o seu desígnio de uma fun-damentação filosófica da heteronímia e ten-temos retirar dela os ensinamentos para onosso propósito de descrever as consequên-cias éticas do viver em comum. Nos seusTextos FilosóficosPessoa desenvolve longa-mente a ideia de que “a pura identidade e apura relação são a mesma coisa, isto é, quea Identidade é a mesma coisa que a Distin-ção”. Ou ainda, que “para se sentir pura-mente si-próprio, cada ente tem que sentir-setodos os outros, e absolutamente consubstan-ciado com todos os outros”. Ideia fundamen-tal, porque Fernando Pessoa vai fazer dela oponto de partida da afirmação da diferençano interior de si próprio, como condição dapossibilidade da relação com outrem, e, por-tanto do devir-outro. Eis um excerto signifi-cativo: “Ora isto não pode implicar fusão (dequalquer espécie) com os outros, pois assimo ente não se sentiria a si próprio; sentir-se-ánão-si próprio, e não si próprio-outros. Paranão deixar de ser si-próprio, tem que conti-nuar a ser distinto dos outros. Como, porém,nessa altura do relacionar-se, os outros sãooutros-ele, para ser distinto dos outros, eletem que ser distinto dos outros-ele. Ser dis-tinto dos outros-ele só pode dar-se sendo eledistinto de si mesmo”.

A originalidade de este texto – que se ini-cia com o postulado: “Um ente, ou eu, qual-quer existe essencialmente porque se sente esente-se porque se sente distinto de outro oude outros”, consubstancia-se inteiramente nofacto de Fernando Pessoa pretenderfundara Identidade na Diferença (ou “Distinção”),identidade que não é, à maneira spinozista,um atributo da substância, mas darelação,enquanto pura relação de diferença ou distin-ção de si próprio. Diz-nos Fernando Pessoa:

“Ora relação implica distinção. Temos, poisque a Relação Pura puramente distinta de si-mesma será uma pura distinção puramentedistinta de si-mesma. A distinção pura, po-rém, é já, por o que é, puramente distinta,visto que é a distinção pura. Por isso a Re-lação Pura, só por ser a Relação Pura, é puradistinção. Mas se é por isso que é pura dis-tinção, segue que é pura distinção por ser pu-ramente aquilo que é (que é Relação Pura)”.

Em suma, se eu sou Pura Relação e, porisso, puramente distinto de mim próprio, éporque sou puramente eu próprio (identi-dade) enquanto relação. é a identidade darelação de distinção de si próprio (condici-onando a segunda a primeira) que funda aidentidade entre a Identidade e Distinção, jáque a Identidade é também relação: “Umente qualquer é, pois,essencialmente, iden-tidade que é distinção”. A estrutura de du-plicação em abismo (da identidade da dife-rença e da diferença da identidade) permitea sua identificação; mas esta identificação sóé, evidentemente, possível, porque arelaçãoé primeira perante aidentidadesubstancial.

Para o nosso propósito, importa reter duasideias centrais: 1) A identidade do sujeitodefine-se como diferença de si a si. Masnão significa cisão ou divisão que aliene osujeito, já que é condição de possibilidadeda sua “completude” e da sua identidade (otexto diz: “Sentir-se ou ser o mais completa-mente si próprio relacionando-se o mais pos-sível com os outros”); 2) Esta diferença ourelação de si a si é aquilo que permite a re-lação com os outros. Portanto, para poderser dois, é precisoproduziruma distância in-terna de si a si, de tal modo que o sujeito(do devir-outro) deixe de ser definido como“eu”, passando a ser diferença, relação, in-tervalo de si a si. O problema, para Sócrates,

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é que esta produção de uma distância e deuma diferença de si a si não seja contradi-tória com o princípio da identidade, ou seja,como é que a diferença pode ser idêntica semser contraditória?

Mediado por Pessoa, o que Sócrates pa-rece que procura dizer-nos é afinal queaquele que vive junto com os outros começapor viver junto a si mesmo. Afinal de contas,o ensinamento de Sócrates significava umacoisa muito simples: só aquele que sabe vi-ver consigo mesmo está apto a viver com osoutros. Para ele, o eu é a única pessoa dequem nos não podemos separar, que não po-demos deixar e com a qual estamos fundi-dos. Donde o sentido da sua célebre deixano Górgias:“é muito melhor estar em desa-cordo e oposição com a maioria das pessoas,do que estar em desacordo e em contradiçãocomigo próprio”.

Por conseguinte, podemos afirmar que aética, não menos que a Lógica, tem a suaorigem nesta afirmação, uma vez que a cons-ciência, no seu sentido mais geral e literal,também se baseia no facto de eu poder estarde acordo ou em desacordo comigo mesmo;e isto significa que não só apareço e me doua ver aos outros, como também apareço eme dou a ver a mim próprio. A expressãoexame de consciêncianão significa mais doque isto. E a expressãomá consciênciasig-nifica que, mais do que arrependido, eu estouem desacordo comigo mesmo. Quer dizerque Sócrates procurou introduzir este pro-blema da consciência, do diálogo silenciosoque cada um trava consigo mesmo, no domí-nio do público e do político. E que não foibem sucedido.

Ora, num contexto puramente secular, sema fé num deus que tudo sabe e que de tudocuida, cuja derradeira palavra se espera que

ele venha a emitir num julgamento final so-bre a vida na terra, este problema parece serdecisivo. Trata-se, portanto, de saber se épossível existir a consciência numa socie-dade secular e se ela pode desempenhar umpapel na política secular. E trata-se tambémde averiguar se a moralidade enquanto taltem ou não uma realidade terrena.

Ora, para Sócrates, cada um de nós deveser tal como gostaria de aparecer aos outros,ou seja, e numa paráfrase da suas própriaspalavras, “dá-te a ver e aparece a ti próprio,tal como gostarias de te dar a ver e apare-cer quando visto pelos outros”. Quer isto di-zer que, como, mesmo quando estamos sós,não estamos inteiramente sós, podemos e de-vemos dar testemunho da nossa própria re-alidade. Ou, falando numa maior proximi-dade à moral de Sócrates, a razão por quenão devemos matar, mesmo que o possa-mos fazer não sendo vistos por ninguém, éque não queremos de modo algum viver nacompanhia de um assassino; na nossa (im)-própria companhia. Ao cometer um assassí-nio entregar-nos-íamos à companhia de umassassino enquanto vivêssemos. Isto con-firma a ideia de que os homens não só exis-tem no plural – como, de resto, todas as cri-aturas ou seres terrenos -, mas que trazemem si mesmos uma marca dessa pluralidade.Só que o eu que me acompanha noestar-sónunca pode, no entanto, assumir a mesmadiferença ou forma definida e única que to-das as pessoas têm para mim; pelo contrá-rio, esse eu permanece sempre mutável, am-bíguo e nunca completamente definido. Ora,é justamente sob a forma dessa mutabili-dade, dessa metamorfose, desse devir-outroque esse eu representa para mim enquantoestou só, que eu posso conceber todos os ho-mens e mesmo fazer uma ideia do que possa

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ser a humanidade em geral. Assim, o queeu espero que seja feito pelas outras pessoasé, em grande parte, determinado pelas pos-sibilidades de metamorfose do eu com quemvivo: Je est un autre,como modernamentedisse Rimbaud.

Por outras palavras, um assassino não estáapenas condenado à companhia permanentedo seu próprio eu homicida. Pior do que isso,para o domínio público e político, ele poderápassar a ver todas as outras pessoas a partirda imagem da sua acção. Viverá num mundode assassinos potenciais. O que talvez aténem seja mentira! Embora não seja, certa-mente, desejável. O problema, para Sócra-tes, nem seria tanto o eventual relevo políticodo seu acto isolado, mas adoxa,a sua pró-pria opinião; o modo como o mundo se abrepara ele, o modo como o mundo lhe aparece.

à identidade ente o discurso e o pensa-mento que, juntos, constituem aquilo a quese costuma chamarlogos, e que é preci-samente o pressuposto do axioma da não-contradição presente no “é muito melhor es-tar em desacordo e oposição com a maioriadas pessoas, do que, sendo um, estar em de-sacordo e em contradição comigo próprio”,Sócrates acrescentou o diálogo de mim co-migo mesmo como a condição primeira dopensamento, uma das características maisimportantes da cultura grega. Ora, a relevân-cia política desta descoberta ou formulaçãosocrática do problema da consciência, residena sua afirmação e convicção de que a soli-dão, que antes e depois de Sócrates era tidacomo prerrogativa ehabitusprofissional ex-clusivo do filósofo, e naturalmente vista pelapolis como suspeita de ser anti-política, é,pelo contrário, a condição necessária para obom funcionamento dapolis, uma garantia

melhor do que as regras de comportamentoimpostas pelas leis e pelo medo do castigo.

Deste modo, podemos compreender a tesede alguns que afirmam que a primeira pre-ocupação das organizações totalitárias demassas – das quais, porventura, não pode-mos excluir algumas das formas modernasda democracia – é eliminar toda e qualquerpossibilidade de estar só. Porque, ao nãoexistir qualquer garantia de uma mínima pos-sibilidade de cada um poder estar só consigomesmo, não são apenas as formas secula-res, mas também todas as formas religiosasde consciência que são abolidas. Veja-se osdestinatários dos programas de televisão, dasnovas seitas religiosas, de cartomantes, as-trólogos e quejandos: “Para si, que está só etem problemas, temos uma palavra amiga”.A solidão é inimiga do comércio, meus ami-gos! Por isso, “não negue, à partida, umaciência que não conhece”.

Recapitulando, podemos, então, dizer queeste eterno conflito entre a filosofia e a po-lítica nasce e tem o seu momento mais de-terminante no julgamento e condenação àmorte de Sócrates; assim como o antago-nismo entre a verdade e a opinião, o anta-gonismo entre a comunicação sob a formade “diálogo” enquanto discurso apropriadoà verdade filosófica, e a comunicação sob aforma da “retórica”, através do qual o dema-gogo, como o diríamos hoje, persuade a mul-tidão. De maneira que em Platão a verdadeestá para a filosofia e para o pensamento talcomo a opinião está para a política ou retó-rica e para a acção.

No Teeteto (155 d), que é um diálogosobre a diferença entreepisteme(conheci-mento) edoxa(opinião), Platão define assima origem da filosofia: “ (...) do que o filó-sofo mais sofre é do espanto, pois não há ou-

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tro início para a filosofia senão o espanto...”.Ora, thaumadzein, o espanto diante daquiloque é tal como é, é umpathos, quer isto di-zer, algo que se sente e sofre e que, enquantotal, é muito diferente dadoxadzein,da for-mação de uma opinião sobre alguma coisa.O espanto que o homem experimenta ou queo acomete não pode ser descrito em palavras,por ser pouco geral para palavras. Platãodeve tê-lo enfrentado pele primeira vez na-queles estados traumáticos relatados, quandoSócrates, como que arrebatado por um êx-tase, caía, de súbito, na imobilidade total,apenas olhando fixamente, sem ver nem ou-vir nada.

Tornou-se, portanto, um axioma, tantopara Platão quanto para Aristóteles, que esseespanto é o começo da filosofia. E a dife-rença entre os filósofos, que são poucos, e amultidão, não consiste de modo algum, em amaioria nada saber dessepathosdo espanto,mas, muito pelo contrário, em ela se recu-sar a experimentá-lo. Essa recusa expressa-se emdoxadzein, na formação de opiniõesa respeito de questões sobre as quais o ho-mem não pode ter opiniões, pela simples ra-zão de os padrões habituais do senso comumnão encontrarem aí aplicação. Dito de outraforma,doxapôde tornar-se o oposto de ver-dade porquedoxadzeiné na verdade o opostodethaumadzein.

Como opathosdo espanto não é, comoacabámos de ver, estranho aos homens,sendo, ao invés, uma das características maisgenéricas da condição humana, e como, paraa multidão, a saída para este estado é for-mar opiniões em casos em que estas semostram inadequadas, o filósofo, inevitavel-mente, acabará por entrar em conflito comtais opiniões, mostrando-se intolerante paracom elas. E, uma vez que a sua própria

experiência de mudez, que decorre natural-mente da estupefacção que se segue ao es-panto ou que lhe é concomitante, se expressaapenas no levantamento de perguntas paraas quais não se encontram respostas, sucedeque, aquando do seu regresso ao domínio po-lítico, ele se veja numa situação de inexorá-vel desvantagem: é o único que não sabe, oúnico que não possui umadoxadistinta e cla-ramente definida para competir com as ou-tras opiniões, sobre cuja verdade ou inver-dade o senso comum quer decidir, isto é, comaquele sexto ou sétimo sentido que não sótodos nós temos, mas que nos ajusta a ummundo comum, tornando-o assim possível.Se o filósofo começa a falar dentro do sensocomum, a que também pertencem os nossosjuízos e preconceitos comummente aceites,o mais certo é que ele seja tentado a falar emtermos denon-senseou – para usarmos umacélebre frase de Hegel – a “virar o senso co-mum de cabeça para baixo”. Se, pelo con-trário, procura comunicar a sua verdade àmultidão, o inevitável resultado será o de veressa mesma verdade desaparecer na diversi-dade dos pontos de vista que, para ele, sãoilusões. No entanto, o filósofo também sópode formar opiniões – também ele chega àsua própriadoxa. Distingue-se, apesar disso,dos seus concidadãos, não por possuir al-guma verdade especial da qual a multidãoesteja excluída, mas por permanecer sempredisposto à experiência dopathosdo espantoe, por conseguinte, a evitar o dogmatismodos que se limitam a ter as suas meras opi-niões. Foi, aliás, para combater esse dogma-tismo dedoxadzeinque Platão se propôs pro-longar indefinidamente esse espanto mudoque existe no início e no fim da filosofia.E foi também com esse gesto obstinado quePlatão assinou a sentença de morte da filoso-

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fia, no sentido de ela não poder já oferecerqualquer tipo de serventia à política e à vidaactiva. Justamente, aquilo que permite dis-tinguir a filosofia política tradicional – quetende a derivar o lado político da vida hu-mana da necessidade que constrange o ani-mal homem a viver em comum com os ou-tros, em vez de o fundar na capacidade deagir -, do pensamento político contemporâ-neo, é o facto de este último reconhecer queos assuntos humanos apresentam autênticosproblemas filosóficos. De facto, ninguémacredita hoje que tudo o que precisamos são“homens sábios”, nem que o “desvario domundo” seja a única coisa que podemos in-ferir dos acontecimentos políticos.

Como é do conhecimento geral, algunsdos diálogos de Platão são apelidados deaporéticos. Ora,aporia, literalmente, sig-nifica beco sem saída. Em sentido res-trito, entende-se sempre como uma propo-sição sem saída lógica, como uma dificul-dade lógica insuperável. Isto para dizermosque a busca da verdade nadoxa, tal como éilustrada nas conversas de Sócrates com osseus interlocutores, pode levar por vezes aoresultado catastrófico da sua completa des-truição. Pelo que historicamente sabemos daenorme influência de Sócrates nos seus discí-pulos, é óbvio que muitos dos seus ouvinteshão-de ter ido embora, não com uma opiniãomais verdadeira, mas sem qualquer espéciede opinião. O facto de muitos dos diálogosde Platão serem inconclusivos também podeser visto a esta luz: destróem-se todas as opi-niões, mas nenhuma verdade vem ocupar olugar daquelas.

De maneira muito esquemática, podemosdizer que quase todos os diálogos de Pla-tão seguem a seguinte metodologia: há umacombinação da pergunta “o que é isto ou

aquilo ou aqueloutro?” – que dá origem auma série de definições – com oelenchos–a técnica refutativa – mais aepagôgê– a in-dução socrática – usada como forma de in-corporar a informação aduzida por meio deexemplos e comparações. São, portanto, asperguntas de Sócrates que comandam o en-cadeamento de conversas que constituem o“diálogo” socrático típico. Note-se que aolongo de qualquer diálogo aparecerão sem-pre inúmeras perguntas. No entanto, deve-mos sempre distingui-las das questões inici-ais, que são sempre redutíveis a dois tiposmuito gerais: “O que é x?” e “x é y?”. Porexemplo: “O que é aaretê?” e “A aretêéensinávelounasce-se com ela?” (Ménon).

Em várias passagens – particularmente emMénon (71 b) –Sócrates insiste na primeira,sublinhando que “enquanto não se souber oque uma coisa é, não se poderá saber quequalidade ou qualidades lhe podem ser atri-buídas”. Na sua aparente simplicidade, apergunta “O que é?” consente os mais varia-dos tipos de respostas. Por essa razão, Sócra-tes, sem renunciar à formulação que apontapara um objecto evidente, irá acrescentandoexigências a que a resposta deverá obedecer.O essencial destas exigências está em elas re-cusarem toda a espécie de exemplificação eparticularização, para visarem a própria re-alidade imutável e igual a si própria, pelaqual são denominadas todas as suas instân-cias. Essa realidade é designada por Platãocomo uma forma <Eidos> e é significativoe não ocasional que a maior parte das ambi-guidades que se encontram nos diálogos pla-tónicos resulte da circunstancia de Sócratester sempre umaFormacomo alvo da sua per-gunta, enquanto o interlocutor tarda em com-preender que as respostas não devem con-templar casos particulares. Esta lição – onde

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se faz notar toda a manha e a célebre ironiade Sócrates – é penosamente aprendida nasrefutações que imediatamente se seguem acada definição. A técnica refutativa de Só-crates, consiste na obtenção do assentimentodos seus interlocutores a proposições directaou indirectamente incompatíveis com cadadefinição, ou seja, à primeira resposta apre-sentada à pergunta “O que é?”. Esta técnicarefutativa, a que se chamaelenchos, procede,pois, pela dedução de proposições derivadasda inicial, não directamente, mas através deexemplos introduzidos por Sócrates, semprecom a aquiescência do interlocutor do mo-mento. A refutação termina quando este éconfrontado com duas declarações contra-ditórias a que teve de anuir. Consequente-mente, a aporia emerge, então, do reconhe-cimento da insuficiência da resposta iniciale da consciência da impossibilidade de umaoutra que sobreviva à refutação. Por último,resta dizer que cabe às induções socráticasa função de incluir ou acrescentar informa-ção nova, agregada por meio dos exemplosaceites por ambas as partes. é de salientar,porém, que, para além da sua finalidade pu-ramente destrutiva, aepagôgêobedece a umdesígnio construtivo, uma vez que, emboraas definições nunca se atinjam por genera-lização, a partir de casos particulares, cadanovo logos engloba e supera as exigênciasque serviram para refutar o anterior.

Uma última palavra quanto à célebre iro-nia do grande parteiro de almas. De certamaneira, a ironia socrática é uma forma denomear o inomeável, reconhecendo a ténuefronteira entre a ignorância “filosófica”, adouta ignorância, aquela que sabe que nãosabe e aquela que, aparentando saber, pelocontrário impede a sabedoria. No limite,talvez seja uma forma de suspensão da di-

ferença que separa o filósofo de todos osseus interlocutores e que é a condição da suabusca e da sua vida. A profundidade destaposição permite, contudo, muitos matizes,indo desde a desvalorização da sabedoria hu-mana até a uma hipócrita e insincera estra-tégia de exaltação do saber dos interlocuto-res. Por essa razão é exacta e inexacta a re-petida asserção de Sócrates de, na verdade,não conhecer as respostas para as perguntasque faz. é exacta na medida em que sabe nãoser capaz de apresentar umlogos, um argu-mento irrefutável; é inexacta, no sentido emque a prática do filosofar será garantia sufici-ente de sempre se visar a sabedoria e, assim,adiar indefinidamente a aporia.

Podemos dizer que Sócrates possuía umgosto mórbido e uma inclinação quase per-versa para os jogos da refutação. Como elegostava de refutar! Uma vez que a protecçãodo homem do perigo de se ver destruído pelomal que é a ignorância é a única finalidade dopensamento enquanto inquérito sobre as suaspróprias condições, Sócrates justifica assima, podemos chamá-la, sua tara: “Enganas-te”, diz ele noCármides(166 d) a um in-terlocutor, “se pensas que te refuto por outrarazão que não seja a de me examinar a mimpróprio, por temer deixar escapar qualquercoisa que julgue saber, sem o saber”. Eiso motivo que leva Sócrates a lançar mão detudo para expor a futilidade das pretensõeshumanas à sabedoria. Mas, mal o interlocu-tor dê sinais de querer desistir, reconhecendoa enorme dificuldade da tarefa que no iníciolhe parecera tão simples, ei-lo, ao nosso he-rói, que, em vista daforma, sugere pistas, re-vela sonhos ou segue inspirações divinas. E,se apesar de tudo, o impasse é o saldo inva-riável do seu esforço, é porque, muito prova-velmente, é o seu interlocutor que se mostra

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incapaz de avançar mais nesse terreno. Umdiabo, este nosso dialéctico!

Ora, vimos há pouco que, por mais queSócrates reclamasse para si próprio a “es-terilidade” – e essa era a condição que lhepermitia chamar-se a si mesmo parteiro dealmas -, por mais que admitisse que não ti-nha sobre um determinado assunto umadoxaformada, o que é certo é que essa falta dedoxaera o requisito para a busca da verdade.Por isso, por mais que possa ser de facto as-sim, Sócrates, apesar de protestar sempre ede dizer que não possuía nenhuma verdadeque pudesse ser ensinada, aparecia, não obs-tante, como um perito na verdade. De ma-neira que o abismo entre verdade e opinião– abismo que o próprio julgamento e conde-nação à morte do filósofo tão bem encena,ou não fosse Platão um grande dramaturgo-, que daí para a frente viria a separar o fi-lósofo de todos os outros homens, mormentedo político, que ao pensamento prefere a ac-ção, está já incubado nesse célebrecidadãode Atenas.

Por outras palavras, o conflito entre filoso-fia e política, entre o filósofo e apolis, irrom-peu não porque Sócrates quisesse desempe-nhar um papel político na vida da cidade,mas porque queria tornar a filosofia relevantepara apolis. é claro que o conflito terminoucom uma derrota para a filosofia, honrosa, écerto, mas uma clara derrota. O progressivoafastamento do filósofo da vida dapolis e acondição subsequente da filosofia enquantoum saber que se quer definitivamente forados assuntos humanos, a-político, teve, paraa nossa tradição ocidental, o efeito imediatode separar o homem de pensamento do ho-mem de acção, para o dizer de forma maiserudita, avida contemplativadavida activa.De modo que toda a filosofia política – e a

reabilitação académico-disciplinar da Retó-rica depois de um longo período de esqueci-mento, pode, justamente, ser vista como umefeito da identidade moderna entre o pensa-mento e a acção com o subsequente “retornodo político” e a valorização da performativi-dade retórica da linguagem – parece, à pri-meira vista, enfrentar a seguinte alternativa:ou interpretar a experiência filosófica comcategorias cuja origem se deve à esfera dosassuntos humanos (à política), ou, pelo con-trário, reivindicar prioridade para a experi-ência filosófica e julgar toda a política à sualuz. Ora, a nosso ver, a pertinência do estudoda Retórica num tempo como o nosso deveapontar claramente para o primeiro termo daalternativa.

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