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Page 1: A representação do negro nas artes plásticas … · 1 A representação do negro nas artes plásticas brasileiras: diálogos e identidades Renata AP. Felinto dos Santos Artista

Curso  Práticas  Pedagógicas  da  Lei  10.639/03:  Rediscutindo  as  relações  étnicorraciais  em  sala  de  aula.  

Aula:  Artistas  Visuais  Negros:  Biografias  e  Visualidades  em  sala  de  aula  –  08/06/2013  

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A representação do negro nas artes plásticas brasileiras: diálogos e identidades

Renata AP. Felinto dos Santos

Artista visual, pesquisdora e doutoranda em Artes Visuais pela UNESP

A partir da Lei 10.639/03, que obriga o ensino sistemático da História das

Culturas Africanas e Afro-Brasileira em sala de aula, as Artes Plásticas, passam a

ser uma das protagonistas na transmissão da cultura afrodescendente às

gerações em formação. Também chamada Educação Artística, as Artes Plásticas

devem introduzir a produção artística, até então chamada de “afro-brasileira”,

como construtora de “fazeres” e “saberes”. Se antes, o foco no ensino de Artes

era a produção modernista, agora o trabalho do professor de Educação Artística

deve, obrigatoriamente, extrapolar esta escolha e limitação, passando a investigar,

presentificar e apresentar a produção artística desenvolvida por negros. Nela, a

marca do negro está ora tendo o negro como representador, ora como

representado.

Há artistas negros primorosos que, em poucas obras, ou em nenhuma

delas, teve o negro como seu tema. Os motivos dessas não representações de

seus iguais são diversos e vão desde o desejo dos próprios artistas em não

representar essa temática, em detrimento de outras, até as adversidades dos

meios nos quais esses artistas viviam1. Assim, serão esboçados neste texto como

o negro aparece representado na produção artística brasileira, com foco nos

motivos e contextos destas representações bem como na denominação de cor e

de origem destes artistas.

Para organizar a observação da produção em questão, dividiremos a

representação do negro em três momentos distintos: documental, social e pessoal. 1 Estevão Roberto da Silva, talentoso pintor do século XIX, por exemplo, elegeu para si a natureza-morta como gênero predileto tratado em suas pinturas. Não há conhecimento de uma única pintura desse artista que retrate uma figura humana, o que confirma que em seu caso, o gênero que eternizou o seu talento, foi uma opção, uma vez que outros artistas negros contemporâneos a ele pintaram retratos de negros, como Artur Timotheo da Costa e Emmanuel Zamor.

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Curso  Práticas  Pedagógicas  da  Lei  10.639/03:  Rediscutindo  as  relações  étnicorraciais  em  sala  de  aula.  

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Documental seria toda a produção realizada durante os séculos XVII, XVIII

e XIX; social a produção que abarca a primeira metade do século XX; enquanto

pessoal a produção do fim do século XX até o momento atual.

O momento documental é caracterizado por ser uma produção que abrange

mais detidamente o Brasil e suas peculiaridades como objeto de estudo. A

geografia, fauna, flora, população, modos e costumes brasileiros são os temas

centrais. Parte significativa dessa produção foi realizada por artistas estrangeiros

ou viajantes, que chegaram ao Brasil, geralmente, como contratados com o

objetivo de realizar trabalhos de caráter documental e que envolviam aspectos

específicos da realidade da nova terra que suscitavam grande curiosidade e

interesse por parte dos estrangeiros.

Em 1637, chegam a Pernambuco os artistas holandeses Frans Post (1612-

1680) e Albert Eckhout (1610-1666), contratados do Príncipe Maurício de Nassau.

Post deveria documentar os edifícios, portos, fortificações e a exuberante

paisagem brasileira, enquanto a Eckhout cabia pintar a fauna, a flora e os curiosos

tipos humanos. Post representou o negro como coadjuvante, ele não é o tema

central, mas sim um elemento da composição de suas pinturas, assim como as

árvores ou os animais. Já Eckhout pintou um conjunto de oito pinturas que

retratam tipos humanos encontrados no Brasil, sendo duas delas representações

de negros: Homem Negro e Mulher Negra (1641). Representou esses negros

como habitantes da África Central e não escravizados no Brasil, detalhe que

confere às pinturas tom alegórico.

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(figura 1) Albert Eckhout - Mulher africana, 1637, óleo sobre tela – site do Instituto Itaú Cultural.

No século XVIII, Carlos Julião (1740-1811), oficial militar italiano a serviço

da Coroa Portuguesa, registrou em suas aquarelas as regiões da Bahia, Minas

Gerais e Rio de Janeiro, antecipando o tipo de representação comum no século

XIX que focava o cotidiano das cidades e vilas. Julião nos legou a mais completa

obra sobre costumes brasileiros do século XVIII de que se tem conhecimento até

os nossos dias, incluindo o negro como sujeito de suas festas e não como cativo.

No período barroco, final do século, século XVIII e parte do século XIX, o

filho de portugueses Manoel da Costa Athayde (1762-1830) eternizou a mulher

negra já miscigenada no teto da Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto

(MG), no qual está representada a Nossa Senhora da Porciúncula.

Em 1816, chegaram ao Brasil os artistas da Missão Artística Francesa, que

sedimentam por aqui os paradigmas estéticos europeus que tornaram-se as bases

da produção brasileira daí por diante. Dentre eles, nos interessa Jean-Baptiste

Debret (1768-1848), que como aquarelista registrou o cotidiano da capital do

recém Império, Rio de Janeiro. Nas suas aquarelas a figura do negro assume

importância ímpar e registram situações de trabalho escravo abrangendo também

as relações cotidianas entre senhores e cativos. Outro importante artista-viajante

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foi o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que chegou ao Brasil em

1822, contratado pela Expedição Langsdorff. Em suas aquarelas e litografias o

negro também surge em uma espécie de crônica da cidade do Rio de Janeiro, de

forma distanciada em situações de trabalho, castigo e até mesmo no interior de

um navio negreiro que se supõem não ser verdadeiro dada às posturas dos

retratados.

É no final do século XIX, entretanto, que aparecem os primeiros artistas

negros que abrem caminho para outros negros que são artistas e que

representam a si e à sua cultura. Um deles foi o carioca Artur Timotheo da Costa

(1882-1922). Formado pela Academia Imperial de Belas Artes, diferentemente de

seus contemporâneos negros, conseguiu equilibrar o gosto acadêmico pela

pintura paisagística e o interesse pelos estudos da figura humana, variando seus

modelos entre mulheres brancas e homens e meninos negros. Nas suas pinturas

o rosto negro é o belo a ser estudado em suas linhas, formas e cores, transmitindo

suavidade e delicadeza por meio de sua pincelada, como por exemplo, no trabalho

Retrato de menino.

Arthur Timotheo da Costa – Retrato de menino, s.d., óleo sobre tela – segue no final do texto.

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Ainda no final do século XIX, o negro também foi largamente

registrado através da linguagem fotográfica que gozava de grande prestígio na

época. Entre estes fotógrafos podem ser mencionados o português Christiano

Junior (1832-1902), que montou cenas em seu estúdio fotográfico nas quais os

negros representavam escravos de ganho; e o carioca Militão Augusto de

Azevedo (1840-1905), que realizou fotografias de famílias negras em São Paulo

trajadas à moda da época para assistir às missas na Igreja de Nossa Senhora do

Rosário, freqüentada pela população negra.

No final do século XIX e início do XX, as representações de negros nas

Artes Plásticas caracterizam o momento classificado como social, pois no período

modernista à figura do negro se atribuiu traços de brasilidade. Neste momento, há

duas vertentes de representação mais visíveis: o negro atrelado ao passado

escravista ou como sujeito, que nos é mais interessante.

Zezé Botelho Egas2 e o carioca Pedro Bruno (1888-1949) representam o

negro torturado ou exercendo trabalho escravo. A primeira, na escultura em

bronze Gargalheira (1936), traz um homem castigado com a penitência aplicada

aos fujões recapturados, enquanto, Bruno reproduz a ama de leite em sua tela

Mãe Preta (1940). Resta refletir sobre os motivos que impulsionaram esse tipo de

representação décadas após a abolição da escravidão em um momento de

exaltação da figura do negro.

O italiano Alfredo Volpi (1896-1988), o paulistano Candido Portinari (1903-

1962) e o lituânio Lasar Segall (1891-1957), três dos maiores artistas modernistas

pintaram o negro em situações diversas que exultaram sua história, sua cultura,

sua beleza, sua situação social e sua individualidade. Segall, para esmiuçar a

produção de apenas um deles, pintou telas das mais sensíveis sobre a agonia

social e psicológica sofrida pelo negro no Brasil em telas como Bananal (1927).

Essas representações com forte apelo social demonstram a preocupação dos

artistas do período em adicionar traços de brasilidade às suas obras, além de

incorporar inovações estéticas das vanguardas européias.

2 Dados biográficos desconhecidos.

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Após a guinada inicial modernista, muitos artistas negros sem formação

acadêmica, emergem na cena artística nacional e internacional tomando para si a

empreitada de representar suas heranças culturais e seu modo de viver,

transpondo as barreiras impostas pela academia por meio de sua originalidade,

vivacidade e criatividade. As obras dos cariocas Heitor dos Prazeres (1898-1966)

e de Sérgio Vidal (1945) e do baiano Agnaldo Manuel dos Santos (1926-1962)

nas Artes Plásticas um tipo de espelho que reflete sensações, emoções e

sentimentos interiores, ancestrais, sociais. No caso de Vidal, por exemplo,

representou negros dotados de grande integridade humana se considerados

aspectos como família, trabalho, lazer, afeto, sonho. Com um ideal de vida

distante da realidade de grande parcela da população negra, mas que despertam

esperanças e acalentam o cotidiano massacrante.

A partir de 1990 submergem de ateliês periféricos as representações

apontadas como de caráter pessoal. Interessante notar que através de

“microbiografias” familiares presentes nesse tipo de representação do negro é

possível antever histórias de muitas famílias negras, conferindo a essas

produções uma qualidade “macrobiográfica”: são os caminhos dos negros, que ou

eles os escolheram, ou que, por força das circunstâncias foram levados a eles.

Portanto, a representação pessoal apresenta sensíveis pontos de vista e de

percepção sobre a diáspora africana e suas continuações como é possível

observar nos trabalhos do mineiro Eustáquio Neves (1955) e da paulistana

Rosana Paulino (1967).

Na obra de Neves o negro é protagonista das histórias que conta, como no

caso da série Arturos, de 1995, que recebe esse título por narrar em imagens a

história da família de mesmo nome que vive em Minas Gerais e que expressa na

festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, parte de sua

religiosidade sincretizada. Já Paulino pesquisou nos arquivos fotográficos de sua

família as referências para a criação de muitos trabalhos.

Portanto, a representação do negro nas Artes Plásticas do Brasil, sofre

importantes transformações ao longo dos séculos. São muitas formas de pintar,

desenhar, esculpir e fotografar o negro para os professores de Educação Artística

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apresentarem aos seus alunos, com especial atenção aos conceitos e contextos

contidos nessas representações. Se nas primeiras imagens o negro era

representado alegoricamente visto por olhos estrangeiros, agora são os próprios

negros que dão o tom dessa representação, assumindo seus próprios discursos,

sendo, simultaneamente, criadores e criação de suas histórias pessoais e de seus

antepassados.

Referências bibliográficas

ABDALLA, Antonio Carlos. IN: Heitor dos Prazeres: um pierrô apaixonado na BM&F. (catálogo de

exposição). São Paulo: Espaço Cultural BM&F Brasil, 03 de fev a 18 de mar de 2005.

BELLUZO. Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes: imaginário de novo mundo. São Paulo:

Metalivros, 1994, v.1.

DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura.

São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

LEITE. José Teixeira Leite. Pintores negros do oitocentos. São Paulo: MWM-IFK, 1988.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. A travessia da kalunga grande: três séculos de imagens

sobre o negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.

Referências eletrônicas

LEITE. Marcelo Eduardo. Militão augusto de Azevedo: um olhar particular sobre a sociedade

paulistana (1862-1887). http://www.studium.iar.unicamp.br. Acesso em : 20 de mar 2006.

______. Os múltiplos olhares de Christiano Junior. http://www.studium.iar.unicamp.br. Acesso em:

20 de mar 2006.

Missão Artística Francesa. http://www.itaucultural.org.br. Acesso em: 20 de mar 2006.

Sites:

Museu Afro Brasil

www.museuafrobrasil.org.br Rosana Paulino www.rosanapaulino.com.br Revista O Menelick 2ºAto omenelick2ato.com