a religião no brasil

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1 A RELIGIÃO NO BRASIL APRESENTAÇÃO O QUE É RELIGIÃO? Em termos de etimologia, religião é o que liga, especificadamente o que liga o homem a Deus. A religião engaja o homem de duas maneiras: primeiramente, explicando a natureza e o significado do universo, ou justificando os caminhos de Deus para o homem , isto é, Teodicéia; em segundo lugar, elucidando a função e o propósito do homem no universo, ou ensinando-lhe como libertar-se de suas limitações e terrores (isto é soteriologia). No segundo ponto, religião é uma doutrina da unidade : Deus, que em sua realidade mais elevada é um, é o Criador, Senhor e fim último do universo e do homem nele. No segundo ponto, religião é um método de união: um caminho sacramental, um meio de salvação. Quaisquer que sejam as maneiras pelas quais os chamemos, estes dois componentes estão sempre presentes: teodicéia e soteriologia; doutrina e método; teoria e prática; dogma e sacramento; unidade e união. Doutrina ou teoria diz respeito à mente (ou no nível mais alto, ao intelecto, no sentido preciso e metafísico do termo); método ou prática, diz respeito à vontade. A religião, para ser ela mesma, deve sempre engajar tanto a mente quanto a vontade. O segundo componente da religião, ou a prática, pode ser dividido em dois; isto é, culto e moralidade. O culto, o elemento sacramental propriamente falando, em geral assume a forma de participação nos ritos revelados (públicos ou privados) de uma dada religião, com vistas a assimilar a vontade do homem à de Deus. A moralidade, o elemento social é fazer as coisas que devem ser feitas e não fazer a s coisas que não devem ser feitas. Alguns dos conteúdos da moralidade são universais: “não matarás”, “não roubarás” etc. e alguns dos conteúdos são específicos da religião em questão: “não farás imagens esculpida”, “o que Deus uniu o homem não separa” Chegamos assim a três elementos que René Guénon considera os aspectos definidores de toda a religião: DOGMA - CULTO - MORALIDADE Quando elevados a um grau mais intenso, isto é, o da espiritualidade ou mística, tornam-se palavras: VERDADE - VIA ESPIRITUAL - VIRTUDE Religiões universais e religião de um povo Quando se usa a expressão “religiões mundiais” é importante ter em mente a distinção entre as religiões que dirigem sua mensagem a todos os povos e aquelas cuja mensagem é restrita a um povo. Na primeira categoria estão as “religiões missionárias”: Budismo, Cristianismo e Islamismo que podem ser apropriadamente designadas “universais”, que pregam a todos, e que tem adeptos em muitas terras. Na Segunda categoria estão Hinduísmo e Judaísmo, que não são missionárias e que, em termos gerais, são religiões de um povo ou de uma nação apenas Budismo, Cristianismo e Islã aceitam e em geral buscam vigorosamente convertidos. O Hinduísmo e o Judaísmo, de outro lado, (sem dúvida com algumas exceções muito especiais), não buscam, nem normalmente aceitam convertidos. Em geral, para ser um membro de uma destas religiões é necessário ter nascido nelas.

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A RELIGIÃO NO BRASIL APRESENTAÇÃO O QUE É RELIGIÃO? Em termos de etimologia, religião é o que liga, especificadamente o que liga o homem a Deus. A religião engaja o homem de duas maneiras: primeiramente, explicando a natureza e o significado do universo, ou justificando os caminhos de Deus para o homem , isto é, Teodicéia; em segundo lugar, elucidando a função e o propósito do homem no universo, ou ensinando-lhe como libertar-se de suas limitações e terrores (isto é soteriologia). No segundo ponto, religião é uma doutrina da unidade : Deus, que em sua realidade mais elevada é um, é o Criador, Senhor e fim último do universo e do homem nele. No segundo ponto, religião é um método de união: um caminho sacramental, um meio de salvação. Quaisquer que sejam as maneiras pelas quais os chamemos, estes dois componentes estão sempre presentes: teodicéia e soteriologia; doutrina e método; teoria e prática; dogma e sacramento; unidade e união. Doutrina ou teoria diz respeito à mente (ou no nível mais alto, ao intelecto, no sentido preciso e metafísico do termo); método ou prática, diz respeito à vontade. A religião, para ser ela mesma, deve sempre engajar tanto a mente quanto a vontade. O segundo componente da religião, ou a prática, pode ser dividido em dois; isto é, culto e moralidade. O culto, o elemento sacramental propriamente falando, em geral assume a forma de participação nos ritos revelados (públicos ou privados) de uma dada religião, com vistas a assimilar a vontade do homem à de Deus. A moralidade, o elemento social é fazer as coisas que devem ser feitas e não fazer a s coisas que não devem ser feitas. Alguns dos conteúdos da moralidade são universais: “não matarás”, “não roubarás” etc. e alguns dos conteúdos são específicos da religião em questão: “não farás imagens esculpida”, “o que Deus uniu o homem não separa” Chegamos assim a três elementos que René Guénon considera os aspectos definidores de toda a religião:

DOGMA - CULTO - MORALIDADE Quando elevados a um grau mais intenso, isto é, o da espiritualidade ou mística, tornam-se palavras:

VERDADE - VIA ESPIRITUAL - VIRTUDE

Religiões universais e religião de um povo Quando se usa a expressão “religiões mundiais” é importante ter em mente a distinção entre as religiões que dirigem sua mensagem a todos os povos e aquelas cuja mensagem é restrita a um povo. Na primeira categoria estão as “religiões missionárias”: Budismo, Cristianismo e Islamismo que podem ser apropriadamente designadas “universais”, que pregam a todos, e que tem adeptos em muitas terras. Na Segunda categoria estão Hinduísmo e Judaísmo, que não são missionárias e que, em termos gerais, são religiões de um povo ou de uma nação apenas Budismo, Cristianismo e Islã aceitam e em geral buscam vigorosamente convertidos. O Hinduísmo e o Judaísmo, de outro lado, (sem dúvida com algumas exceções muito especiais), não buscam, nem normalmente aceitam convertidos. Em geral, para ser um membro de uma destas religiões é necessário ter nascido nelas.

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Religião e Diversidade Cultural Vivemos atualmente na era da modernidade, da democracia e do pluralismo cultural. As fronteiras vão se desfazendo e sendo ultrapassadas obrigando o ser humano a conviver real ou virtualmente com outras culturas. Muitas vezes o contato com o “outro” nos obriga a um constante exercício de Alteridade, ou seja, aprender a acolher e cultivar a diversidade cultural para não cair no preconceito, na exclusão e na intolerância. Mas antes de ser cultivada a diversidade deve ser reconhecida para ser conhecida. A diversidade religiosa é parte integrante da diversidade cultural. Conhecer as religiões da humanidade tornou-se um ponto básico na educação geral dos jovens, que pretende ser pluralista e democrática, preparando o espírito humano para ser cada vez mais aberto e cosmopolita. É imprescindível conhecer as diferenças culturais para que se desenvolva o respeito ao outro, ao diferente. O conhecimento é uma grande arma contra o preconceito e a intolerância. De todas as intolerâncias, a mais grave sempre foi a intolerância religiosa. Religião é um tema delicado. Um rápido olhar na história revela que a religião serviu argumento para o dogmatismo e a prepotência. É comum a religião abrir as portas para o fanatismo e no lugar de instaurar o amor erguer barreiras entre as culturas. É necessário abrir a mente e descortinar os horizontes. Dialogar e conhecer outras religiões é plantar o grão da verdade e da compaixão . Tolerância, ou seja, respeito pelas pessoas que têm pontos de vista diferentes do nosso é uma palavra chave no estudo das religiões. Não significa necessariamente o desaparecimento das diferenças e das contradições ou que não importa no que você acredita, se é que acredita em alguma coisa. Uma atitude tolerante pode perfeitamente coexistir com uma sólida fé. Por vezes é do mergulho nas próprias crenças e raízes, no pessoal, silencioso e incomunicável mistério é que brota a atitude de compaixão e de tolerância. Em outras palavras: O auto-conhecimento é a chave para o conhecimento e a aceitação do outro. É essa crença que nos levou a escrever este trabalho. Conhecer e aprofundar o conhecimento sobre a História da Religião no Brasil, contribuindo dessa forma para compreender melhor a complexidade que permeia a realidade brasileira e estimular o conhecimento das outras crenças.... Muitos perguntam: Por que há tantas religiões? Não existe a verdadeira religião? Qual a religião certa e qual a errada?. Sobre isso cito as palavras de um teólogo alemão, Hans Kung, que sugere : “Segundo o critério ético geral, uma religião é verdadeira e boa, na medida em que ela é humana, na medida em que não oprime nem destrói o humanismo, mas o protege, o fomenta.”

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INTRODUÇÃO

Religião no Brasil

O Brasil é o país que reúne o maior número de católicos no mundo. São 121,8 milhões de acordo com o último Censo oficial do IBGE, de 1991, o equivalente a 83% da população brasileira. A Igreja Católica chega ao país já no descobrimento e a partir daí exerce grande influência social, política e cultural. Seu predomínio permanece até hoje, porém em menor escala. Entre 1960 e 1980, a porcentagem de católicos diminui de 93% para 89%. Calcula-se que a cada ano cerca de 600 mil pessoas abandonem o catolicismo, migrando para outras igrejas, principalmente para as protestantes pentecostais e neopentecostais. Os dados mais recentes são de 1994, de um levantamento realizado pelos pesquisadores Reginaldo Prandi e Flávio Pierucci, da Universidade de São Paulo (USP), em conjunto com o instituto Datafolha, que considerou a religião da população eleitora. Segundo a pesquisa, 75% dos eleitores brasileiros são católicos.

DISTRIBUIÇÃO DOS RELIGIOSOS NO BRASIL Segundo a população eleitora - 1994

RELIGIÃO ELEITORES %

CATÓLICA 74,9

PROTESTANTES PENTECOSTAIS 9,9

ATEUS 4,9

PROTESTANTES HISTÓRICOS 3,4

ESPÍRITAS 3,5

AFRO-BRASILEIROS 1,3

OUTRAS 2,1

SEM DECLARAÇÀO -

As igrejas protestantes pentecostais e neopentecostais foram as que mais cresceram a partir dos anos 60. Os ateus e não religiosos formam o terceiro maior grupo, com crescimento de 250% entre 1980 e 1991. Outros grupos de maior relevância no país são os protestantes históricos e os espíritas. As religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, contam com um grande número de praticantes ocasionais, cuja maioria não se declara adepta. O foco principal deste trabalho é reconstruir a trajetória histórica da religiosidade brasileira. Nossa principal linha de problematização é compreender a conexão entre a Igreja Católica, suas relações com o Estado, ora de submissão (Colônia e Império) , ora de cooperação (Período Liberal e Populista), ora de combate (Igreja Popular). O trabalho está distribuído da seguinte forma: No primeiro capítulo, escrito pelo professor André Figueiredo Rodrigues, analisa a Igreja no Período Colonial, quando seu papel se tornou relevante. Como tinha em suas mãos a educação das pessoas, ou seja, o “controle das almas” na vida diária, era um instrumento muito eficaz para veicular a idéia geral de obediência e, em especial, a de obediência ao poder do Estado português. O papel da igreja não se limitava só a isso. Na vida da comunidade estava presente desde o nascimento até a morte de uma pessoa.

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As relações de subordinação da Igreja ao Estado – o padroado – consistiu em uma ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado luso, em troca da garantia de que a coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organização da Igreja católica em todas as terras descobertas. O rei de Portugal ficava com o direito de administrar e recolher o tributo devido pelos súditos da igreja, conhecido por dízimo, correspondente a um décimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade regular. Também cabia à coroa criar dioceses, escolher e nomear bispos, proteger e/ou perseguir ordens religiosas, construir conventos e pagar os vencimentos de capelães, vigários e bispos, como se fossem funcionários da coroa portuguesa. O segundo Capitulo, desenvolvido pelo professor Marco Antonio Albuquerque, analisa a Igreja Católica no Período Imperial, mostrando que a situação da Igreja no começo do século XIX continuou sendo verdade para praticamente todo aquele século até, pelo menos, 1875. Após a independência o catolicismo continuou sendo a religião oficial do Estado brasileiro. As atribuições do clero estavam descritas na Constituição de 1824 e o Imperador, da mesma forma que o monarca luso durante o período colonial, interferia nas questões da Igreja através do padroado e do beneplácito. A Constituição previa a manutenção do Regalismo português, ou seja, a união entre o trono e o altar, criando o sistema de Padroado e Beneplácito. O sistema do Padroado, relativamente antigo, pois já era tradição em Portugal bem antes da Independência brasileira, dava ao imperador a regalia de indicar nomes para o preenchimento dos cargos eclesiásticos mais importantes (principalmente os responsáveis pelas dioceses brasileiras), dependendo apenas de uma confirmação pontifícia. De outro lado o clero recebia proventos do Estado, transformando-se os padres em verdadeiros funcionários públicos, em tudo dependentes do governo. O Beneplácito era uma instituição vigente desde a Carta outorgada de 1824 e que obrigava as bulas papais a passar pela sanção do imperador antes de terem aplicação efetiva no país. Dessa forma, quaisquer decretos do sumo-pontífice só teriam validade depois de receberem uma aprovação explícita do monarca, mesmo aqueles que envolvessem apenas questões estritamente religiosas, como os referentes à liturgia, por exemplo. A Igreja no Brasil submetia-se ao Estado duplamente: no plano interno, pelo efetivo controle do episcopado e do clero em geral, através do padroado; no plano internacional, pelo controle da aplicação da legislação pontifícia, através do beneplácito. A Constituição vigorou com algumas modificações até o fim do Império. Definiu o governo como monárquico, hereditário e vitalício. A religião católica romana continuava a ser religião oficial, permitindo-se apenas o culto particular de outras religiões, "sem forma alguma exterior de templo" No terceiro Capítulo, o professor Jorge Miklos, analisa a situação da Igreja após a proclamação da República em que ocorre o fim do Regalismo e a Separação entre a Igreja e o Estado. Ao longo da história republicana a Igreja irá desenvolver três tipos de relações com o Estado e a Sociedade. O Período Liberal (1889-1930), marcado sobretudo pelo processo de romanização e afastamento da Igreja tanto das elites como da massa popular; O Período Populista (1930-1964) no qual a Igreja buscava fortalecimento institucional através de alianças com o Estado e o nascimento da Igreja Popular (1964-80) em que ocorrem várias mudanças na esfera internacional européia com Concilio Vaticano II (1962-1965) alterou o rumo da Igreja Católica Apostólica Romana. No transcurso de suas sessões, o Concílio modernizou algumas crenças, destacou a importância do movimento ecumênico e reafirmou algumas das velhas doutrinas católicas, como a da

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transubstanciação foi convocado pelo papa João XXIII - que morreu pouco antes da primeira sessão e foi sucedido por Paulo VI. Na esteira do Concílio que modernizou a Igreja Católica nasce a Teologia da Libertação na qual o clero latino Americano após dois encontros: Medellín, Colômbia (1968) e, em Puebla, México (1979), colocam no centro da orientação da Igreja – latino americana a “opção preferencial pelos pobres”. Enquanto a Igreja Católica latino americana se modernizava e se aproximava de suas origens populares, o Brasil eras surpreendido em 1964 por um golpe militar que derrubava o governo democrático do presidente João Goulart e implantava uma Ditadura Militar que iria perdurar por vinte e um anos. A Igreja brasileira, antes aliada ao Estado, depara-se com uma situação de violência e desrespeito aos princípios básicos da vida humana, depara-se com uma situação de violência e desrespeito aos princípios básicos da vida humana e ergue-se, junto com outras religiões, na luta pela dignidade e respeito a esses direitos. Dom Paulo na Igreja de São Paulo e Dom Helder Câmara no Nordeste serão os principais símbolos desse combate. A Igreja Católica era a única instituição que, graças ao seu prestígio internacional, podia oferecer resistência ao regime militar e lutar contra a violação dos Direitos Humanos.Durante os anos do governo Médici (1971-1974), em nenhum outro lugar a repressão foi pior do que em São Paulo: as organizações de guerrilha e os grupos clandestinos eram mais fortes e organizados; a linha dura comandava o Segundo Exército e o esquadrão da morte também era atuante na cidade. A Igreja assumiu essa tarefa porque as demais instituições estavam impedidas de se manifestar e incapazes de funcionar. Como afirmou Dom Paulo: ”a sociedade necessita de uma voz e devido à repressão, nenhuma outra instituição poderia oferecer essa voz a todos aqueles setores que não têm voz”. No quarto capítulo o professor Marco Antonio Albuquerque contribui novamente descrevendo as religiões afro-brasileiras revelando o perfil multicultural e multireligioso do Brasil. O trabalho conta ainda, no quinto capítulo, com a participação do professor Carlos Eduardo Pires Moraes que contribui com informações sobre as religiões protestantes no Brasil.

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CAPÍTULO UM A IGREJA CATÓLICA E A RELIGIÃO NO BRASIL COLONIAL

I) Descobrimento e colonização: o Padroado Em 1500, o litoral da região que hoje corresponde ao Brasil foi incorporado pelos navegadores portugueses à coroa do reino de Portugal. Com a chegada de Pedro Álvares Cabral, comandante de uma esquadra de treze navios e 1500 homens que se dirigia às Índias, a Igreja católica, enquanto instituição e religião oficial do Estado português, aqui também desembarcou, para nunca mais sair. Quando as caravelas de Cabral ancoraram em Porto Seguro, parte da tripulação desembarcou para assistir a uma missa rezada para celebrar o achamento do novo território, no dia 26 de abril, quatro dias depois de avistarem a costa brasileira. No dia 1º de maio ergueu-se uma enorme cruz de madeira, que veio dar o nome ao Brasil: Terra de Santa Cruz. O escrivão da esquadra, Pero Vaz de Caminha, em carta enviada ao rei de Portugal, dom Manuel I, solicitou que enviasse àquelas terras recém empossadas ao patrimônio lusitano religiosos para converterem os nativos (índios) e batizá-los na fé cristã. A preocupação com a cristianização dos indígenas explica-se pela estreita ligação da Igreja católica com o Estado português. A aliança entre ambos chamou-se padroado. Embora se trate de instituições distintas, naqueles tempos uma estava ligada à outra. A religião do império português era a católica e os súditos, isto é, os membros da sociedade, deviam ser católicos. Ao Estado coube o papel fundamental de garantir a soberania portuguesa sobre o território brasileiro, dotando-o de administração, desenvolvendo uma política de povoamento, resolvendo problemas como mão-de-obra e estabelecendo as maneiras de intercâmbio entre Portugal e o Brasil. Essa tarefa pressupunha o reconhecimento da autoridade do Estado por parte dos colonizadores que se instalariam na América, seja pela força, seja pela aceitação dessa autoridade, ou por ambas as coisas. Nesse sentido, o papel da igreja se tornava relevante. Como tinha em suas mãos a educação das pessoas, ou seja, o “controle das almas” na vida diária, era um instrumento muito eficaz para veicular a idéia geral de obediência e, em especial, a de obediência ao poder do Estado português. O papel da igreja não se limitava só a isso. Na vida da comunidade estava presente desde o nascimento até a morte de uma pessoa. As relações de subordinação da Igreja ao Estado – o padroado – consistiu em uma ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado luso, em troca da garantia de que a coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organização da Igreja católica em todas as terras descobertas. O rei de Portugal ficava com o direito de administrar e recolher o tributo devido pelos súditos da igreja, conhecido por dízimo, correspondente a um décimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade regular. Também cabia à coroa criar dioceses, escolher e nomear bispos, proteger e/ou perseguir ordens religiosas, construir conventos e pagar os vencimentos de capelães, vigários e bispos, como se fossem funcionários da coroa portuguesa.

II) A Companhia de Jesus O Brasil, nascido à sombra da cruz, recebeu os jesuítas apenas quinze anos depois da criação da Companhia de Jesus. Em 1549, com o governador-geral Tomé de Souza, chegou à Bahia a primeira leva de jesuítas, chefiada pelo padre Manuel da Nóbrega. A partir de então, tornou-se sucessiva a entrada desses missionários. Contabilizando todas as

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expedições, chegamos a 361, distribuídas por 215 anos, sendo 75 no século XVI, 190 no século XVII e 96 no século XVIII, numa média de 16 missionários enviados a cada ano. A Companhia de Jesus, que fora fundada por Ignácio de Loyola, em 1534, foi a primeira ordem religiosa oficialmente estabelecida no Brasil. Os jesuítas realizaram no território brasileiro uma obra inigualável. Penetrando no interior da América portuguesa com as entradas, fundaram uma rede de colégios, seminários e escolas primárias e oficinas com ensino gratuito para brancos e índios, sustentado por explorações agropecuárias e por propriedades deixadas para seu patrimônio. Por exemplo, tivemos, em 1554, a fundação do colégio e da povoação de São Paulo do Campo de Piratininga, hoje a cidade de São Paulo, pelo padre jesuíta Manuel de Paiva, a mando de seu superior, padre Manuel da Nóbrega. No campo científico, os jesuítas efetuaram observações que vieram enriquecer o conhecimento das regiões que percorreram na catequese dos índios, descrevendo os seus costumes e estudando as suas línguas. A preocupação de aprender as línguas dos povos que evangelizavam levou-os a elaborar gramáticas e dicionários e a publicar obras de catequese e outras nas mais variadas línguas indígenas. O empenho dos jesuítas na educação, realizou-se sempre à sombra da igreja. Os portugueses interessaram-se pouco pela educação: basta observar o esforço do espanhol em suas terras, criando até universidades no século XVI. No Brasil português não houve nenhuma. Para cobrir o interesse por instrução, tivemos parcas providências, tais como a criação de algumas “aulas”. Somente no século XVIII, a educação começou a refletir o interesse da coroa portuguesa no Brasil, através da instituição da cobrança do “subsídio literário”, em 1772, para tentar suprimir a falta do ensino jesuítico. Com a expulsão da Companha de Jesus de todos os territórios portugueses em 1759, por decisão do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde marquês de Pombal, as atitudes educativas dos jesuítas se perdeu. Deixaram 25 residências, 36 missões, 17 colégios e seminários, além de iniciativas menores, como escolas de ler e escrever, em todos os pontos em que se estabeleceram no território brasileiro. Para resolver o problema do fechamento das escolas, criaram-se as “aulas régias”, poucas e de difícil resultado. A Companhia de Jesus era um obstáculo ao projeto político que o marquês de Pombal queria implantar no império lusitano, que era fortalecer o sistema absolutista, regalista (submissão da Igreja ao poder do Estado) e iluminista português. Para que isso se realizasse, necessitava romper com o domínio do sistema de ensino jesuítico nas terras de Portugal e nas colônias, uma vez que os inacianos representavam uma ameaça a esse absolutismo que ambicionava controlar todos os aspectos da vida social, incluindo uma igreja mais submissa ao Estado. A campanha antijesuítica montada por Pombal levou à formulação de uma série de acusações espalhadas por toda a Europa, tais como a grande quantidade de patrimônio amealhado em posse dos jesuítas; a sua resistência à aplicação do Tratado de Madri (1750), assinado entre Portugal e Espanha para a delimitação das fronteiras na América do Sul; a oposição, no Brasil setentrional, às leis que regulamentavam a administração das aldeias indígenas; o exercício de atividades comerciais proibidas a religiosos; a difamação do rei no estrangeiro e a participação, pelo menos moral, no atentado contra o rei dom José e na revolta popular do Porto, ocorrida em 1757. A Santa Sé, em Roma, também informada de alguns métodos usados na catequese dos indígenas, como o confinamento em escolas, reprovou a ação dos jesuítas. Isso influiu diretamente na posterior decisão papal de extinguir a Companhia, em 21 de julho de 1773. Devido as constantes perseguições sofridas em vários países da Europa, os jesuítas encontram asilo na corte de Frederico II, da Prússia, por serem considerados bons educadores. Restaurada a Companhia de Jesus, em 1814, seus membros somente retornaram ao Brasil a partir de 1841, através de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Durante todo o segundo reinado, o antijesuitismo marcará presença como mal crônico e assumirá, em diversas

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ocasiões, comportamentos radicais, intransigentes e agressivos, sobretudo por parte dos liberais, dos políticos e do clero regalista. Em um clima de hostilidades, a penetração dos jesuítas nas diversas regiões do país se fazia sempre com discrição. Somente com a República, os jesuítas terão condições de se fixar e trabalhar em todos os pontos do território nacional.

III) Outras ordens religiosas no Brasil colonial Além de jesuítas, estabeleceram-se no Brasil outras ordens religiosas, como os carmelitas, beneditinos e franciscanos. Entregavam-se à causa catequética, seja nos centros urbanos do litoral, seja, sobretudo, no interior ou áreas longínquas da América portuguesa. Muitas vezes, foram a única presença européia, no desejo de transformar a vida dos indígenas, começando pela doutrinação religiosa. Estabeleceram-se, principalmente, na região nordestina, no norte e no sudeste do país, fundando seminários, mosteiros e conventos. Os carmelitas foram os segundos religiosos a se estabelecerem no Brasil, em 1580. Após tentar conquistar a Paraíba, sem êxito, instalaram um convento em Olinda (Pernambuco), em 1583, para, em seguida, espalhar as suas casas, tanto para a Bahia, centro de sua irradiação para o sul, quanto para Pernambuco, centro para o norte. Na Amazônia, especialmente, a catequese empreendida pelos carmelitas teve extraordinária importância para a incorporação daquelas imensas regiões à comunidade brasileira. Outra ordem presente na América portuguesa foi a dos beneditinos que, a partir de 1581, iniciaram a sua expansão pelas áreas litorâneas ocupadas pela colonização. Estabelecendo-se inicialmente em Salvador, onde fundaram o mosteiro, tornado abadia em 1584, dali partiram para Ilhéus (1584), Rio de Janeiro (1586), Vitória (1589), Olinda (1592) e Paraíba (1596). Com o domínio holandês no nordeste, perderam temporariamente as suas posições naquela região. Compensaram-na com a fundação de novos mosteiros em outras áreas do Brasil, destacando-se o mosteiro construído em São Paulo. Os franciscanos foram os primeiros religiosos a virem isoladamente ao Brasil. Desde muito cedo, dedicaram-se à conversão católica dos índios e a se expandir por todo o território colonial.

IV) As irmandades religiosas: os leigos e o poder As associações de caráter local, denominadas irmandades, auxiliavam a ação da igreja e facilitavam a vida social. Elas foram gestoras e sedes de devoção, além de ajudarem na conservação do culto, arcando com as despesas dos ofícios religiosos e na manutenção de asilos, orfanatos e hospitais. Sua finalidade principal era promover a devoção a um santo. Um grupo de pessoas de uma determinada localidade ficava responsável pela organização do culto, da capela e da festa em homenagem a seu dia, caracterizando assim a participação leiga (pessoa não ligada institucionalmente à igreja), no culto católico. Assim, os fiéis assumiam e promoviam suas próprias atividades devocionais, sem necessidade da participação direta e constante de padres e outros religiosos. A coroa portuguesa incentivava a criação das irmandades leigas, uma vez que transferia à população todos os encargos e os complexos e caros cerimoniais do culto religioso, como a assistência social à população carente, mediante a instalação de hospitais, hospícios, cemitérios, instrução (ensino), recolhimento para órfãos e auxílio para funerais e casamentos. Além disso, os padres vinculados a essas instituições eram pagos por elas.

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O poderio econômico de algumas irmandades eram tantas que não somente se tornavam proprietárias de sua igreja e respectivo cemitério, como também chegavam a possuir escravos, alimárias, utensílios, de cujo serviços ou valor todos podiam aproveitar. Algumas dessas irmandades chegaram a dispor de tamanha força econômica e social, que mais de uma vez, por exemplo, no caso mineiro, as autoridades recorriam a elas para tomar dinheiro emprestado. A presença das irmandades na sociedade colonial brasileira nota-se com maior freqüência e intensidade em Minas Gerais. Na região mineradora foi proibida a entrada de clérigos regulares. Para alguns historiadores, a proibição deveu-se a política portuguesa de promover o isolamento de Minas e evitar a instalação do inevitável poder paralelo que os regulares representavam. Para outros, a proibição deveu-se à necessidade de combater o desregramento nas minas de que há exemplos no início do século XVIII: muitos eclesiásticos estavam mais interessados em minerador do que professar a fé cristã. De um modo ou de outro, na região de Minas Gerais, diferentemente das demais da América portuguesa, não existiram ordens religiosas até o final do período colonial. As irmandades existentes em Minas eram autônomas, contribuindo para que a religiosidade da população apresentasse um caráter essencialmente popular. Era grande a diversidade existente entre as confrarias que congregavam em seus quadros homens brancos, negros e pardos (livres ou escravos). O apogeu das irmandades nas terras do ouro teve como pano de fundo a arte barroca e foi simbolizado pelas grandes e suntuosas festas e procissões, pelas construções de grandes templos e pelas decorações e ornamentações nos interiores das igrejas, entre outras. A política restritiva em relação à fixação de clérigos na capitania mineira contribuiu decisivamente para o florescimento de expressões artísticas e culturais próprias. O desenvolvimento da arte deveu-se ao espírito inovador e criativo de leigos, além de ser uma arte encomendada e, também, consumida por leigos. As irmandades eram grandes consumidoras da mão-de-obra dos mais diversos artistas, como, por exemplo, pintores, entalhadores, músicos, arquitetos e escultores. Foi assim que nos ficou legada as magistrais esculturas e construções religiosas do mestre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, ou as do pintor Manuel da Costa Ataíde, que decorou os mais belos tetos das igrejas mineiras do período colonial. Na sociedade colonial da segunda metade do século XVIII, tanto em Minas Gerais quanto no Rio de Janeiro, as pesquisas históricas vêm revelando a intensa presença de mulatos na produção musical. O mais notável compositor mineiro foi José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, autor de mais de quarenta obras de altas qualidades musicais.

V) A vida religiosa católica no Brasil colônia Os principais aspectos da religiosidade católica sentidos na sociedade colonial estiveram presentes em atos como o batismo, a penitência, a extrema-unção e o matrimônio. O batismo era prática comum na sociedade colonial. Desde os primeiros dias de vida de uma criança, esta deviria ser levada à presença de um religioso, para receber batismo, pois se acreditava que se viesse a morrer após o recebimento desse sacramento, iria para o céu, sem passar pelo purgatório. No Brasil, para o homem branco de atitudes europeizadas, o batismo era quase uma cerimônia corriqueira; para o escravo negro um ato de sobrevivência, pois quem não fosse batizado não era considerado gente. Para o indígena, a conversão era celebrada dentro das missões ou em qualquer aldeamento cristão. Desde o nascimento até a morte, a vida de uma pessoa era controlada pelo Estado e pela igreja. O casamento era exemplo disso. As práticas matrimonias durante o período colonial serviram aos interesses da colonização. Para garantir o poder de muitas famílias, muitos

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privilégios eram concedidos para facilitar enlaces matrimoniais, como se permitir o casamento entre primos, entre tios e sobrinhas (e vice-versa), tudo com a intenção de preservar os bens familiares e perpetuar os descendentes no poder. Aos escravos e pobres, a realidade era diferenciada. Permitia-se que vivessem concubinatos, pois se valorizava a fecundidade da mulher índia e negra, aceitando-se as uniões não legalizadas pela igreja. Entre os brancos, a união devia seguir o padrão dos casamentos legais, ou seja, oficializados pela igreja e monogâmicos, em que se valorizavam, sobretudo, a virgindade e a fidelidade das mulheres. Os casamentos eram celebrados para durar eternamente. A dissolução de um matrimônio era admitida pela igreja em circunstâncias previstas na legislação eclesiástica: entrada de um dos cônjuges na vida religiosa, heresia comprovada de um deles, abandono do lar, adultério e maus-tratos. Em São Paulo, por exemplo, entre os anos de 1700 e 1822, tramitaram 248 processos de divórcio, predominando, para as mulheres, os motivos de maus-tratos, abandono e adultério do marido1. Na hora da morte, a religiosidade colonial também esteve presente em rituais fúnebres e enterros. Esses rituais tinham por finalidade a salvação da alma do defunto. As pessoas preparavam-se para morrer: na espera do final de sua vida, na hora da agonia, reuniam parentes, amigos e desafetos, para pedir perdão pelos atos cometidos; além de tentar quitar as dívidas; mandar celebrar missas; distribuir esmolas aos pobres e orar, para se evitar a danação eterna. Nos últimos instantes, o responsável pela família redigia o testamento, a fim de melhor distribuir seus bens e se redimir de atos impuros, revelando adultérios e a existência de filhos não naturais, os não legítimos. Os enterros eram organizados normalmente pelas irmandades a que pertencia o defunto, não importando se este fosse rico ou pobre. As confrarias organizavam enterros solenes, obrigando seus membros a comparecer as celebrações de extrema-unção e missas, levando velas e vestindo roupas especiais. A morte de um irmão era anunciada através dos badalos dos sinos da igreja da irmandade.

VI- Outros credos: cristãos-novos e protestantes As pessoas que viveram nos séculos XVI e XVII, foram marcadas pelo surgimento de idéias de variadas religiões protestantes, como a luterana e a calvinista, que se transportaram para o Brasil colonial. Ao lado da religião judaica, foram trazidas por missionários e moradores que procuravam se refugiar em terras do além-mar, principalmente fugindo de perseguições religiosas.

1) Cristãos-novos Os cristãos-novos eram judeus que se converteram à religião católica. Chegaram ao Brasil no começo do século XVI, instalando-se sobretudo na Bahia, em Pernambuco, na Paraíba e no Maranhão e integraram-se rapidamente aos costumes, à língua e as práticas econômicas da região, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam cargos nas Câmaras Municipais, em órgãos da administração colonial e em atividades comerciais. As suas atitudes cristãs eram aparentes, de uso apenas social. No interior de sua casa e entre os seus semelhantes, compartilhavam práticas judaicas que, para a época, eram clandestinas. Na sociedade colonial era hábito comer carne de porco e ir à missa aos domingos, assim como exercer atividades econômicas em qualquer dia da semana, inclusive aos sábados. Os

1. Arno Wehling & Maria José C. M. Wehling. Formação do Brasil colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 244.

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cristãos-novos recusavam-se a comer carne de porco, a ir à missa aos domingos, como guardavam o dia do sábado. Esses pequenos atos cotidianos podiam revelar práticas desviantes das normas e condutas sociais aceitas oficialmente por aquela sociedade. Outros indícios ajudavam os religiosos católicos a descobrir atitudes judaizantes: vestir roupa limpa ou sofisticada aos sábados; varrer a casa da porta para dentro; comer em mesa baixa em sinal de luto; jejuar durante o mês de setembro, na Páscoa e nas segundas e quintas-feiras da semana; degolar animais e cobrir o seu sangue com terra; praticar abstinência a certos alimentos como coelho, enguia, polvo, toucinho, lebre, arraia, pescado com escamas, entre outros; os mortos eram enterrados envoltos em mortalha nova, em terras virgens e em covas bem fundas, levando na boca um grão de aljôfar ou uma moeda de ouro ou prata, para que pagassem a primeira pousada. A historiadora Mary del Priore, recuperou a confissão da cristã-nova dona Leonor, de 1591, feita ao visitador do Santo Ofício, que diz: “... que haverá dois ou três anos veio a sua casa uma lampreia que veio do reino [Portugal], em conserva, e ela não quis comer... e que haverá um ano pouco mais ou menos que uma sua escrava degolou uma galinha de frente de sua porta, e que ela mandou lançar em cima do sangue que estava derramado no chão um pouco de serradura de madeira que se havia serrado”. Explica as duas reações: tivera nojo do peixe, por seu mau cheiro, e o sangue fora coberto para evitar que um porco solto nos arredores viesse devorar seus pintinhos2. Os cristãos-novos, mesmo muitas vezes não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente consciente e mantendo-as mais como lembranças, em muitos pontos conservavam a essência de sua cultura original. Repudiavam as imagens de santos, que naquela época enfeitavam os altares domésticos; consideravam a religião católica uma idolatria e esquivavam-se do sacramento da confissão. Na quaresma, segundo Mary del Priore, “quando o bispo fazia suas costumeiras visitas às paróquias do interior, reagiam dizendo: ‘Era melhor confessar a um pau ou a uma pedra do que a outro pecador’”3.

2) Protestantes O desejo de reconduzir o cristianismo à pureza primitiva e livrar a igreja cristã da corrupção do excessivo poder temporal da hierarquia religiosa de Roma deu origem, ao longo do século XVI a uma importante cisão no seio da cristandade: o protestantismo, uma decorrência direta da Reforma. Protestantismo é um termo empregado para designar um amplo leque de igrejas cristãs que, embora tão diferentes entre si como a Igreja Luterana e as Testemunhas de Jeová, compartilham princípios fundamentais como o da salvação pela graça de Deus mediante a fé, o reconhecimento da Bíblia como autoridade suprema e o sacerdócio comum de todos os fiéis. O termo “protestante” tem origem no protesto de seis príncipes luteranos e 14 cidades alemãs em 19 de abril de 1529, quando a segunda dieta de Speyer, convocada pelo imperador Carlos V, revogou uma autorização concedida três anos antes para que cada príncipe determinasse a religião de seu próprio território. O termo foi logo adotado, de início pelos católicos e logo a seguir pelos próprios partidários da reforma, pois seu protesto, entendido como uma rejeição à autoridade de Roma, constituiu um claro sinal às diversas igrejas que se declaravam reformadas.

2. Sobre as práticas judaicas no período colonial brasileiro, vale a pena ver: Mary del Priore. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 20-27. A citação encontra-se à página 24. 3. Idem, p. 25.

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A disparidade e a progressiva subdivisão das igrejas protestantes (luteranos, calvinistas, anglicanos etc.) decorreram do seu próprio princípio original: a interpretação pessoal das Sagradas Escrituras sob a luz do Espírito Santo. A ênfase dada por algumas dessas igrejas aos Evangelhos como norma de vida e à experiência pessoal da conversão acabou por provocar o aparecimento de duas tendências no seio do protestantismo: a liberal e a fundamentalista, autodenominada evangélica. Embora ambas as correntes tenham coexistido em algumas igrejas, a divergência acabou por provocar o surgimento de outras igrejas, entre as quais se destacaram a Evangélica Alemã, a Evangélica Luterana e a Evangélica Reformada. Apesar das diferenças existentes entre as diversas igrejas, as idéias fundamentais dos primeiros reformadores permaneceram inalteradas na maioria das denominações e credos protestantes. A presença de religiões protestantes no Brasil colonial pode ser dividida em dois momentos. O primeiro que vai de 1555 a 1560, quando chegou à baia da Guanabara o vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon, para fundar a colônia França Antártica, com calvinistas (huguenotes) franceses, hostilizados e perseguidos em sua terra. O segundo deu-se com a colonização holandesa no nordeste, que se estendeu de 1630 a 1654. Na baía da Guanabara, Villegaignon e 400 homens, fundaram a França Antártica, atraídos pela promessa de liberdade religiosa. A seguir, proclamou-se rei da América. Desconfiava de tudo e de todos, inclusive de seus próprios homens e aliados locais, os índios tamoios. Os problemas agravaram-se com a chegada de duzentos e oitenta missionários calvinistas vindo de Genebra, pois traziam, entre seus pertences, cartas de recomendação de importantes líderes religiosos e políticos. Temendo por seu prestígio na Europa, passa a criticar os seus modos e hábitos religiosos, como usar pão comum e vinho não misturado com água na celebração da Santa Ceia, e a questioná-los sobre a eucaristia, a invocação dos santos, as preces pelos mortos e sobre o purgatório. O ponto de maior discórdia entre Villegaignon, o responsável pela colônia francesa, e os missionários, ocorreu quando proibiu a pregação do pastor Pierre Richier, ordenado e credenciado por Calvino, naquelas terras. Diante disso, Richier partiu para a Europa com seus auxiliares. Alguns deles, devido às más condições de travessia do oceano Atlântico, retornaram a colônia, e lá foram recebidos com desconfiança por Villegaignon, que já rejeitara publicamente o calvinismo, obrigando-os a escrever uma confissão, que contivesse a doutrina de sua religião. Fingindo profunda indignação pelo teor calvinista da declaração, mandou executar três dos assinantes, que passaram a ser considerados os primeiros mártires do credo protestante em terras americanas. Menos sangrenta foi a participação de protestantes em terras holandesas no Brasil (1630 a 1654). Sob os auspícios de João Maurício de Nassau (1637 a 1644), o domínio flamengo no nordeste estendeu-se do Maranhão até abaixo do rio São Francisco, caracterizando-se por uma excepcional liberdade religiosa. Os católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações oficiais com a sede episcopal na Bahia. Aos judeus foi permitida a instalação de sinagogas e escolas hebraicas em Recife e aos protestantes foram dadas condições de instalarem paróquias nas áreas recém conquistadas do nordeste.

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CAPÍTULO DOIS A IGREJA CATÓLICA E A RELIGIÃO NO BRASIL IMPÉRIO

I) Mudanças e permanências no Brasil pós-Independência Em linhas gerais, as estruturas da sociedade brasileira permaneceram intactas após a Independência. O latifúndio, o trabalho escravo e a monocultura, tal como no período colonial, mativeram-se como o tripé de sustentação da economia do país e dos privilégios da sua aristocracia rural. Mesmo quando o café provocou aquilo que um historiador chamou de “verdadeira revolução no âmbito das atividades produtivas”, ao tornar-se o principal produto de nossa pauta de exportação e ao promover a modernização de diversas áreas do Sul do país, não mudou a essência agro-exporadora e monocultora de nossa economia. Continuávamos exercendo o papel de fornecedores de produtos tropicais às potências industrializadas e possuidoras de capital, na Europa. Pode-se afirmar que após 1822 o novo no Brasil era representado pela organização de um Estado independente, simbolizado pela figura do Imperador D. Pedro I , pelos poderes representativos da aristocracia rural (Parlamento e Poder Judiciário) e por um conjunto de leis que passou a reger a vida do país em substituição aos antigos instrumentos da dominação colonial. No plano político, os vinte e três anos que se seguiram à declaração da Independência foram marcados por inúmeras tentativas de revoltas e sublevações. Inicialmente contra o autoritarismo de D.Pedro I, representado pela dissolução da Assembléia Constituinte de 1823 e pela imposição da Carta outorgada de 1824 e que levou à abdicação em 7 de abril de 1831. Mas a renúncia do Imperador não foi suficiente para acalmar os ânimos e restaurar a paz e a tranqüilidade no país. Na verdade, a figura de D. Pedro I servira para encobrir um conflito mais grave e profundo entre os grupos políticos surgidos no Brasil após a independência: “Após a renúncia do Imperador as contradições entre as elites vieram a tona. Os liberais exaltados desejavam uma maior autonomia para as províncias. Defendiam o fim do Poder Moderador, a ampliação do direito de voto, a extinção do Conselho de Estado e da vitaliciedade do Senado, embora não propusessem reformas sociais mais profundas. Organizaram a Sociedade Federal, sendo denominados, também, de "farroupilhas" (vestido de farrapos), em virtude de seu proselitismo junto à arraia miúda urbana. Os restauradores, ou "caramurus", apoiados principalmente por comerciantes e funcionários portugueses, defendiam o retorno do Imperador e criticavam os dirigentes regenciais que, segundo eles, permitiram a instauração da "anarquia" após a abdicação. Com a morte de Pedro I, em 1834, os remanescentes deste grupo aderiram aos moderados. Os Liberais Moderados, ou "chimangos", constituíram a força política do período regencial. Organizaram a "Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional". Eram defensores da centralização. Entre os componentes deste grupo, destacaram-se, entre outros, o Padre Diogo Feijó, Bernardo Pereira de Vasconcelos, o jornalista Evaristo da Veiga e o Senador Nicolau Campos Vergueiro. Os liberais moderados agiam mais como moderados do que liberais. Desde o início da regência os liberais moderados buscaram combater tanto os "caramurus" quanto os "farroupilhas". Estes eram acusados de promover as "desordens" e "anarquia" que levariam ao esfacelamento do país. Os principais cargos públicos e políticos foram sendo ocupados pelos moderados, impondo as suas diretrizes. Os seus tentáculos se estendiam para todos os cantos do Império, formando um verdadeiro Estado dentro do Estado. Por outro lado, cabe ressaltar que estas facções da elite, embora pertencentes a grupos distintos, estavam preocupadas, acima de tudo, em criar condições para a organização do Estado. As divergências que ocorriam eram mais de forma do que de

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conteúdo, pois nos seus quadros predominavam os grandes proprietários de terras e de escravos.” História do Brasil em CD-Rom ATR Durante o Período Regencial, o Brasil foi varrido de Norte a Sul por uma dezena de movimentos que chegaram, inclusive, a colocar em risco a unidade política e territorial do país. Alguns destes movimentos pretendiam a volta de D.Pedro I ao trono (Ceará e Pernambuco em 1831; Minas Gerais, em 1833); outros, insurgiram-se contra as autoridades provinciais favoráveis ao ex-imperador (Pernambuco, em 1831; Pará, em 1835; Maranhão, em 1838); outros, ainda, queriam separar sua província do governo central (Rio Grande do Sul em 1835). Desde 1834, data da morte de D.Pedro I, o embate político ficou restrito ao conflito entre moderados e exaltados. Por estarem ligados aos grandes proprietários de terra, cujos interesses melhor representavam, os moderados saíram vencedores, destruindo o grupo oponente com prisão, exílio e, não raro, a morte.. Após sua vitória, os liberais moderados acabaram por se dividir em dois grupos –regressistas e progressistas- que mais tarde vão dar origem, respectivamente, aos Partidos Conservador e Liberal e vão se revezar no poder até a Proclamação da República, em 1889. Antes disso, a volta à normalidade se concretizaria somente após o período 1840/ 1845, quando seria conseguida a consolidação da unidade nacional por intermédio de uma monarquia centralizada e conservadora.

II) Relação Igreja e Estado no Brasil imperial O Brasil viveu duas décadas de vigorosos choques internos desde a sua independência em 1822. Como vimos, tais conflitos levaram à Abdicação do Imperador e chegaram a colocar em risco a unidade política e territorial do País. Mas, como ficou a Igreja diante de tudo isto? Que posição assumiu no contexto de um Brasil independente? A leitura inicial dos fatos nos revela o seguinte: a Confederação do Equador de 1824 teve entre seus principais líderes Frei Caneca, fuzilado ao fim do conflito; antes dela, em 1817, tantos foram os clérigos que participaram da Insurreição Pernambucana que esta chegou a receber a alcunha de a “Revolução dos Padres”; a Assembléia Constituinte Nacional funcionou sob a presidência do Bispo do Rio de Janeiro e incluía quinze membros do Clero; após a abdicação, um padre, Diogo Antônio Feijó, tornou-se um dos mais importantes e influentes líderes políticos do país: foi Ministro da Justiça das Regências Trinas e Regente Uno entre 1835 e 1837. A presença de tantos padres nos acontecimentos mais importantes do período nos faz supor que a influência da Igreja, enquanto instituição, nos destinos do país nesta nova fase de sua História foi marcante:

Movimentos regenciais mais importantes:

Cabanagem (PA, 1835);

Sabinada (BA, 1837);

Balaiada (MA,1838) e

Guerra dos Farrapos (RS,1835-1845)

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“No começo do século XIX a Influência da Igreja no Brasil era insignificante. Suas bases não tinham sido realmente estabelecidas (...) e o seu poder político era nulo.(...) Isto não significa, porém, que os padres eram politicamente inativos. Por terem recebido uma educação melhor do que a maioria da população, e como esta educação incluía muitos dos princípios do liberalismo, muitos padres eram revolucionários, mas agiam individualmente, e quase nunca em favor dos interesses institucionais da Igreja.

Thomas Bruneau: Catolicismo Brasileiro em Época de Transição O que o autor citado nos diz sobre a situação da Igreja no começo do século XIX continuou sendo verdade para praticamente todo aquele século até, pelo menos, 1875. Após a independência o catolicismo continuou sendo a religião oficial do Estado brasileiro. As atribuições do clero estavam descritas na Constituição de 1824 e o Imperador, da mesma forma que o monarca luso durante o período colonial, interferia nas questões da Igreja através do padroado e do beneplácito. Era prerrogativa sua sugerir nomes para os cargos eclesiásticos mais importantes, só dependendo de uma confirmação do papa. Além disso, todas as bulas pontifícias, mesmo aquelas que tratassem de questões estritamente religiosas, como os rituais litúrgicos, eram submetidas a ele. Estes documentos só teriam validade no Brasil após sua aprovação imperial, o que quase sempre provocava a insatisfação do papado. As relações entre o Estado e a Igreja eram tão estreitas que os padres, que recebiam proventos do governo, exerciam atribuições inerentes ao estado, como registros de nascimentos, casamentos e óbitos. Eram quase "funcionários públicos". Logo após a independência o Vaticano tentou mudar esta situação e buscou negociar com o novo Estado novas formas de relação que aumentassem o grau de autonomia das instituições católicas do país. Não houve qualquer progresso no sentido de aumentar a independência da Igreja brasileira com relação ao Estado. Os autores da Constituição brasileira de 1824 queriam assegurar que a “singularidade” do Brasil continuasse a refletir na sua Igreja. No dizer de Joaquim Nabuco a Igreja teria que estar de acordo com “os costumes do nosso país”. Daí o preceito constitucional de considerar o Imperador como sendo “a primeira autoridade eclesiástica do país” com os poderes e prerrogativas que analisamos no parágrafo anterior. Em síntese: em 1827 o Papa Leão XII baixou a bula Praeclara Portugalliae em que transferia a Ordem de Cristo para o Imperador, ponto culminante de todo um processo de concessões às demandas das autoridades brasileiras ao pleno reconhecimento da autoridade do Imperador sobre a Igreja brasileira. A respeito desta situação afirma Bruneau: “Desde o princípio, portanto, o novo Estado se recusou a ceder o que quer que fosse na questão do controle e denunciou severamente o Vaticano por tentar mudar isso. (...) Roma concordou com o ‘modus vivendi’ aceitando, assim, uma situação ruim mas evitando o problema mais sério de uma Igreja cismática..” Para finalizar a montagem do quadro da relação Igreja-Estado durante o Império vamos focalizar agora as ações dos membros da Igreja que de algum modo tinham poder de influência sobre a ação do Estado. Tomemos como exemplo o Padre Feijó. Bruneau não dá margem a dúvidas a respeito da postura do Padre-ministro e depois Regente quando afirma ser ele “o mais ferrenho inimigo da supremacia papal que a Igreja do Brasil jamais produziu”. Mais adiante: “Pe. Feijó é um exemplo clássico de um padre político que atuou contra o aumento de influência da Igreja, porque isso envolveria uma relação diferente com Roma..(...) E a questão particular que provocou Feijó foi o problema do celibato.Feijó fez disto uma questão candente tanto para a sociedade em geral como para o governo. ‘O poder temporal’, dizia ele,’tem autoridade para abolir o celibato’” ( Bruneau, op. Cit.)

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Como podemos observar, as questões que colocavam em confronto a Igreja de Roma e alguns dos mais importantes membros do clero brasileiro, como é o caso do Padre Diogo Antonio Feijó, eram muitas vezes questões que envolviam princípios caros à doutrina oficial de Roma. Um outro exemplo que segue esta mesma linha é o do Padre Antônio Moura, indicado a Roma em 1833, pelo governo, como Bispo do Rio de Janeiro. Moura, de intensa militância na vida política do país desde 1830 e que tinha, inclusive, sido Presidente da Câmara, “era conhecido como um dos mais ardentes opositores da supremacia papal e tinha assinado três projetos de lei que envolviam importantes mudanças na Igreja nacional. O mais importante desses teria transferido o casamento da jurisdição da Igreja para o Estado”. Por conta disso, a sua indicação serviu como foco de uma crise envolvendo o Estado Brasileiro e a Santa Sé, que se recusou a referendá-la. Para aumentar ainda mais a tensão, o Padre Feijó foi indicado como Bispo de Mariana. A queda de braço entre Roma e o Rio de Janeiro se estendeu por aproximadamente cinco anos até que tanto Feijó quanto Moura abriram mão de suas indicações por motivos de política interna, diga-se de passagem. A subida de D.Pedro II ao trono não mudou substancialmente esta situação, pelo contrário. Segundo Bruneau, “D. Pedro II não estava particularmente interessado na Igreja e na religião, embora oficial e efetivamente as controlasse e fosse responsável pelo seu bem-estar” Já Joaquim Nabuco, citado por Bruneau, afirma em Um Estadista do Império que: “O espírito de D.Pedro II inclinava-se para o preconceito anti-clerical. Ele não era exatamente anti-clerical –Não via nenhum real perigo na existência do clero. Antes não conseguia achar atrativa a vocação religiosa. Para ele, um incansável estudante das ciências, o soldado e o padre eram dois fenômenos sociais sem futuro, duas necessidades temporárias a que gostaria de dar melhor emprego...” E de fato, D. Pedro tratou a Igreja a pão e água durante os seus cinqüenta anos de reinado. Criou apenas três novas dioceses no país durante todo este tempo. Bispos e padres estavam submetidos a um emaranhado aparato burocrático que os manietava de todas as formas. Alguns exemplos servirão para demonstrar a situação incômoda das regras a que se encontravam submetidos os membros da Igreja nacional. Os bispos estavam proibidos de deixar as suas dioceses sem a permissão do governo, sob pena de sua diocese ser declarada vacante com a conseqüente nomeação de um sucessor; a cor do cinto do padre era regulamentada pelo governo; também era objeto de regulamentação governamental a necessidade ou não do uso de velas na igreja. Não é difícil perceber que normas e diretrizes tão tacanhas, insignificantes, minavam a influência da Igreja que era mantida ao sabor dos caprichos do Governo numa situação que, muitas vezes, beirava a humilhação.

III) A Questão religiosa A década de 1860 marcou uma virada da Igreja de Roma com relação a uma série de questões fundamentais, entre elas as suas relações com os países que, como o Brasil, mantinham a supremacia do Estado sobre as “coisas do Espírito”. Em 1864 o Papa Pio IX codificou a visão que tinha da Igreja, do Mundo e dos erros do seu tempo no Syllabus de Erros. Ao mesmo tempo o Papa enfatizava com veemência o papel-chave da Igreja no mundo como intérprete da vontade de Deus. Para finalizar, entre 1868/1870 foi realizado o Concílio Vaticano I que declara a infalibilidade papal. Na Europa e EUA os liberais reagiram com um misto de espanto e escárnio a esta ofensiva da Igreja em direção ao centralismo e reafirmação do seu papel especial na condução vida dos homens em direção à plenitude e à Verdade. Em nosso país a nova postura da Igreja causa apreensão e D.Pedro II não aprovou a encíclica Quanta Cura que acompanhava o Syillabus.

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“Para todos os efeitos o Syllabus não existiu no Brasil; se tivesse existido as contradições entre a situação da Igreja no país e as idéias de Pio IX teriam sido flagrantes.(...) Das oitenta teses que compõem o Syllabus destaco as seguintes: nº 28 que declara o ‘placet’ ilegal; nº 37, que se opões às Igrejas nacionais; e o nº 42 que declara ser errônea a predominância, nos conflitos do direito civil sobre o direito canônico. O Syllabus condena violentamente a Maçonaria, e nessa época, no Brasil, os padres mais importantes e o próprio Imperador pertenciam a lojas maçônicas”

Thomas Bruneau, Op.cit.

Não demorou muito para que as relações entre a Igreja e o Império entrassem em crise. Em 1872, o Bispo de Olinda, Dom Vital Maria, decidiu colocar em prática uma das recomendações da Syllabus. Como o documento proibia qualquer ligação entre católicos e maçons o bispo determinou que o clero não celebrasse missa em comemoração da fundação da loja maçônica pernambucana e ordenou às confrarias religiosas que expulsassem seus membros ligados às lojas maçônicas. Algumas das comunidades se recusaram a cumprir as ordens do bispo e , por conta disto, foram interditadas. Para agravar a situação, o bispo do Pará, D. Antonio Macedo Costa, fez o mesmo em sua diocese. A maçonaria reagiu de pronto e acionou o governo imperial que através do Conselho de Estado determinou que Dom Vital revogasse as proibições que fizera. Lembraram-lhe que a bula Sylabbus não havia recebido a aprovação de Dom Pedro e portanto não tinha validade no país. O bispo reagiu e, em uma atitude inédita, retrucou que o poder civil não poderia intervir em assuntos espirituais. O resultado disso é que os dois bispos rebeldes foram condenados a quatro anos de prisão, com trabalhos forçados. A crise ficou conhecida por "Questão Religiosa" e rompeu definitivamente as relações entre o Estado e o clero, antiga base de sustentação do sistema monárquico. Apesar dos dois bispos terem sido anistiados em 1875, os padres continuaram a usar o púlpito para criticar a forma de governo vigente.

A maçonaria é uma ordem secreta de caráter filantrópico cuja origem remonta ao período medieval, sendo considerada herdeira direta da confraria inglesa dos pedreiros, de quem teria herdado os símbolos e apetrechos (esquadro e compasso, entre outros). Por considerar a crença religiosa uma opção de cada indivíduo a maçonaria entrou em choque com Igreja Católica Apostólica Romana de quem sofreu forte oposição. Ocorre que ao negar a universalidade da crença os maçons teriam colocado em questão a autoridade e prerrogativas que a Igreja considerava como suas. No Brasil, pode-se datar de 1815 a fundação definitiva da maçonaria no Rio de Janeiro, com a Loja Comércio e Artes. Entre maçons brasileiros ilustres do Império figuram , entre outros, José Bonifácio de Andrada e Silva, D. Pedro I, Pedro II, além de inúmeros bispos e padres.

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CAPÍTULO TRÊS A IGREJA CATÓLICA E A RELIGIÃO NO BRASIL REPÚBLICA

I) O Período Liberal (1889-1930) Uma das primeiras providências do Governo Provisório instaurado logo após a Proclamação da República foi a Separação entre a Igreja e o Estado. Em outras palavras, estava extinto o Padroado. Em verdade o decreto apenas oficializou aquilo que já era um fato concreto desde os tempos do Império : o distanciamento da Igreja Católica e do Clero das questões sociais e políticas. A Igreja Católica brasileira passava por um processo de romanização. A “romanização” da Igreja refletiu-se na omissão por parte da hierarquia católica, dos problemas da sociedade brasileira na segunda metade do século XIX. Por conta do Concílio Vaticano I (1869-1870) cuja preocupação dominante da Igreja era com a sua conservação e não com o homem e seu mundo. A perspectiva teológica, que prevaleceu, foi o monólogo e o isolamento do mundo moderno, porque esse representava uma ameaça ao seu prestígio e poder. os bispos brasileiros reproximaram-se de Roma e mantiveram-se distantes das questões internas do Brasil. Optou por combater a maçonaria, o que levou à Questão Religiosa acabando por levar a separação entre a Igreja e o Estado. Em conseqüência dessa ruptura, Roma assumiu a condição dos assuntos internos da Igreja no Brasil, papel antes exercido pelo Estado Imperial. A Igreja passou a ser mais européia e romana do que brasileira, afastando-se das práticas mais populares, ligadas a religiosidade popular. Distanciou-se tanto das elites, influenciadas pela maçonaria e pelo positivismo, quanto do povo. Essa omissão, entre outras razões, facilitava o despertar de movimentos messiânicos , liderados por beatos como o Movimento de Canudos na Bahia encabeçado por Antonio Conselheiro, o Movimento do Contestado, liderado pelo beato João Maria. Enquanto isso a Igreja oficial apregoava que a salvação era resultado de um elevar-se acima do mundo ao invés de ter nele uma atuação. A missão sacerdotal era ser todo de Deus e das almas num mundo socialmente divorciado de Deus e inimigo das almas, viver em contato contínuo com o mundo sem ser do mundo. O bom católico manifestaria sua relação com Deus através da ação, mas a salvação só viria através da fé. Os atos que acompanhavam a fé não tinham nenhum significado sem ela e não eram importantes quanto à devoção pessoal. O reencontro da Igreja Católica com as elites brasileiras deu-se inicialmente a partir da década de 1920 quando Dom Sebastião Leme (mais tarde eleito Cardeal) que havia sido bispo de Olinda e depois do Rio de Janeiro preocupado com a posição subalterna da Igreja brasileira, procurou fortalecê-la. A Igreja Católica, agora desvinculada oficialmente das forças políticas, permaneceu conservadora politicamente, opondo-se à secularização e a outras religiões; advogava uma postura de combate ao protestantismo e aos demais credos, sendo portadora de um discurso claramente anticomunista. Aliou-se às forças politicamente conservadoras e procurou manter sua influência no sistema educacional. Era uma forma de lidar com a

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fragilidade da instituição sem modificar de maneira significativa a natureza conservadora da mesma. Apesar dessa postura triunfalista de conquistar o mundo e cristianizar a sociedade, adquirindo maiores espaços dentro das principais instituições, imbuindo-as de um espírito católico obedecendo as diretrizes de Roma, a instituição não conseguia plena realização de seu projeto, pois, nas áreas periféricas do poder central, em que o controle era dificultado, emergia e se desenvolvia uma espiritualidade cristã popular e notadamente oposta às diretrizes oficiais.

II) O Período Populista (1930- 1964) Na fase populista a Igreja começou a reivindicar um lugar de destaque e influência nas instituições do país. A Igreja Católica passou a ser uma importante base de apoio ao governo . O Marco simbólico dessa colaboração foi a inauguração da estátua do Cristo Redentor no Corcovado, a 12 de outubro de 1931. Getúlio Vargas e todo o ministério concentraram-se na estreita plataforma da estátua, pairando sobre o Rio de Janeiro. Aí o Cardeal Leme consagrou a nação “ao Coração Santíssimo de Jesus, reconhecendo-o para sempre seu Rei e Senhor” Em troca o governo tomou medidas importantes em seu favor. O governo atendeu praticamente a todas as reivindicações do clero católico: ensino religioso nas escolas públicas, assistência religiosa as Forças Armadas. Mais tarde o nome de Deus foi incluído na Constituição de 1934. A Igreja levou a massa da população católica a apoiar o novo governo. A Igreja passou a atuar politicamente através da Liga Eleitoral Católica (LEC) e mobilizou os leigos por meio da Ação Católica, tendo um papel mais decisivo também no campo educacional. Através dos círculos operários católicos, a Igreja procurou penetrar nos meios operários, contando para isso com o apoio do governo Vargas que tinha interesse em diminuir a influência da esquerda sobre o movimento. A partir de 1950 organizou diversos setores da juventude, com a criação da Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Agrária católica (JAC) e da Juventude Independente Católica (JIC) Até 1964 as relações entre a Igreja e o Estado sempre foram ótimas. A colaboração se deu em muitos setores na maioria das regiões do Brasil. Com a criação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros), em 1952 - em que se destacou a atuação de Dom Helder Câmara - , e do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em 1955, foi crescendo a consciência da necessidade de um trabalho conjunto entre os Bispos. Essa consciência aumentou ainda mais a partir da realização do Concílio Vaticano II (1962-1965).

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IV) A Igreja Popular (1964- 1990)

1) Concílio Vaticano II

Tradicionalmente, a rígida postura da Igreja Católica construiu uma imagem externa de uma instituição inflexível e conservadora que, no entanto, não perdurou por muito tempo, pois no século XX o Concílio Vaticano II , um dos mais importantes eventos do catolicismo romano, promoveu, a despeito das contradições e das tensões que o cercaram, as mudanças de maior magnitude que a Igreja já assistiu. Isso reforça o argumento inicial: a Igreja não é uma instituição fechada a mudanças, mas é, em grande medida, influenciada pelas mudanças da sociedade em geral. Após o Vaticano II implanta-se um novo modelo de Igreja. Ela se reconhece como possuidora de objetivos institucionais, quer expandir sua influência no mundo moderno e, por isso, assume uma postura dialogal. A Igreja Católica é uma instituição internacional e o Vaticano exerce influência sobre as igrejas nacionais. Roma determina os parâmetros e a autoridade do Papa não é meramente formal. A Igreja católica possui uma forma de governo monárquica, na qual o papel do papa enquanto líder da Igreja é muito mais do que formal. A despeito das mudanças hierárquicas , a autoridade papal permanece suprema. O Vaticano desempenhou grande influência, ora encorajando, ora contendo as mudanças da Igreja brasileira, durante o período 1916-1985. Entre 1955/1965 houve mudanças significativas na Igreja Católica Romana, em âmbito internacional com reflexos na América Latina, e o país que mais sofreu os impactos dessas mudanças foi o Brasil. No dia 28 de outubro de 1958, após a eleição pelo colégio dos cardeais, o então Cardeal Patriarca de Veneza Ângelo Giuseppe Roncalli foi eleito sucessor de Pio XII. Subia ao trono pontifício um homem de origem camponesa que, em poucos anos de pontificado mudaria significativamente a história da Igreja católica e suas relações com o mundo. Apesar de breve, o pontificado de João XXIII teve um efeito estrondoso. A convicção de que a Igreja Católica não acompanhava a marcha do século XX, e de que, na época, mais de um terço da humanidade vivia sob regimes comunistas ateus, levaram o Papa a imprimir mudanças significativas na estrutura da Igreja. O Concílio enfatizou a missão social da Igreja, declarou a importância do leigo, imprimiu uma noção de Igreja como povo de Deus substituindo a antiga noção de sociedade perfeita, valorizou o diálogo ecumênico, antes embrionário, modificou a liturgia de modo a torná-la mais flexível; e reviu as relações entre a fé cristã e o mundo moderno. Embora o Concílio Vaticano II tenha sido um evento europeu e dirigido pela Igreja européia, suas propostas acabaram conduzindo a mudanças que foram significativas para a América Latina e, principalmente, para o Brasil. A Segunda Conferência dos Bispos da América Latina, que se realizou em Medelim, na Colômbia, em outubro de 1968, acabou se convertendo num grande esforço de traduzir os ensinamentos do Vaticano II para a realidade ímpar do povo latino-americano e de sua situação de subdesenvolvimento.

2) Teologia da Libertação A resposta da Igreja Católica Apostólica Romana na América Latina ao desafio representado pelos pobres, oprimidos, excluídos e marginalizados de toda a América Latina foi a Teologia da Libertação . Iniciada no Concílio Vaticano II e colocada em prática no final da década de 1960, a Teologia da Libertação passa pela conscientização, organização

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e libertação político-social, econômica e cultural de todos os submetidos a qualquer forma de opressão. Tenta unir o político à reflexão teológica, fazendo da fé a dimensão pela qual se filtram as questões sociais. Leonardo Boff, um dos expoentes brasileiros da teologia da libertação, diz que "A tarefa da teologia é ver as coisas não desligadas e suspensas nelas mesmas, mas como coisas que remetem a algo que vai além delas e que são sinais, sacramentos, indicações do mistério que invade o universo, que invade o coração humano, perpassa a História e que as religiões chamam de Deus. Fazer esse discurso, articulando-o com a fé e com o discurso da sociedade, é próprio da teologia socialmente responsável". É sob essa ótica que a teologia da libertação analisa a divisão do poder econômico, político, ideológico e militar em um mundo que exclui grande parte de seus habitantes. Esta teologia acusa de perverso um sistema que se sustenta pela degradação da qualidade de vida, opondo-se à lei fundamental do cristianismo: o amor e a solidariedade. Crendo que o desafio moderno é criar uma consciência mundial, a teologia da libertação tenta fazer valer os direitos cristãos - que, nesta ideologia, também significa direitos civis -, de favelados, desempregados, moradores da periferia, negros, operários, sem-terra, presos, índios, mulheres e organizações sindicais ou comunitárias. As conferências do Celam realizadas em Medellín, Colômbia (1968) e, em Puebla, México (1979) colocaram no centro da orientação da Igreja latino-americana a “opção preferencial pelos pobres”

3) Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) O movimento mais importante dessa Igreja voltada para os pobres é o das comunidades eclesiais de base (CEBs). Segundo Frei Betto em seu livro: O que é comunidade eclesial de base, p 16-7) “São comunidades porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma Igreja e moram na mesma região. Motivadas pela fé, essas pessoas vivem uma comum-união em torno de seus problemas de sobrevivência, de moradia, de luta por melhores condições de vida e de anseios e esperanças libertadoras. São eclesiais, porque congregadas na Igreja, como núcleos básicos de comunidades de fé. São de base, porque integradas por pessoas que trabalham com as próprias mãos (classes populares): donas-de-casa, operários, subempregados, aposentados, jovens e empregados dos setores de serviços, na periferia urbana; na zona rural, assalariados agrícolas, posseiros, pequenos ,proprietários arrendatários, peões e seus familiares. Há também comunidades indígenas. Segundo estimativas não oficiais existem no país, atualmente, oitenta mil comunidades eclesiais de base, congregando cerca de dois milhões de pessoas crentes e oprimidas”.

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IV) A Igreja contra o Estado

1) O Golpe de 1964 e o Regime Militar O movimento militar de 31 de março de 1964, responsável pela queda de João Goulart, considerava-se revolucionário e regenerador pois seus ideais purificadores iriam libertar o país da corrupção e do comunismo. Esse pensamento teve inicio muito antes, no interior da Escola Superior de Guerra, fundada em 1949, sob a influência norte-americana, que desenvolveu a teoria de intervenção no processo político nacional. A síntese da teoria de preservação da Defesa Nacional afirmava que não se tratava mais de fortalecer o Poder Nacional contra eventuais ataques externos, mas reunir forças para combater um ‘inimigo interno’ que procurará solapar as instituições. Foi sob o manto da ideologia oficial do Regime Militar que, em nome da democracia, rasgou-se a Constituição, fechou-se o Congresso Nacional, suspenderam-se as garantias dos cidadãos, prendeu-se, torturou-se e assassinou-se. Forjado pela ESG, o lema “Segurança Nacional e Desenvolvimento” (versão atualizada da expressão “Ordem e Progresso”), inspirou um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil. Vitoriosa, a revolução passou a realizar as ‘cirurgias’ necessárias para devolver ao país a ordem e o bem estar social. A escolha de Castelo Branco como chefe do novo governo deu-se porque o mesmo representava um projeto amplo e global de modernização do país. Suas primeiras atitudes foram, através dos Atos Institucionais, reforçar o poder Executivo, reduzir o campo de ação do Congresso Nacional; suspender a imunidade parlamentar; cassar mandatos; suspender direitos políticos por dez anos. Iniciaram-se também os expurgos nos serviços públicos, gerando um clima de medo e delação. A vitaliciedade e estabilidade dos servidores foram anuladas. Seguiram-se também prisões e torturas. Outra prática adotada para desmantelar o poder de organização e participação da sociedade civil foi a intervenção em sindicatos urbanos e rurais. Foram desmobilizadas as Ligas Camponesas e seus líderes foram presos. Calcula-se que mais de 50 mil pessoas tenham sido demitidas nos primeiros meses do regime militar, 144 pessoas desapareceram em conseqüência da repressão política, 1843 casos de torturas relatados pelo dossiê Brasil: Nunca Mais, 240 pessoas mortas, 238 políticos tiveram seus mandatos cassados em 1964, 452 sindicatos sofreram expurgos e 2828 pessoas foram condenadas à prisão pelo regime militar. Para tornar o aparelho repressor eficiente, foi criado, em 1964, o SNI (Serviço Nacional de Informações), idealizado pelo general Golbery do Couto de Silva, ligado ao grupo castelista, cujo objetivo expresso era coletar e analisar informações pertinentes à segurança nacional, sobre questões de subversão interna na luta contra o inimigo interno. O regime militar se impunha pela violência e pela força, anulando a democracia e a participação popular, seja por meio da repressão, seja pela censura aos meios de comunicação e também pela eficiente propaganda do governo, cuja TV Globo tornou-se beneficiada e porta-voz. Na área econômica, o período militar, com o objetivo de promover o desenvolvimento, realizou o ‘Milagre Econômico’.

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Tratava-se de uma combinação de crescimento econômico com taxas relativamente baixas de inflação. Uma proposta de modernização e reforma do Estado. Entre 1968 e 1969 o país cresceu num ritmo impressionante, registrando a variação respectivamente de 11,2% e 10,0% do PIB o que resulta em 8,1% e 6,8% no cálculo per capita.4 A média do PIB anual foi de 11,2% sendo o pico, em 1973, cujo índice foi de 13% contra uma inflação anual de 18%, em contraste com o período anterior, cujo crescimento inflacionário girava em torno de 25,4 % ao ano.5 A explicação para o Milagre não tinha nada de sobrenatural. Na realidade, conjugava a disponibilidade dos países industrializados capitalistas em fornecer capital com o aumento do investimento de capital estrangeiro. A dívida dos países pobres para com os países desenvolvidos saltou de menos de 40 bilhões, em 1967, para 97 bilhões em 1972 e 375 bilhões em 1980. O setor automobilístico cresceu em torno de 30%. Os investimentos atingiram na ordem de 4,3 bilhões de dólares, o triplo de 1970. Deu-se também a ampliação do crédito ao consumidor e facilidades ao crédito pessoal.6 O ‘Milagre’ foi o desenvolvimento do Capitalismo associado, ou seja, ao contrário de uma política liberal, que deixava a economia ao sabor da mão invisível do mercado a tarefa de promover o desenvolvimento, o Estado intervinha em uma extensa área, indexando salários, concedendo créditos, isenções de tributos aos exportadores. Muitos setores da grande indústria, dos serviços e da agricultura que gritam contra os gastos e a intromissão do Estado na economia beneficiaram-se largamente da ação do Estado naqueles anos.7 Entretanto, os grandes pontos vulneráveis do milagre eram a dependência externa e o endividamento bem como a necessidade de produtos importados como o petróleo. O Milagre deixou como herança aspectos negativos de natureza social. Apesar do PIB ser um indicador do estado geral da economia, seja em números brutos, seja per capita, ele não exprimia a distribuição da renda. A política econômica dos tecnoburocratas pretendia fazer o ‘bolo crescer para depois dividi-lo’. Privilegiou-se assim a acumulação de capitais sem contudo distribuí-los. Ao contrário, o salário dos trabalhadores acabou comprimido em contraste com a classe media que teve um aumento de seu poder de consumo. Tudo isso resultou em uma concentração de renda acentuada que vinha de anos anteriores, levando a desproporção entre o avanço econômico e o retardamento e abandono dos programas sociais pelo Estado. Atualmente, o Brasil é um país que possui uma posição destacada pelo seu potencial industrial em contraste a seus baixos indicadores de saúde, educação e habitação. Em 1995, um relatório do Banco Mundial apontava o Brasil como o país em que há maior desigualdade social e de renda do mundo. 51,3% da renda brasileira concentra-se em 10% da população. Os 20,0% mais ricos, detêm 67,5% da riqueza, enquanto os 20,0% mais pobres detêm apenas 2,1%.8

4 Conf. FAUSTO, Bóris - História do Brasil. p. 482 5 Ibidem. p.485. 6 Ibidem. p. 485 7 FAUSTO, Bóris - História do Brasil. p. 486 8 Folha de São Paulo, 8/4/95.

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1% mais rico da população fica com 13,9% da renda gerada no país. Os 50% mais pobres só tem 12,1% da renda do país. Na área rural, apenas 12% da população dispõe de instalações sanitárias. Estão fora da escola 4 milhões de crianças. No Nordeste a mortalidade infantil atinge 88,2 por mil crianças nascidas vivas. São considerados pobres 41,9 milhões de brasileiros, o equivalente a 26,8% da população.9 Do total de pobres 16,6 milhões são indigentes.10 Existem no país 20,2 milhões de analfabetos com dez ou mais anos de idade. Entre crianças de 10 a 14 anos 16,9% já trabalham. Estão fora da escola 4 milhões de crianças. Entre os trabalhadores 52% ganham menos que dois salários mínimos e entre as pessoas idosas 31% (3,1 milhões) não recebem auxílio da seguridade social.11 As diretrizes econômicas não consideravam a população e sequer a ecologia. O crescimento econômico era feito em detrimento da preservação do meio ambiente. Exemplo disso, encontramos hoje no tráfego e na poluição das grandes cidades, na construção da Transamazônica, que ainda hoje provoca grande impacto ambiental.

2) A Igreja Católica e o Regime Militar Inicialmente, uma parcela significativa da Igreja mostrou-se simpática ao movimento militar de 1964. Para a maioria significativa do alto clero, era preciso conter o avanço comunista. Um exemplo disso foi Dom Agnelo Rossi, que chegou mesmo a participar, na primeira fila, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, dias antes do golpe. Entretanto, não demoraram a surgir vários conflitos entre a Igreja e o Estado. O regime autoritário começou a prender e a torturar vários membros do clero, que tinham uma atuação popular e eram acusados de subversão. Nesse momento, a Igreja, em especial a de São Paulo, lança-se na defesa pelo respeito a dignidade e aos Direitos Humanos. A Igreja latino-americana, que buscava sua identidade, acolhe as mudanças que o Concílio Vaticano II trouxera e redimensiona seu papel na sociedade. Assiste-se ao surgimento de uma Teologia singular nascida das exigências específicas do povo latino-americano. A Teologia da Libertação, que se coloca numa perspectiva popular e libertária, cuja principal missão histórica é a construção do reino ao lado do povo sofredor e oprimido, A Igreja brasileira atravessava momentos difíceis com a situação de violência e desrespeito aos princípios básicos da vida humana. Por isso engaja-se também na luta pela dignidade material das populações pobres. A Igreja ergue-se na luta pela vida, pela dignidade e pelos direitos fundamentais da pessoa humana, encontrando em outras religiões uma força aliada na luta pelo respeito à vida e à dignidade humana. Dom Paulo e a Igreja de São Paulo serão o principal símbolo desse combate. Entretanto, o conflito entre a Igreja e o Estado não ocorreu apenas em São Paulo. A Igreja do Nordeste foi a primeira a desenvolver uma ação pastoral popular e defensora da dignidade humana. A figura de Dom Helder Câmara, entre tantos outros, confirma a natureza humanista que a Igreja adquirirá a partir de 1964. Durante os anos da ditadura militar, a única instituição capaz de fazer oposição ao governo era a Igreja Católica. A maior oposição vinha do Nordeste. Lá a Igreja, desde a década de

9 Pobres são consideradas as pessoas sem renda para atender necessidades básicas como moradia, vestuário, educação, etc. 10 Indigentes, incluídos entre os pobres são aqueles que não conseguem sequer satisfazer as necessidades alimentares 11 Cf. IBGE, In Folha de São Paulo, 8/4/95.

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1950, havia orientado suas preocupações para os problemas sociais, através de socorro às vítimas da seca. Engajou-se amplamente em programas de Educação de Base (MEB)e na formação de sindicatos. A Igreja Católica foi a única instituição com autonomia suficiente para fazer oposição ao regime. Era a única que podia criticar o modelo econômico e a repressão, defender os Direitos Humanos e organizar as classes populares. No Nordeste, a crítica da Igreja dirigiu-se às condições de miséria da população, agravada pela industrialização forçada e o descaso do campo, à concentração de renda e aos desequilíbrios regionais... O exemplo disso é Dom Helder Câmara, Arcebispo de Recife e Olinda, cujo passado esteve ligado ao conservadorismo, passou a partir dos anos 50 a figurar entre o maior exemplo da Igreja progressista e popular À medida em que a Igreja denunciava o governo e a violência, o conflito entre a Igreja e o Estado ia aumentando. Padres e Bispos passavam a sofrer intimidações policiais, espancamentos, prisões e torturas. Os exemplos de padres vitimas de torturas são vários: O bispo de Nova Iguaçu, Dom Adriano Hypólito, foi seqüestrado e maltratado; alguns órgãos de imprensa da Igreja foram censurados como o Semanário ‘O São Paulo’ e a ‘Rádio América’ e outros fechados, como a Rádio Nove de Julho. O padre Antonio Henrique Pereira Neto assessor de Dom Helder Câmara, foi seqüestrado e morto no Recife; Frei Tito de Alencar suicidou-se na França em conseqüência das torturas sofridas no Brasil; o padre João Bosco Penido Burnier foi assassinado por um soldado da polícia militar, quando acompanhava o bispo Dom Pedro Casaldáliga à cadeia de Ribeirão Bonito, no Mato Grosso, para defender duas mulheres que estavam sendo torturadas. Ao lado da Igreja Nordestina, a Igreja de São Paulo, sob a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns, saiu em defesa dos Direitos Humanos e na luta pela redemocratização do país. Em São Paulo, a ação da Igreja destacou-se pelo dinamismo de sua Comissão de Justiça e Paz, sua posição firme contra as torturas e em favor dos Direitos Humanos, a mobilização das periferias e sua ação comum com intelectuais, imprensa, universidade e sindicatos para uma mudança do atual regime e a conquista da participação popular dentro de um Estado de pleno Direito. A partir de 1977, a questão dos trabalhadores e seus direitos, nos conflitos e greves do ABC, encontrou uma Igreja aberta e solidária com a classe operária e com a sua luta. Através da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, a Igreja contribuiu para denunciar, ao lado do promotor de justiça, Hélio Bicudo, o Esquadrão da Morte, cujos atos praticados por agentes policiais consistiam em eliminar pessoas consideradas criminosas em atos brutais de assassinatos violentos. Foi também o primeiro a apoiar publicamente a defesa da dignidade do homem, incentivando a criação de comissões pastorais, de Centros de Defesa dos Direitos Humanos. Para tanto, como instrumento legal, que emprestasse eficácia à defesa desses direitos, em 30 de julho de 1975 é criada a Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Foi um instrumento de luta contra a linha dura do regime militar.

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Em plena vigência do regime militar no Brasil, Dom Paulo, através da Arquidiocese de São Paulo, abriu canais de comunicação entre a sociedade civil e o governo. Empenhou-se em solucionar os problemas dos presos e desaparecidos do regime militar. Mobilizou a Arquidiocese de São Paulo em torno dos padres torturados. Denunciou com veemência as mortes dos operários Luiz Hirata, Manuel Fiel Filho e Santo Dias, este assassinado pela polícia militar durante uma greve de metalúrgicos de São Paulo em 30 de outubro de 197????? Denunciou o assassinato do jornalista Wladmir Herzog em 1975, nos calabouços do DOI-CODI, transformando o culto ecumênico em um protesto político, e do estudante Alexandre Vannucchi Leme, preso e torturado em 1973. Formou também a Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, cuja tarefa era ajudar as pessoas nessas questões e organizá-las para se defenderem contra as violações dos seus direitos. Com o intuito de ampliar a consciência dos cidadãos brasileiros sobre os seus direitos e com isso tentar mobilizar a sociedade em seu conjunto para combater a repressão, em 1973, com a colaboração de organizações evangélicas, foram impressos os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em edição popular, gratuitamente distribuídas, que atingiu a cifra de 200 mil exemplares na 1ª edição. Nos cinco anos seguintes, houve mais três edições, num total de 1 milhão e 800 mil exemplares, distribuídos até os mais longínquos rincões do país. Tratava-se um projeto ecumênico que articulou o CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço). Foi impressa a Declaração com textos do Antigo e do Novo Testamento e com citações de origem católica e das Igrejas evangélicas. O lançamento ocorreu em 26 de outubro de 1973, em comemoração dos 25 anos da Declaração. Esse projeto realizado em parceria com o reverendo Jaime Wrigth indicava que as fronteiras religiosas desapareciam diante da necessidade de defender os Direitos Humanos De um trabalho incansável em favor das vítimas do regime militar, surgiu o Projeto “Brasil: Nunca Mais”, preparado secretamente durante cinco anos e baseado em documentos oficiais do governo, copiados do Arquivo do Superior Tribunal Militar na sua totalidade, reunindo 707 processos, com mais de um milhão de páginas. O resultado é um resumo em forma de livro, em linguagem simples, que busca retratar com fidelidade o que foi a tortura institucionalizada durante a vigência do regime militar. Quando analisa-se a queda do regime militar vigente de 1964 a 1985 e o retorno gradativo ao Estado de Direito, após a segunda metade da década de 1970, é notório a participação da Igreja e de Dom Paulo nesse processo. Suas ações contribuíram decisivamente para a abertura política do país.

4) Movimento Carismático Uma das mais importantes expressões da renovação conservadora no interior da Igreja católica foi o crescimento do Movimento Carismático.

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Trata-se de um movimento mundial da Igreja Católica, oficialmente chamado de Renovação Carismática Católica, criado em dezembro de 1965, depois do Concílio Vaticano II. Tem três características: a oração, o gregarismo e o sentido de missão. Estudos feitos na década de 1990 mostraram que, no Brasil, o movimento carismático conseguiu conter parte da sangria de fiéis católicos para as religiões evangélicas. Enfrenta resistências de alguns setores da Igreja Católica que vêem nesse movimento características espiritualistas, nas quais os fiéis vão direto a Deus, sem a mediação daqueles que seriam seus representantes na Terra. De origem norte-americana, chega ao Brasil em 1968, introduzida pelo padre jesuíta Haroldo Rahn. Aproxima-se do pentecostalismo ao reafirmar a presença do Espírito Santo na religião. Ganha força principalmente no interior e entre a classe média. Em 1994, os carismáticos representam 5% dos católicos do país. Hoje somam 8 milhões de simpatizantes, de acordo com o próprio movimento, presente em cerca de 95% das dioceses, na forma de grupos de oração. No Brasil é o movimento que mais atrai a população feminina, com 70,3% dos adeptos, pela pesquisa Datafolha de 1994. Um dos principais expoentes do movimento de Renovação Carismática é o padre Marcelo Rossi, 31 anos. Em suas missas, realizadas na Zona Sul de São Paulo, chega a reunir cerca de 60 mil pessoas, atraídas por seus cantos, coreografias e diálogos com a platéia. Em setembro de 1998 lança o CD Músicas para Louvar o Senhor, que atinge venda recorde de 2,2 milhões de cópias em dois meses. Na mesma linha, desponta no Rio de Janeiro o padre José Luiz Jansen de Mello Neto, 28 anos, conhecido como padre Zeca.

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CAPÍTULO QUATRO RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

I) Introdução O nosso principal objetivo aqui é reconstituir os elementos mais importantes das religiões afro-brasileiras

Mas esta não é uma tarefa fácil. Em seu livro Candomblé e Umbanda – Caminhos da devoção brasileira o pesquisador Wagner Gonçalves da Silva ressalta que as religiões africanas possuíam “princípios e práticas doutrinárias que, em geral, eram estabelecidas e transmitidas oralmente”. Não havia, portanto, um livro sagrado como a Bíblia dos cristãos ou o Alcorão muçulmano que reunisse e eternizasse ensinamentos, valores e crenças que pudessem ser recuperadas de forma sistemática por pesquisadores e estudiosos da religião. Mais à frente ele afirma que por serem os cultos e ritos afros manifestações religiosas “originárias de segmentos marginalizados em nossa sociedade (como negros, índios e pobres em geral) e perseguidos durante muito tempo, há poucos registros históricos sobre eles”. E estes, quando existem, apresentam aquelas manifestações “de forma preconceituosa ou pouco esclarecedora de suas reais características”. O autor está se referindo basicamente aos processos de julgamento de muitos seguidores das religiões afro que foram acusados de “bruxaria” pelas autoridades da Igreja Colonial. Ou, mais recentemente, os documentos de origem policial que relatam a perseguição a umbandistas e “macumbeiros”, acusados de curandeirismo e charlatanismo. Não é por acaso que ainda hoje lemos documentos ou textos como o que transcrevemos abaixo: A Federação Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira estima que cerca de 70 milhões de brasileiros têm ligação com alguma das duas mais importantes religiões afro-brasileiras: candomblé ou umbanda. Segundo o IBGE, apenas 0,4% da população (cerca de 650 mil pessoas) declarava, em 1991, seguir cultos afro-brasileiros De acordo com órgãos ligados à Igreja Católica este número percentual seria 1,5% da população brasileira (2,5 milhões de pessoas aproximadamente). A divergência tem como causa provável a própria história dos cultos afros em nosso país. Por sofrerem uma perseguição tenaz e por serem vistos por setores da população como seguidores de ritos bárbaros, umbandistas, seguidores do candomblé ou de outras manifestações de origem africana, estabeleceram a tradição de esconder sua opção religiosa. Quando questionados, declaravam-se seguidores do catolicismo. Almanaque Abril 2000

Este termo refere-se a cultos religiosos de origem africana que, no Brasil, sofreram influência do catolicismo e das crenças religiosas indígenas. São exemplos de religiões afro-brasileiras: candomblé, a macumba, o pará, o vodu — religião dos negros fons, sobrevivente no estado do Maranhão — e a quimbanda.

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II) Origens: a imposição do catolicismo Durante o período colonial chegavam ao Brasil negros dos mais diversos pontos da África. A diversidade de etnias evidenciava, obviamente, a existência de uma variedade de culturas que, agora, enfrentavam um novo habitat, ao qual precisavam se adaptar. O que ocorreu no país naquela ocasião foi uma mistura proposital que os proprietários tomaram o cuidado de fazer entre os negros de etnias e culturas diferentes com o objetivo claro de dificultar a sua união contra o inimigo comum: o branco escravizador. Segundo Roger Bastide, num mesmo local, poderiam coexistir “africanos cujas culturas variavam entre o monoteísmo e o politeísmo, organizações políticas de base totêmicas e negros advindos de vastos reinados; povos que seguiram a linhagem matrilinear, até aqueles que tinham características patrilineares”. O antigo princípio de “dividir para melhor governar” , adaptado ao processo de dominação imposto pelo homem luso-brasileiro ao negro africano, foi aplicado aqui com maestria. Mas não foi suficiente. O passo seguinte foi o da “conquista da alma” como meio de efetivar o a dominação. Ao chegarem na colônia os negros africanos eram batizados e tinham o seu nome de origem substituído por um outro, cristão. Eram cristianizados ad hoc pois, segundo a Igreja, era sua preocupação “salvar-lhes a alma da danação eterna”.Em seguida, houve a permissão para que pudessem ser organizadas confrarias como as de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São Benedito em que a assimilação

teria continuidade, agora, através da mistura de crenças e valores religiosos cristãos e africanos. A idéia era a de se tolerar certas práticas religiosas e culturais que os negros trouxeram consigo e que não colocavam em risco os interesses dominantes na sociedade colonial brasileira. Além do mais, esta aceitação se dava na medida em que os elementos da crendice africana pudessem ser reinterpretados em termos cristãos.

As Confrarias assim como outras associações de leigos como as Irmandades e a Ordem Terceira “tinham por objetivo integrar a comunidade católica atravésda participação de seus membros na ordem religiosa local. Competia às irmandades organizar festas da parórquia, recolher o dízimo e divulgar a fé cristã. (...) Os negros impedidos de participarem em irmandades dos brancos, foram reunidos em irmandades próprias”.

Wagner Gonçalves da Silva, op cit.

“Negar-lhes totalmente seus folguedos, que são o único alívio de seu cativeiro, é querê-los desconsolados, melancólicos. (...) Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho...”

Antonil, apud Laura de Mello e Souza: O Diabo e a Terra de Santa Cruz

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Em resumo: o culto aos santos e virgens negros, imposto ao africano como uma etapa da cristianização, representava, para o senhor branco, um meio de controle social, um instrumento de submissão para o escravo. Todavia, este soube transformá-lo num instrumento de solidariedade e de luta social, principalmente quando aumenta o êxodo do campo para a cidade, onde os negros ficavam mais " livres". Há ainda um outro aspecto: ao retomar os valores de seus ancestrais, o africano reconstruia uma tradição que tendia a se perder com o passar do tempo. Esta tradição reinventada remete-os, por sua vez, a um tempo e a um lugar agora idealizados: o passado africano. Com isto, mostra-lhes que a sua história não começou quando foram escravizados e transformados em mercadorias; mostra-lhes que sua cultura pode desafiar a opressão do branco, o seu poder político e religioso, impondo-se, no sincretismo e na tradição, através da música, da culinária, dos rituais do calundu, do candomblé e, mais tarde, da Umbanda.. Vejamos agora o que estes rituais têm de mais siginificativo.

IV) Religiões afro-brasileiras mais importantes

1) O Calundu Originário do universo cultural dos bantos

e uma das primeiras formas de manifestação do que hoje designamos como candomblé, o calundu é um termo que genericamente serve para identificar toda uma série de manifestações de caráter religioso que, segundo Wagner Gonçalves da Silva, “abrangia imprecisamente dança coletiva, cantos e músicas acompanhadas por instrumentos de percussão, invocação de espíritos, sessão de possessão, adivinhação e cura mágica”. De acordo com o mesmo autor, até o séc. XVIII o calundu foi o principal e mais difundido ritual religioso negro brasileiro, antepondo-se aos rituais dos terreiros de candomblé e umbanda surgidos nos dois séculos seguintes. Diferentes especialistas e pesquisadores como Luiz Mott e Laura de Mello e Souza apresentam relatos de calundus em Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, numa mostra da sua abrangência territorial que atingia as mais importantes e populosas regiões da Colônia. Do ponto de vista da sua organização interna, os cultos do calundu eram estruturados em torno de sacerdotes, os calundeiros. Sincréticos, eram rituais repletos de cerimônias que misturavam elementos diversificados: africanos como atabaques e o uso dos búzios para previsões do futuro; católicos como crucifixos e sacramento do casamento; e , finalmente, superstições populares de origem européia, como a crença em almas que falam através de objetos ou incorporadas em seres vivos.

Os bantos englobam populações africanas vindas das áreas onde hoje estão localizados o Angola, Congo e Moçambique. É considerado o grupo que mais escravos forneceu ao Brasil e aquele que mais influências exerceu sobre a nossa cultura, da culinária à música. Escravos bantos estavam espalhados por todo o litoral brasileiro e pela região das minas.

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Nascidos nas fazendas, os calundus transformaram-se quase sempre em práticas clandestinas, dada a perseguição que sofriam os seus seguidores, acusados de bruxaria e curandeirismo. Contudo, o crescimento das cidades e, dentro delas, o crescimento do número de negros libertos e mulatos ampliou sensivelmente as práticas religiosas de origem africana. A liberdade de culto garantida pela constituição de 1824 fez com que a Igreja mudasse de tática no combate aos cultos afros: deixou de lado a perseguição e repressão tradicionais e passou a difundir o sentimento de superioridade da fé branca, católica e civilizada sobre as crenças “selvagens e ignorantes” do povo negro.

2) O Candomblé A palavra candomblé tem também origem e significado que remonta à África negra e designa reunião para fins de rituais de adeptos dos orixás, personificação ou deificação das forças da natureza ou ancestral divinizado que, em vida, obteve controle sobre essas forças. O termo passou a ser utilizado de forma sistemática a partir de meados do século XIX, mas, diferentemente do calundu, os adeptos do candomblé organizavam-se sob a forma da auto-denominada família-de-Santo. Principalmente após a libertação dos escravos, em 1888, era esta a estrutura de terreiros “onde negros e mulatos

(...) se reuniam, estabelecendo vínculos baseados em laços de parentesco religioso”. O pai-de-santo é autoridade religiosa máxima desta estrutura e é quem pode “manipular amuletos e fazer sacrifícios de animais, rezas e invocações secretas, conhecer o futuro, curar doenças, melhorar a sorte e transformar o destino das pessoas ( Wagner G. Silva, op.cit.). As questões que se colocam então são as seguintes: qual a origem desta forma de organização dos cultos afros no Brasil? Por que há a afirmação da família-de-santo como célula mãe da religiosidade negra no Brasil? Só poderemos responder adequadamente a estas perguntas se mantivermos um olhar atento ao que ocorreu em nosso país nos anos que se seguiram ao fim da escravidão e à Proclamação da República; se examinarmos como passou a viver o grande contingente de negros que vivem agora na condição de ex-escravos. Os últimos anos do séc XIX encontram no Brasil um quadro social em que o negro recém liberto da escravidão na medida mesma em que ganhou sua liberdade pessoal perdeu os meios de garantir a sua subsistência. Expulsos das fazendas onde foram substituídos pelos imigrantes europeus, só restava a milhares de negros a periferia das cidades, onde o que lhes esperavam eram as mais degradantes condições de vida e de trabalho. Restou aos antigos cativos das fazendas os serviços mais desqualificados no cais do porto, na limpeza pública, na construção civil, nas oficinas, na construção e manutenção das vias férreas. Eram os trabalhos mais pesados, sujos e de pior remuneração. Alguns poucos dedicavam-se ao comércio ambulante, da venda de porta em porta de produtos artesanais ou doces.

Termo genérico, o candomblé serve para designar uma série de cultos semelhantes entre si e espalhados pelo país: candomblé de caboclo, Bahia; Xangô, Pernambuco; macumba, Rio de Janeiro; Cabula, Espírito Santo, entre outros.

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Os mais desafortunados –se é que isto é possível- viviam longos períodos de desemprego e miséria quase absoluta. É dentro deste contexto que surgirão nos principais centros urbanos do país, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, os terreiros e casas do Candomblé. Pertencer a uma familia-de-santo era a saída encontrada para a maioria daqueles que haviam sido destituídos de um grupo de referência, inicialmente pela escravidão e depois pela miséria e o abandono a que foram relegadas as massas de origem afro após a abolição. Assim, os terreiros se tornavam centro de solidariedade e resistência étnica, traço que só muito mais tarde deixou de ser a marca do Candomblé quando foi substituído pelos vínculos puramente espirituais e religiosos, abrindo mão do caráter de “local de uma raça” para se tornar num espaço de certa forma ecumênico. A iniciação dos que aderiam aos terreiros e famílias-de-santo se dava da seguinte maneira: “É pela iniciação que uma pessoa passa a fazer parte de um terreiro e de sua família-de-santo, assumindo um nome religioso (africano) e um compromisso eterno com o seu deus pessoal e ao mesmo tempo com o seu pai ou mãe-de-santo. Assim, um adepto, ao iniciar, nasce para a vida religiosa como “filho” espiritual de seu iniciador, o pai ou mãe-de-santo. Tendo o iniciado um pai ou mãe-de-santo, terá também irmãos/irmãs-de-santo (os iniciados por seu pai-de-santo), tios e tias-de-santo (os irmãos/irmãs de seu pai-de-santo), avô e avó-de-santo (pai ou mãe-de-santo de seu pai-de santo) e assim sucessivamente. A esses parentes religiosos, deve-se consideração, o respeito, o amor e a obediência que, supôe-se, deveriam existir entre os membros de qualquer família; ou ainda mais, pois são pessoas unidas por vínculos sagrados” (Wagner Gonçalves da Silva , op. Cit ) Vejamos agora quais eram as principais entidades do panteão do candomblé

Há que se ressaltar inicialmente o fato de que na constituição do panteão das religiões afro-brasileiras em geral, e no candomblé em particular, o sincretismo ocupou um espaço todo especial e desempenhou um papel fundamental.

Classificação dos Orixás

Orixá Catolicismo Elemento Cor Dia

Exu Demônio Fogo Vermelho, preto Segunda, Sexta Ogum Sto.Antonio (BA)

S. Jorge (RJ) Fogo, ar, ferro Vermelho, azul-escuro Terça

Oxóssi S. Miguel (PE), S.Jorge (BA), S.Sebastião (RJ)

Mata Azul-claro, verde Quinta

Xangô S. Jerônimo S.Pedro

Raio, trovão Vermelho, branco Quarta

Oxum NS. Conceição N.S. Aparecida

Água doce Amarelo Sábado

Iemanjá N.S. Conceição N.S. Navegantes

Água salgada Azul-claro Sábado

Iansã Santa Bárbara Vento, raio, tempestade

Vermelho, marron, rosa

Quarta

Oxalá Jesus Cristo N.Sr. do Bonfim

Ar Branco Sexta

Fonte: Wagner G. Silva: op.cit (pp. 94-97)

(2) S.m. O conjunto das divindades de uma religião politeísta.

Novo Aurélio – Séc. XXI

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Qual a razão disso? Por que a influência e a mistura de crenças agora que o negro podia com mais liberdade voltar-se para os deuses de seus ancestrais? A verdade é que embora o negro, escravo ou liberto, tenha sido capaz de manter no Brasil boa parte dos seus valores e crenças religiosas há um problema a ser enfrentado: o nosso país não é a África. As condições sociais aqui existentes não reproduziam as estruturas familiares e sociais típicas do continente africano. Isto explica o porquê de ganhar força no candomblé o culto aos orixás: divindades mais diretamente ligadas às forças da natureza e à maninpulação de elementos mágicos e de adivinhação. Por tudo isto, no Brasil perde espaço o culto aos ancestrais e aos deuses familiares que eram a base de sustentação dos cultos de bantos e yorubás africanos. Por outro lado, a relação com o mundo do branco empurrava as crenças afros em direção ao sincretismo com os santos do catolicismo. Para sentir-se “brasileiro” e não ser colocado à margem da vida social do país, o negro tinha de assumir em alguma medida o catolicismo. Na passagem do século XIX para o século XX era impensável alguém sentir-se brasileiro sem ligação com a religião dominante do país. Além do mais, o culto católico aos santos ajustou-se como uma luva ao politeísmo africano. (ht-7) Divindades do panteão afro-brasileiro: Acima de todos paira o Ser Supremo Olodumaré, criador de todas as coisas da natureza, os homens e os orixás, entidades intermediárias entre o Supremo e os homens. Principais orixás: Exu: Mensageiro entre os homens e os deuses; Espírito justo mas vingativo. Por suas características (entre seus alimentos prediletos estavam a pimenta e a cachaça...) era considerado demoníaco pela Igreja no Brasil. Ogum: Orixá da guerra e do fogo. Seus símbolos são a espada e ferramentas agrícolas; É associado a Santo Antônio, santo guerreiro que no séc.XVI em Portugal era considerado o protetor dos católicos contra os luteranos. Oxóssi: Protetor das matas e caçador. É um dos mais populares deuses do panteão afro. Na Bahia foi sincretizado com São Jorge e no Rio de Janeiro com São Sebastião. Xangô: É o senhor dos raios e do trovão. Controla as intempéries e, no Brasil, é associado a São Jerônimo. Oxum: É a deusa das água doce, fontes, lagos e cachoeiras. Na África está relacionada com a fertilidade das mulheres, à garantia da procriação e à subsistência das comunidades. No Brasil está relacionada à Nossa Senhora da Conceição. Iemanjá: É a mãe das águas e tida como mãe de todos os orixás. Chamada de Rainha do mar, Iara, Mãe D´Água etc, é das mais populares entidades dos cultos afro. É associada a Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora dos Navegantes. Iansã: Deusa iorubana dos ventos, raios e tempestades. Mulher de Xangô. No sincretismo afro-brasileiro é associada a Santa Bárbara. Oxalá: É o orixá da criação. Modelou em barro o corpo dos homens para que estes recebessem o sopro de vida de Olodumarê. Por estas características, é relacionado a Jesus Cristo no sincretismo afro-brasileiro.

3) A Umbanda

As três primeiras décadas do século XX viram nascer em nosso país uma nova maneira de se enxergar o povo brasileiro, seu dia-a-dia e sua cultura. Desde a publicação, em 1902, de Os Sertões, obra em que Euclides da Cunha narra a epopéia dos sertanejos de Canudos, até

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o lançamento de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire, em 1933, há um processo de mudança no modo com que setores da nossa intelectualidade passam a tratar a realidade brasileira. Há uma idealização do “nacional e popular” e uma tentativa de buscar nas nossas raízes, na nossas tropicalidade e mestiçagem o fio condutor para a “construção de um país moderno e progressista”. O caipira ingênuo e bem intencionado de Monteiro Lobato; Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade; e os personagens populares e mestiços da pintura de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari e da música de Dorival Caymmi, são os elementos que servirão de estofo para a reconstrução histórica do país e a criação de um Brasil novo, moderno, diferente dos carcomidos modelos europeus... No plano político, o movimento tenentista pregava abertamente contra a República Oligárquica dos coronéis e defendia a necessidade de se promover “a modernização do país” . Entre 1925 e 1927 a Coluna Prestes percorreu 24 mil quilômetros pelo interior do país, promovendo o encontro dos seus integrantes com um Brasil quase que desconhecido de suas elites urbanas. No plano cultural, as religiões populares e os ritos afros tornam-se referência para muitos autores, como Jorge Amado, que se dispõem a retratar a realidade brasileira. Sua obra Jubiabá torna o candomblé nacionalmente conhecido ao colocar como personagem um pai-de-santo como guia espiritual de um líder popular interessado na integração do negro na sociedade brasileira. Em Casa Grande e Senzala Gilberto Freire criou o mito da “democracia racial brasileira” ao tratar do processo de miscigenação ocorrida neste lado dos trópicos e que, segundo ele, deu origem a um povo “de caráter benevolente e cordial”... Num quadro como o que sintetizamos acima não é irrelevante a afirmação de que estavam dadas as condições para o surgimento de uma religião “brasileira”. E é esta a pretensão da umbanda: religião que nasce no Rio de Janeiro, nos anos 20, a partir da mistura de crenças e rituais africanos e europeus. Segundo Wagner Gonçalves da Silva a umbanda nasceu quando “ kardecistas de classe média (...) passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afro-brasileiras e a professar e defender publicamente esta ‘mistura’ com o objetivo de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião” (op.cit.)

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Em linhas gerais, o culto umbandista considera que o universo é povoado de entidades espirituais, os guias. Estes entram em contato com os homens através de um iniciado (o médium), que os incorpora. Tais guias se apresentam por meio de figuras como o caboclo, o preto-velho e a pomba-gira.. Pode-se dizer que o kardecismo ao abraçar os ritos africanos do candomblé depurou-o dos seus “excessos” e “atrasos” (sacrifício de animais, bebedeiras, presença de espíritos diabólicos) e acabou por legitimar e dar um sentido diferente a entidades do novo universo sincrético. Assim, os elementos centrais da nova religião - caboclos e pretos-velhos – representavam os espíritos de índios e negros africanos e tinham como missão “irmanar todas as raças e classes sociais que formavam povo o brasileiro”.

“Criado na França em meados do sécul XIX por Allan Kardec esta doutrina filosófica e religiosa fez grande sucesso no Brasil. Como base doutrinária, o kardecismo estabelece a existência de um Deus criador, onipotente e onipresente , porém muito distante dos homens. Mais próximos destes estão os ‘guias’ (espíritos dos mortos), cuja missão é ajudar os homens a evoluir através da prática da caridade, do bem e do amor ao seu semelhante.(...) A crença na reencarnação é um dos pontos centrais deste sistema religioso. Os espríritos passariam por sucessivas encarnações ao longo das quais poderiam evoluir através da prática do bem ou regredir cedendo aos vícios do corpo material (alcoolismo, violência, ignorância etc.) (...) A mediunidade (capacidade de entrar em contato como o mundo dos espíritos) é considerada uma qualidade inata e necessária ao homem em seu processo de evolução espiritual.”

Wagner Gonçalves da Silva, op cit.

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CAPÍTULO CINCO

RELIGIÕES PROTESTANTES

Afora a efêmera tentativa, por parte de huguenotes franceses, para fundar uma colônia no Rio de janeiro no século XVI, a única manifestação de protestantismo no Brasil, até inícios do século XIX, se deu durante a ocupação holandesa em Pernambuco, no período 1630-1654. Data de 1824 o surgimento das primeiras igrejas luteranas, reflexo da intensificação da imigração alemã. Na década de 1850 instalaram-se no país igrejas congregacionais e presbiterianas, fundadas por missionários americanos. A esses grupos seguiram-se metodistas, batistas e episcopais. Na segunda metade do século XX difundiram-se sobretudo grupos de caráter pentecostal. Pentecostalismo é o movimento de renovação carismática evangélica baseado na crença de que a experiência do batismo no Espírito Santo deve ser normativa para todos os cristãos. São muitas as denominações pentecostais, mas todas tem em comum o batismo no Espírito Santo, que desceu sobre os discípulos reunidos em assembléia, conforme está descrito nos Atos dos Apóstolos (At 2:1-4). Os pentecostais acreditam que as pessoas batizadas pelo Espírito Santo poderão ser agraciadas não só com o carisma de falar outras línguas (“glossolalia”), mas também com pelo menos um dos demais dons sobrenaturais: a profecia, a cura, a interpretação de línguas, as visões etc. Ao contrário da profecia, a glossolalia não tem por fim edificar nem instruir, mas apenas confirmar a presença do Espírito divino. O movimento de reforma carismática que fundou o pentecostalismo originou-se em Topeka, Kansas, nos Estados Unidos, em 1901, quando vários fiéis, sob a liderança do pastor Charles Fox Partham, passaram a falar em outras línguas. Já no século XIX haviam ocorrido fenômenos semelhantes nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas os petencostais foram os primeiros a dar primazia à doutrina prática. O pentecostalismo cresceu principalmente dentro do movimento mundial de santidade (Holiness), que se desenvolveu a partir do metodismo americano do século XIX. Dos Estados Unidos e Inglaterra, o movimento espalhou-se pelo mundo, levado por missionários metodistas e pregadores itinerantes. Os principais pioneiros do pentecostalismo foram o pastor metodista norueguês Thomas Ball Barratt, que fundou movimentos na Noruega, Suécia e Inglaterra; o líder do movimento da Santidade, Jonathan Paul, na Alemanha; Lewi Pethrus, na Suécia; e Ivan Voronaev, na Rússia, que em 1920 começou um ministério em Odessa que se espalhou pelas nações eslavas e fundou mais de 350 congregações na Rússia. No Brasil, o movimento pentecostalista começou em 1910 em Belém PA, onde os imigrantes suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren iniciaram cultos pentecostais numa igreja batista. Logo depois gerou-se um cisma, do qual resultou a Assembléia de Deus, durante muitos anos principal denominação pentecostalista brasileira, assim como a Congregação Cristã. Ocorreram depois cruzadas evangelísticas oriundas dos Estados Unidos, no amplo movimento “Brasil para Cristo”. Outras igrejas juntaram-se ao movimento, como a Metodista Wesleyana Renovada. No início da década de 1970, o bispo canadense Robert MacAlister, que aderira ao pentecostalismo nas Filipinas, fundou no Brasil a Igreja da Nova Vida. Em 1977 foi fundada a Igreja Universal do Reino de Deus, que em breve passou a contar com centenas

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de templos, várias emissoras de rádio e TV e milhões de adeptos no Brasil, além de templos em vários outros países. A ascensão do pentecostalismo no Brasil tem sido atribuída, especialmente, ao decréscimo da religião então hegemônica, a católica. Outro aspecto diz respeito à necessidade de busca da ancoragem neste momento em que se percebe mais fortemente a dissolução das relações sociais com o exacerbado individualismo, a violência e a crescente exclusão social. Há duas vertentes no pentecostalismo: a primeira valoriza o corpo e as sensações e o faz até de uma forma exacerbada, como por exemplo a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD); a outra, chamada de “pentecostalismo clássico”, é herdeira dos grandes avivamentos norte-americanos e da tradição das igrejas de santidade de origem metodista, que enfatiza mais a alma, os valores espirituais e a necessidade de se imporem regras severas sobre o corpo. A teologia neopentecostal não desvaloriza o corpo da mesma forma que o catolicismo e protestantes tradicionais, especialmente os de tradição puritana, cuja associação do corpo à matéria decaída praticamente baniu do culto ao “Deus espiritual” os movimentos corporais. O resultado foi a eliminação das emoções e da espontaneidade do culto, consagrando-se no lugar delas tão-somente o racional e o previsível. Essa valorização do corpo no neopentecostalismo também se faz presente na insistência em embelezá-lo, torná-lo atraente, oferecer-lhe conforto, bem-estar, recuperar a saúde, coisas extremamamente desejáveis na atual sociedade de consumo. A renovação carismática católica (RCC) tem crescido significativamente nos últimos anos, principalmente entre as camadas populares. Caracterizada como um movimento leigo na Igreja Católica, quer ser como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) um modo de toda a igreja ser. Reclama para si a autonomia eclesial e, especialmente nas camadas médias, cria uma infra-estrutura que prescinda da paroquial (em Campinas, onde o movimento nasceu no Brasil, a RCC possui uma sede própria). Por essa autonomia e por incorporar elementos do movimento pentecostal no interior da Igreja Católica, provoca reações de bispos e de outros movimentos católicos. Diante delas, procura o reconhecimento eclesial e se ressente de algumas posições de hierarquia.

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