a representancia do passado historico

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Breno Mendes A REPRESENTÂNCIA DO PASSADO HISTÓRICO EM PAUL RICOEUR LINGUAGEM, NARRATIVA E VERDADE Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG 2013

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Dissertação de mestrado em Historia defendida na UFMG que discute temas ligado a narratividade e representação na filosofia de Paul Ricoeur

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  • Breno Mendes

    A REPRESENTNCIA DO PASSADO HISTRICO EM PAUL RICOEUR

    LINGUAGEM, NARRATIVA E VERDADE

    Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG

    2013

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    Breno Mendes

    A REPRESENTNCIA DO PASSADO HISTRICO EM PAUL RICOEUR

    LINGUAGEM, NARRATIVA E VERDADE

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obteno do ttulo de mestre em Histria.

    rea de concentrao: Histria

    Linha de pesquisa: Cincia e Cultura na Histria

    Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Reis

    Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG

    2013

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    907.2 M538r 2013

    Mendes, Breno A representncia do passado histrico em Paul Ricoeur [manuscrito] : linguagem, narrativa e verdade / Breno Mendes. - 2013. 223 f. Orientador: Jos Carlos Reis.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Ricoeur, Paul, 1913-2005. 2. Histria Teses. 3.Representao (Filosofia) Teses. 4. Narrativa (Retrica) Teses. I. Reis, Jos Carlos. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

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    Agradecimentos

    Obrigado (...)

    -eu agradeo humildemente gesto assim vrio e divergente,

    graas ao qual, em dois minutos, tal como o fumo dos charutos,

    j subo aos cus, j volvo ao cho, pois tudo e nada nada so.

    Carlos Drummond de Andrade

    Agradeo sinceramente queles que contriburam para a realizao da pesquisa. Ao Jos Carlos Reis pela solcita orientao e pelas aulas instigantes que foram

    importantes em minhas ainda incipientes aventuras pela Teoria da Histria. Aos professores da banca e do exame de qualificao pela leitura e observaes pertinentes: Fernando Nicolazzi, Mateus Pereira e Maria Eliza Linhares Borges. Nathlia Aguiar Campos pela reviso ortogrfica. Aos funcionrios da UFMG Edilene Oliveira, Mary Ramos e Denise Amaral Teixeira (Ps-Graduao em Histria), Andrea Baumgratz (Ps-Graduao em Filosofia) e Vilma Carvalho (Biblioteca/FAFICH).

    No poderia deixar de testemunhar minha gratido minha famlia, especialmente minha me; aos amigos que estiveram comigo nessa jornada: Thales Oliveira, a Arraia-Mida (Diogo Brant Caldeira, Juscelino Soares e Rbson Narciso, companheiros desde a graduao), Warley Alves Gomes, Joo Batista Botton, Augusto Leite, Fernando Garcia, Guilherme da Cruz e Zica, Carolline Andrade, Walderez Ramalho e os alunos do curso que ministrei sobre Ricoeur.

    quele que tudo em todos: muito obrigado.

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    Verdade

    A porta da verdade estava aberta, mas s deixava passar

    meia pessoa de cada vez.

    Assim, no era possvel atingir toda verdade, porque a meia pessoa que entrava s trazia o perfil de meia verdade.

    E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.

    E os meios perfis no coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso

    onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades Diferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela.

    E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua iluso, sua miopia.

    Carlos Drummond de Andrade

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    Resumo

    A representao do passado histrico na obra de Paul Ricoeur o objeto dessa pesquisa. O caminho escolhido para a investigao passa por conceitos correlatos ao tema, como linguagem, narrativa, fico e verdade. A leitura desdobrada a partir da hiptese de que a teoria da representao ricoeuriana teria desenvolvido um realismo crtico, que no se alinha nem aos parmetros do realismo de objeto nem, tampouco, do relativismo. Na parte final da dissertao, delinearemos de maneira mais precisa os contornos da representao historiadora em Ricoeur, sobretudo, a partir do neologismo representncia, cunhado pelo filsofo. Por fim, em nossas consideraes finais, ensaiaremos a possibilidade de aproximao entre a representao do passado histrico e a teoria da traduo de Ricoeur.

    Palavras-chave: Paul Ricoeur; Teoria da histria; Representao; Linguagem, Narrativa; Verdade.

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    Abstract

    The representation of the historical past in the work of Paul Ricoeur is the aim of this research. The way chosen for the investigation involves concepts related to the theme, such as language, narrative, fiction and truth. The reading is deployed from the hypothesis that the Ricoeurian representation theory would develop a critical realism, which does not line up or the parameters of realism object neither relativism. In the final part of the dissertation, we will delineate more accurately the contours of historian representation in Ricoeur, mainly from representance neologism, created by the philosopher. Finally, in our concluding remarks, we will rehearse the possibility of approximation between the representation of the historic past and theory of translation by Ricoeur.

    Keywords: Paul Ricoeur; Theory of history; Representation, Language, Narrative, Truth.

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    Abreviaturas das obras de Ricoeur

    Sempre que possvel, consultamos a edio original em francs e a cotejamos com a traduo em portugus. Em nossas citaes, todas as vezes que julgamos necessrio, fizemos ajustes nas tradues disponveis. As referncias completas encontram-se no final da dissertao.

    Ademais, dado que a presente dissertao pe em revista conceitos do pensamento de Paul Ricoeur, optou-se, uma vez que a meno das obras do autor seria recorrente, pelo recurso a formas abreviadas de referncia a elas, como indicado na lista a seguir.

    AI Autobiografia intelectual. Reflexes feitas.

    CC A crtica e a convico

    CI O conflito das interpretaes. Ensaios de Hermenutica

    HV Histria e verdade

    MHE A memria, a histria, o esquecimento.

    MV A metfora viva

    PR Percurso do reconhecimento

    SO O si-mesmo como um outro

    ST Sobre a traduo

    TA Do texto ao: Ensaios de Hermenutica II

    T&N Tempo e narrativa

    TI Teoria da interpretao

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    Sumrio

    Introduo Apresentao da dissertao, delimitao do objeto e metodologia da pesquisa...........................................................................................................................12

    Captulo 1

    Paul Ricoeur em face de algumas questes historiogrficas de seu tempo.....................21

    1.1 O debate entre estruturalismo e hermenutica: a interveno de Ricoeur.................24 1.2 Questes da historiografia francesa contempornea..................................................31 1.3 O giro lingustico.......................................................................................................34 1.4 A linguagem na filosofia de Paul Ricoeur.................................................................41 1.5 A leitura de Paul Ricoeur sobre o retorno do acontecimento.................................46 1.6 O famigerado retorno da narrativa.........................................................................51

    Captulo 2 Histria e narrativa segundo Paul Ricoeur......................................................................56

    2.1 A mediao entre tempo e narrativa..........................................................................57 2.2 A tripla mmesis ou crculo hermenutico.................................................................64 2.3 O eclipse da narrativa................................................................................................77 2.4 A intencionalidade histrica: um questionamento em retorno..................................81

    Captulo 3 Histria e fico em Tempo e narrativa..........................................................................97

    3.1 Situando o problema: histria e fico na escrita da Histria...................................97 3.2 A heterogeneidade da refigurao temporal na histria e na fico........................101 3.3 A representao da realidade do passado histrico e a interao entre mundo do texto e mundo do leitor..................................................................................................107 3.4 O entrecruzamento entre histria e fico...............................................................126 3.5 A identidade narrativa e suas implicaes ticas.....................................................132

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    Captulo 4 Verdade e representncia do passado histrico.............................................................138

    4.1 Objetividade e subjetividade em histria: uma epistemologia mista......................139 4.2 O testemunho e a prova documental........................................................................148 4.3 Explicao/compreenso e a dialtica da representao.........................................163 4.4 A representao historiadora, a referencialidade e os limites da representao......168 4.5 A representao historiadora sob o signo da representncia...................................177

    Consideraes finais A representao do passado histrico, o desafio e felicidade de sua traduo..............200

    Referncias....................................................................................................................211

    1- Bibliografia de Paul Ricoeur..............................................................................211 2- Bibliografia geral...............................................................................................213

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    Introduo Apresentao da dissertao, delimitao do objeto

    e metodologia da pesquisa

    Representao um conceito que figura entre os mais empregados e estudados nas ltimas dcadas pelos diversos campos da histria da historiografia. Entretanto, essa presena assdua nas pesquisas est longe de indicar homogeneidade ou consenso sobre suas significaes. Nesse cenrio, despontam, de forma saliente, as investigaes sobre as representaes sociais, que procuram explicar como a realidade construda pelas prticas simblicas e representaes culturais dos mltiplos sujeitos sociais. Com o declnio da histria das mentalidades na Frana, Roger Chartier tornou notria sua proposta de uma histria cultural do social, que toma por objeto a compreenso das representaes coletivas do mundo social. Tambm no contexto francs, a histria poltica se mostrou aberta aos rituais simblicos do poder, s representaes que uma sociedade faz de si prpria, de suas instituies e tradies polticas. Acredita-se que a inteligibilidade do fenmeno poltico est incompleta quando no considera os imaginrios sociais manifestados nas representaes do poder (CHARTIER, 1990; CARDOSO, 2000; SILVA, 2000; CAPELATO e DUTRA, 2000).

    Todavia, nosso trabalho versar sobre a representao no registro da teoria da histria. Conforme Falcon, esse conceito-chave do discurso histrico aponta, concomitantemente, tanto para a relao cognitiva mantida pelo conhecimento histrico em relao realidade, quanto para o carter lingustico da escrita da histria. Dessa forma, uma reflexo sobre a representao do passado envolve pensar as condies de possibilidade do saber histrico como disciplina especfica. Para esse empreendimento, Falcon prope a imagem bifronte de Janus: uma face olharia a representao como uma categoria inerente e vivel da pesquisa em histria; a outra a veria como a negao da possibilidade de um conhecimento vlido e correspondente realidade. A primeira visada abrangeria a tradio intelectual construda a partir do Iluminismo e sua crena na apreenso da realidade com base em mtodos racionais. A outra mirada, denominada por Falcon como ps-moderna, entende a linguagem como a instncia constituinte da realidade e coloca a histria na esteira das prticas discursivas e dos artefatos literrios (FALCON, 2000).

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    Um breve olhar sobre a etimologia do termo revela que representao deriva da forma latina repraesentare, cujos significados so: apresentar de novo e tornar presente algum ou alguma coisa ausente por intermdio de um objeto. Outros sentidos catalogados so: colocar um objeto no lugar de outro e encenar um acontecimento re-apresentando-o no presente. No mbito poltico e diplomtico, temos a acepo da representao como a prtica em que uma pessoa est presente no lugar de outra, substituindo-a e agindo em seu nome como legtima representante. A moderna teoria do conhecimento tende a entender a representao como uma objetivao do mundo exterior conscincia do sujeito cognoscente atravs de uma imagem ou smbolo que vale por ele (FALCON, 2000). Ainda na seara semntica e etimolgica, significativa a distino feita na lngua alem entre a Darstellung (apresentao) e a Vertretung (representao/representncia). Segundo Pitkin, darstellen retratar ou colocar alguma coisa no lugar de algo, ao passo que vertreten atuar como um agente para algum (PITKIN, 2006). Veremos, em nosso quarto captulo, que Ricoeur prope, por meio da representncia, um entrelaamento entre as funes de apresentao e representao na operao historiogrfica.1

    Em meio a essa multiplicidade de sentidos possveis, nossa jornada investigativa se deter nos limites da representao na teoria do conhecimento histrico. Em busca de uma alternativa s duas vias apresentadas por Falcon2 ao falar de Janus, escolhemos investigar o tema da representao do passado na epistemologia da histria desenvolvida pelo filsofo francs Paul Ricoeur (1913-2005). Acreditamos que nosso objeto de estudo complexo e multifacetado, portanto, sua apreenso demanda uma reflexo sobre alguns conceitos-satlite correlacionados, com vistas a uma compreenso mais bem fundamentada do problema. Optamos, ento, por trilhar um longo itinerrio

    1 De forma semelhante, Helenice Rodrigues Silva assevera que na teoria do conhecimento o termo

    representao utilizado a partir de uma dupla metfora, a representao teatral e a representao diplomtica: Na realidade, essas suas acepes so indissociveis. Se, no sentido teatral, a representao tem uma aparncia concreta, no sentido diplomtico, ela se manifesta pela presena real de um representante visvel. Assim sendo, a representao pressupe uma superposio de dois tipos de presena: por um lado, uma presena efetiva, direta, de uma pessoa, de um objeto, de uma ao e, por outro, a presena indireta de uma realidade (SILVA, 2000, p. 84, grifo do original). Curiosamente, apesar de se dispor a analisar o conceito de representao na historiografia francesa contempornea, a autora no explorou, como fez Ricoeur, as possibilidades e limites do emprego dessa dupla metfora para a compreenso da representao historiadora. 2 Falcon afirma que o embate entre essas duas frentes levou a uma crise da representao, que foi assim

    formulada por ele: A crise da representao (sua concepo clssica e racional) encontra-se estreitamente ligada ideia de real ou de realidade como referente extradiscursivo. Assim sendo, na verdade o realismo como pressuposto filosfico que est em questo nas crticas representao. O realismo afirma a existncia de um certo real como um existente que independe do sujeito, e aposta em sua cognoscibilidade em bases racionais (FALCON, 2000, p. 48).

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    at nos defrontarmos diretamente com nosso objeto. Nossos estudos sobre linguagem, narrativa, fronteiras entre histria e fico sero empreendidos tendo a questo da representao do passado histrico em seu horizonte de entendimento.

    Uma palavra-chave colocada em jogo nesse contexto fundamental para nossa pesquisa: realismo. Embora exista um realismo na filosofia poltica, outro na literatura e nas artes, a extenso da qual mais iremos nos aproximar a do realismo epistemolgico no escopo das cincias humanas, e mais especificamente, no campo historiogrfico. Em sua Epistemologia das cincias humanas, Ivan Domingues (2004) aponta para cinco possveis vias de conhecimento nas humanidades: 1) realismo epistemolgico, 2) construtivismo, 3) instrumentalismo, 4) operacionalismo e 5) pragmatismo. Em sua concepo, o realista aquele que decide o valor-verdade de um conhecimento mediante sua referncia ao mundo exterior ao sujeito. O conceito de realismo crtico foi por ns escolhido para nortear nossa anlise porque, no contexto da historiografia francesa contempornea, essa noo foi colocada em evidncia, sobretudo, aps os questionamentos que a virada lingustica lanou sobre a pretenso da linguagem de se referir realidade (DELACROIX, 1995; SILVA, 2007). Ao longo de nossas investigaes, descobrimos que o prprio Ricoeur empregou o termo realismo crtico para expressar a maneira como ele concebia as relaes entre a representao historiadora e a realidade do passado.

    No que tange polissemia do termo realismo, necessrio que sejam delineadas algumas distines. Poderamos apontar um primeiro realismo entre os historiadores da Escola Metdica, que foram fundamentais no processo de institucionalizao da disciplina histrica na Academia francesa. Langlois e Seignobos praticavam um chamado realismo de objeto e acreditavam alcanar a verdade nas narrativas histricas desde que fossem respeitados certos mtodos (CARDOSO, 2005). A pesquisa das fontes comearia com rigorosos procedimentos de crtica externa e interna. Na primeira, seriam determinadas a autenticidade, a origem e a datao dos documentos com base nas cincias auxiliares. Na segunda, seriam investigadas as condies de produo e as intenes do autor. Aps a realizao dessas operaes analticas, os documentos ofereceriam um acesso confivel realidade do passado histrico e fundamentariam a sntese e interpretao a serem construdas pelo historiador3 (BOURD e MARTIN, 2003):

    3 Segundo C. Langlois e C. Seignobos, a histria no passa da aplicao de documentos (p. 275). A

    frmula supe uma teoria do conhecimento que no explicitada. Na realidade, trata-se da teoria do

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    Estou convencido de que a revoluo na concepo e no mtodo da histria deve ser acompanhada de uma revoluo no estilo histrico. A histria sofreu muito por ter sido um gnero oratrio. As frmulas da eloquncia no so ornamentos inofensivos; elas escondem a realidade; desviam a ateno dos objetos para dirigi-las s formas; debilitam o esforo que deve consistir (tanto na histria como em todas as outras cincias) em representarmos as coisas e em compreendermos as suas relaes. Agora que a histria comeou a se constituir como cincia, chegou a hora de romper com a tradio oratria romana e acadmica e adotar a lngua das cincias naturais (SEIGNOBOS, 1906 apud DELACROIX, DOSSE; GARCIA, 2012, p. 91-92, grifos nossos).

    Essa via do realismo foi severamente combatida pelos historiadores vinculados Escola dos Annales. Numa postura que pode ser encaixada nos quadros do construtivismo, a gerao de Bloch e Febvre fez uma apologia ao fato histrico como construo. Um dos principais itens do programa da nouvelle histoire consistia em assumir, e explicitar, que os fatos e o passado no so dados, mas construdos pelo sujeito do conhecimento o historiador que interpela os documentos a partir de hipteses e problemas relacionados sua experincia presente (REIS, 2004).

    Cremos que, para nossos propsitos, o mais pertinente ser considerar, ao longo das anlises, o realismo e sua antpoda, o relativismo antirrealista, uma vez que esses tm como pano de fundo a questo da narrativa na escrita da histria. O relativismo antirrealista historiogrfico marcado pelo giro lingustico e postula que a narrativa, por sua prpria forma, falseia e deforma os fatos que pretende narrar. Nessa compreenso, h uma profunda descontinuidade entre a narrativa e a realidade (CARDOSO, 2005; MALERBA, 2006). A historiografia dita ps-moderna, para Ankersmit, chega a duvidar do acesso realidade do passado histrico e renunciar pretenso de ser uma representao adequada deste passado:

    A passagem entre o passado e o texto do historiador deveria ser poupada de qualquer anlise de parte da historiografia, e toda a ateno do especialista em historiografia deve concentrar-se no texto histrico e naquilo que acontece entre o texto e o(s) leitor(es). Em razo da metodologia (historiogrfica), ele deve l-lo como se no pudesse obter por seu intermdio uma viso penetrante do passado que subsistiria por detrs ou sob o texto, sendo-lhe, portanto, impossvel declarar algo a respeito da adequao da descrio do passado ali apresentado (ANKERSMIT, 2006, p. 103-104, grifo do original).

    reflexo (...) a escola metdica despreza o papel essencial das questes colocadas pelo historiador s suas fontes e louva o apagamento do mesmo historiador por detrs dos textos (BOURD; MARTIN, 2003, p. 102).

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    Sabemos que as posies da Escola Metdica tm sido revisitadas pela historiografia, mostrando que Seignobos, por exemplo, no exclua a participao da imaginao subjetiva do historiador na pesquisa, desde que esta fosse controlada pelas operaes analticas. Entretanto, ainda que admitissem certa parcela de construo no estabelecimento do fato histrico,4 os historiadores metdicos, salvo melhor juzo, no duvidavam da capacidade da linguagem de atingir a realidade do passado histrico,5 algo posto em questo pelas posies relativistas contemporneas. Todavia, a posio de Ricoeur sobre a representao historiadora que iremos dissecar no pretende nem retomar o realismo praticado pela Escola Metdica, nem, tampouco, endossar o textualismo, que desacredita da possibilidade de uma representao corresponder de alguma forma ao pretrito em sua realidade. Nossa hiptese que, em sua epistemologia da histria, Paul Ricoeur teria construdo um realismo crtico, uma terceira via historiogrfica situada entre um realismo de objeto que cr realizar em sua narrativa uma duplicao do passado, ou manter uma relao precisa entre a representao e o representado e um relativismo radical, antirrealista que postula no ser possvel representar de forma adequada o passado histrico e referir-se a uma realidade extradiscursiva e extratextual.

    Em que consistiria, ento, aquilo que chamamos de realismo crtico? Numa primeira e provisria caracterizao, diramos que ele assume a possibilidade de a operao historiogrfica ter acesso realidade pretrita. Entretanto, essa apreenso no direta, imediata, mas indireta e mediatizada. A realidade com a qual o historiador lida passada. Os rastros deixados pelos vivos antigos so indcios no o passado em si mesmo de algo que desde logo mitiga o realismo (MARTINS, 2010). Um segundo trao a ser pontuado que o acesso ao passado histrico ocorre sempre com a mediao da linguagem, seja pelo recurso aos testemunhos, que so a expresso em linguagem de

    4 De fato, na cincia social, agimos no sobre objetos reais, mas sobre a representao desses objetos.

    No enxergamos os homens, os animais, as casas que inventariamos, no enxergamos as instituies que descrevemos. Somos obrigados a imaginar os homens, os objetos, os atos que estudamos. A matria prtica da cincia social constituda por essas imagens. So essas imagens que analisamos (SEIGNOBOS, 1901 apud SILVA, 2010, p. 378). 5 Segundo Delacroix, Dosse e Garcia, a epistemologia de Langlois e Seignobos concebe a histria como

    uma cincia por rastros que deveriam ser reconstrudos a partir dos procedimentos de crtica documental. No entanto, as crticas externa e interna no entregam uma histria j pronta ao historiador. O sujeito do conhecimento histrico vale-se da imaginao e de analogias para compreender as relaes entre os fatos. Porm, os autores no abrem mo de uma relao objetiva entre a representao e realidade: A nfase dada natureza psicolgica e subjetiva dos rastros, analogia, imaginao de que se vale o historiador no uma licena literria qualquer. Subjetivo no sinnimo de irreal. E explica Seignobos (1901, p. 119): pode haver uma relao precisa entre uma imagem subjetiva e uma realidade; o caso da lembrana (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012, p. 103, grifos nossos).

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    impresses sobre os eventos, seja pela narrativa tecida pelo historiador. Esta, embora tenha uma ambio veritativa, uma pulso extralingustica e referencial, sabe que jamais ir coincidir plenamente com o passado.

    Como metodologia, adotaremos, e em certa medida, adaptaremos, as quatro estratgias complementares apontadas por Johan Michel em sua pesquisa sobre a filosofia prtica de Ricoeur (MICHEL, 2006):

    1) Abordagem intratextual: leitura analtica das obras e textos de Ricoeur que selecionamos para abordar o tema da pesquisa. No se trata de uma leitura exaustiva das mesmas, mas de um estudo detido sobre a representao historiadora e as questes correlacionadas, como a linguagem, a narrativa e a compreenso da verdade histrica.

    2) Intertextualidade interna: como os conceitos que nos propomos analisar aparecem em mais de uma obra ricoeuriana, trata-se de mapear e analisar a maneira como nosso autor retoma, e aprofunda, seus argumentos ao longo dos escritos, ressaltando o que mudou de uma abordagem para a outra e aquilo que permaneceu.

    3) Intertextualidade externa: sem perder de vista os limites de uma dissertao de mestrado, evidenciar os autores com os quais Ricoeur est dialogando quando desenvolve sua argumentao. A filosofia ricoeuriana foi construda de modo dialgico e faz referncia tanto a autores contemporneos como a pensadores mais recuados temporalmente na histria da filosofia, assim como a historiadores e cientistas sociais.

    4) Recepo da obra ricoeuriana, sobretudo na comunidade de historiadores:6 Esse passo se mostra importante na medida em que, embora travemos um estreito dilogo com a filosofia, nossa pesquisa feita a partir de questionamentos caros ao campo historiogrfico. Por intermdio dessa abordagem, nosso intento evidenciar que a recepo das teses ricoeurianas no foi homognea entre os historiadores, tendo existido tanto aqueles que as aplaudiram como os que as criticaram.

    A leitura que propomos de Paul Ricoeur historiogrfica, formatada por questes, mtodos e abordagens atinentes aos estudos histricos. Entretanto, um dos objetivos de nossa investigao contribuir, ainda que modestamente, para o avano do dilogo entre histria e filosofia. Essa conversa que muitas vezes de surdos tem se mostrado ambgua. Se, por um lado, os filsofos reclamam da incipiente reflexo terica e filosfica dos historiadores sobre seu ofcio, de outro, os historiadores se queixam das reflexes que os filsofos produzem sobre a histria, pois, alm de serem

    6 Essa fase est adaptada aos propsitos de nossa investigao. A proposta inicial de Michel, adequada a

    seus objetivos, era dedicar uma ateno recepo filosfica da obra ricoeuriana.

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    apriorsticas e normativas, elas estariam distantes dos problemas e dificuldades encontrados na prtica da pesquisa histrica.

    A produo de Filosofias da Histria certamente contribui para aumentar esse mal-entendido recproco. Reflexo tpica da modernidade, ela consiste em uma interpretao sistemtica e racional da histria universal cujo objetivo unificar a disperso dos acontecimentos para apreender seu sentido ltimo, seu significado essencial para a histria da humanidade. Em suma, estabelecido um tlos, uma meta para a histria humana. Dentre seus propositores mais ilustres podemos destacar Kant, Hegel e Marx.

    Os historiadores tambm contriburam para a ampliao do desentendimento. Uma das marcas da primeira e segunda geraes da Escola dos Annales foi o combate influncia filosfica na historiografia e a apologia sua aliana com as cincias sociais. Para os autores da nouvelle histoire, as trs principais tendncias do sculo XIX (historicismo, marxismo e positivismo), embora tenham tentado uma ruptura, ainda permaneciam influenciadas pelas teleolgicas Filosofias da Histria.

    A partir da dcada de 1970, a interao entre histria e filosofia foi retomada, principalmente nos quadros da historiografia francesa. Um passo decisivo para essa reconciliao foi dado pelas pesquisas de Michel Foucault e Paul Ricoeur. Ambos dialogaram estreitamente com a historiografia, porm, nenhum deles prope uma Filosofia da Histria que busca um sentido ltimo para os acontecimentos a partir de um princpio atemporal. Isso motivou, inclusive, a que historiadores como Paul Veyne e Franois Dosse sentenciassem: Foucault e Ricoeur revolucionaram a historiografia.7

    Soma-se a isso a convico ricoeuriana de que uma filosofia que se alimenta apenas de problemas levantados pela prpria tradio filosfica estril e redunda em um narcisismo filosfico. Para nosso autor, a filosofia morre se interrompe seu

    dilogo milenar com as cincias, sejam as cincias matemticas, as cincias da natureza ou as cincias humanas (AI: 64). Ao investigar o problema central de suas obras, Paul Ricoeur abre sua filosofia a dilogos com saberes externos filosofia, sejam eles do mbito cientfico, artstico ou teolgico. Segundo o prprio filsofo, isso contribuiu para sua recepo na comunidade historiogrfica, segundo suas prprias palavras: Em Tempo e Narrativa I s me interesso pela histria dos historiadores, e evito inteiramente

    7 Os pargrafos sobre a relao entre histria e filosofia foram retirados de um artigo que publicamos

    durante o perodo de preparao da dissertao: Relaes de fora e relaes de sentido: Michel Foucault e Paul Ricoeur revolucionam a historiografia (Cf. MENDES, 2011b).

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    toda problemtica dita de filosofia da histria, quer seja kantiana, hegeliana ou ps-hegeliana. Permaneo no campo dos historiadores (CC: 120). A proposta ricoeuriana no pensar-contra, mas pensar-junto, pensar-com os historiadores as inquietaes epistemolgicas suscitadas pela prtica da pesquisa histrica.

    Nosso estudo est dividido em quatro captulos. No primeiro, realizamos um panorama sobre o posicionamento de Ricoeur a respeito de algumas das inquietantes questes enfrentadas pela historiografia francesa contempornea. Nesse contexto, tero destaque a oscilao de paradigmas nas cincias humanas entre estruturalismo e hermenutica e a interveno do prprio Ricoeur na confrontao entre ambos os modelos em um debate com Lvi-Strauss. O captulo se prope ainda a um exame mais acurado da perspectiva ricoeuriana acerca do que consideramos estar no ncleo das inquietaes da historiografia francesa e que contribui para a compreenso do tema da representao do passado histrico: os conceitos de linguagem, acontecimento e narrativa.

    O segundo captulo empreende uma investigao verticalizada, isto , em profundidade, da viso ricoeuriana sobre a narrativa. Enfocaremos, alm da mediao entre tempo e narrativa por meio da tripla mmesis, o chamado eclipse da narrativa, que mostra a leitura original de Ricoeur sobre o debate do retorno da narrativa historiografia. Alm disso, abordaremos a intencionalidade histrica, colocando em relevo os procedimentos explicativos da narrativa histrica, sobretudo os que dizem respeito s relaes de causalidade entre os eventos.

    O terceiro captulo se detm sobre as fronteiras entre o discurso histrico e o ficcional. Nessa ocasio, deslindaremos ainda mais nossa compreenso do realismo crtico e nos aproximaremos pela primeira vez da reflexo ricoeuriana sobre a representao do passado histrico. Percorreremos o caminho que parte da heterogeneidade entre histria e fico na refigurao temporal, passa pelo paralelismo e desemboca no entrecruzamento. Por fim, examinaremos aquilo que Ricoeur chama de frgil rebento, oriundo da unio entre a narrativa histrica e ficcional: a identidade narrativa, que fornece aportes para investigao dos laos mantidos pela historiografia com o campo prtico e suas implicaes ticas.

    No quarto captulo, empreenderemos prospeces acerca da relao entre histria e verdade e dissecaremos a interpretao ricoeuriana da noo de representao do passado histrico. Passaremos em revista as relaes entre objetividade e subjetividade na histria e a importncia do testemunho e da prova documental para a

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    operao historiogrfica. Na parte final da discusso, ressaltaremos as contribuies trazidas pela representncia ricoeuriana s relaes entre a representao e seu referente e tambm esquadrinharemos algumas crticas feitas ao filsofo, bem como suas respostas a elas.

    Nas consideraes finais, nos propomos a esclarecer alguns posicionamentos que, porventura, tenham se mostrado ambguos em nossa leitura do realismo crtico ricoeuriano. Nos ltimos passos de nossa jornada, decidimos seguir um caminho ensastico e lanar uma semente que, qui, poder florescer em novas pesquisas que explorem a possibilidade de a representao historiadora manter uma relao de traduo com o passado histrico e os homens de outrora.

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    Captulo 1

    Paul Ricoeur em face de algumas questes historiogrficas de seu tempo

    A linguagem casa do ser. Em sua morada habita o homem. Os poetas e pensadores so os guardies dessa morada. Sua guarda consiste em realizar a demonstrao do ser, na

    medida em que, em seu dizer, eles o levam a linguagem e ali o guardam.

    Martin Heidegger

    A extensa obra de Paul Ricoeur, assim como a de muitos outros autores, foi erigida de modo dialgico. Em suas especulaes, o filsofo no se trancava em bibliotecas de filosofia, mas abria seu espectro de leituras s mais diversas reas do conhecimento humano. Nossa pesquisa ir investigar a interface entre a filosofia ricoeuriana e a Teoria da Histria no que tange ao nosso objeto a representao do passado histrico. Para que nossa compreenso seja mais rica e abrangente, acreditamos que um panorama sobre as principais questes em voga na poca de publicao das obras por ns estudadas seria elucidativo. Portanto, nesse primeiro momento, elencamos e discutimos alguns temas do contexto intelectual e historiogrfico francs, com a esperana de que a exposio deles explicite o clima no qual a epistemologia da histria ricoeuriana foi inserida. Nesse sentido, ser importante perceber os posicionamentos adotados pelo autor diante das questes que estavam na ordem do dia.

    Paul Ricoeur foi um longevo filsofo com uma vasta obra, que atravessou o sculo XX e adentrou o incio do XXI. Seu primeiro livro foi publicado em 1947 e o ltimo data de 2004, perfazendo um total de 57 anos de trajetria intelectual. Ricoeur foi professor em diversas universidades na Frana e fora dela. As principais foram: Nanterre, Sorbonne Nouvelle (Frana), Estrasburgo, Louvain, Chicago (EUA) e Yale (EUA). O filsofo tambm participou do corpo editorial das respeitadas revistas filosficas Esprit e Revue de Metaphysique et Morale. Ademais, dirigiu vrias colees de obras filosficas em importantes editoras francesas: Seuil, Aubier e Esprit (REIS, 2011).

    Apesar de ter resultado em uma substancial reflexo filosfica, a obra ricoeuriana obteve pouco destaque na cena intelectual francesa entre as dcadas de 1950 e 1970. Algumas razes podem ser aventadas para explicar esse inicial no reconhecimento (DOSSE, 2008; REIS, 2011):

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    A) Leitor virtuose: em virtude do estilo de pensamento dialgico de Ricoeur, seus crticos diziam que seus escritos se resumiam a um comentrio da obra de outros autores. Assim, sua obra no traria nada de original, seria apenas um imenso resumo e fichamento da filosofia proposta por outros autores.

    B) Cristianismo: Ricoeur foi um filsofo cristo calvinista e, durante alguns anos de sua trajetria, engajou-se no cristianismo social. Alguns crticos consideravam que a obra ricoeuriana possua pressupostos cristos que o autor no explicitava como tais. Para eles, Ricoeur seria um criptotologo que se disfara de filsofo, ou, nas palavras de J.P. Sartre, um padre que se ocupa de fenomenologia.

    C) Estruturalismo e filosofia da suspeita: Entre os anos de 1950 e 1970, o paradigma estruturalista foi dominante na cena francesa, com suas crticas s filosofias do sujeito e da conscincia. As tradies s quais Ricoeur reivindica pertencimento filosofia reflexiva, fenomenologia e hermenutica no gozavam de grande prestgio nesse momento do contexto intelectual francs.

    D) Atrito com Lacan: Em 1965, Ricoeur publicou uma interpretao filosfica de Freud, na qual tenta conciliar fenomenologia e psicanlise. Lacan acusou Ricoeur de plagiar suas ideias, aps ter este frequentado seus seminrios. As crticas de Lacan e seus discpulos chegam a ser contraditrias, pois, alm de acusar Ricoeur de plgio, eles desqualificam a abordagem ricoeuriana por ela ser reflexiva, isto , preocupada com a conscincia, ou fenomenolgica, e no estar afinada com a dmarche estrutural lacaniana. Segundo Ricoeur, a objeo mais bem fundamentada que os lacanianos lhe dirigiram a que diz que ele no compreendeu nada do que Lacan disse em seus seminrios8 (CC: 99-104; AI: 39).

    Uma peculiaridade na trajetria de Ricoeur seu apreo em falar da prpria obra. No o fazia buscando a autopromoo, antes, esforava-se por explicar as possveis conexes entre seus textos. Esses comentrios esto registrados em inmeras entrevistas e em sua autobiografia intelectual (OLIVEIRA, 1990; CC e AI). No exagero dizer que ele foi um dos mais profcuos comentadores de si mesmo, de seu prprio labor filosfico. Em uma entrevista, o filsofo props, como fio condutor de sua filosofia, a questo sobre o que o agir humano. Ademais, sugeriu que seu itinerrio pudesse ser dividido em duas grandes fases: a primeira seria a fase pr-hermenutica,

    8 Em sua defesa, Ricoeur acrescenta que j havia exposto as ideias de sua interpretao sobre Freud em

    cursos dados na Sorbonne antes frequentar os seminrios de Lacan. Fato que Ricoeur s conseguir voltar a publicar textos sobre psicanlise na Frana no contexto do reconhecimento de sua obra nos anos 1980 (CC: 99).

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    na qual buscou empreender uma filosofia da vontade baseada na abordagem fenomenolgica; a segunda, a fase hermenutica, iniciada na dcada de 1960 em A simblica do mal (RICOEUR, 1990).

    As obras da primeira fase so: Filosofia da vontade I O voluntrio e o involuntrio (1950); Filosofia da vontade II Finitude e culpabilidade (1960), sendo que esta composta por dois tomos: I O homem falvel e II A simblica do mal. A guinada hermenutica (DOSSE, 2008; PELLAUER, 2009) tem incio no ltimo volume da Filosofia da vontade. na investigao sobre a experincia do mal que a mediao pelos smbolos e as questes de interpretao comeam a ganhar o primeiro plano da reflexo ricoeuriana. Nesse momento, os smbolos so definidos como signos que possuem dupla significao: Chamo de smbolo toda estrutura de significao em que um sentido direto, primrio, literal, designa, por acrscimo, outro sentido indireto, secundrio, figurado, que s pode ser apreendido atravs do primeiro (CI: 15). Dosse afirma que, ao escrever A simblica do mal, Ricoeur mensura a importncia da mediao simblica e textual, operando um linguistic turn [giro lingustico] em seu itinerrio intelectual. Os outros livros, publicados na dcada de 1960 Da interpretao. Ensaios sobre Freud (1965) e O Conflito das interpretaes. Ensaios de hermenutica (1969) , consolidaram o enraizamento de seu pensamento em solo hermenutico.

    Apontamos que a voga estruturalista francesa contribuiu para a dificuldade de recepo das teses ricoeurianas em solo francs no perodo compreendido entre as dcadas de 1950 e 1970. A relao de Ricoeur com o estruturalismo foi tensa e ambivalente, pois, ao mesmo tempo que aplaudia alguns procedimentos da anlise estrutural, no deixava de apontar suas reservas, sobretudo pretensa supresso do sujeito e, no caso da aplicao desse modelo anlise do texto, ao fechamento deste sobre suas estruturas intratextuais. Escolhemos como ponto de partida de nossa contextualizao o debate ocorrido entre estruturalismo e hermenutica na cena intelectual francesa. Esse episdio nos permitir tambm caracterizar alguns pontos da metodologia hermenutica de Ricoeur, assim como sua concepo de texto e nfase no processo de leitura, que sero importantes para os desdobramentos da pesquisa.

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    1.1 O debate entre estruturalismo e hermenutica: a interveno de Ricoeur

    Na dcada de 1950, a referncia s estruturas era quase onipresente nas cincias humanas. O vocbulo estrutura, no entanto, foi criado quatro sculos antes na lngua francesa, a partir do termo latino structura, que, por sua vez, provm do verbo stuere e traz como significados construir, edificar, erigir, empilhar, dispor em camadas. Entretanto, a simples presena do termo no implica automaticamente estruturalismo. Lembremos que o conceito utilizado tambm fora do campo das humanidades, por fsicos, qumicos, bilogos e matemticos. E. Durkheim e K. Marx so autores fundamentais para as cincias humanas que tambm empregaram o conceito, mas no foram estruturalistas (DOMINGUES, [s.d.]).

    O estruturalismo uma corrente heterognea. Diversos autores j enunciaram a dificuldade para construir uma definio aplicvel s suas diferentes manifestaes. Segundo Roland Barthes, o estruturalismo no foi nem uma escola ou um movimento, mas uma atividade realizada pelo homem estrutural. Ela consistiria, primeiramente, em no tomar seu objeto de anlise como natural. A atividade estruturalista decompe e recompe este objeto para explicitar suas regras de funcionamento, sua unidade elementar, sua estrutura (BARTHES, 1967). No esquecendo que o estruturalismo uma corrente plural e que foi configurada de distintas maneiras nas diferentes disciplinas das cincias humanas, faremos um esforo para apontar alguns pontos em comum:

    A) Comecemos pelo conceito de estrutura. Nas palavras de Piaget:

    Uma estrutura um sistema de transformaes que comporta leis enquanto sistema (por oposio s propriedades dos elementos) e que se conserva ou se enriquece pelo prprio jogo de suas transformaes, sem que estas conduzam para fora de suas fronteiras ou faam apelo a elementos exteriores. Em resumo, uma estrutura compreende os caracteres de totalidade, de transformaes e de autorregulao (PIAGET, 1979, p. 7).

    B) Em contraposio ao atomismo, o estruturalismo prima por uma viso de conjunto, de sistema. A aplicao do conceito de estrutura traz consigo a ideia de totalidade e interdependncia entre seus componentes. O pesquisador estruturalista busca realizar um inventrio das diferenas e oposies dos elementos internos estrutura. H uma esperana de inteligibilidade fundada na crena de que uma estrutura se basta a si mesma; no precisa recorrer a elementos externos para sua explicao (DOMINGUES, [s.d.], COSTA LIMA, 1970, PIAGET, 1979; POUILLON, 1967).

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    C) Prevalncia da sincronia sobre a diacronia. Esse ponto polmico e causou mal-estar na comunidade dos historiadores. Tal incmodo no deixou de ser salutar para a historiografia, haja vista o debate de Braudel com Lvi-Strauss e a cunhagem do conceito de longa durao.9 Com efeito, realar a sincronia no redunda em dizer que a estrutura tenha uma realidade completamente esttica, fora da histria (BONOMI, 1970). O que se busca um ponto fixo que proporcione ao cientista um ancoradouro para vencer as aporias do devir e os males do relativismo; um esquema de permanncias para operar as mudanas (DOMINGUES, [s.d.]).

    D) Os estruturalistas empregam uma abordagem conceitual que substitui o estudo sobre a intencionalidade ou a conscincia pela noo de inconsciente. (DOSSE, 1993, v. 1). O correlato dessa postura o descentramento do sujeito (COSTA LIMA, 1970). Por trs das interpretaes racionalizadas do indgena que se faz frequentemente observador, e mesmo terico de sua prpria sociedade procurar-se-o as categorias inconscientes (LVI-STRAUSS, 1970, p. 49). Nesse sentido, o estruturalismo crtico ao projeto da modernidade iluminista de uma subjetividade consciente de si, racional e livre. O estruturalismo tenta mostrar que a fora da estrutura mais forte e se impe aos sujeitos.

    Nos primeiros anos da dcada de 1960, ocorreu o primeiro momento do embate entre estruturalismo e hermenutica. 10 Entre 1962 e 1963, o Groupe Philosophique da revista Esprit consagrou diversas reunies leitura e discusso da obra O pensamento selvagem (1962), de Lvi-Strauss. Esse autor foi convidado para participar da ltima reunio e responder s questes levantadas pelos integrantes. Ricoeur foi um dos protagonistas desse tenso encontro. Suas objees ao estruturalismo consistiam principalmente na subordinao da diacronia do evento sincronia da estrutura e na questo do sentido (RICOEUR, 1963).

    Para Lvi-Strauss, os smbolos no portam um significado, um sentido intrnseco. Na anlise estrutural, o sentido no reside nos elementos isolados, mas na sua composio, na maneira como esto combinados em um sistema. Esse procedimento no contribui para a compreenso de si do sujeito cognoscente, pois apenas uma operao sinttica que combina elementos que no so significativos em si mesmos (LVI-STRAUSS, 1963).

    9 Conferir REIS, 2008.

    10 Examinamos esse debate em comunicao apresentada no 5 Seminrio Nacional de Histria da

    Historiografia: biografia & histria intelectual. Conferir MENDES, 2011a.

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    Em contraposio ao estruturalismo de Lvi-Strauss, Ricoeur no concordar com a primazia da combinao de signos em detrimento do sentido (BECQUEMONT, 2008). Para ele, consoante a seu posicionamento hermenutico, o sentido est sempre relacionado e inclui a compreenso de si do sujeito, abarcando tambm a compreenso das coisas que o cercam. Se o sentido no for um segmento da compreenso de si, ele no merece esse nome. O sentido instrui a conscincia, e a linguagem primeiramente um veculo do sentido a ser retomado (RICOEUR, 1963). O etnlogo diz que o filsofo est preocupado com o sentido do sentido, ou seja, um sentido que estaria por detrs do sentido, enquanto, na sua perspectiva, o sentido jamais um fenmeno primeiro, originrio. Para Lvi-Strauss, por trs do de todo sentido h um no sentido, e o contrrio no verdadeiro. A significao sempre da ordem do fenomnico (LVI-STRAUSS, 1963).

    A principal divergncia entre esses pensadores que, para Ricoeur, h sentido na origem, sentido pleno e at excesso potencial de sentido, ao passo que, para Lvi-Strauss, h um caos original por trs do sentido, do ordenamento que os homens atribuem ao mundo. Em suma, para o antroplogo estrutural, h um primado dos signos sobre o sentido, sendo que, para o filsofo, h uma preponderncia do sentido sobre os signos (BECQUEMONT, 2008).

    O mal-entendido entre os autores foi frtil, pois deu testemunho do clima da histria intelectual francesa na dcada de 1960. Nesse momento, a comunicao entre estruturalismo e hermenutica havia fracassado11 (BECQUEMONT, 2008). possvel somar a isso outro episdio da trajetria intelectual ricoeuriana. Em novembro de 1969, Ricoeur concorreu com Michel Foucault a uma cadeira em uma instituio muito prestigiada: o Collge de France. Ambos disputavam o lugar deixado por Jean Hypollite aps sua morte. Seguindo a lgica da instituio, Ricoeur propunha a criao de uma cadeira de Filosofia da Ao, enquanto a proposta de Foucault era pela criao da cadeira de Histria dos Sistemas de Pensamento. A vitria de Foucault nesse embate, segundo Dosse, traduz o triunfo do estruturalismo sobre a hermenutica em fins dos anos de 1960. Foucault havia dialogado com o pensamento estruturalista em sua obra As palavras e as coisas (1966), seu pensamento simbolizava modernidade e inovao e

    11 Se verdade que o estruturalismo predominava no contexto francs dos anos de 1960, isso no

    acontecia sem que esse paradigma fosse questionado. Alm do duelo entre Ricoeur e Lvi-Strauss, F. Dosse elenca outros combates travados nessa dcada entre autores estruturalistas e pensadores de correntes alternativas: Barthes X Picard; Lvi-Strauss X Gurvitch e Lvi-Strauss X Sartre (DOSSE, 1993, v. 1).

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    estava em sintonia com o esprito maio de 68. Alm disso, o Collge j contava com outros professores alinhados com o estruturalismo, como Lvi-Strauss, Braudel e, posteriormente, Barthes (1975) e Dumzil (DOSSE, 2008).

    No obstante esses enfrentamentos e desencontros, Ricoeur no ir rechaar o mtodo estruturalista. Aps esse confronto inicial, a postura do filsofo no ser a de meramente opor estruturalismo e hermenutica. Seguindo seu procedimento tpico, Ricoeur ir desfazer a antinomia entre ambos os paradigmas com vistas a construir uma mediao entre eles. Ele v o empreendimento estruturalista como algo legtimo, embora no deixe de apontar seus limites. Sua proposta a de uma articulao que de forma alguma seria um ecletismo entre hermenutica e estruturalismo (CI: 49). Ele chegou mesmo a afirmar que no possvel fazer hermenutica prescindindo da inteligncia estrutural (RICOEUR, 1963). Esse projeto se tornar mais explcito no esforo ricoeuriano de desmanchar a antinomia entre explicao e compreenso e entrela-las num mesmo crculo hermenutico.

    Muita coisa ainda ficou por ser dita a respeito da relao entre estruturalismo e hermenutica. Iremos voltar a tocar nesse assunto ao analisarmos o conceito de linguagem em Ricoeur numa comparao com as teses do giro lingustico, movimento no qual a lingustica estrutural tem destaque.

    Mais do que apenas responder ao estruturalismo, Ricoeur faz considerveis concesses a esse paradigma, incluindo-o em sua hermenutica, que outrora j havia recebido tambm o enxerto da fenomenologia. A anlise dessa operao ser pertinente, pois nos permitir investigar uma importante e original contribuio de Ricoeur para a histria da hermenutica. Ademais, desde a dcada de 1970, historiadores como Paul Veyne, Michel de Certeau e Hayden White colocaram em relevo a dimenso textual da operao histrica. Ainda que estejamos nos primeiros passos de nossa jornada, cabe, desde j, a pergunta: se a histria um discurso, para Ricoeur, o que um texto?

    Para que fique mais ntida a originalidade desse procedimento, ser frutfera a realizao de um breve excurso sobre a histria da hermenutica.

    A hermenutica tradicionalmente definida como a arte de ler e interpretar textos. Seu campo abrange a filologia clssica, a exegese bblica e a hermenutica jurdica. A palavra hermenutica uma substantivao do verbo grego hermeneuien, que em sua origem significa traduzir, interpretar, explicar e exprimir (DOMINGUES, 2004, p. 346). Nessa acepo, ela tem como tarefa trazer compreenso, trazer luz, decifrar o sentido. Sua aplicao se d em passagens obscuras de um texto, nas

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    mensagens cifradas dos orculos, na inteno profunda de um legislador ao formular uma lei.

    A partir de Schleiermacher (1768-1834), a hermenutica teve seus horizontes expandidos. Esse autor buscou lanar as bases para uma hermenutica geral. Schleiermacher apontado como o autor de uma revoluo copernicana no campo hermenutico, ao ter deslocado o cerne do trabalho da interpretao do objeto para o sujeito. A hermenutica deixaria de ser determinada pela natureza heterognea dos objetos aos quais ela se dirige (diversos tipos de textos) para ser marcada pela estrutura do sujeito ou esprito em sua unidade. O hermeneuta alemo ambicionava fixar regras gerais de interpretao que fossem aplicveis a todos os campos textuais. desse autor o famoso adgio h hermenutica, onde houver no compreenso e tambm a romntica ambio de, superando a distncia cultural, compreender um autor to bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu (SCHLEIERMACHER apud TA: 87).

    Um ponto de inflexo importante foi a aplicao da hermenutica s cincias humanas, algo que data da segunda metade do sculo XIX e remonta a autores como J.G. Droysen, W. Dilthey e M. Weber. Uma das principais caractersticas dessa interao foi a distino metodolgica entre explicao e compreenso introduzida pelo historiador alemo Droysen, mas que fez fortuna na pena do filsofo Dilthey.

    O contexto de Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi marcado pela ascenso do positivismo, programa que buscava estender os mtodos das cincias naturais s humanidades. Isso ocorreria num projeto de unificao das cincias sob o paradigma fisicalista, marcado pelos componentes empricos e formais. O elemento emprico era motivado pela exigncia de aproximar-se dos fenmenos tendo como base as notas da observao e da experincia. J o elemento formal, ou matemtico, era motivado pela necessidade de traduzir essas notas em linguagem calculvel, do nmero e da medida (DOMINGUES, 2004).

    A proposta de Dilthey era defender a autonomia das cincias do esprito, estabelecendo a especificidade de seus mtodos e objetos. Ele buscou estabelecer um estatuto cientfico para as humanidades, 12 mas rejeitou a unidade dos mtodos entre as cincias (REIS, 2003). Para efetivar essa autonomia, ele instituiu uma epistemologia

    12 O contexto positivista era to forte que Dilthey no passaria inclume por ele. O seu esforo em

    fundamentar as cincias do esprito sobre bases cientficas apontado por alguns autores como uma herana positivista em seu projeto (REIS, 2003).

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    da diferena. Uma primeira diferena substancial entre as cincias naturais e as humanas seria ento quanto ao mtodo: enquanto uma explica, a outra compreende, interpreta.

    Nessa teoria, a explicao seria o mtodo prprio das cincias da natureza. Ela se dirige a algo, a um objeto que exterior ao sujeito. Seu objetivo estabelecer nexos causais e leis gerais. As cincias naturais no interpretam a natureza, pois no lhe

    atribuem nenhum sentido subjetivo. J a compreenso, segundo Dilthey, seria mtodo das cincias do esprito. Ela se dirige a um objeto que no completamente alheio ao sujeito e est fundada na empatia e na revivncia (compreenso emptica). A inteno compreender o sentido das expresses e manifestaes humanas atravs de uma identificao emptica entre o sujeito de conhecimento e o objeto-sujeito. Nesse processo, h uma transposio do sujeito de conhecimento para um outro ser humano por meio da mediao de uma obra, pois nesta as possibilidades existentes na alma so trazidas ao entendimento pelas palavras exteriores (DILTHEY, 2008, p. 267). A compreenso parte da expresso exterior (obra) para a vida interior que nela se expressa. Ela se dirige preferencialmente a expresses escritas, pois estas so durveis e comparveis: textos poticos, filosficos, jurdicos, documentos histricos escritos:

    Chamamos compreenso o processo pelo qual as manifestaes sensveis dadas nos revelam a vida psquica mesma; chamamos exegese, a arte de compreender as manifestaes da vida; chamamos hermenutica esta tcnica de interpretao das manifestaes vitais fixadas por escrito. (DILTHEY apud REIS, 2003, p. 193).

    Por meio dessa distino entre objeto e mtodo, Dilthey acreditava fundamentar as cincias humanas, conferindo-lhes autonomia em relao s cincias naturais, uma vez que aquelas empregariam uma metodologia prpria. Para ele, o conhecimento nas cincias do esprito s seria possvel se o eu pudesse se colocar, empaticamente, no lugar do outro. No obstante, a dicotomia entre explicao e compreenso sofreu pesadas crticas que apontavam como principal limitao da hermenutica seu vis intuicionista, psicologista e subjetivista (DOMINGUES, 2004).

    Se uma das principais crticas ao paradigma hermenutico repousava na acusao de psicologismo dirigida compreenso emptica, o enxerto da explicao estrutural na hermenutica foi realizado por Ricoeur justamente com a ambio de despsicologizar a noo de compreenso. Tomaremos como base para discusso desses pontos seu ensaio O que um texto? (1970). Neste ensaio, segundo o prprio

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    filsofo, ele rev seu conceito de hermenutica, que at ento, estava relacionado noo de smbolo, entendido como expresso de duplo sentido (CC e TA).

    Na hermenutica ricoeuriana, texto a fixao ou substituio do discurso oral pela escrita. Essa noo de texto, segundo Ricoeur, demanda uma nova abordagem da dualidade proposta por Dilthey entre a explicao (a princpio limitada s cincias da natureza) e a compreenso (a princpio restrita s cincias do esprito). A proposta ricoeuriana que, entre ambas, a relao no seja antinmica, mas de complementaridade e reciprocidade (TA). 13 Ele aponta para duas vias possveis de anlise dos textos: a explicao estrutural que suspende tanto o referente externo como a figura do autor e se concentra em suas relaes internas, suas estruturas; a abordagem interpretativa hermenutica que no toma o texto como uma estrutura fechada em si mesma, mas o restitui ao dilogo e a comunicao viva, interpretando-o. Segundo Ricoeur, a explicao estrutural no apenas possvel, como legtima. Ao tratar o texto em suas estruturas internas, a lingustica contrariaria Dilthey, ao mostrar como possvel adotar procedimentos explicativos nas cincias humanas sem que isso signifique a importao de modelos epistemolgicos das cincias da natureza. A explicao empregada pela cincia da linguagem provm do campo signos, isto , do interior das humanidades e no est relacionada deduo de leis gerais (TA). Em suma, um enfoque objetivante, analtico, explicativo, do texto, segundo uma concepo no causal, mas estrutural da explicao (AI: 53). Uma outra possibilidade de anlise a via interpretativa que abre espao para a significao e os mltiplos sentidos, para que seja encadeado um discurso novo no discurso do texto, j que ele no est fechado em si mesmo. Nessa vertente, o leitor apropria-se do texto e compreende melhor a si mesmo. A compreenso de si passa pelo caminho da compreenso dos signos de cultura. Esse processo ocorre no momento da leitura quando o texto sai de seu quase-mundo sem sujeito e retorna ao mundo da ao, ao mundo da vida, onde o sujeito o leitor (TA). Embasado nessas posies, Ricoeur ir propor seu conceito de interpretao. Nele, a noo de apropriao tem um lugar de destaque. Por apropriao o filsofo francs entende que a interpretao de um texto se completa na interpretao de si de

    13 Para tomar o cuidado de no sermos anacrnicos, diramos que, no contexto do sculo XIX, a distino

    entre explicao e compreenso era importante para o projeto diltheyano de fundamentao das cincias humanas. No sculo XX, estas cincias j estavam fundamentadas, o que demandava, portanto, uma reviso a respeito da dicotomia em questo.

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    um sujeito que doravante se compreende melhor, se compreende de outro modo, ou mesmo comea a se compreender (TA: 152). Aqui, a anlise estrutural tambm desempenha um papel importante, pois concebida como uma etapa necessria entre uma interpretao ingnua, psicologizante e superficial e outra interpretao, crtica e

    profunda. A inteno de Ricoeur com isso colocar explicao e compreenso (interpretao) em um mesmo arco hermenutico, integrando-as, sem antagonismos entre si, numa concepo de leitura como retomada de sentido. A anlise estrutural importante para o filsofo na medida em que ela convida a compreender o texto no por um desvendamento divinatrio da inteno do autor, mas pelas suas prprias regras, por suas estruturas intratextuais. Explicar um texto destacar suas estruturas, suas relaes internas de dependncia que constituem sua dimenso esttica. Interpretar um texto trilhar o caminho de pensamento aberto por ele, se colocar em marcha rumo a seu referente. no momento da leitura que explicao e interpretao se entrelaam. Vamos concluir esse tpico com a avaliao de Ricoeur a respeito do estruturalismo:

    Fiz sempre uma grande diferena entre uma filosofia estruturalista e um estudo estrutural de textos determinados. Aprecio consideravelmente esta ltima abordagem, porque uma maneira de fazer justia ao texto e de o levar ao melhor das suas articulaes internas, independentemente das intenes do autor. (...) Distingo isto de uma filosofia estruturalista, que, da sua prtica, extrai uma doutrina geral em que o sujeito eliminado da sua posio de enunciador do discurso (...) Estou numa relao conflituosa com o estruturalismo, que me parece atingir seu nvel mais elevado em Lvi-Strauss, aquele, na escola estruturalista, cuja obra mais respeito (CC: 110-111).

    1.2 Questes da historiografia francesa contempornea

    Depois desse olhar mais abrangente sobre um episdio da paisagem intelectual francesa, julgamos ser prudente comear a afunilar nosso caminho rumo s questes historiogrficas. Durante a hegemonia estruturalista, a obra ricoeuriana no foi bem recebida na Frana, porm, a partir da dcada de 1980 e da publicao de Tempo e narrativa (3 tomos, 1983-1985), esse quadro mudou, possibilitando uma melhor acolhida e reconhecimento do filsofo. Nesse mesmo perodo, a situao da historiografia francesa contempornea era diagnosticada por alguns com os termos tempo de incertezas e crise epistemolgica (CHARTIER, 2002). Em 1988, foi

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    publicado um editorial na Revista dos Annales que comea a discutir o contexto de crise da disciplina. Num primeiro momento, sustentava-se que havia uma crise geral nas cincias sociais em virtude do enfraquecimento dos paradigmas ento dominantes (estruturalismo e marxismo), mas que, apesar disso, a crise no atingia diretamente a historiografia. Esse editorial assim conclua: No nos parece chegado o momento de uma crise da histria, cuja hiptese, com demasiada comodidade, alguns aceitam (apud CHARTIER, 2002, p. 61). Dizia-se que a historiografia era um campo sadio e vigoroso, pois havia multiplicao dos objetos de pesquisa e uma produo abundante, embora a disciplina estivesse atravessando um perodo de incertezas.

    Segundo Delacroix, essa recusa inicial da crise foi um mecanismo de defesa dos historiadores dos Annales, um dispositivo empregado para tentar assegurar a identidade do grupo e sua hegemonia na historiografia francesa. Na anlise desse autor, o tournant critique [guinada crtica] teria consistido num remodelamento do programa epistemolgico dos Annales, adaptando-o para responder s inquietaes do fim de sculo. A guinada crtica vai reavaliar at mesmo um dos pontos fulcrais do projeto annaliste, a aliana e interdisciplinaridade com as cincias sociais (DELACROIX, 1995).

    Em O mundo como representao, artigo publicado originalmente em 1989 na Revista dos Annales, Chartier14 ir sustentar que o tempo de incertezas e a crise epistemolgica da historiografia se explicam menos em virtude da crise geral das cincias sociais do que por mudanas e deslocamentos operados no interior da disciplina. Para mapear essas transformaes, vamos nos servir de um outro texto desse historiador que tambm trata sobre o tema, A histria entre narrativa e conhecimento (1994). Fica patente que, a partir do incio da dcada de 1990, a postura j no ser mais a de negar a crise. No que tange aos deslocamentos tericos, Chartier destaca os que vo das estruturas s redes, dos sistemas de posies s situaes vividas, das normas coletivas s normas singulares (CHARTIER, 2002, p. 83).

    Chartier prossegue seu diagnstico apontando para dois desafios lanados historiografia pelos flancos do Atlntico. De um lado, nos EUA consolidou-se o chamado linguistic turn ; de outro, na Frana, h uma renovao da histria poltica. Em

    14 Apesar de Delacroix no considerar Chartier como integrante do grupo motor do tournant critique,

    iremos basear nossa anlise em seus textos. Embora ele possa no ser considerado como um historiador dos Annales, Chartier possui muitas afinidades com os historiadores desse grupo, tendo publicado diversos textos em sua revista. Talvez, o indicador mais claro da afinidade entre a posio terica de Chartier e a dos Annales seja a defesa do historiador francs do vnculo entre histria e cincias sociais. Esse um ponto fundamental no programa annaliste desde a sua fundao, por M. Bloch e L. Febvre.

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    sua viso, o linguistic turn repousa numa compreenso da linguagem como um sistema fechado de signos. Nessa lgica, a construo do sentido se d atravs de um jogo impessoal entre signo e significante, num processo que no tem qualquer relao com a

    inteno do sujeito. Assim, a lngua tem um funcionamento automtico e impessoal. Acrescente-se a isso a afirmao de que no h uma realidade objetiva que seja externa ao discurso, ou seja, a linguagem no teria referente extradiscursivo, o que culmina em uma relativizao das fronteiras entre texto e contexto. Na contramo do giro lingustico, a renovao da histria poltica na Frana vai valorizar a parte refletida e consciente da ao e a liberdade do sujeito. As duas primeiras geraes da Escola dos Annales se afastaram da anlise poltica, pois diziam que a Escola Metdica escrevia uma histria poltica que era psicologista, biogrfica, elitista, factual e nacionalista (JULLIARD, 1988). No final do sculo XX, houve uma renovao da histria poltica em virtude de uma nova compreenso do poltico que atinge at o cotidiano. Essa esfera no possui mais fronteiras fixas e de modo algum se restringe ao quadro estatal ou das elites, mas est relacionada s mais distintas reas da vida coletiva. Para esse grupo de historiadores (R. Rmond, F. Sirinelli, J.P. Rioux), o poltico visto como a esfera mais globalizante e reveladora da sociedade (CHARTIER, 2002).

    O pedregoso percurso terico-metodolgico que a historiografia francesa percorreu ao longo do sculo XX teria a conduzido, segundo Chartier, beira da falsia. O giro lingustico, juntamente com os chamados retornos do acontecimento e da narrativa escrita da histria so vistos por ns como o ncleo duro desse perodo de incertezas e inquietaes da historiografia. Tais questes so importantes para o entendimento do debate sobre narrativa e representao que faremos ao longo da dissertao. Em virtude disso, faremos a seguir uma abordagem mais detida de seus principais aspectos. Mais do que realizar um balano ou estado da arte, nosso alvo nesses tpicos explicitar, ou ao menos indicar, qual a posio de Ricoeur sobre cada um desses temas, a partir de um dilogo com os apontamentos dos outros autores.

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    1.3 O giro lingustico

    A tarefa de pesquisar a gnese, ou nascimento de um movimento intelectual nem sempre uma misso fcil de empreender, ainda mais quando esse movimento mltiplo, heterogneo e suas ideias esto espraiadas em autores das mais distintas orientaes e tradies tericas. Essas palavras aplicam-se perfeitamente quilo que ficou conhecido como giro lingustico no contexto contemporneo.

    A guinada lingustica possui mltiplos comeos. Um episdio marcante foi a publicao da coletnea de 28 artigos, organizada por Richard Rorty, que fornece um bom indicador do estado da discusso no terreno da filosofia analtica: The Linguistic Turn. Recent Essays in Philosophical Method (1967). Na introduo ao volume, Rorty apresenta seu propsito como sendo oferecer material para uma reflexo sobre a mais recente revoluo filosfica, a empreendida pela filosofia lingustica. O autor diz que por filosofia lingustica entende o ponto de vista segundo o qual os problemas filosficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos) reformando a linguagem ou compreendendo melhor a que usamos atualmente (RORTY, 1990, p. 50). Em suma, os filsofos lingusticos argumentam contra qualquer mtodo no lingustico de se resolverem problemas filosficos, o que interditaria a proposio de teses filosficas cujos pressupostos estivessem para alm da linguagem.

    Os historiadores franceses costumam explicar o linguistic turn como um movimento que emergiu no outro lado do Atlntico, nos Estados Unidos, e que, seguindo a trilha aberta por Saussure, concebe a linguagem como um sistema fechado de signos, cuja significao produzida por si mesma, sem a conscincia ou escolha do sujeito falante. No raro encontrarmos leituras redutoras ou simplistas do linguistic turn por parte dos historiadores a oeste do Reno. Para Chartier, existe nessa perspectiva terica a perigosa reduo do mundo social a uma pura construo discursiva, a meros jogos de linguagem (CHARTIER, 2002, p. 10). J Franois Dosse chega a ir mais longe ao dizer que:

    Os anglo-saxes chamam de linguistic turn a importao em terras norte-americanas da voga do paradigma estruturalista que dominou a cena francesa durante os anos sessenta e que se expandiu com relativa rapidez em direo s universidades norte-americanas sob a denominao de ps-estruturalismo (DOSSE, 2004, p. 20).

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    Aps afirmar isso, Dosse declara que a essa influncia nitidamente francesa dos autores ps-estruturalistas (Foucault, Derrida e Barthes) somou-se uma influncia endgena, anglo-saxnica, proveniente da filosofia analtica (Danto, Rorty, Austin, Searle). Nos domnios da histria, a virada lingustica empregada para designar um amplo feixe de trabalhos que afirmam o papel da linguagem na construo das identidades e das realidades sociais, em contraposio ideia segundo a qual a linguagem serviria estritamente para representar a realidade como um medium neutro entre as palavras e as coisas. Nessa perspectiva, a realidade histrica no existe fora da linguagem, mas por ela organizada e construda em um texto que deve ser decifrado. Assim, o historiador no se colocaria mais a tarefa de reconstituir um real pr-existente e independente da linguagem. Essa interpretao que associa o giro lingustico ao relativismo motivou uma recusa desse movimento pela maioria dos historiadores franceses que se detiveram sobre questes epistemolgicas, como Chartier, Noiriel e Dosse15 (DELACROIX, 2010).

    Na base da leitura francesa sobre o linguistic turn, 16 esto as proposies de Ferdinand de Saussure e sua lingustica estrutural. Seu modelo lingustico colocado como cerne e base unificadora do estruturalismo, embora no deixe de ser curioso que o autor quase no tenha empregado o conceito de estrutura, preferindo o de sistema (DOSSE, 1993, v. 1). Em seu Curso de Lingustica geral (1916), ele estabeleceu a clebre distino entre langue [lngua] e parole [fala], numa busca de distanciamento da lingustica praticada no sculo XIX, que consistia na anlise da evoluo dos significados ao longo da histria. A lngua17 algo externo ao indivduo, que por si s no pode cri-la, nem tampouco modific-la. Ela uma instituio que o sujeito apreende e por ela submetido. A lngua um produto social, um sistema de valores constitudo por diferenas puras (jogo entre significante e significado), e no por contedos de vivncias. De forma distinta, a fala um ato ligado vontade

    15 Segundo Delacroix, preciso separar as posies cticas e relativistas do linguistic turn que

    questionam a distino entre histria e fico de um tournant langagier [giro linguageiro], presente na histria dos conceitos de Koselleck ou na Escola de Cambridge de Pocock e Skinner. O giro linguageiro acentua a importncia da linguagem para a compreenso do poltico, mas no redundaria em relativismo e ceticismo (DELACROIX, 2010). 16

    Talvez o leitor estranhe a ausncia de referncia Meta-histria (1973), de White, nesse momento. Contudo, preferimos discuti-la mais profundamente no Captulo 3 desta dissertao, para, ento, podermos compar-la mais de perto com as posies ricoeurianas. 17

    no campo da linguagem que ocorre a bifurcao entre lngua e fala. A linguagem uma faculdade comum a todos, ao passo que a lngua ao mesmo tempo um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social para permitir o exerccio dessa faculdade nos indivduos (SAUSSURE, 1977, p. 17).

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    individual, ela a atualizao da lngua, ou seja, o uso que o indivduo faz do repertrio da lngua para exprimir seu pensamento pessoal. Este uso est submetido s normas e cdigos da lngua (SAUSSURE, 1977; DOSSE, 1993, v. 1; COSTA LIMA, 1970).

    Segundo Saussure, o estudo da linguagem comporta duas partes: uma essencial e tem como objeto a lngua, que social e externa vontade do indivduo, ao passo que a outra parte toma por objeto a fala, que secundria e considera a face individual da linguagem. No obstante, os dois objetos so interdependentes e se implicam mutuamente.

    Deriva dessa oposio uma outra, que subordina a diacronia sincronia. No eixo sincrnico, h uma anlise cientfica da lngua que se concentra em seus elementos internos. Nessa anlise, a passagem do tempo deve ser colocada entre parnteses. A lingustica estuda a lngua como um sistema, sem se preocupar com as transformaes que ocorrem ao longo do tempo. No eixo diacrnico, esto as mudanas externas lngua que acontecem em uma sucesso temporal. Essas mudanas, segundo Saussure, no interferem nas regras de funcionamento da lngua:18 sincrnico tudo o que se refere ao aspecto esttico de nossa cincia, diacrnico tudo o que diz respeito s evolues (SAUSSURE, 1916 apud COSTA LIMA, 1970, p. 23). Bem entendido, Saussure no defende uma supresso da diacronia em nome da sincronia. Parece-nos que a proposta do autor foi uma subordinao, em que prevalece o eixo sincrnico, pois nele que so definidas as regras que se sobrepem aos falantes.

    O outro ponto de inflexo introduzido por Saussure o fechamento da lngua sobre si mesma. Numa concepo tradicional, o signo lingustico une a palavra s coisas, a linguagem remete a uma realidade extralingustica, ao referente. Todavia, para o linguista de Genebra, o signo envolve apenas uma relao entre significado (conceito; sentido) e significante (imagem acstica; palavra), sem que haja referncia a algo externo lngua (DOSSE, 1993, v. 1). Nessa teoria, o lao que une o significado ao significante arbitrrio, uma conveno que no depende da

    18 O exemplo do jogo de xadrez dado por Saussure torna bastante clara a diferenciao entre o interno

    (eixo sincrnico) e o externo (eixo diacrnico): relativamente fcil distinguir o externo do interno (...) Se eu substituir as peas de madeira por peas de marfim, a troca ser indiferente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o nmero de peas, esta mudana atingir profundamente a gramtica do jogo (...) interno tudo quanto provoca mudana do sistema em qualquer grau (SAUSSURE, 1977, p. 32).

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    conscincia ou livre escolha do sujeito falante: 19 Queremos dizer que o significante imotivado, isto , arbitrrio em relao ao significado, com o qual no tem nenhum lao natural na realidade (SAUSSURE, 1977, p. 83, grifo do original). Diante disso, a questo a ser formulada : seria possvel assumir em historiografia uma concepo de linguagem que seja fechada em si mesma e cuja produo de sentido escapa inteiramente conscincia do sujeito?

    Todavia, possvel fazer uma outra leitura, mais abrangente que a francesa, sobre o giro lingustico. O filsofo brasileiro Manfredo Oliveira realizou um profundo mergulho na histria da filosofia para avaliar o impacto da reviravolta lingustico-pragmtica na filosofia contempornea. O primeiro sentido que essa guinada tem bem lato e consiste no fato de a linguagem ter se tornado, no sculo XX, a questo central da filosofia. Esse conceito aparece, ento, no cerne do debate dos mais diferentes ramos do saber filosfico, dentre os quais citamos: teoria do conhecimento, epistemologia, lgica, antropologia filosfica e tica. A nfase na linguagem permeia tanto a filosofia continental quanto a filosofia analtica (OLIVEIRA, 2006).

    Nessa compreenso, o giro lingustico inclui um deslocamento epistemolgico. A linguagem deixa de ser um objeto para estar na esfera dos fundamentos do conhecimento. Esse movimento elevou a filosofia da linguagem condio de filosofia primeira. 20 Isso quer dizer que a pergunta que guiava a filosofia moderna sobre as condies de possibilidade do conhecimento girou rumo linguagem e se transformou em uma questo sobre as condies de a linguagem produzir sentenas intersubjetivamente vlidas sobre o mundo. A pergunta pelo sentido lingustico de uma proposio precede a indagao sobre a verdade e a validade dos juzos sobre o mundo. Numa palavra, no existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, no existe mundo que no seja exprimvel na linguagem. A linguagem o espao de expressividade do mundo, a instncia de articulao de sua inteligibilidade (OLIVEIRA, 2006, p. 13).

    A longa estrada de reflexes sobre a linguagem divida por Manfredo Oliveira em quatro vias, mas percorreremos, a passos rpidos, apenas as duas primeiras. A

    19 Prova disso, para Saussure, que no h nada no significante m-a-r que remeta necessariamente ao

    significado que a ele associamos: uma larga extenso de gua salgada. Essa relao arbitrria, o significante m-a-r poderia ser substitudo por qualquer outro. Acresce que nenhum indivduo consultado para que ela se estabelea. 20

    Segundo K.O. Apel, esse posto de filosofia primeira outrora foi ocupado pela pesquisa sobre a natureza ou essncia das coisas ou dos entes (ontologia), pela reflexo sobre as representaes ou conceitos da conscincia ou da razo (teoria do conhecimento).

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    primeira intitulada pelo autor como semntica tradicional e inclui autores como Plato, Aristteles, Frege, Husserl, Kutschera, Carnap e o primeiro Wittgenstein. A segunda comea com a reviravolta pragmtica da filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein e tem continuidade nas teorias dos atos de fala, desenvolvidas por J. Austin e J. Searle. Faremos um esforo para tentar sintetizar o mago dessas duas perspectivas.

    Na semntica tradicional, desde Plato, as palavras apresentam as essncias das coisas. Uma palavra adequada quando mostra o ser da coisa. Na teoria platnica, existe um isomorfismo entre a estrutura da lngua e a estrutura ontolgica, por isso, a construo de uma lngua no arbitrria e h uma correspondncia entre linguagem e ser. Segundo Oliveira, essa a tese central de uma longa tradio na histria do pensamento ocidental que apresenta uma espcie de realismo convencional.

    Ora, a discusso sobre o conceito de realismo um dos alicerces do nosso trabalho. Nos captulos seguintes, iremos destrinchar essa noo, especificando como ela pode ser aplicada s peculiaridades do conhecimento histrico e quais so seus limites. Por ora, vamos explorar o conceito de forma bem ampla, deixando claro que esse no ainda o realismo crtico que defendemos existir na teoria da histria de Ricoeur.

    Oliveira indica que o realismo convencional uma teoria da reproduo (cpia). Este consiste em considerar que o objeto de conhecimento pr-dado e exterior ao pensamento do sujeito. No campo da linguagem, o realismo afirma que as expresses lingusticas possuem uma funo semntica de designao dos objetos, ou de suas relaes, qualidades e atributos. Em outras palavras, a linguagem corresponde a um objeto ou a um estado de coisas. Um enunciado verdadeiro quando designa um fato de forma adequada (OLIVEIRA, 2006).

    As filosofias de Ludwig Wittgenstein so usadas por Oliveira para fazer a transio entre duas vias das reflexes sobre a linguagem, a semntica tradicional e a reviravolta pragmtica. O Tractatus Logico-Philosophicus (1922) colocado como o ltimo representante da primeira via, enquanto as Investigaes filosficas (1953) inauguram a segunda. Como j delineamos os aspectos gerais da semntica tradicional, concentremo-nos na reviravolta pragmtica.

    Sem dvida, j no prefcio ao Tractatus, o autor defendia que os problemas filosficos resultam de uma m compreenso da lgica da linguagem. Nessa obra, o vienense ainda tomava a linguagem em uma acepo designativa e instrumentalista. J

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    nas Investigaes filosficas, o filsofo prope que a atitude metafsica na anlise da linguagem deva ser substituda por uma abordagem pragmtica. Isso quer dizer que preciso renunciar tentativa de descobrir o que supostamente est oculto sob a linguagem e abrir os olhos para desvendar o modo como ela funciona.

    Wittgenstein critica a tradio filosfica que postulava existir um mundo em si, independente da linguagem, o qual deveria ser por ela copiado. Para ele, jamais temos acesso ao mundo em si, mas s temos mundo na linguagem. Mais do que mero instrumento de comunicao, a linguagem condio de possibilidade, constitutiva do conhecimento (OLIVEIRA, 2006).

    A linguagem, diz o segundo Wittgenstein, uma atividade humana como andar, respirar ou comer. Portanto, h uma ligao estreita entre linguagem e ao, de modo que a prpria linguagem considerada como uma forma de ao. O resultado disso que no possvel pensar sobre o agir humano sem considerar a linguagem e vice-versa. Dessa forma, no h uma ciso entre a linguagem e a prxis social. Por isso, a pergunta sobre o significado das expresses lingusticas no deve ser respondida com uma reflexo terica sobre a estrutura da linguagem, mas com uma investigao sobre o modo como ela funciona, sobre seus usos em um determinado contexto comunicativo. Essas formas de funcionamento so mltiplas e variadas.

    Nessa perspectiva, o conceito de jogos de linguagem central. Com ele, Wittgenstein buscou mostrar que a significao das palavras no depende de sua designao ou referncia a objetos extralingusticos. O que determina a significao o contexto de uso das palavras. Diferentes contextos demandam regras distintas. Os jogos de linguagem mostram como a linguagem funciona. Assim, o foco desliza da semntica rumo pragmtica (OLIVEIRA, 2006).

    No pretendemos entrar na complexidade dessa categoria, para a qual o prprio Wittgenstein no chegou a formular uma definio fechada e estvel. Nas Investigaes filosficas, h mais exemplos prticos que teorizaes sistemticas sobre os jogos de linguagem.21 No deixa de ser instigante perceber que Wittgenstein, assim como Saussure, assemelha o funcionamento da linguagem ao de um jogo.22 Com efeito, para que essa noo no fique, em nosso texto, desprovida de

    21 Segundo Oliveira, Wittgenstein se recusa a dar uma definio do que seria o jogo de linguagem para

    evitar incorrer em um essencialismo, que apontaria o substrato essencial a tudo que recebe o nome de linguagem. Em vez disso, o autor das Investigaes filosficas prefere falar em uma semelhana de famlia entre os diferentes usos das palavras (OLIVEIRA, 2006). 22

    Cf. nota 12.

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    contornos inteligveis, citemos o primeiro exemplo fornecido pelo filsofo vienense. Com a situao simples, a seguir, ele pretende demonstrar que a linguagem no depende da designao de objetos para obter seu funcionamento. A significao das palavras depende de seu emprego pragmtico, que, no exemplo em questo, diz respeito relao dos objetos a serem trazidos para uma construo:

    A linguagem deve servir para o entendimento de um construtor A com um ajudante B. A executa a construo de um edifcio com pedras apropriadas; esto mo cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhe as pedras, e na sequncia em que A precisa delas. Para esta finalidade servem-se de uma linguagem constituda das palavras cubos, colunas, lajotas, vigas. A grita essas palavras; - B traz as pedras que aprendeu a trazer ao ouvir esse chamado (WITTGENSTEIN, 1999, p. 28).

    Seja qual o for o ponto de partida que se escolha para caracterizar o giro lingustico, algumas teses parecem ser centrais: A) a linguagem no um meio transparente de designao, capaz de realizar uma cpia que corresponda exatamente aos objetos no mundo; B) a relao entre os significados produzidos pela linguagem e a realidade no natural; C) no possvel ter acesso ao mundo por outro meio que no a linguagem; D) a linguagem mais do que um mero objeto do conhecimento, ela seu fundamento, o que lhe d condio de possibilidade.

    Para os propsitos de nossa investigao, esse breve e lacunar panorama sobre o giro lingustico ser importante por duas razes: 1) para melhor situar a concepo da linguagem em Paul Ricoeur, o que ser feito no item seguinte, e para avaliar os impactos obtidos pela virada lingustica na historiografia contempornea, que desembocou numa atitude antirrealista entre a narrativa histrica e o passado. Desde j, podemos apontar que algumas das teses da guinada lingustica esto na base das teorias de R. Barthes e H. White. Em suma, o tipo de relao existente entre a linguagem e a realidade um dos pilares de nossa discusso sobre o realismo crtico de Ricoeur.

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    1.4 A linguagem na filosofia de Paul Ricoeur

    A hermenutica, tradio filosfica qual Ricoeur reivindica pertencimento, desde sua definio clssica como a arte de ler e interpretar textos, est intimamente ligada linguagem. Mesmo quando ainda era compreendida como uma tcnica auxiliar, a hermenutica tinha como um de seus propsitos a compreenso do sentido de um texto por meio de uma mediao operada pela linguagem. Um dos pontos de partida para que haja um problema hermenutico a polissemia das palavras, quando estas so consideradas fora de seu uso em um determinado contexto (RICOEUR, 2008).

    Schleiermacher fazia da polissemia o mote da interpretao. Segundo ele, para que haja hermenutica, necessrio que haja uma ambiguidade no sentido das palavras. Essa multiplicidade de significados gera o mal-entendido, a no compreenso23 que a interpretao visa superar ao compreender um autor to bem, ou melhor, do que ele do compreendeu a si mesmo (SCHLEIERMACHER apud RICOEUR, 2008, p. 27). Para esse autor, o ofcio interpretativo se dava em duas vias:

    1) Interpretao gramatical: nessa via, o homem, com sua atividade, desaparece e surge apenas como rgo da lngua (SCHELEIERMACHER, 2001, p. 93). Ela busca compreender uma expresso ou uma obra como parte do contexto lingustico de uma poca que comum ao autor e ao leitor primitivo.

    2) Interpretao tcnica ou psicolgica: nessa via, a lngua, com seu poder determinante, desaparece e surge apenas como rgo do homem (SCHELEIERMACHER, 2001, p. 93). Ela busca compreender a individualidade da obra e a particularidade estilstica do autor remontando ao esprito que anima e d feio ao texto (DOMINGUES, 2004). Nessa etapa, visa-se compreenso do esprito que trazido tona e expresso pela linguagem.

    Essas duas vias do trabalho de interpretao apontadas por Schleiermacher mostram que a hermenutica visa compreender o sentido de um discurso como a expresso de algo que foi pensado por meio da linguagem. A compreenso no tem outro objeto seno a linguagem e tudo o que deve ser pressuposto na hermenutica apenas a linguagem (SCHLEIERMACHER, apud GRONDIN, 1999, p. 125). Com

    23 Segundo Grondin, antes de Schleiermacher a hermenutica buscava interpretar principalmente as

    passagens obscuras dos textos. Este autor, porm, universaliza o mal-entendido, dizendo que ele est presente em cada ponto do texto. A consequncia que nenhuma interpretao definitiva, nenhuma dissolve esse fundo de no compreenso (GRONDIN, 1999).

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    efeito, o esboo do mtodo interpretativo desenhado anteriormente remete a uma dupla concepo de linguagem. Na interpretao gramatical, a linguagem tomada em sua acepo supraindividual, ou seja, ela vista como uma totalidade que envolve tanto o autor como ao seu pblico original. Nesse momento, o sentido da obra ser compreendido como uma expresso desse contexto lingustico compartilhado, e no como uma manifestao da alma do autor. Todavia, para a hermenutica de Schleiermacher, o sentido expresso na linguagem no apresenta somente essa dimenso supraindividual e annima. A linguagem tambm testemunho de uma alma individual. Na interpretao tcnica ou psicolgica, a viso sinttica e formal da linguagem ultrapassada em direo compreenso do esprito individual do autor que se expressa por meio da linguagem (GRONDIN, 1999). Essa alma individual que confere a especificidade do estilo que cada autor imprime em sua obra.

    Um segundo ponto de inflexo na histria da hermenutica se deu no sculo XX com as obras de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Na leitura de Ricoeur, esses alemes empreenderam uma segunda revoluo copernicana no campo hermenutico, ao deslocar o eixo da compreenso que outrora estava no terreno da epistemologia24 e metodologia para o solo ontolgico (RICOEUR, 2008). Esse movimento teve importantes implicaes no campo da linguagem.

    Para Heidegger, sobretudo na segunda fase de sua filosofia, a linguagem deve ser situada onde o ser se desvela, isto , no homem. Isso equivale a localizar a linguagem no fundamento da estrutura de compreenso do ser-a (Dasein). Em suma, a linguagem no um objeto que est diante de ns, mas todo nosso pensar j est articulado linguisticamente. Nessa perspectiva, a linguagem no fechada em si mesma. Ela uma abertura para a compreenso de nossa experincia com o mundo e com as coisas. Nosso ser-no-mundo mediado linguisticamente: O originrio no que falamos uma linguagem e dela nos utilizamos para poder manipular o real, mas, antes, que a linguagem nos marca, nos determina, e nela se d a revelao dos entes a ns, o que s possvel porque (...) a linguagem o evento de desvelamento do ser (OLIVEIRA, 2006, p. 206).

    A linguagem uma das colunas que sustentam a filosofia ricoeuriana. Sobretudo aps sua guinada hermenutica, seus trabalhos dedicaram um espao importante a essa dimenso da vida humana. Suas reflexes acerca do tema

    24 Isso bastante claro na distino entre explicao e compreenso assumida por W. Dilthey em seu

    esforo de fundamentao das cincias do esprito.

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    encontram-se disseminadas nas coletneas de ensaios sobre hermenutica O conflito das interpretaes (1969); Do texto ao (1986); em suas abord