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Sidnei Antonio Ferreira Rigobelo A RESSURREIÇÃO DE LÁZARO UMA NARRATIVA PARADIGMÁTICA PARA A COMPREENSÃO DA ESCATOLOGIA JOANINA Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Johan Konings Apoio CAPES Belo Horizonte FAJE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2014

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Sidnei Antonio Ferreira Rigobelo

A RESSURREIO DE LZARO

UMA NARRATIVA PARADIGMTICA PARA A

COMPREENSO DA ESCATOLOGIA JOANINA

Dissertao de Mestrado em Teologia

Orientador: Prof. Dr. Johan Konings

Apoio CAPES

Belo Horizonte

FAJE Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

2014

Sidnei Antonio Ferreira Rigobelo

A RESSURREIO DE LZARO

UMA NARRATIVA PARADIGMTICA PARA A

COMPREENSO DA ESCATOLOGIA JOANINA

Dissertao apresentada ao Departamento de

Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e

Teologia, como requisio parcial obteno do

ttulo de Mestre em Teologia.

rea de concentrao: Teologia Sistemtica

Orientador: Prof. Dr. Johan Konings, SJ

Belo Horizonte

FAJE Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

2014

FICHA CATALOGRFICA

Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

R572r

Rigobelo, Sidnei Antonio Ferreira

A ressurreio de Lzaro: uma narrativa paradigmtica para

a compreenso da escatologia joanina / Sidnei Antonio Ferreira

Rigobelo. - Belo Horizonte, 2014.

112 p.

Orientador: Prof. Dr. Johan Konings

Dissertao (Mestrado) Faculdade Jesuta de Filosofia e

Teologia, Departamento de Teologia.

1. Bblia. N.T. Joo. 2. Escatologia. 3. Ressurreio de

Lzaro. I. Konings, Johan. II. Faculdade Jesuta de Filosofia e

Teologia. Departamento de Teologia. III. Ttulo

CDU 226.5

A meu pai, Natalino Rigobelo, in memoriam.

A ele que no incio do segundo semestre desta pesquisa,

num piscar de olhos, os fechou para esta vida e os abriu para a vida eterna em Deus.

Agradecimento

Ao Deus da vida.

A meu orientador, Padre Konings, por sua pacincia, dedicao e

confiana.

A Dom Irineu Danelon, Bispo Diocesano de Lins, pela oportunidade

de aprofundar meus estudos para melhor servir ao Povo de Deus.

Aos Padres Antnio Francisco da Silva e Lucas Domingos da Silva

pela acolhida junto s comunidades da Parquia Santa Mnica, pela

amizade, incentivos e apoio.

minha famlia por ser meu cho quando este parece me faltar.

Aos meus amigos e amigas que de perto ou de longe, nos momentos

mais difceis, sempre se fizeram presentes e compreenderam minhas

ausncias.

FAJE, em seus docentes e funcionrios, pela excelncia na

educao.

s Irms Carmelitas de Santa Tereza, pela acolhida e por nos

proporcionar na ltima etapa desta pesquisa um ambiente de estudo e

orao.

Ao Padre Jaldemir Vitrio, pela inspirao das Fraternidades Dom

Hlder Cmara e Dom Luciano, pela acolhida e por nos acompanhar

at aqui.

Ao Dicono Srgio Lenine e Padre Almir pela partilha de vida na

Fraternidade Dom Jos Maria Pires.

A todos que direta ou indiretamente contriburam para a realizao

desta pesquisa, minha eterna gratido.

Resumo

A presente dissertao tem por objetivo estudar sistematicamente o tema da escatologia no

Evangelho de Joo, procurando compreender as duas vertentes escatolgicas (presente e

futura) que a coexistem e por vezes esto justapostas. Num primeiro momento, apresentamos

o status quaestionis sobre esta temtica, buscando, em linhas gerais, a convergncia entre

exegese e teologia sistemtica. Em seguida, propomos a leitura e anlise do episdio da

ressurreio de Lzaro (Jo 10,40 11,54) em chave cannica e como uma narrativa da vida

que est em Jesus. Por fim, apresentamos as pistas hermenuticas, considerando as

possibilidades e os limites de interpretao dessa narrativa que se mostra paradigmtica para a

compreenso da escatologia joanina, e que prope aos cristos de todos os tempos a f em

Jesus Cristo que a ressurreio e a vida.

Palavras-chave

Escatologia joanina, ressurreio, vida, Lzaro, hermenutica, leitura cannica.

Rsum

La prsente dissertation a comme objetif tudier systmatiquement le sujet de leschatologie

dans lvangile de Jean, en essayant de comprendre les deux versants eschatologiques

(prsent et future) qui l coexistent et sont parfois juxtaposes. Dans un premier moment,

nous prsentons le status quaestionis ce sujet, recherche, en gnral, la convergence entre

lexgse et la thologie systmatique. Ensuite, nous proposons la lecture et lanalyse de

lpisode de la rsurrection de Lazare (Jn 10,40 11,54) en cl canonique et comme rcit de

la vie qui est en Jsus. Enfin, nous prsentons des pistes hermneutiques, compte tenu des

possibilits et des limites de linterprtation de ce rcit qui se rvle paradigmtique pour la

comprhension de leschatologie johannique et qui propose aux crtiens de tous les temps la

foi en Jsus-Christ qui est la rsurrection et la vie .

Mots-cl

Eschatologie johannique, rsurrection, vie, Lazare, hermneutique, lecture canonique.

SUMRIO

SIGLAS E ABREVIAES ................................................................................................... 7

INTRODUO ........................................................................................................................ 8

CAPTULO I: A PROBLEMTICA ................................................................................... 11

1.1 Status quaestionis seletivo acerca da escatologia no Evangelho de Joo .................. 11

1.1.1 Rudolf Bultmann (1884 1976) .............................................................................. 11

1.1.2 Josef Blank (1926 1989) ....................................................................................... 12

1.1.3 Charles Harold Dodd (1884 1973) ........................................................................ 14

1.1.4 Xavier Lon-Dufour (1912 2007) ......................................................................... 16

1.1.5 Rudolf Schnackenburg (1914 2002) ..................................................................... 18

1.1.6 Marie-mile Boismard (1916 2004) ..................................................................... 20

1.1.7 Raymond Edward Brown (1928 1998) ................................................................. 22

1.1.8 Bruno Maggioni (1932 ) ........................................................................................ 24

1.1.9 Johan Konings (1941 ) .......................................................................................... 25

1.1.10 Johannes Beutler (1933 ) ..................................................................................... 27

1.2 A relao entre exegese e teologia sistemtica ............................................................... 30

1.3 Duas formas de abordagem e interpretao do texto bblico .......................................... 35

1.3.1 O mtodo histrico-crtico ....................................................................................... 35

1.3.2 A leitura ou abordagem cannica ............................................................................. 37

CAPTULO II: LEITURA E ANLISE DA RESSURREIO DE LZARO .......... 40

2.1 A leitura do texto ............................................................................................................ 41

2.1.1 Traduo literal ........................................................................................................ 42

2.1.2 Crtica literria, histria da tradio, crtica textual e questes lexicogrficas ........ 46

2.1.3 O lugar da percope de Lzaro na estrutura geral do Quarto Evangelho ................. 53

2.2 Anlise de Jo 10,40 11,54 ............................................................................................ 54

2.2.1 O texto e seu contexto: delimitao da percope ...................................................... 54

2.2.2 Gnese literria: redao e gnero literrio .............................................................. 56

2.3 Leitura sincrnica ........................................................................................................... 59

CAPTULO III: PISTAS HERMENUTICAS .................................................................. 70

3.1 A vida (eterna) anunciada como dom e seu cumprimento no episdio de Lzaro ......... 70

3.2 A morte ........................................................................................................................... 77

3.3 Um paradoxo: o doador da vida que ressuscita um morto condenado morte............ 81

3.4 A dimenso performativa da Palavra .............................................................................. 83

3.4.1 As possveis interpretaes ...................................................................................... 84

3.4.2 Os limites da interpretao ................................................................................... 90

IV. CONCLUSO ................................................................................................................ 100

REFERNCIA BIBLIOGRFICA .................................................................................... 104

ANEXO I ............................................................................................................................... 109

ANEXO II .............................................................................................................................. 110

SIGLAS E ABREVIAES

CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

DV Dei Verbum

GS Gaudium et spes

OT Optatam totius

PO Presbyterorum ordinis

SC Sacrosanctum Concilium

TEB Bblia Traduo Ecumnica

VDom Verbum Domini

cap. caps. captulo, captulos

cf. conferir

ed. edio

gr. grego

p. ex. por exemplo

par. paralelos

s. ss. seguinte, seguintes

v. vv. versculo, versculos

vol. volume

As abreviaes bblicas seguem a traduo da CNBB.

8

INTRODUO

Na Bblia, a escatologia aparece como o motor da histria da salvao que se orienta

para o futuro em termos de esperana no cumprimento das promessas divinas. Na ptica

crist, essa promessa encontra seu cumprimento na pessoa de Jesus de Nazar e em sua

ressurreio e ascenso, criando uma nova expectativa: a da volta do Senhor glorioso na

parusia. Deste modo, como ultimamente se tem afirmado, a escatologia vista no como um

elemento a mais do cristianismo, mas como a chave mesma de compreenso da f crist. F

que gravita em torno da tenso entre o j e o ainda no da salvao em e por Cristo. Salvao

j recebida, mas ainda no plenamente realizada.

Considerando essa tenso, os manuais de escatologia crist, em geral, comeam a

exposio pela escatologia bblica, mostrando os traos de sua origem no Antigo Testamento

e seu desenvolvimento at chegar ao especfico da escatologia crist.

Dentre as escatologias do Novo Testamento, elegemos como objeto de investigao a

do Evangelho segundo Joo. Essa apresentada nos manuais em paralelo com a tradicional

escatologia dos sinpticos e a paulina. Como tudo indica, h em Joo como que um

amadurecimento da reflexo teolgica sobre o schaton, entendido aqui como a realidade

ltima e definitiva do evento Jesus Cristo e suas consequncias para a vida do crente,

chamado a participar da vida eterna de Deus.

No Evangelho de Joo, cristologia e escatologia esto entrelaadas, uma no pode

prescindir da outra, e isso interfere na compreenso da teologia joanina e em seu significado.

Neste sentido, Joo, ao nos apresentar Jesus como o salvador escatolgico diante do qual a

humanidade chamada a decidir-se pela salvao, do contrrio incorrer em juzo quer

mostrar que realidades escatolgicas, como salvao e juzo, tradicionalmente reservadas para

o ltimo dia, tornam-se presentes desde j na pessoa histrica de Jesus de Nazar, tornado o

Cristo, Filho de Deus, glorificado e exaltado.

Diante disso, pretendemos com esta dissertao adentrar no mundo joanino e

palmilhar as vias de sua reflexo escatolgica. Tomaremos o Evangelho em sua forma

cannica, o que implica considerarmos de antemo as especificidades joaninas no trato das

9

questes escatolgicas. Ao que tudo indica, Joo ensina e privilegia a escatologia presente,

diferentemente dos sinpticos onde mais marcante a dimenso futura. Entretanto, no Quarto

Evangelho as duas vertentes coexistem e, s vezes, esto justapostas numa mesma percope.

Disso brotam as questes norteadoras de nossa pesquisa: Como entender esta coexistncia e

justaposio? A dimenso presente relativiza a futura ou devemos consider-las

dialeticamente? Essa ltima hiptese parece ser a mais correta.

Na inteno de responder a estas perguntas e de verificar a validade da hiptese que

acabamos de citar, realizamos a pesquisa em trs momentos, que correspondem aos trs

captulos da dissertao que agora apresentamos. No primeiro captulo, passaremos em revista

alguns dos principais representantes dos estudos joaninos, traando, a partir deles, o status

quaestionis de nossa temtica. Devido ao grande volume de material disponvel citaremos

apenas aqueles que tocam diretamente em nosso tema, e mesmo assim de forma panormica,

no exaustiva. Depois de nos situarmos neste ambiente bblico-joanino, ampliaremos a

reflexo abordando a relao entre exegese e teologia sistemtica; relao nem sempre

pacfica, mas que se mostrou eficaz e oportuna para a renovao do Tratado de Escatologia.

Em seguida, discutiremos sobre as duas formas possveis de se abordar o texto bblico: a

abordagem diacrnica que emprega o mtodo histrico-crtico e a abordagem sincrnica que

se apoia em novos mtodos de anlise e interpretao literrias, dentre estes ltimos,

destacaremos a abordagem cannica que nos acompanhar no desenvolvimento da

dissertao.

Diversas so as percopes joaninas de ndole escatolgica. Considerar todas elas

inviabilizaria a realizao deste trabalho. Portanto, fomos levados a eleger uma que, a nosso

ver, apresenta de forma mais elaborada aquela justaposio das duas vertentes escatolgicas,

trata-se do episdio de Lzaro (Jo 10,40 11,54), a mais extensa narrativa do Evangelho e

que traz o ltimo e maior dos sinais realizados por Cristo: a ressurreio de Lzaro.

Sobre ela nos debruaremos em nosso segundo captulo, em dois momentos. Num primeiro

momento propomos a leitura em chave cannica considerando a as contribuies da anlise

diacrnica quanto crtica literria, a histria da tradio, a crtica textual, a anlise

lexicogrfica, as propostas de estruturao e o lugar que ocupa nossa percope no quadro geral

do Quarto Evangelho. No segundo momento, partiremos para a anlise textual propriamente

dita. A trataremos da delimitao da percope e a subdiviso em episdios, discutiremos

sobre sua gnese redacional e seu gnero literrio, para enfim, realizarmos uma leitura

sincrnica que enriquecida com os resultados obtidos no mtodo histrico-crtico e

10

emprestando elementos do mtodo de anlise narrativa nos fornea as chaves de

interpretao do episdio e sua conexo com a doutrina escatolgica joanina.

O terceiro captulo, que intitulamos pistas hermenuticas, serve-nos para retomar e

aprofundar algumas temticas que se mostraram importantes durante a leitura e anlise da

percope nos captulos anteriores. Trata-se de explorar o campo semntico da vida e da morte.

Temas que marcam a nossa percope e evidenciam, a partir dela, um paradoxo: Cristo, o

doador da vida condenado morte. Entretanto, esse paradoxo ser resolvido na sequncia

narrativa do Evangelho, como veremos no momento oportuno.

Depois destes aprofundamentos, apresentaremos as pistas hermenuticas. Faremos

isso considerando que a Palavra de Deus mais performativa do que informativa, levando-nos

a compreender que o Evangelho no apenas uma comunicao de realidades que se podem

saber e esperar, mas uma comunicao que gera fatos e muda a vida (cf. Spe Salvi, 2). Por

isso, o terceiro captulo para ns o mais caro, principalmente a ltima parte, na qual

procuramos descobrir o efeito do texto sobre os leitores de outrora e de agora, destacando as

possibilidades hermenuticas e tambm os supostos limites que a clausura cannica lhe

impe. Ao extrapolarmos os limites cannicos nos depararemos com o homem lazareano

que mais do que rejeio, por estar fora dos limites da interpretao crist, inspira-nos

ateno. Ele nos ajuda a refletir sobre a esperana crist e a f na ressurreio de forma a

reprop-las ao ser humano contemporneo marcado pelo pessimismo, pela angstia e pelo

desprezo vida.

Esperamos ao final deste percurso encontrar respostas s questes levantadas.

Sabemos que a magnitude deste tema no cabe nestas poucas pginas, mas ficaremos

satisfeitos se, ao trmino da leitura, comprovarmos que a percope da ressurreio de

Lzaro mostra-se como uma narrativa paradigmtica para a compreenso da escatologia

joanina e se encontrarmos nela pistas que nos ajudem a pensar as realidades ltimas e

definitivas como nos prope Joo, a partir de j, e nos ajudem, enfim, a voltarmos o nosso

olhar para aquele que a ressurreio e a vida.

11

CAPTULO I: A PROBLEMTICA

1.1 Status quaestionis seletivo acerca da escatologia no Evangelho de Joo

Um dos traos mais marcantes e caractersticos da escatologia neotestamentria

consiste na tenso escatolgica a presente entre o j e o ainda no da salvao. Por este

motivo encontramos na hermenutica do Novo Testamento diversas, divergentes e at mesmo

contraditrias hipteses e teorias, nas quais os exegetas buscam precisar a doutrina de Jesus

sobre o schaton para em seguida distinguir como as primeiras comunidades a interpretaram e

transmitiram.

Nesta busca, procura-se justificar o fato de a escatologia ser apresentada ora em

termos futuros, ora em termos presentes e/ou realizados. Neste sentido, o Evangelho de Joo

goza de particular relevncia devido o seu modo prprio de acentuar o carter atual ou

presente dos dons escatolgicos, levantando sobre isto diversas questes.

Considerando o Quarto Evangelho na forma cannica que chegou at ns,

impossvel negar que em nenhum outro lugar no Novo Testamento encontramos a

coexistncia ou a justaposio das duas correntes escatolgicas (presente e futura), tal como

aparece neste Evangelho. Como entender isto? Essa a pergunta que nos orienta na

apresentao do estado da questo e que buscaremos responder com o auxlio de alguns

autores que se ocuparam dessa problemtica, seja em comentrios gerais da teologia do Novo

Testamento, seja em comentrios ao Evangelho segundo Joo, ou ainda em artigos que

esclaream a questo.

1.1.1 Rudolf Bultmann (1884 1976)

Com o despontar da crtica histrica e da teologia liberal e com o crescente uso do

mtodo histrico-crtico aplicado s pesquisas sobre a vida de Jesus, procurou-se encontrar no

debate teolgico dos dois ltimos sculos uma sntese entre o Jesus histrico e o Cristo da

12

f1. Entre os principais exegetas que se empenharam nesta pesquisa destacamos o alemo

Rudolf Bultmann, que desenvolveu importantes estudos sobre a teologia neotestamentria,

encontrando em Paulo e Joo seu esboo mais definido. Podemos dizer que na balana da

pesquisa sobre a Vida de Jesus, Bultmann pende para o lado do Cristo da f, ao dar maior

importncia ao querigma cristo2.

Mergulhado no contexto da teologia dialtica e da filosofia existencialista, apoiando-

se nas inovaes3 do mtodo histrico-crtico, Bultmann deu continuidade pesquisa sobre a

centralidade da escatologia na vida e pregao de Jesus, redescoberta por Johannes Weiss e

Albert Schweitzer. Com seu mtodo de interpretao existencial da mensagem

neotestamentria, acompanhado pelo programa de desmitologizao4, Bultmann atraiu muitos

seguidores, mas tambm foi alvo de diversas crticas. Segundo ele, Joo, em seu Evangelho,

elimina completamente a escatologia apocalptica, deslocando a mensagem escatolgica da

tradicional compreenso histrico-salvfica para um existir escatolgico que traz para o

presente as realidades prometidas e esperadas para o fim da histria, pois, o tempo da

salvao, j irrompeu, a vida futura j se tornou presente5. Deste modo, para ele, os eventos

escatolgicos situam-se no momento da deciso existencial por Cristo.

Ao defender a tese de que o Evangelho de Joo combina diversas fontes e que um

redator eclesistico inseriu elementos de escatologia futura no escrito que originalmente no

os continham, e por causa da nfase que deu com sua interpretao existencial dimenso

presente da escatologia, Bultmann reacendeu no cenrio teolgico a discusso sobre a

escatologia joanina.

1.1.2 Josef Blank (1926 1989)

As intuies de Bultmann sobre a interpretao do Quarto Evangelho foram

assimiladas em grande parte pelo exegeta catlico Josef Blank. Esse, em seu comentrio O

Evangelho segundo Joo6, realiza o estudo exegtico das percopes visando a familiarizar os

leitores com os problemas crtico-literrios, histrico-tradicionais, histrico-religiosos e

1 Para as fases da histria da pesquisa sobre a vida de Jesus, ver: THEISSEN, Jesus Histrico, p. 21-30.

Adotamos como mtodo dar a referncia completa das obras citadas somente na Referncia Bibliogrfica final. 2 Sempre nomearemos Bultmann como representante tpico da posio que afirma uma teologia baseada no

Cristo da f, com excluso do Jesus histrico (TORNOS, Escatologa, p. 97. Traduo nossa). 3 Tais como a Histria das formas, Histria da Redao e Histria das Religies.

4 Sob demitologizao entendo um procedimento hermenutico que interroga enunciados ou textos mitolgicos

quanto a seu teor de realidade (BULTMANN, Demitologizao, p. 95. Grifo do autor). 5 Ibid., p. 24.

6 Este comentrio est dividido em quatro volumes e quando usados assim os citaremos: 1A; 1B; 2 e 3.

13

teolgicos do Quarto Evangelho. A exegese seguida por uma meditao tendo em vista a

hermenutica dos textos.

Encontramos na introduo de sua obra a apresentao das particularidades literrias

do Evangelho de Joo. De tudo o que diz, interessa-nos aqui a discusso sobre a relao deste

Evangelho com os sinpticos, mais propriamente, sobre a diferena de enfoque na mensagem

de Jesus. Nos sinpticos, essa mensagem diz respeito proximidade da soberania do Reino de

Deus; em Joo, o centro e o contedo da mensagem o prprio Jesus. Segundo Blank, esse

deslocamento de perspectiva significou para a escatologia um deslocamento radical na

finalidade. Salvao e juzo j acontecem no presente, em relao com a pessoa e a palavra de

Jesus7.

Para exemplificar o modo como Blank compreende a escatologia joanina recorremos

exegese e meditao da percope de Jo 5,17-30, o grande discurso escatolgico de Jesus no

Quarto Evangelho. Segundo o exegeta, para termos uma reta compreenso do teor

escatolgico joanino, no podemos prescindir de sua cristologia. Se o contedo da mensagem

escatolgica o prprio Jesus, ento, preciso tomar suas palavras e aes considerando que

lhe foram concedidos os poderes que outrora eram reservados somente a Deus-Pai, de modo

que a deciso sobre a vida e a morte no depende s de um Deus transcendente ao mundo e

invisvel, mas que vai ao encontro do homem na pessoa histrica de Jesus8.

Nessa percope encontram-se as duas correntes escatolgicas que parecem se opor.

No v. 259, a hora escatolgica descrita em termos de atualidade, mas logo em seguida, nos

vv. 28-2910

, aparece afirmada a ressurreio futura dos mortos. Blank demarca cada uma

delas e considera que ali, onde aparece a escatologia presente ou atualizada, h uma maior

preocupao com o sentido propriamente teolgico, ao contrrio das passagens de escatologia

futura, nas quais o sentido cronolgico o que conta.

O contedo teolgico da primeira forma, isto , o da escatologia atualizada, confere

hora escatolgica um sentido existencial11

, como ele demonstra com o seguinte comentrio

ao termo mortos do v. 25:

7 Cf. BLANK, O Evangelho segundo Joo, vol. 1A, p. 36.

8 Cf. ibid., vol. 1B, p. 30.

9 Em verdade, em verdade, vos digo: vem a hora agora em que os mortos ouviro a voz do Filho de Deus e

os que o ouvirem, vivero. 10

No vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros ouviro sua voz e

sairo; os que tiverem feito o bem, para uma ressurreio de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma

ressurreio de julgamento. 11

Nisto vemos o quanto Blank assimilou Bultmann com sua interpretao existencial.

14

Nesta hora os mortos ouvem a voz do Filho do Homem. Pensa-se em

todos os homens enquanto considerados em situao de condenao, que se

entende como estar morto. Estar morto equivale a no existir na comunho

com Deus que a nica que assegura a vida. [...] Em Joo a morte a

situao da existncia humana que se encontra na desgraa12

.

J na segunda forma, o sentido existencial perde seu vigor e os mortos so todos

aqueles que repousam no sepulcro e que sero ressuscitados para a vida (os bons), ou para o

castigo/condenao (os maus) no ltimo dia, o que remete escatologia tradicional dos

sinpticos.

Se de um lado temos Bultmann sustentando convictamente que os elementos de

escatologia futura no Quarto Evangelho so obras de um redator eclesistico, de outro, temos

Blank numa posio menos radical. Este, depois de analisar as diferenas lingusticas,

concluiu que, no obstante as desigualdades e problemas, no se pode afirmar

peremptoriamente que a terminologia empregada na percope no seja de Joo. Deste modo,

ele sinaliza para uma exegese harmonizadora que compreenda as afirmaes do futuro

escatolgico a partir das afirmaes do presente13

, mas sem retirar a primazia dos traos de

escatologia presente que o evangelista quis acentuar.

1.1.3 Charles Harold Dodd (1884 1973)

Para um apanhado sobre a compreenso de Charles Harold Dodd a respeito da

escatologia joanina recorremos sua obra A interpretao do Quarto Evangelho, nela

encontramos uma reconstruo do ambiente histrico e cultural do Evangelho de Joo. Num

trabalho comparativo entre Joo e as fontes do cristianismo primitivo, a literatura hermtica, o

judasmo helenstico e o judasmo rabnico, o gnosticismo e o mandesmo, Dodd apresenta

dados, conceitos e princpios que foram supostamente assimilados pelo evangelista, ou que,

pelo contrrio, poderiam ter sido influenciados por Joo14

.

12

BLANK, O Evangelho segundo Joo, vol.1B, p. 33s. 13

Cf. ibid., vol.1B, p. 37. 14

Quando avana para a segunda parte do estudo, Dodd sintetiza assim o que quis transmitir na primeira:

Enquanto o evangelista permanece dentro do contexto geral do cristianismo primitivo, e pode, at certo ponto

ter sido influenciado por Paulo, ele tambm apresenta afinidades com certas tendncias do pensamento no-

cristo. Ele conhece bem a doutrina do judasmo rabnico, mas s parcialmente simptico a ela. Est mais

prximo do judasmo helenstico, conforme representado por Flon. Como o prprio Flon, ele est em contato

com o mais elevado pensamento pago da poca, que nos oferecido na literatura hermtica. O gnosticismo

tem parcialmente as mesmas razes que o cristianismo joanino, e serve at certo ponto para ilustrar as

concepes joaninas, mas mais por contrastes que por afinidade. O mandesmo vem a ser muito tardio para ser

de alguma importncia direta para nossa investigao, embora, na medida em que ele conserva elementos do

15

Na segunda parte da obra, Dodd apresenta as ideias mestras do Evangelho e como

elas foram forjadas em contato com o contexto antes apresentado. Trata-se de demonstrar

como Joo emprega o simbolismo, como desenvolve o conceito chave de vida eterna, como

compreende o conhecimento de Deus, o conceito de verdade, a f, a unio com Deus, a luz, a

glria e o juzo etc. Toda esta apresentao, ele a faz considerando o livro como um todo,

composto de narraes e discursos que esto intimamente unidos por uma rede de

simbolismos.

O tema da vida eterna perpassa todo o Evangelho, e onde enunciado encontramos

elementos da doutrina joanina sobre a escatologia. Dodd tambm ressalta a presena da dupla

vertente escatolgica neste Evangelho. Uma ele chama de escatologia popular e est

ancorada na doutrina judaica da vida da Era Vindoura e espera da ressurreio no ltimo

dia15

. A outra, que ocupa a prima facie no Quarto Evangelho, a que Dodd definiu como

escatologia realizada. Nela a ressurreio j est garantida antes mesmo da morte corporal,

e a posse da vida eterna se d aqui e agora, vida perfeita e absoluta, intemporal quanto

qualidade e portanto isenta da morte16

. Entretanto, para evitar mal-entendidos ele pondera:

Ele [o Quarto Evangelho] a imagina [a vida eterna] possvel para os homens aqui e agora,

mas a ser realizada em sua plenitude no alm-tmulo17

.

Interessante nesse estudo de Dodd como ele vai descobrindo no Quarto Evangelho

uma rede de relaes que conecta as diversas temticas. Segundo o autor, a vida eterna

consiste no conhecimento de Deus que implica a comunho com Ele por meio de Cristo. Ao

lado do conceito da vida, Joo acrescenta o conceito-irmo, a luz, o qual, por sua vez,

conduz ao tema do julgamento. Quanto a este ltimo, ele chama a ateno para o aspecto

positivo que o evangelista d ao julgamento, pois fica assegurado que Jesus foi enviado pelo

Pai no com a misso de julgar, mas com a misso de salvar e dar vida (cf. Jo 12,47). O

julgamento se d quando o mundo ou o ser humano no cr no Revelador, no acolhe a luz e,

ao se comportar deste modo, pronuncia sobre si mesmo um julgamento.

Na terceira parte, Dodd explica a estrutura bipartida do Evangelho: Livro dos Sinais

(212) e o Livro da Paixo (1320[21]). Quanto ao problema da unidade que consideramos

gnosticismo primitivo, possa fornecer paralelos ilustrativos. O judasmo rabnico, Flon e os Hermetica so afinal

nossas fontes mais diretas para a origem do pensamento e em cada caso o carter distintivo do cristianismo

joanino posto em relevo observando-se a transformao que ele faz em ideias que ele tem em comum com as

outras formas de religio (DODD, A interpretao, p. 182). 15

Esta crena est sintetizada na fala de Marta no episdio da Ressurreio de Lzaro: Sei, disse Marta, que

ressuscitar na ressurreio, no ltimo dia! (Jo 11,24). 16

Ibid., p. 205 17

Ibid., p. 205.

16

ser um dos problemas capitais para a compreenso da escatologia joanina e as hipteses de

possveis desordens no texto, ele considera particularmente que a ordem do Quarto Evangelho

no casual e que foi deliberadamente planejada por algum. Seja o autor, seja outra pessoa,

tinha em mente um objetivo que possvel descobrir no texto ao qual hoje temos acesso18

.

Dodd demonstra como o evangelista articulou todo o Evangelho com narrativas e

discursos, sendo que nos discursos a maioria das vezes elucida o sentido simblico das

narrativas. O Livro dos Sinais foi pensado e elaborado de modo a conduzir gradativamente o

leitor ao Livro da Paixo. O tema da vida, to presente na primeira parte do Evangelho, vai

sendo eclipsado por seu oposto: a morte, para depois, enfim, se tornar definitivamente

manifesto na hora de Jesus. Tudo parece mostrar certa necessidade da morte de Cristo para

que suas obras manifestem a glria, que tem um efeito soteriolgico e escatolgico atual e

universal.

1.1.4 Xavier Lon-Dufour (1912 2007)

Adotando o mtodo sincrnico de abordagem do texto, isto , aquele que considera o

texto em seu estgio final e no em sua gnese, Xavier Lon-Dufour apresenta, em sua

Leitura do Evangelho segundo Joo19

, com o ttulo de Limiar aquilo que outros chamam de

Introduo. A, sua inteno no oferecer um resumo do que vai ser tratado ao longo da sua

exposio, mas sim apresentar ao leitor as balizas para a leitura do Quarto Evangelho.

De imediato sinaliza a existncia de diversas hipteses sobre a histria da redao do

Evangelho. Entretanto, partilha daquela que defende no a autoria nica, mas daquela que

considera diversas etapas de redao realizadas por uma escola joanina20

. Em seguida,

aborda o carter espiritual do Evangelho e esclarece que isso no diminui o valor dos

sinpticos, pois aquilo que os outros evangelistas fizeram, Joo tambm o fez aprofundando e

18

No final do percurso Dodd conclui: O Livro dos Sinais apresenta uma forma e estrutura que corresponde

sensivelmente explanao das idias grandemente originais do autor. Constitui um grande conjunto, dentro do

qual qualquer alterao substancial da ordem e da seqncia existentes perturbaria a poderosa e sutil unidade que

ele apresenta, e que eu considero como caracterstica da mente criadora qual devemos a composio do Quarto

Evangelho (DODD, A interpretao, p. 386). 19

Obra em quatro volumes: 1, 2, 3, 4. 20

Sumariamente, essas etapas poderiam ser representadas num quadro:

Etapa 0: O Apstolo Joo, filho de Zebedeu.

Etapa 1: A escola joanina: telogos e pregadores.

Etapa 2: O evangelista-escritor.

Etapa 3: O redator-compilador (LON-DUFOUR, Leitura do Evangelho, vol. 1, p. 19).

17

dando um sentido s lembranas luz do Esprito Santo e numa perspectiva nitidamente ps-

pascal21

.

Lon-Dufour salienta a existncia de dois tempos da leitura: o dos contemporneos

de Jesus e o dos leitores situados depois da Pscoa, que em diversas passagens do Evangelho

so fceis de perceber22

. Considerando isso, muitas das ambiguidades joaninas podem ser

esclarecidas, uma vez que determinada palavra de Jesus pode carregar dois sentidos precisos:

um judeu e o outro propriamente cristo23

.

Por fim, destacamos deste Limiar o que o exegeta jesuta diz sobre a teologia de

Joo. Ele no faz uma descrio pormenorizada de cada matria teolgica; destaca, por ora,

apenas duas de suas descobertas. A primeira diz respeito cristologia. Segundo ele, em

Joo, Cristo cede o lugar a Deus Pai, e o Filho sempre aparece em relao com o Pai, evitando

um cristocentrismo de m qualidade24

. A segunda trata da unidade do desgnio de Deus25

,

ou seja, do cumprimento das Escrituras em Jesus Cristo, que em Joo no aparece

explicitamente como nos sinpticos por meio de citaes diretas, mas em forma de

filigrana.

A respeito da escatologia propriamente dita, Lon-Dufour a analisa a partir dos

elementos temticos. Por exemplo, ao se deparar na leitura do Evangelho com a expresso

minha hora (cf. Jo 2,4), ele explica:

Ora, com a ressurreio de Jesus, os crentes se deram conta de que o fim dos

tempos os havia alcanado (1Cor 10,11) e isto os levou a atualizar a hora

escatolgica nos acontecimentos de Pscoa, e mesmo a partir da priso de

Jesus. Em Jo, a hora final realiza-se por ocasio da glorificao de Jesus na

Cruz. Tal a hora de Jesus, a de seu retorno ao Pai (13,1), a que ele

aceitou plenamente (12,27) pedindo ao mesmo tempo ao Pai para atravess-

la so e salvo [...] Ela fixada pelo Pai e em funo dela que Jesus ordena

toda a sua atividade, pois nela culminar a sua misso. Entretanto, desde que

Jesus entra na vida pblica, essa hora, termo para o qual ele se encaminha,

j est presente em tudo o que Jesus diz e faz, j uma manifestao

definitiva da salvao de Deus oferecida aos homens. Visto como Joo

antecipa a glria de Jesus a partir de sua vida terrestre, assim tambm se

poderia dizer que todo o seu ministrio j pertence hora derradeira26

.

Do mesmo modo, ao surgirem na leitura outros temas escatolgicos, Lon-Dufour os explica.

Em Jo 3,16-18 torna-se oportuno esclarecer o juzo e o julgamento. O tema da morte, presente no

21

LON-DUFOUR, Leitura do Evangelho, vol. 1, p. 19. 22

O cap. 9 com o episdio da cura do cego de nascena neste aspecto exemplar. 23

Cf. ibid., vol. 1, p. 23. 24

Ibid., vol. 1, p. 29. 25

Ibid., vol. 1, p. 30. Grifo do autor. 26

Ibid., vol. 1, p. 181.

18

relato da paixo, proporciona a Joo a ocasio de refletir sobre a sua dupla face. Quando aparece o

tema da vinda de Jesus, Joo o conecta com a parusia ou retorno de Cristo tradicionalmente fixada

para o fim dos tempos, mas que ele fala em termos de presena no cotidiano da comunidade ps-

pascal27

. Na narrativa da ressurreio de Lzaro, Lon-Dufour explica as nuances dos termos que

justapem as dimenses futura e presente da ressurreio, as quais correspondem respectivamente f

tradicional e novidade que o Filho torna presente.

Acreditamos que a maior contribuio de Lon-Dufour para a pesquisa da temtica

escatolgica joanina consiste na ateno que d ao valor simblico das narrativas que so relidas a

partir do ponto vista ps-pascal, respeitando aquilo que disse sobre os dois tempos da leitura. Ao lado

disto, destacamos o espao que ele reserva histria do efeito do texto (Wirkungsgeschichte) ou sua

recepo ao longo dos sculos, fazendo da palavra de Cristo uma palavra atual, que no s

promete vida, mas que d vida, aqui e agora, a todos que ouvem e acolhem a sua mensagem e

aderem a sua pessoa.

1.1.5 Rudolf Schnackenburg (1914 2002)

Rudolf Schnackenburg apresenta a sntese de sua compreenso da escatologia

joanina no Excursus 14 de seu comentrio28

. Considera de imediato o carter particular e

prprio do pensamento escatolgico de Joo, pelo fato de dar mais importncia escatologia

presente, entretanto, ele esclarece:

uma escatologia do presente; ou melhor, um pensamento escatolgico

determinado pela presena de Cristo. A expresso escatologia do EvJo se

presta a uma falsa inteleco se com ela se entendem as expectativas futuras

tal como esto articuladas nesse Evangelho. Isso equivale a limitar de

antemo a perspectiva, pois Jo transfere o olhar do futuro para o presente, e

inclusive quando o Jesus jonico fala aparentemente do futuro, na realidade

aponta para o presente da comunidade, presena do Parclito29

.

Ao centrar a ateno nos debates que se firmaram ao redor das questes crtico-

literrias de possveis interpolaes tardias ao pensamento original do evangelista,

Schnackenburg defende que o verdadeiro problema no est em saber se as perspectivas

futuro-escatolgicas contradizem a doutrina do evangelista, mas sim em saber se elas se

excluem mutuamente.

27

LON-DUFOUR, Leitura do Evangelho, vol. 3, p. 68. 28

Cf. SCHNACKENBURG, El evangelio segn San Juan, vol. 2, p. 523-537. 29

Ibid., vol. 2, p. 524. Traduo nossa.

19

Schnackenburg lembra que existem dentro da prpria tradio bblica, reformulaes

de expresses e perspectivas escatolgicas que foram ganhando novas interpretaes ao longo

do tempo. Como exemplo cita o conceito dia de Yahweh (cf. Am 5,18ss) que aparece

transformado no tempo de Jesus na expresso ltimo dia (cf. Jo 11,23). Aponta ainda que

Joo, por sua vez, transfere todo este significado para o conceito da hora de Jesus, dando-

lhe conotao de momento atual (cf. Jo 4,23; 5,25).

A mesma evoluo se verifica no vocabulrio da parusia, que em nosso evangelista

deve ser compreendida na perspectiva da salvao presente desde a ressurreio de Cristo,

que comporta o pequeno espao de tempo entre sua morte anunciada em termos de pouco

tempo e j no me vereis e o tempo em que se voltaria a v-lo (cf. Jo 16,19), referindo-se

ressurreio, como sugere o contexto.

Em Joo as afirmaes sobre a salvao j presente so indubitavelmente mais

constantes, e muitas questes se levantam sobre isso30

. Contudo, Schnackenburg defende que

a abertura para o futuro das realidades escatolgicas no desempenha papel algum para

Joo31

, pois nele o interesse pela salvao assume um aspecto soteriolgico individual que

exige, por sua vez, uma transformao das categorias mentais e uma nova orientao do

esprito.

Segundo Schnackenburg, esta nova orientao resulta basicamente de duas coisas. A

primeira refere-se ao ambiente cultural no qual Joo e sua comunidade estavam imbricados,

exigindo dele um posicionamento que respondesse aos anseios humanos de salvao sem que

a mensagem crist se confundisse com os mitos de redeno gnsticos que eram propagados

de diversas formas. A segunda, diz respeito prpria viso teolgica do evangelista, centrada

na revelao histrica de Jesus Cristo e na transcendncia soteriolgica de sua pessoa. Sua

cristologia o fundamento de sua doutrina sobre o carter presente da salvao; para Joo a

vinda de Jesus Cristo o acontecimento escatolgico32

.

30

Tais questes so levantadas na seguinte direo: As afirmaes do presente so negaes da escatologia

futura? Trata-se de mero sombreado especial de uma mudana de acento? Joo se mantm fiel a um

pensamento histrico salvfico que considera os acontecimentos finais? O est consumado (Jo 19,30) dito

com um sentido insupervel? (cf. SCHNACKENBURG, El evangelio segn San Juan, vol. 2, p. 528). 31

Ibid., vol. 2, p. 533.Traduo nossa. 32

Ibid., vol. 2, p. 536. Traduo nossa.

20

1.1.6 Marie-mile Boismard (1916 2004)

No artigo intitulado L'volution du thme eschatologique dans les traditions

johanniques, Marie-mile Boismard considera a opinio repetidamente afirmada de que a

escatologia do Quarto Evangelho uma "escatologia realizada", no obstante a existncia de

textos que mencionem a concepo teolgica clssica (p. ex.: Jo 14, 1-3; 6, 39ss; 12,48). A

partir disto levanta questes sobre a homogeneidade do ensinamento escatolgico nos escritos

joaninos, considerando, portanto, no s o Evangelho, mas tambm as Cartas de Joo.

Ao analisar os temas do julgamento dos mpios, da ressurreio dos mortos e do

retorno de Cristo, ele encontra elementos que sustentam a hiptese de uma evoluo no

pensamento escatolgico joanino, semelhante a que se verifica em Paulo.

Para demonstrar sua hiptese visita os textos que abordam o tema do julgamento dos

mpios. Colocando em paralelo duas passagens (Jo 3,16-19 e 12, 46-50), ele as analisa quanto

s questes de ordem literria e cristolgica, bem como das perspectivas escatolgicas futura

e presente, e conclui que se trata de um s e mesmo discurso apresentado de duas formas

diferentes. Para ele, o primeiro discurso uma "releitura" do segundo, concluso tirada a

partir da constatao de uma fraseologia semelhante da Primeira Carta de Joo, onde se

encontra, dentre os escritos joaninos, a cristologia mais evoluda do "dogma" da divindade de

Cristo. Alm do mais, o trecho de Jo 3,19-2 demonstra que a respeito do julgamento "h uma

evoluo nas tradies jonicas: passamos da noo de julgamento escatolgico quela de

julgamento j realizado"33

.

A respeito do lugar ou tempo em que se dar a ressurreio, Joo tem dois modos de

diz-lo: no ltimo dia (Jo 5,29) e nesta hora que "j veio" (Jo 5,25). Boismard se pergunta se

elas seriam duas perspectivas diferentes, mesmo aparecendo no mesmo trecho. Tudo parece

indicar que sim, pois para ele existem problemas que dificultam considerar o trecho como

uma unidade literria. Nosso autor pe em paralelo dois blocos: 5, 19-25 e 5,28-3034

e os

analisa do ponto de vista literrio e do ponto de vista cristolgico a partir da compreenso do

ttulo "Filho do Homem", que referindo-se viso de Dn 7,13.14.22, remete ressurreio

dos mortos (cf. Dn 12,2) e tambm compreenso sinptica da ressurreio. Tudo isso leva

Boismard concluso de que o trecho de Jo 5,27-29 no difere da escatologia dos sinpticos.

O problema est quando no v. 25 a expresso "vem a hora" seguida das palavras "e ela est

33

BOISMARD, Lvolution du thme, p. 514. Traduo nossa. 34

Para a anlise que pretende fazer, Boismard muda a ordem dos versculos do segundo bloco e acrescenta-lhe

Jo 3,36 para fazer par com 5,24.

21

a", deixa entender que a ressurreio " um evento presente, acabando de se realizar"35

.

Segundo Boismard, a diferena se deve ao fato de o evangelista tratar de duas maneiras

possveis de se compreender a morte/ressurreio, a saber, como morte/ressurreio fsica e

como morte/ressurreio espiritual. Quando no v. 25 ele fala da ressurreio, trata-se "no

mais da ressurreio dos corpos ao fim dos tempos, mas da ressurreio das almas pela graa

divina, efetuada desde agora pela obedincia palavra do Filho de Deus36

. Nesse ponto,

tambm conclui que se trata de uma releitura, fruto do desenvolvimento das tradies

joaninas.

Quanto ao tema do retorno de Cristo, como se pode ver no trecho de Jo 14,1 15,18,

segundo Boismard, mais difcil precisar se h ou no alguma evoluo. Para tanto, ele

realiza uma anlise semntica que gira em torno dos temas do "conhecimento" do caminho e

do Pai, e da "necessidade de amar a Cristo e guardar seus mandamentos" para que: o "Esprito

venha sobre ns e nos faa ver a Cristo" (14, 15-17); o "Cristo se manifeste a ns e volte

(14,18-21); e enfim, o "Pai e o Cristo venham fazer sua morada em ns" (14,23). Apoiando-se

nessa estrutura trinitria nosso autor procura nas Cartas joaninas correspondncias teolgicas

com o Evangelho a partir do verbo "amar", chegando concluso de que a comparao de Jo

14,15-23 com a 1Jo revela traos da "teologia mstica" joanina.

A cristologia veiculada em Jo 14,1-3 desenvolvida de maneira totalmente diferente

da de Jo 14,18-21. Segundo Boismard os primeiros versculos mostram a influncia do

Deuteronmio sobre a redao joanina. Jesus empreende o Novo xodo, o Novo Moiss; j

os versculos finais esto carregados de traos sapienciais.

Quanto parusia, compreendida em contexto propriamente escatolgico, nosso autor

concorda com Dodd que encontrou em Jo 14,1-3 os maiores paralelos com a linguagem

tradicional da escatologia da Igreja que aguardava o retorno de Cristo para logo, para a

poca na qual os discpulos ainda viviam. No trecho de Jo 14,18-21, a perspectiva j outra, o

retorno do Cristo no fsico, como sugere a doutrina tradicional, mas espiritual. Conforme

Boismard, sua manifestao (14,21) ser puramente espiritual, e, como na Primeira Carta, o

conhecimento que os cristos tero do Cristo ser de uma presena mstica37

.

Desta anlise, Boismard retira quatro concluses, das quais a segunda mais nos

interessa, por isso, transcrevemo-la:

35

BOISMARD, Lvolution du thme, p. 517. Traduo nossa. 36

Ibid., p. 517. Traduo nossa. 37

Ibid., p. 522. Traduo nossa.

22

No que concerne especialmente escatologia, podemos constatar uma

evoluo nas tradies jonicas, anloga evoluo que exibe o pensamento

de Paulo [...] Nas camadas redacionais mais antigas, a escatologia est ainda

prxima daquela dos evangelhos sinpticos; nas camadas redacionais mais

recentes, os eventos escatolgicos so considerados como prontos a se

realizar durante a vida terrestre e atual da Igreja. Esta transposio no o

resultado de uma negao das concepes escatolgicas tradicionais, mas

denota a preocupao de se explicar a vida atual da Igreja em funo das

promessas de Cristo. Esta evoluo das noes escatolgicas no quarto

evangelho torna dificilmente admissvel a posio de certos autores

modernos, de que a escatologia realizada do Quarto Evangelho nos daria

um eco mais fiel do ensinamento de Cristo do que a escatologia dos

Sinpticos. Como para so Paulo, a escatologia realizada de Joo o fruto

de uma reflexo teolgica38

.

1.1.7 Raymond Edward Brown (1928 1998)

Para a apresentao do pensamento de Raymond E. Brown sobre a escatologia do

Quarto Evangelho recorremos sua obra A comunidade do discpulo amado, que contm a

sntese de seus estudos anteriores sobre o cristianismo joanino ou mais propriamente sobre a

eclesiologia joanina. Em razo de nosso objetivo, no nos deteremos aos pormenores da

caracterizao de cada fase da formao da comunidade joanina e de seus escritos;

destacaremos apenas os aspectos relacionados com a escatologia.

Segundo a descrio de Brown, j na primeira fase da origem da comunidade

joanina, portanto, na fase pr-evanglica, existiu um grupo catalisador, que ao ingressar no

crculo joanino trouxe consigo novas categorias para interpretar Jesus. Deste grupo provm a

alta cristologia39

e as substituies com relao ao culto judaico, temas presentes no Quarto

Evangelho e que supostamente teriam motivado a expulso de cristos das sinagogas e

consequente perseguio.

Uma vez desligado da sinagoga, o cristianismo passou a se afirmar como religio

separada do judasmo, fato que no lhe causou nenhum prejuzo, pelo contrrio, possibilitou o

amadurecimento da elaborao teolgica deste grupo, como por exemplo, o desenvolvimento

e a nfase na escatologia realizada. Se antes os cristos esperavam, tal como se verifica nos

sinpticos, a segunda vinda de Cristo para verem realizados os bens escatolgicos do Reino

de Deus, da paz, da vitria sobre os inimigos, do juzo etc., no mais precisam esperar, pois a

38

BOISMARD, Lvolution du thme, p. 523. Traduo nossa, grifo do autor. 39

Esta cristologia propaga a doutrina da preexistncia e ressalta a divindade de Jesus Cristo.

23

alta cristologia joanina sustenta que essas realidades so asseguradas aqui e agora pela

presena de Jesus40

.

Brown considera que as influncias dos grupos que se uniram comunidade joanina

no negam a unicidade da cristologia e seus corolrios. Quando encontramos no Quarto

Evangelho como que justapostas duas vises a respeito de um mesmo tema, como o caso da

escatologia, antes que tom-las como contraditrias seria mais correto consider-las

dialeticamente, pois no pensamento joanino os novos enfoques reinterpretavam os

antigos41

.

As Epstolas surgem na terceira fase e mostram as comunidades divididas

internamente. A diviso, segundo Brown, se deve s maneiras opostas de se interpretar o

Evangelho42

, principalmente a respeito da cristologia, da tica, da escatologia e da

pneumatologia. Nas Cartas, sobretudo na 1Jo, o autor procura corrigir os erros43

advindos de

interpretaes heterodoxas e prevenir a comunidade a respeito deles.

Quando Brown apresenta, a respeito da escatologia, o embate entre grupos

separatistas e o autor das Cartas, ele constata que no existem afirmaes propriamente

condenadas, o que existem so implicaes escatolgicas que emergem de determinadas

formas de interpretao, como o caso, por exemplo, dos grupos separatistas, que

supravalorizando a escatologia realizada, menosprezavam a dimenso tica do agir cristo.

Ora, no Evangelho, Joo professa a escatologia realizada, mas sem eliminar a

escatologia futura. Portanto, o autor da Carta considera conveniente recordar que os bens

escatolgicos no esto garantidos de antemo, como tendo valor em si mesmos, ou seja,

existem condies para que os possuamos e Joo no omite tais condies.

Segundo Brown, Joo no se ateve escatologia futura, porque sua preocupao

primria no era convencer os judeus acerca das promessas futuras. Isso j fazia parte do

horizonte judaico. O que ele precisava era enfatizar que Deus j mandou seu Filho e que

portanto muitas de suas bnos j tinham sido realizadas44

, da a nfase na escatologia

40

Cf. BROWN, A comunidade, p. 49-53. 41

Ibid., p. 53. 42

Segundo o autor: Na minha opinio, a hiptese que melhor explica as posies, tanto do autor das Epstolas

quanto dos separatistas a seguinte: Ambas as partes conheciam a proclamao do cristianismo que nos foi feita

atravs do quarto evangelho, mas a interpretavam diferentemente. Os adversrios no eram estranhos

denunciveis comunidade joanina, mas produto do prprio pensamento joanino, justificando suas posies com

o evangelho joanino e suas implicaes (Ibid., p. 111. Grifos do autor). 43

Tais erros correspondem s heresias do segundo sculo da era crist: docetismo, gnosticismo, cerintianismo e

montanismo. 44

Ibid., p. 53s.

24

realizada. Por outro lado, no tempo das Epstolas, o debate era interno, e o autor sentiu

necessidade de resgatar, a partir do Evangelho, a tradio sobre a escatologia futura. A sntese

entre as duas correntes estaria condensada na afirmao de 1Jo 3,2: Amados, desde j somos

filhos de Deus, mas o que ns seremos ainda no se manifestou. Sabemos que por ocasio

desta manifestao seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele .

Por fim, ressaltamos a observao que nosso exegeta faz sobre a retomada da

linguagem apocalptica crist e judaica45

na 1Jo, linguagem comum escatologia futura e que

no aparece no Evangelho, pelos motivos j assinalados.

1.1.8 Bruno Maggioni (1932 )

O comentrio ao Evangelho de Joo do exegeta italiano Bruno Maggioni, desde que

foi traduzido ao portugus (1992) se tornou obra de referncia no estudo do Quarto Evangelho

no ambiente acadmico brasileiro. Considerando que o exegeta no est preocupado em

explicar cada versculo do Evangelho, esta obra serve para introduzir os leitores e estudantes

no mundo joanino, familiarizando-os com sua linguagem e contedo teolgico que emergem

do atual texto por meio de categoria temticas.

Na introduo, o autor informa que este Evangelho comporta muitos problemas de

cunho literrio, origem histrica, teologia e lugar que ocupa no quadro do cristianismo

nascente, problemas dos quais muitos continuam sem resposta e configuram o enigma46

do

Quarto Evangelho.

Pelo que se afirma na concluso do Evangelho47

, Joo o teria escrito com vistas

f. Maggioni encontra neste objetivo os motivos que justificam uma seleo do material

que o evangelista organizou narrativamente conforme seu interesse. Disto surge a pergunta

sobre a fidelidade histrica do Quarto Evangelho, principalmente quando comparado com os

sinpticos. Joo tambm se preocupou em fazer de seu Evangelho um Evangelho

contemporneo do leitor, o qual deve se sentir tambm impelido a crer. Desse modo, a

lgica e a estrutura do texto demonstram e conjugam uma tradio que remete ao Jesus

histrico sim, mas que foi interpretada pelas comunidades e o evangelista.

Depois de apresentar o status quaestionis das discusses acerca da estrutura, da

relao com os sinpticos, da origem, formao e autoria, do ambiente cultural e religioso,

45

Cf. BROWN, A comunidade, p. 144. 46

MAGGIONI, O Evangelho de Joo, p. 251. 47

Maggioni considera Jo 20,30-31 como a concluso e o cap. 21 um acrscimo posterior.

25

Maggioni passa a apresentar a teologia do Quarto Evangelho, este que certamente o mais

teolgico de todos48

e tambm o mais controverso quanto cristologia, eclesiologia e

escatologia. Trataremos aqui somente desta ltima, embora no estejamos desconsiderando os

outros, pois Maggioni conecta de alguma forma os trs temas.

Ao discorrer sobre a escatologia joanina, Maggioni d ao tpico o ttulo de Presente

e futuro confirmando a problemtica em torno da dupla perspectiva escatolgica. Partilha da

opinio comum de que Joo insiste mais na salvao presente do que na consumao futura.

Entretanto, o exegeta italiano se pe ao lado dos que afirmam que isso no quer dizer que

Joo negue a dimenso futura, simplesmente no lhe d tanta importncia.

Para explicar o pensamento de Joo sobre o schaton, Maggioni se pergunta sobre o

contexto eclesial que poderia ter influenciado na reflexo do evangelista. Segundo ele, diante

da pergunta sobre o significado do tempo presente, Joo teria se deparado, como Lucas, com a

tentao de entender o tempo presente como um tempo intermedirio, de reduzida

significao: no mais o tempo de Jesus e ainda no o tempo de seu retorno49

. Entretanto,

Joo tomou outro rumo, vendo o momento atual como o tempo em que Cristo est mais

presente e ativo do que no tempo da encarnao, pois a encarnao se prolonga e abre agora

seu significado de revelao e salvao50

. Com isto, Maggioni sinaliza para a importncia da

interpretao ps-pascal da histria de Jesus que configura a escatologia realizada de Joo.

Por fim, Maggioni tambm partilha da interpretao existencial da escatologia

joanina, de modo que o quarto evangelista concentra no conceito de vida (eterna) o peso que a

salvao que Cristo confere j agora aos que optam por Ele e se mantm fiis. Da opo pr

ou contra Cristo efetua-se o juzo que implica vida ou morte, prmio ou condenao, que

tambm so antecipados para o presente.

1.1.9 Johan Konings (1941 )

Em mbito propriamente latino-americano destacamos o comentrio de Johan

Konings intitulado Evangelho segundo Joo: Amor e fidelidade. Esta obra compe a coleo

Comentrio Bblico Latino-Americano, criada com o propsito de servir s nossas

comunidades crists que se alimentam da Palavra de Deus, oferecendo a elas elementos para a

interpretao dos textos bblicos em contexto popular, sem desprezar, no entanto, os

48

MAGGIONI, O Evangelho de Joo, p. 251. 49

Ibid., p. 271. Grifos do autor. 50

Ibid., p. 271.

26

elementos de ordem literria, histrica e teolgica que auxiliem na hermenutica do texto para

a atualidade.

Na introduo, Konings apresenta as principais questes acerca do Quarto

Evangelho, indica o modo como aborda o texto51

, as particularidades de Joo, a estrutura e o

gnero literrio. Quanto a este ltimo, evidencia os traos narrativo-dramticos e os discursos

de revelao que predominam neste Evangelho.

Se a abordagem histrico-crtica em seus albores via muitos problemas de cunho

literrio que impediam encontrar uma unidade do texto, Konings, ao se apoiar no mtodo da

anlise narrativa, pode afirmar que aquilo que por muitos fora considerado acrscimo de

algum redator (eclesial) so, segundo ele, comentrios reflexivos que o autor acrescenta a

seu prprio texto52

.

Na discusso sobre a semelhana ou discrepncia do Quarto Evangelho com os

demais evangelhos, nosso exegeta afirma que Joo no apenas est em conformidade com os

demais, mas ajuda-nos a interpret-los. Aborda sob outro ngulo o mesmo mistrio, e na

sequncia exemplifica: Se, por exemplo, Joo acentua que a escatologia est presente aqui e

agora, podemos ler outros autores do NT na mesma linha, mesmo que sua linguagem seja

mais futurista53

.

O Evangelho segundo Joo possui um carter teolgico prprio que faz dele um

Evangelho de iniciao e perseverana; mstico e contemplativo; espiritual e teo-lgico.

Esta ltima caracterstica, isto , que se trata de um Evangelho teo-lgico, significa dizer

que para Joo, falar de Cristo (cristologia) falar de Deus (teologia): o assunto Deus54

.

Das particularidades teolgicas joaninas, as relacionadas escatologia55

nos

interessam aqui. Segundo Konings, a inaugurao do tempo do fim, do reinado de Deus no

mundo est conectada com a cristologia de forma que a vida eterna comea j agora na f

em Cristo e no seguimento de sua prtica.

At aqui vimos a escatologia joanina sendo tratada a ttulo de escatologia presente,

realizada. Konings prefere trat-la como escatologia inaugurada56

, o que permite

considerar a dupla vertente sem que se suprima uma em detrimento da outra. Aquilo que em

51

O acesso ao Quarto Evangelho comea por aquilo que est mais perto de ns: o prprio texto (KONINGS,

Evangelho segundo Joo, p. 16). 52

Ibid., p. 20. Grifos do autor. 53

Ibid., p. 27. 54

Ibid., p. 54. 55

Cf. ibid., p. 69s. 56

Cf. ibid., p. 33.

27

Jesus se inaugura tem influncia decisiva sobre a vida dos crentes, entretanto, ainda no est

completo, as realidades escatolgicas esto j disponveis, mas adeso e fidelidade so

condies para que se efetivem na vida do crente e alcancem a plenitude.

A justificativa para a presena inaugurada do schaton, Konings a encontra em

Jo 14,9: Quem me v, v o Pai. Isto que a tradio posterior costumou chamar de viso

beatfica57

, aguardada para o futuro ou para o cu, encontra em Joo respaldos escritursticos

que antecipam-na num desde j da vida unida a Deus, por meio de Jesus Cristo e em

fidelidade a ele.

Para Konings, a coexistncia das formas presente e futura da escatologia joanina no

aponta necessariamente para uma contradio. Segundo ele, preciso consider-las numa

relao dialtica, tal como se encontra em Jo 11, 17-27 quando o tema da ressurreio

apresentado com a dupla vertente. Sobre isso ele comenta:

Em Joo existe uma relao dialtica entre a escatologia espiritual,

presente na f em Jesus, e a escatologia material, a da ressurreio final,

no ltimo dia [...]. A escatologia final o smbolo, a escatologia presente a

realidade. Mas o smbolo [...] no pode ser dispensado. Por isso mesmo,

Jesus o faz acontecer antecipadamente, para que saibamos que o que ele

significa j est presente58

.

Considerando essa dimenso simblica do Quarto Evangelho, Konings retira das

percopes onde as temticas escatolgicas do a tnica s narrativas e discursos, os dados que

nos auxiliam nesta reflexo. Por exemplo, a ressurreio de Lzaro aponta para a

ressurreio verdadeira de Cristo; a vida eterna no um bem do alm, antes possui um

elemento que eleva qualificativamente j a nossa vida terrena, transportando-nos para a vida

do mbito de Deus, vivida na f, desde j [...]. o definitivo de Deus em nossa vida59

.

1.1.10 Johannes Beutler (1933 )

Johannes Beutler, exegeta alemo e ex-professor do Instituto Bblico de Roma

(20002007) publicou em 2013 um dos mais recentes comentrios sobre o Evangelho de

Joo60

.

57

Para uma viso geral da compreenso teolgica da viso beatfica ver: BETTENCOURT, A vida que

comea com a morte, p. 57-74. 58

KONINGS, Evangelho segundo Joo, p. 227. Grifos do autor. 59

Ibid., p. 225. 60

Por no lermos em alemo, para que tivssemos acesso a esta obra contamos com a generosa contribuio de

Johan Konings, nosso orientador, nos disponibilizando a traduo que est sendo por ele elaborada. Como a

28

A introduo desta obra corresponde a um atualizado status quaestionis sobre a

pesquisa joanina. No comentrio propriamente dito, o autor apresenta estudos recentes sobre a

temtica central das percopes. Partindo das caractersticas prprias do Evangelho de Joo,

Beutler evidencia a sua novidade constatvel no linguajar sui generis e no dualismo

lingustico e conceitual, nos traos do judasmo, na estrutura baseada nas viagens de Jesus s

festas judaicas de romaria, na organizao da sequncia dos fatos da vida de Jesus, nos

sinais ao invs dos milagres, na linguagem figurativa e metafrica em lugar das parbolas,

enfim, no sentido teolgico mais do que biogrfico.

A cristologia joanina influencia na maneira como so compreendidas as diversas

temticas teolgicas como, por exemplo, a escatologia, que no Quarto Evangelho no

tratada a partir do pano de fundo apocalptico do fim do mundo, muito frequente nos

sinpticos. O tempo do fim no h mais que esper-lo, ele j irrompeu. Por isto, Beutler

afirma que Joo supera os sinpticos ao antecipar para o tempo presente as realidades

escatolgicas do juzo e da vida eterna. Deste modo, a comunidade dos discpulos de Jesus

vive, depois da Pscoa, como partcipe das promessas escatolgicas.

Quanto finalidade do Evangelho e consequentemente quanto aos seus destinatrios,

o exegeta discute as hipteses at ento levantadas, a saber: ganhar os adeptos do Batista para

a f em Jesus, escrito missionrio para Israel, evangelho dirigido aos gregos, aos samaritanos,

aos gnsticos e docetistas, mas ele partilha da opinio recente de que o Quarto Evangelho tem

como escopo primrio corroborar a f dos leitores cristos, conclamando-os fidelidade e

confisso da f em Jesus, segundo Jo 20,3161

. Esse propsito se constata tambm na

apresentao de figuras exemplares como Nicodemos, o cego de nascena, Tom, Pedro, o

discpulo amado, as mulheres, Lzaro e suas irms, os quais, cada um a seu modo, acolhem

Jesus e manifestam a sua adeso na f.

Na discusso sobre a unidade literria do Quarto Evangelho, Beutler, no

desconsiderando as opinies que dizem o contrrio, o v como um texto unitrio e coerente.

Com relao s possveis fontes, advoga a dependncia dos sinpticos, embora concorde

que Joo os tenha utilizado de modo livre e criativo. Acerca dos acrscimos redacionais,

nosso autor prefere trat-los como releituras elaboradas em vista das novas situaes dos

traduo ainda est em andamento e, portanto, no disponvel ao pblico, quando nos referirmos a Beutler em

citaes diretas, indicaremos como fonte da citao as pginas do texto original em alemo, conforme a edio

indicada na Referncia Bibliogrfica final. 61

Cf. BEUTLER, Das Johannesevangelium, p. 55.

29

leitores62

. A encontra motivos para apresentar as particularidades joaninas quanto s

possveis influncias de textos extra-bblicos na matria narrativa e na matria discursiva do

Quarto Evangelho.

Da introduo destacamos ainda o item sobre a canonicidade do Evangelho e sua

atualidade. A respeito do primeiro ponto, Beutler afirma que desde o incio de sua transmisso

ele foi considerado sagrado63

, e sobre o segundo considera que na poca atual, caracterizada

pelo declnio da plausibilidade da mensagem crist, bem como, pela rejeio aos sistemas

de sentenas doutrinais64

, busca-se uma mensagem mais singela que possibilite um acesso

novo e de aprofundamento da f, coisa que o Quarto Evangelho consegue proporcionar por

conter uma cristologia desenvolvida e refletida. A polmica anti-judaica atingira

diretamente o Evangelho de Joo, e as acusaes s comearam a se esclarecer com as

descobertas arqueolgicas de Nag Hamadi (1945) e os textos do Mar Morto (1947), que

redimiram Joo ao possibilitar ver nele maiores parentescos com o Antigo Testamento e o

judasmo do que com o gnosticismo. Por fim, um terceiro elemento de atualidade do

Evangelho repousa no convite confisso intrpida da f65

, to necessria para os nossos

dias em que os crentes se mostram vacilantes e descomprometidos com a f.

Utilizando a traduo que nos foi disponibilizada66

, recorremos ao comentrio de trs

das percopes que tradicionalmente contm material escatolgico, a saber: Jo 3, 1-21; 5, 19-30

e 11,112,50.

Na primeira percope (Jo 3,1-21), os vv. 18-21 concentram a viso joanina sobre o

tema do julgamento: quem no cr no Nome do Filho unignito de Deus j est julgado.

Beutler destaca neste ponto que para Joo, a convico de que o julgamento final tem lugar

j na hora da f ou da recusa da f67

. O exegeta recomenda explicar a tenso entre

escatologia realizada e futura no a partir de camadas literrias divergentes, como fizeram

Bultmann e seus seguidores, mas sim como sinal de tradies diversas recolhidas num

mesmo texto. Beutler no se atm a este assunto, mas indica o estudo de Jorg Frey68

sobre a

escatologia joanina, ao qual infelizmente no tivemos acesso.

62

Beutler apresenta muitas vezes a hiptese de acrscimos da redao eclesial levantada por Bultmann, mesmo

que encontre soluo diferente para as aparentes interpolaes ao texto do evangelista. 63

Cf. BEUTLER, Das Johannesevangelium, p. 69. 64

Cf. ibid., p. 70. 65

Cf. ibid., p. 72. 66

Dispomos da traduo da Introduo e o comentrio dos captulos 1 7 e 11. 67

Ibid., p. 141. 68

Beutler indica a seguinte obra: FREY, Jorg. Die johanneische Eschatologie I III (WUNT 96, 110, 117),

Tbingen 1997 2000.

30

Na segunda percope (Jo 5,19-30), as temticas escatolgicas da ressurreio e do

julgamento dominam o trecho. Segundo Beutler h uma reduplicao sobre a promessa da

vida e o exerccio do juzo, ora tratado como acontecendo hoje (v. 25), ora como promessa

para o futuro (v. 28). O comentrio confirma o n hermenutico sobre a justaposio das duas

vertentes.

Nosso exegeta apresenta trs modelos de explicao para as diferenas69

. O primeiro

defende que a escatologia futura uma correo da escatologia presente de Joo, ousada

demais para a Igreja no fim do sculo I70

. O segundo postula a hiptese de duas camadas no

Evangelho que se complementam mutuamente, neste caso, interessante observar a distino

semntica entre mortos e os que esto nos sepulcros71

implicando diretamente na

interpretao do texto. J o terceiro modelo, apresentado com ressalvas, interpreta Jo 5,25-29

como uma unidade em torno da escatologia presente, at mesmo o v. 28s pode ser

interpretado nesta perspectiva, pois Jesus fala do tempo ps-pascal, quando as promessas do

tempo final estaro realizadas72

.

Sobre o cap. 11, o da ressuscitao73

de Lzaro, retemos por ora aquilo que Beutler

considera acerca da discusso sobre as fontes. Ele descarta as hipteses de uma Fonte de

Discursos e a discusso em torno da existncia de um escrito bsico ou fontes dos sinais,

aconselha somente a distino entre tradio pr-joanina e elaborao joanina. Alm

disso, parece aderir s propostas atuais que explicam o episdio de Lzaro de forma

sincrnica, ou seja, considerando o texto na sua forma final.

1.2 A relao entre exegese e teologia sistemtica

Considerando que nossa pesquisa se situa na rea da Teologia Sistemtica na linha de

pesquisa das Fontes Bblicas da Tradio Crist e tendo j apresentado o status quaestionis,

passaremos agora a dissertar sobre a relevncia deste tipo de abordagem bblica para a

teologia sistemtica. A pertinncia deste tpico em nossa pesquisa apoia-se na constatao de

69

Cf. BEUTLER, Das Johannesevangelium, p. 196s. 70

Ibid., p. 196. 71

Observao tomada do comentrio de Josef Blank, como acima j apresentamos. Ver: tpico 1.1.2 deste

captulo. 72

Ibid., p. 197. 73

Beutler no explicita por que chama de ressuscitao e no de ressurreio este sinal, entretanto, podemos

supor que a razo disto esteja na definio do gnero literrio da narrativa, quando se faz abstrao das cenas de

dilogo, mostra-se o contedo de um relato de ressuscitao de morto como se encontra em outros lugares da

Bblia (Ibid., p. 323).

31

que, bem ou mal, a maioria dos manuais de escatologia crist74

inicia a exposio sistemtica

com a apresentao da escatologia no mundo bblico.

O fato de os manuais tomarem a teologia bblica como porta de entrada para a

apresentao da histria dos dogmas parece hoje coisa bvia, entretanto, no parece ter sido

sempre assim, no pelo menos at o Magistrio se pronunciar e reclamar o empenho na

integrao entre a Teologia e a Escritura como podemos ver em alguns textos do Conclio

Vaticano II e em outros que aplicam e explicam as propostas conciliares.

O primeiro desses textos encontra-se no Decreto Optatam Totius (OT) sobre a

formao presbiteral, onde lemos o programa de reviso dos estudos eclesisticos com o teor

seguinte:

Formem-se com particular empenho os alunos no estudo da Sagrada

Escritura, que deve ser como que a alma de toda a teologia. Depois de

conveniente introduo, iniciem-se cuidadosamente no mtodo da exegese,

estudem os temas de maior importncia da Revelao divina [...] A teologia

dogmtica ordene-se de tal forma que os temas bblicos se proponham em

primeiro lugar (OT, 16).

Infelizmente esta exortao no aparece com o mesmo vigor no Decreto

Presbyterorum Ordinis (PO) sobre o ministrio e a vida dos presbteros. Nele nos deparamos

com uma excessiva preocupao com a dignidade presbiteral que suplanta a prpria

dignidade da Escritura. O estudo da Sagrada Escritura est implcito na descrio da funo

ministerial da palavra, mas aparece de modo piedoso75

e pouco incentivador dos estudos

cientficos.

A Constituio Dogmtica Dei Verbum (DV) sobre a Revelao Divina toca

visceralmente nas questes ligadas Sagrada Escritura e apresenta nos seguintes termos o que

os padres conciliares disseram a respeito da importncia da Palavra de Deus para a teologia:

A sagrada Teologia apoia-se na palavra de Deus escrita e juntamente na

sagrada Tradio, como em seu fundamento perene; nelas encontra toda sua

firmeza e sempre rejuvenesce, investigando, luz da f, toda a verdade

encerrada no mistrio de Cristo. As Sagradas Escrituras contm a palavra de

Deus, e, pelo fato de serem inspiradas, so verdadeiramente a palavra de

Deus; por isso o estudo destes Sagrados Livros deve ser como que a alma da

sagrada Teologia. Tambm o ministrio da palavra, isto , a pregao

pastoral, a catequese e toda a instruo crist, na qual a homilia litrgica

74

Ver p. ex.: ANCONA, Escatologia crist, 2013; RUIZ DE LA PEA, La otra dimension, 1986; entre outros. 75

Cf. PO, 4.13 e 19. O n 19 menciona o estudo cientfico mais em termos doutrinais do que exegticos:

Primeiro que tudo, seja haurida na leitura e meditao da Sagrada Escritura, mas alimente-se tambm com

fruto, do estudo dos Santos Padres e Doutores e ainda outros documentos da Tradio.

32

deve ter lugar principal, encontra alimento so e vigor santo na mesma

palavra da Escritura (DV, 24).

O Conclio Vaticano II, colocando as questes concernentes Revelao Divina e

consequentemente Escritura na pauta do programa de aggiornamento da vida da Igreja,

abriu as portas para o avano dos estudos bblicos. Nos anos que se seguiram, verificou-se no

cenrio eclesial o esforo para colocar em prtica as propostas conciliares e os princpios

norteadores da renovao pastoral propostos nas Constituies. A partir da, a exegese

catlica foi constantemente enriquecida e os estudos bblicos avanaram enormemente com o

recurso de outras cincias.

O resultado destes avanos encontra-se condensado no documento da Pontifcia

Comisso Bblica, A interpretao da Bblia na Igreja, publicado em 1993. Nele os mtodos,

as abordagens e as leituras usados na exegese contempornea so apresentados e avaliados em

seus aspectos positivos e negativos.

O assunto que agora nos ocupa foi tratado pela Comisso na terceira parte do

documento. Depois de apresentar as dimenses caractersticas da interpretao catlica da

Bblia, assim descreveu-se a relao da exegese e interpretao com as demais disciplinas

teolgicas:

Sendo ela mesma uma disciplina teolgica, fides quaerens intellectum, a

exegese mantm relaes estreitas e complexas com as outras disciplinas da

teologia. De um lado, efetivamente, a teologia sistemtica tem uma

influncia sobre a pr-compreenso com a qual os exegetas abordam os

textos bblicos. Mas, de outro lado, a exegese fornece s outras disciplinas

teolgicas dados que lhes so fundamentais. So estabelecidas, ento,

relaes de dilogo entre a exegese e as outras disciplinas teolgicas, no

respeito mtuo especificidade de cada uma delas76

.

A interao e o respeito entre ambas estavam dessa forma idealizados. Entretanto,

este mesmo Documento reconhece que tal relao nem sempre foi pacfica e sem atritos77

.

Nos tempos modernos ocorreram diversos momentos de tenso que foram iniciados ora pelos

telogos sistemticos, ora pelos biblistas, configurando uma real disputa de foras na

tematizao ao legtimo uso e interpretao da Escritura.

Para aplacar a contenda, passou-se a discutir o papel de cada uma delas, bem como, a

tarefa que compete aos exegetas e aos telogos no campo dos trabalhos teolgicos. O

76

PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia, p. 131s. 77

Cf. ibid., p. 136.

33

documento da Comisso Bblica realizou essa tarefa defendendo que os pontos de vista so

diferentes, e bom que o sejam, porque atravs deles o fazer teolgico avana e

enriquecido. Assim sendo, segundo a Comisso, ao exegeta cabe ocupar-se com a preciso do

sentido dos textos bblicos em seu prprio contexto, tendo em vista a explicitao do seu

sentido teolgico. O dogmtico, por sua vez, deve realizar uma obra mais especulativa e

sistemtica, no cabe a ele simplesmente interpretar a Bblia, mas buscar uma compreenso

refletida da f crist em todas as suas dimenses.

Um dos perigos mais evidentes quanto ao uso da Sagrada Escritura na teologia

dogmtica corresponde tentao de consider-la apenas como um reservatrio de dicta

probantia destinado a confirmar teses doutrinrias78

, diminuindo assim a funo central dos

estudos bblicos no todo da Teologia.

O debate se intensificou e a relao problemtica entre a exegese e a teologia

movimentou os especialistas na busca de um ponto de equilbrio entre os grupos oponentes. J

em 1971, a revista Concilium79

publicava um nmero com diversos artigos nos quais exegetas

e telogos discutiam entre si sobre esta problemtica e indicavam concretamente, por meio de

exemplos, como se pode dar a mtua colaborao.

Tambm no poderamos deixar de mencionar a Exortao apostlica ps-sinodal

Verbum Domini: sobre a Palavra de Deus na vida e na misso da Igreja (VDom), o mais

recente documento magisterial, publicado em 2008, que aborda estas questes. Na primeira

parte do documento, mais especificamente no terceiro tpico intitulado A hermenutica da

Sagrada Escritura na Igreja, encontramos a confirmao da necessidade de articulao entre

a exegese cientfica e a viso teolgica80

, bem como, a descrio dos avanos alcanados

neste campo, o seu atual estado e indicaes para que se continue a avanar.

De toda a riqueza da exortao, salientamos a originalidade com que so

apresentados os perigos do dualismo e da hermenutica secularizada81

na abordagem s

Sagradas Escrituras. O aferrar-se ao extremo da exegese cientfica (secularizada e positivista)

ou ao extremo da espiritualizao teolgica, faz com que se excluam e no haja reciprocidade

e enriquecimento entre elas. Disso conclui-se que onde a exegese no teologia, a Escritura

78

PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia, p. 137s. 79

Ver: Concilium, Madri, n. 70, 1971. 80

Ver principalmente os nmeros: 3136, 45 e 47. 81

Cf. VDom, 35.

34

no pode ser a alma da teologia e, vice-versa, onde a teologia no essencialmente

interpretao da Escritura na Igreja, esta teologia j no tem fundamento82

.

Caberia aqui uma anlise pormenorizada do modo como a teologia bblica acerca do

schaton e das realidades a ele relacionadas aparecem nos manuais de escatologia e como os

telogos sistemticos utilizam os frutos da exegese na elaborao de tais tratados. Entretanto,

nossa pesquisa tomaria um rumo interminvel, por isso nos limitamos a simplesmente

mencionar a problemtica, tendo presente que a escatologia, assim como todas as outras reas

da teologia, devem buscar nas fontes bblicas a inspirao dos dados teolgicos que iluminem

a reflexo sobre a realidade ltima e definitiva de nosso viver.

No podemos deixar de dizer que a mudana de perspectiva ocorrida, nos finais do

sculo XIX, na compreenso da escatologia, caracterizada pela modificao do nome de

Tratado dos Novssimos para Tratado da Escatologia, revela o desejo de se assumir uma

nova situao e posio frente s doutrinas escatolgicas. Sobre isso, Andrs Tornos em sua

obra Escatologa nos orienta na reflexo. Segundo ele, o desejo de mudana expresso por

muitos telogos, exigia a reformulao dos contedos tradicionalmente estudados83

, que no

respondiam s problemticas levantadas pela modernidade.

Diversos fatores contriburam para a renovao do tratado. Dentre eles, Tornos

considera as inovaes no mbito da investigao bblica o mais importante84

. De acordo com

o telogo, o fator desencadeador da mudana consistia no descentramento da teologia bblica

com respeito doutrina da imortalidade da alma. Os estudiosos da bblia apoiando-se nos

novos mtodos de investigao constataram que a mensagem de Jesus no correspondia

quela propagada pela teologia dos Novssimos, que entendia que Cristo se preocupava em

salvar as almas de uma condenao eterna. Conforme as novas interpretaes, Jesus era

consciente de que por ele se efetivava a salvao definitiva dos homens, em fora do poder

de Deus85

.

Os outros fatores que influenciaram na mudana correspondem ao novo enfoque

dado relao entre a soteriologia e a f na ressurreio86

, reinterpretao da teologia do

82

Cf. VDom, 35. 83

Cf. TORNOS, Escatologa, p. 11. 84

Cf. ibid., p. 16. 85

Ibid., p. 17. Traduo nossa. 86

Para cada um dos temas que seguem, ver: Ibid., p. 18-22.

35

juzo, ao reconhecimento das razes apocalpticas do tema do inferno e, por fim, nova

hermenutica das afirmaes escatolgicas87

.

Fica assim patenteada a importncia dos estudos exegticos para a compreenso,

desenvolvimento e renovao da teologia sistemtica. Com isto, passamos para o terceiro

tpico deste captulo onde apresentamos, a partir de consideraes acerca das crticas

levantadas ao mtodo histrico-crtico, o tipo de abordagem que nos acompanhar na

continuao desta dissertao que corresponde chamada abordagem ou leitura cannica.

1.3 Duas formas de abordagem e interpretao do texto bblico

1.3.1 O mtodo histrico-crtico

Como acabamos de ver, a necessidade de integrao entre a exegese e a teologia

sistemtica foi amplamente discutida no sculo passado e encontrou no uso do mtodo

histrico-crtico aplicado Escritura o seu principal combustvel. Esse mtodo marcou e

caracterizou os estudos bblicos no perodo pr e ps-conciliar.

No pr-conclio o debate girava em torno da defesa e autentificao do uso das

descobertas histricas, arqueolgicas e cientficas nos estudos bblicos e interpretao da

Escritura, que j eram utilizadas por exegetas protestantes e judeus, mas no eram ainda vistas

com bons olhos em ambiente catlico. Depois do Conclio, no sem reservas, o mtodo foi

acolhido e at mesmo recomendado. Hoje, questiona-se sobre a primazia desse mtodo em

relao aos demais e busca-se, acolhendo suas principais contribuies, completar suas

lacunas e deficincias.

Para a caracterizao do mtodo histrico-crtico recorremos coletnea de ensaios

de Joseph A. Fitzmyer intitulada A interpretao da Escritura: Em defesa do mtodo

histrico-crtico, onde encontramos a descrio dos rumos tomados pela exegese catlica nos

dois ltimos sculos, tendo o mtodo histrico-crtico como um dos principais motivadores do

desenvolvimento, mesmo que envolto em controversas.

Como indica o subttulo da coletnea, a inteno do autor apresentar respostas s

crticas que se levantaram contra o mtodo histrico-crtico desde sua origem at nossos dias.

87

Sobre estas mudanas comenta Libanio: A Escatologia torna-se cada vez menos um estudo das ltimas

realidades, para ser cada vez mais o estudo do ltimo de todas as realidades. Trata menos dos eschata, para

ater-se ao Eschaton. Assim o nosso tema da Ressurreio dos mortos deixa de ser um tema particular entre os

diferentes novssimos para tornar-se o acontecer do Futuro Absoluto de Deus em relao totalidade do homem

e do mundo (LIBANIO, A ressurreio, p. 9).

36

Nosso interesse nesse mtodo s corresponde ao do autor, na medida em que o considera

como mtodo bsico88

que precisa ser completado. Portanto, para ns, mais valem as

queixas89

que foram apresentadas do que mtodo em si, pois, por meio delas encontramos

respaldos para a aplicao de outra abordagem de leitura e mtodo de interpretao do texto

bblico que no s o histrico-crtico.

Dentre as queixas apontadas por Fitzmyer, destacamos a que critica o mtodo por se

preocupar excessivamente com a pr-histria do texto e, consequentemente, negligenciar sua

forma final, seus aspectos literrios, seu ambiente cannico e principalmente o sentido

religioso ou teolgico do texto sagrado90

.

Conforme essa queixa, a preocupao com o sentido original e com a histria da

redao levou frequentemente fragmentao dos textos e ao surgimento de uma

multiplicidade de hipteses, existindo tantas quanto so o nmero de exegetas que sobre eles

se debruam. Disso resultou, muitas vezes, a desconfiana e a rejeio por parte de telogos

que encontraram dificuldades na aplicao dos resultados obtidos em seus estudos

dogmticos, agravando a separ