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Page 1: A Relação com as Famílias no Tratamento dos Portadores de ... · Resumo Este artigo tem como ... Professora do curso de Psicologia da UNIPAC Bom Despacho, Coordenadora e Supervisora

Pimenta, E. de S. & Romagnoli, R. C. A relação com as famílias no tratamento dos portadores de transtornomental realizado no Centro de Atenção Psicossocial

Pesquisas e Práticas Psicossociais 3(1), São João del-Rei, Ag. 2008

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A Relação com as Famílias no Tratamento dos Portadores deTranstorno Mental Realizado no Centro de Atenção Psicossocial

The Relationship with the Families in the Treatment for MentallyTroubled Patients at the Psychosocial Attention Center

Eliane de Souza Pimenta1

Roberta Carvalho Romagnoli2

Resumo

Este artigo tem como tema a relação da família, no tratamento dos portadores de transtorno mental, com o serviço de saúde mental, a partirde uma perspectiva institucionalista. O objetivo é analisar o campo de forças que se estabelece nessa tríade que dificulta uma efetiva adesãodos familiares ao tratamento dos usuários atendidos no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). A pesquisa de campo foi realizada no CAPSde Ribeirão das Neves, por meio tanto de entrevistas semi-estruturadas com quatro famílias dos portadores de transtorno mental, usuáriasdesse serviço, quanto da nossa prática profissional. Analisamos que são diversos os fatores que vão influenciar nas dificuldades que seapresentam na relação entre o portador de transtorno mental, sua família e o serviço de saúde mencionado. A família ainda não se vê comoparte importante da assistência ao portador de transtorno mental, e o serviço de saúde, por sua vez, tem dificuldade em levá-la a se ver comotal. Concluímos ser necessária uma reflexão por parte do serviço de saúde sobre o seu papel neste processo, e também sobre o que tem sidooferecido à família para que seja propiciada sua participação ativa na assistência do portador de transtorno mental.

Palavras-chave: família; saúde mental; portador de transtorno mental; Centro de Atenção Psicossocial; cuidado.

Abstract

The theme of this article is the family relation with the mental health care services within the mental health patient's treatment from aninstitutionalist perspective. It aims to analyze the strength field established by this triad which makes it difficult for the family members toactually adhere to the treatment of users of the Psychological Attention Center (CAPS). The field research has been performed at the CAPSin Ribeirão das Neves, by the means of semi-structured interviews with four mentally troubled patient's families, all of which are users of thisservice, along with our professional practice. We have found that there are many factors of influence regarding the difficulties presented inthe relations amongst the family, the service and the mentally troubled patient. The family members still do not see themselves as animportant part of the assistance to the mentally troubled patient and the service has also a hard time attributing this place to the family. Wecame to the conclusion that the service has to reflect on its role in this process. On the other hand, the service also has to reflect on what hasbeen offered to the family members to make them participate actively in the mentally troubled patient's assistance.

Key words: family; mental health; mentally troubled patient; Psychological Attention Center; care.

1 Psicóloga, Especialista em Psicologia da Saúde e Mestre em Psicologia pela PUC-Minas. Professora do curso de Psicologia da UNIPACBom Despacho, Coordenadora e Supervisora da Clínica Escola. Psicóloga do CAPs de Nova Serrana – MG. Contato:[email protected] Psicóloga, Mestre em Psicologia (Psicologia Social) pela UFMG, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP, Professora Adjunto III doDepartamento de Psicologia da PUC-Minas/ Núcleo Universitário Betim. Contato: [email protected] ou [email protected]

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ntes do movimento da Reforma Psiquiátrica,que no Brasil se iniciou no final da década de 1970,o louco vivia à margem da sociedade. Quandoocorria o primeiro surto, o doente era trancado emmanicômios por longos anos, às vezes para sempre.Neste momento histórico, o portador de transtornomental era afastado de qualquer convívio ou sinalde uma vida produtiva, ficava à margem do social,distante da família, esquecido, excluído. Muitasvezes, falecia na instituição asilar.

Nesse contexto, o louco era distanciado dafamília como uma proposta de “isolamentoterapêutico”. Para justificar tal procedimento,defendia-se que a família estaria sob ameaça dealienação e que, por isso, necessitaria ser protegida.O louco era encarado como uma figura perigosapara a estrutura familiar, supondo-se que poderiasubverter os membros mais frágeis, tornando-se ummodelo exemplar negativo, ao ser imitado.Entretanto, embora a família precisasse serprotegida do seu membro doente, o grupo eratambém acusado de promover a loucura. Estacontradição se dava devido à idéia de que aalienação provinha da estrutura familiar e dosconflitos que aconteciam a partir desta relação.

Dessa maneira, a relação da família com oportador de transtorno mental era mediada poragentes médicos e por agências estatais,encarregadas da cura, da custódia e da assistência.À família cabia identificar a loucura e encaminharpara o asilo, fornecer informações importantes, àsvezes visitar o doente e esperar por sua recuperaçãopacientemente. “Recuperação” que, na maior partedas vezes, não acontecia, e assim o louco nuncamais voltava para o seio familiar. Morria no asiloou ficava nas ruas perambulando, rejeitado pelafamília, perdendo qualquer vínculo social.

A Reforma Psiquiátrica teve como uma de suaspropostas trazer a loucura para o seio familiar.Desta forma, vemos que ocorre uma grandetransformação. Se antes o louco era afastado dafamília por ser uma “ameaça”, ele agora é inseridonesse grupo, a partir do qual pode receber subsídiospara a vida em sociedade. Com esta mudança,surgem as dificuldades enfrentadas pelos familiaresdiante deste novo encargo: lidar com a loucura deforma tão próxima e ainda ser parte imprescindívelda reinserção social do portador de transtornomental.

Moreno e Alencastre (2003) ressaltam, na 1ªConferência Nacional de Saúde Mental, em 1987,que as dificuldades enfrentadas pela família doportador de transtorno mental não obtiveramdestaque. Em 1992, na 2ª Conferência Nacional deSaúde Mental, os familiares tiveram suarepresentatividade assegurada e uma das

recomendações foi: “[…] evitar culpabilizar ousuário e família, e promover o atendimentointegrado da mesma inserida no contextocomunitário e social” (Conferência de SaúdeMental, 1994, p. 26). Já na 3ª Conferência Nacionalde Saúde Mental, ocorrida em 2001, procura-seafirmar a importância da família como aliada nanova forma de atenção a ser dada ao portador detranstorno mental, e nela busca-se o suporte dosserviços de saúde através do cuidado domiciliar edo enfrentamentos das crises.

Em nossos dias, devido às propostas demudança da Reforma Psiquiátrica, está emfuncionamento uma rede ampla e diferenciada deserviços substitutivos do modelo psiquiátricotradicional. De maneira geral, eles se caracterizampela utilização intensiva de um conjunto amplo ecomplexo de tecnologias terapêuticas e práticaspsicossociais dirigidas para manter o portador detranstorno mental na comunidade. Todavia, cabepontuar que é uma vivência repleta de obstáculos,dificuldades, incertezas e sofrimentos.

Neste contexto, esse estudo privilegia a relaçãoentre o portador de transtorno mental, sua família eo serviço de saúde mental, enfatizando os aspectosinstituídos e instituintes dessa relação, desvendandoo que dificulta o necessário e real apoio notratamento do usuário, por parte do familiar, e o quepode propiciá-lo. A realização da pesquisa decampo se deu através de aplicação de entrevistassemi-estruturadas, com quatro famílias deportadores de transtorno mental do CAPS II deRibeirão das Neves, em janeiro de 2007. Asfamílias selecionadas para serem entrevistadasforam aquelas cujo portador de transtorno mentalencontrava-se em tratamento e estabilizado. Aescolha dos informantes se deu mediante discussãocom a equipe de saúde do Núcleo de AtençãoPsicossocial (NAPS) de Ribeirão das Neves.Procurou-se incluir o membro da família maispróximo do usuário e a pessoa de referência doserviço de saúde, ou seja, aquela pessoa com quemos profissionais do NAPS estabeleciam contato. Asentrevistas foram realizadas nas residências dosentrevistados. O portador de transtorno mental nãofoi excluído do processo: ele foi convidado aparticipar da entrevista, caso tivesse interesse, semobrigação de responder ao questionário. Suacontribuição, nos casos em que ocorreu, veio comocomplementação dos dados colhidos.

A ida a campo permitiu o conhecimento darealidade dos grupos familiares pesquisados e dasua real articulação com o serviço de saúde mental.Além disso, utilizamos a análise da implicação dapesquisadora, que como parte integrante da equipeconstitui por si um atravessamento para a pesquisa,

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pois de certa maneira atualiza várias instituiçõestambém presentes nessa pesquisa: o lugar detrabalhadora de saúde, da psicologia, da academia,dentre outras. Nesse contexto, optamos por nãoentrevistar familiares de pacientes que estavam sobnossos cuidados profissionais, dado que nessescasos já existiria um vínculo previamenteestabelecido com os entrevistados, e isso poderiainfluenciar nas respostas fornecidas. Ainda assim,acreditamos que ocorreu as respostas dos familiaressofreram alguma influência, uma vez que aentrevistadora fazia parte da equipe do serviço desaúde. Os entrevistados talvez acreditassem que nãodevessem avaliar negativamente o serviço prestado,já que previsam da assistência.

Essa pesquisa tem ainda como marco teórico aAnálise Institucional de Lourau (1975). A partir dasidéias do citado autor podemos afirmar que ainstituição se constitui na dialética instituinte versusinstituído, compondo processos cotidianos que sefazem entre pessoas, ações, conhecimentos epráticas social e historicamente produzidas. Ocampo do instituinte corresponde às forçasprodutivas que tendem tanto a transformar asinstituições quanto a fundá-las, quando ainda nãoexistem. O instituinte é dinâmico, consideradocomo grandes momentos históricos,revolucionários, de transformações institucionais,fundmentando a contestação, a capacidade deinovação. Por outro lado, o instituído seria oproduto do que já foi um dia instituinte, sendoresultado do processo de fundação de umainstituição, correspondendo ao que é estático, aoque está estabilizado. Ou seja, esse pólo sustenta aordem estabelecida, os valores, os modos derepresentação e de organização consideradosnormais, como igualmente os procedimentoshabituais de previsão. Nessa perspectiva, asresistências à mudança são resistências doinstituído ao instituinte, amparado nas formassociais instituídas que operam em prol dareprodução. A partir desta visão evidenciamosquais atravessamentos existem na família, portadorde transtorno mental e o serviço de saúde mental, eque efeitos esses atravessamentos têm no grupoparticipante da pesquisa e no tratamento doportador de transtorno mental.

O Transtorno Mental na Família: Crisee Necessidade de Cuidado

O movimento de luta antimanicomial, em suaproposta de reestruturação da assistência em saúdemental, foi bem sucedido em várias frentes. De

fato, a reforma psiquiátrica brasileira teve muitosméritos, sustentando o redirecionamento do modeloassistencial para serviços de bases comunitárias,criando serviços substitutivos que possibilitaram adesospitalização. Entretanto, percebemos, a partirda pesquisa com os familiares, o entendimento dadesospitalização como sinônimo de omissão. Essaomissão sugere a articulação da dificuldade deengajamento da família com a noção de que ocuidado em relação ao portador de transtornomental seja “dever do Estado”. Ou seja, as famíliasentendem que a luta antimanicomial, ao invés deresultar na reinserção social da loucura, é, de fato,uma ausência de cuidado por parte do Estado.Nesse contexto, sobrevivem na lógica doassistencialismo, aguardando que venha de fora aajuda para suas necessidades. Sendo assim, nãocorrem em busca de melhorias, não lutam, não seorganizam.

Romagnoli (2006) ressalta que, muitas vezes,os familiares assumem o lugar de “ignorantes”,destituídos de qualquer saber sobre si mesmos esobre o doente, o que os impede de sereconhecerem como sujeitos autônomos. Dessamaneira, ocupam um lugar de alienação que nãopossibilita a realização de novas experiências, e quedificulta que assumam o papel de um grupo ativono processo de construção da vida. Nessapassividade, os familiares passam a organizar suasvidas em torno da doença mental.

O que constatamos, em nossa práticaprofissional, é que no momento das crises a famíliageralmente vem com a demanda de internação. Tsu(1993) comenta que a custódia ou o tratamento sãorequeridos em função da apresentação, por parte dopaciente, de condutas que o familiar consideraintoleráveis ou anormais. Vale dizer, oacompanhante valida a demanda de internação e sejustifica nas várias queixas que possui contra opaciente.

Embora essa postura seja usual, busca-seatribuir à família a responsabilidade pelo seumembro doente. Mas, ao mesmo tempo, é precisoatentar para o fato de que, a partir do momento emque se consegue fazer da família uma parceira notratamento, é preciso estar atento às forçasinstituídas. No caso, a tendência do grupo passivo,como vimos anteriormente, é se manter à mercê dosespecialistas, repetindo práticas já fixadas e que nãoderam certo. No nosso entender, é latente anecessidade de que aconteçam processos que levema força instituinte a aflorar no seio familiar,permitindo que os familiares do doente saiam dolugar da queixa, que deixem de se sentir vítimas, ouque carregam um fardo. Talvez essa força possa ser

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usada para promover um novo sentido para a vida,mais prazerosa do que a relação já instituída e que adoença possa permitir. O desafio que cabe aosprofissionais da saúde mental é construirdispositivos que apontem nessa direção.

Segundo Melman (2001), nossa sociedadeatribui grande importância à família, lugarobrigatório dos afetos, dos sentimentos e do amor.A família é indispensável para o funcionamentosocial, responsabilizando-se quase integralmentepela educação, desenvolvimento e formação dascrianças, pela felicidade e bem-estar das pessoas.Nesse sentido, em nosso universo de estudo, se afamília é tão relevante, ela também se tornaresponsável por tudo o que possa suceder a seusmembros, inclusive pela participação ativa nainserção do portador de transtorno mental nasociedade.

Cabe salientar que o vínculo genealógico,sangüíneo persiste, por definição, enquanto viveremas pessoas ligadas por essa relação. Por muitasvezes, esta relação é conflituosa e mantém-se pormeio de grande instabilidade emocional. De certomodo, nomear um relacionamento parental trazconsigo uma atribuição de estabilidade e força; ebaseada nesses pressupostos, a sociedade refere-seà família como um “porto seguro”. Entretanto, épreciso salientar que a família consangüínea nemsempre ocupa esse lugar no cotidiano. Além devalorizá-la em excesso, as pessoas tambémapresentam uma forte tendência a idealizá-la,esperando encontrar no seio familiar tudo aquilo deque necessitam, todo o apoio e afeto inesgotável.Esse processo de idealização conduz à ilusão de sepensar que a única solução para que se possasustentar um paciente e inseri-lo na comunidadepassa, necessariamente, pela família (Melman,2001).

Geralmente, os serviços de saúde tambémefetuam essa idealização, e trabalham com aconcepção de que é na família que o portador detranstorno mental estará bem. Parte-se da idéia deque a família, por sua condição, já garantiria ocuidado e o bom relacionamento. E, nesse processo,não se leva em consideração a singularidade decada grupo e a especificidade de cada família aorelacionar com a doença mental. Essa singularidadeé influenciada ainda pelos valores e representaçõesacerca da loucura presentes em um determinadomomento histórico, de acordo com Melman (2001).Cada indivíduo, família ou comunidade apresentaformas de se posicionar que são reflexos decontextos culturais, religiosos, ideológicos,econômicos, dentre outros. Esses fatores, semdúvida, irão influenciar na dinâmica de

funcionamento de cada família. O transtorno mentalsurge no seio do grupo familiar como um eventoimprevisto, que exerce impacto e produz efeitosdesestruturantes em sua organização. Esse impactose configura como algo ameaçador, e osdesdobramentos variam, como vimos, de um grupofamiliar a outro, em virtude de sua localização naestrutura social e de sua singularidade, de suabiografia particular. Não raro os familiaresapresentam um comportamento de negação diantedos sintomas do portador de transtorno mental,diante daquilo que aparece como estranho para afamília. Por outro lado, existe também umatendência à acomodação, numa tentativa deaguardar a crise passar, na esperança de que odistúrbio se resolva por si mesmo e semnecessidade de tratamento. Admitir a possibilidadede que alguém da família esteja perturbado podeoriginar em muita ansiedade, tanto pelaincapacidade de resolver o problema no âmbitofamiliar quanto pelo temor de que o estigma dadoença mental recaia sobre toda a família (Tsu,1993).

Gonçalves e Sena (2001) afirmam que váriosestudos têm chamado a atenção para a sobrecargaque a família enfrenta na convivência com o doentemental, principalmente por ocasião da altahospitalar, desencadeando atitudes deincompreensão familiar e até mesmo de rejeição,causadoras de reinternações sucessivas vivenciadascom muita dor e fracasso, ou até mesmo deinternações permanentes. A partir dessascontestações, as referidas autoras defendem que afamília necessita de ajuda de profissionais de saúdemental. Observamos essa mesma realidade desofrimento e essa mesma necessidade nas famíliasque entrevistamos.

Para Melman (2001) a vivência de catástrofedesestrutura as formas habituais de lidar comsituações do cotidiano, e muitos familiares nãoestão preparados para enfrentar os problemas, nãosabem como agir, vivenciando dúvidas e conflitos.Nessa mesma vertente, Rosa (2003) afirma que“[…] o transtorno mental provoca deslocamentosnas expectativas e nas relações afetivas entre aspessoas, ao ser um fenômeno não integrado nocódigo de referência no grupo” (p. 243). A família élevada a mudar rotinas, costumes, valores com osquais até então estava acostumada a lidar, devido aorompimento, à outra direção que a realidade, que otranstorno convoca.

Decerto, o transtorno mental é um fatordesestruturador da família, uma vez que oscuidados dispensados ao membro doente devem serredobrados e os conflitos e a desorganização do

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ambiente aumentam. O espaço familiar passa a seratingido por desavenças, tensões e brigas.Conseqüentemente, passa a ser necessária umanova forma de organização familiar para lidar comesses fatores. Uma da formas de possibilitar ajuda aessas famílias é através do estabelecimento decondições básicas para seu tratamento. Examinandoa importância das políticas públicas para garantirtais direitos, Moreno e Alencastre (2003), afirmamque se a família não puder contar com uma rede deserviços que a auxilie no atendimento ao paciente, atendência é que as internações sucessivas se tornemmais freqüentes. Nesse sentido, os serviçosprecisam elaborar programas visando a atender asnecessidades do grupo. É preciso ofertar ao núcleofamiliar a possibilidade do cuidado em um períodoem que a família enfrenta essa crise, além deassegurar um acompanhamento posterior.

As vivências descritas acima mostram que opeso do sofrer psíquico de quem vive e sente adoença mental também se estende sobre a família.Para Pereira (2003) a família, com raras exceções,recebe pouca atenção do sistema de saúde e não échamada efetivamente a participar, uma vez que aprática psiquiátrica asilar adota ou tutela o doente,tirando-o do convívio social e familiar. Ao mesmotempo, evidencia-se a importância do papel dafamília no processo de ressocialização ereabilitação do doente mental. Nesta perspectiva, àmedida que cresce a proposta de uma assistênciamais abrangente, aumenta a necessidade deeficiência do serviço de saúde no cumprimento deseu papel. Isso significa que o interesse e asolicitação podem ocorrer concomitantemente aoaumento da eficácia e competência do sistema.

No transtorno mental os costumes, a higiene, osono, a alimentação, o afeto, a consciência, aatenção, a inteligência, o senso de percepção, asrelações, dentre outros, podem sofrer drásticasalterações. Isso acarreta uma defasagem para osujeito, inclusive orgânica. Romagnoli (2006)confirma que a piora orgânica, presente nosportadores de transtorno mental, vai incidir numaconstante necessidade de zelo com a higienepessoal do doente, com a alimentação, com a ajudapara se vestir, com as saídas de casa, o que leva ànecessidade de que o doente seja sempre assistidoao efetuar essas atividades corriqueiras. A autoraafirma ainda que, como esses quadros tendem a seagravar, há sempre uma perspectiva de maisnecessidade de cuidado e atenção.

Observamos em nossa pesquisa que existeainda outro fator que perturba as famílias: a buscade uma explicação para a emergência do transtornomental. O que percebemos é que os familiares

sempre tentam encontrar alguma resposta para oseu aparecimento, se consomem em dúvidas etentativas de explicação do porquê da enfermidadeno membro da família. Outros familiares, diante dotranstorno mental, se sentem paralisados, fechadosem um universo tenso, reduzido, espesso. Muitasvezes, sem informações satisfatórias, sentem-seperdidos e isolados. Sem saber o que fazer, iniciamum processo de sofrimento e culpabilização,tentando achar respostas em algum fato do passado:o que foi feito ou por causa de quem o sujeito veioa adoecer. Na presença de um surto psicótico,parece inevitável que os parentes mais próximos,responsáveis mais diretos pela formação da pessoadoente, sintam-se, de alguma forma, culpados peloaparecimento do transtorno mental. Sobretudo peloque foi proporcionado ou que se deixou deproporcionar ao portador de transtorno mental,devido à educação dada e/ou dificuldadesfinanceiras enfrentadas pelos familiares emmomentos anteriores ao seu surgimento.

São tantas as tentativas de explicação que atémesmo uma formação familiar que foge ao padrãoda família nuclear, convencional, algumas vezes éusada pelos entrevistados para explicar oaparecimento do transtorno mental. A família tempassado por profundas transformações em relação asua constituição. A família patriarcal, ao longo dotempo, vem perdendo força e dando lugar à famílianuclear. Esta, por sua vez, é composta peloscônjuges unidos em matrimônio e pelos filhosdecorrentes desta união. Romagnoli (2007) diz que,a partir da década de 60, aparecem novos rearranjosde famílias, que escapam ao modelo da famílianuclear – são as denominadas famílias alternativas.No entanto, a sociedade ainda vê de maneirapreconceituosa essas novas formações familiares, oque acaba influenciando os valores do grupo edimensionando o sentimento de culpa que estacarrega. Isso fica evidente quando a formaçãofamiliar não-convencional é usada para explicar oaparecimento do transtorno mental.

Na tentativa de amenizar o sentimento de culpapelo membro que portador transtorno mental,muitos familiares encontram ainda uma explicaçãona religiosidade. De acordo com Pereira (2003), aomesmo tempo em que a explicação sobrenaturaldiminui o sentimento de culpa, de vergonha, elaaumenta a condescendência, cria contraposiçãocom outros membros da família, suscitando aretrospectiva da educação dada ao portador detranstorno mental. Isso traz a idéia das implicaçõesdo contexto vivido.

Diante dessas situações, alguns familiaresmostram uma tendência para a superproteção e o

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hiperenvolvimento, intensificando exageradamenteos conflitos e dificultando os acordos; pois, com apresença do transtorno mental, a família,principalmente o cuidador do membro portador detranstorno mental, coloca o doente no lugar deincapaz. Acreditando que o paciente não temcondições de ser responsável pelos seus atos,escolhas e atitudes, as família adotam uma posturainfantilizada de cuidados.

Por fim, percebemos que para os familiares osurto psicótico representa, de certa forma, o colapsodos esforços, o atestado de incapacidade de cuidaradequadamente do outro, o fracasso de um projetode vida, o desperdício de muitos anos deinvestimento e dedicação. A doença mentalcontinua sendo, com freqüência, motivo de muitavergonha para os familiares, por mais que aconcepção da loucura tenha sofrido mudanças.

As histórias dos nossos entrevistadosapresentam diferenças, mas também muitos pontosem comum. A maioria das pessoas não sabe comoagir quando precisa lidar com comportamentosestranhos e bizarros. Os familiares ficam perdidos,paralisados quando um dos membros do grupoalucina, perde a razão. Não sabem se confrontam,se brigam ou se colocam limites, se devem se calarou fingir aceitar a “realidade” do outro, tão estranhaà vida habitual. Surgem dúvidas, inseguranças,dentre outros sentimentos. Muitas vezes, a questãoque se coloca para os profissionais da saúde é:como ajudar os familiares na interação e na gestãoda vida cotidiana dos parentes adoecidos?

A Família e o Serviço de Saúde Mentalno Jogo do Instituído Versus Instituinte

Segundo Melman (2001), nos últimos anos oconceito de sobrecarga familiar foi desenvolvidopara definir os encargos econômicos, físicos eemocionais a que os familiares estão submetidos.Ou seja, para definir quanto a convivência com umpaciente representa um peso material, subjetivo,organizacional e social. Todos aqueles quetrabalham com os doentes e convivem com ouniverso de pacientes psicóticos, com história dedoença de longa evolução, conhecem alguns doselementos característicos da vida de muitas dessaspessoas: isolamento, distanciamento das relaçõesafetivas, exclusão social, dificuldade em mobilizaro próprio desejo.

Acredita-se que as conseqüências da reformapsiquiátrica, sem desmerecer seus méritos, serefletem, de forma direta, na família do portador detranstorno mental, principalmente sobre as pessoasresponsáveis pelo seu cuidado. Essa sobrecarga se

agrava com a impossibilidade de mudançascomportamentais no portador de transtorno mental.

Nesse contexto, com base na AnáliseInstitucional de Lourau (1975), analisamos quepersiste a presença do instituído, que tenta calar atodo custo o novo que irrompe e que, nessemomento, é visto só em seu lado negativo ouperturbador. Essa postura tenta driblar o instituinteque convoca outra forma de ser da família, nomomento da eclosão da doença mental, e que abalao que já está estabelecido. A relação vai sendomoldada como se não fosse possível ampliar ohorizonte das possibilidades diante do transtornomental. As incertezas e dúvidas iniciais vão sendosubstituídas pela certeza da incurabilidade, o quevai enrijecendo as relações da família com oportador de transtorno mental, além dos conflitosque vão aparecendo com a desestabilização doquadro, com a presença de comportamentos quegeram intolerância no âmbito familiar.

Sabemos que a família é o lugar ondeacontecem as relações mais próximas e, emconseqüência disso, ela é geradora de conflitos. Osdesentendimentos e dificuldades, no ambientefamiliar, vão aparecer também como conseqüênciado transtorno mental. Além desses conflitos jáinerentes às relações, na análise dos dadoscoletados também averiguamos que a presença doportador de transtorno mental no lar mostrou-secoercitiva para todos os familiares, evidenciandouma grande tensão, devida ao constante estado dealerta a que ficam submetidos os familiares.

Por todos os motivos expostos, fica cada vezmais clara a importância de a família ser incluída naassistência do tratamento do portador de transtornomental. É necessário que ela seja parceira doserviço de saúde mental, uma vez que ela estápresente na maior parte da vida do usuário; mas elatambém precisa de assistência, para que lhe sejapossível suportar as atribulações causadas em seucotidiano pelo transtorno mental de seu familiar.Furegato, Santos, Nievas e Silva (2002) afirmamque, por um lado, percebe-se a família como omelhor ambiente para acolher e manejar ocomportamento do doente, mas por outro, vêm-se odespreparo e a sobrecarga agindo negativamentesobre o cotidiano e as relações intrafamiliares.

A relação entre a família, o usuário e o CAPS épermeada por um jogo de forças dialético entre oinstituído e o instituinte. Em alguns momentos, asforças instituintes têm mais vigor, e emerge o novo,aquilo que potencializa a relação, o tratamento, avida cotidiana. Outras vezes, as forças instituídasganham mais energia, levando a uma relação maisendurecida, sem produção, voltada para a

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manutenção do estabelecido, neste caso paraculpabilizações e, conseqüentemente, influenciandode maneira negativa o tratamento do portador detranstorno mental. A partir disso vemos que épreciso analisar como se dá o encontro entre famíliae serviço de saúde. Que pactos acontecem nestarelação? Quais deles vêm proporcionando maissaúde e qualidade de vida para os portadores detranstorno mental e em que condições têmacontecido? Quais deles facultam mudanças nosserviços e nos modos de funcionamento familiar?Que dispositivos investem na cristalização destasrelações: o olhar individualizante, a família, oportador, o serviço, o tratamento?

No decorrer da nossa trajetória profissional,observamos a necessidade de considerar a famíliacomo um grupo que precisa ser atendido, a fim dese sentir mais instrumentalizado para cuidar de seufamiliar doente. Ao longo desta caminhada, temospercebido que, freqüentemente, a família estádistante do seu familiar doente, no sentido de nãoser cuidada, e tampouco de participar e se envolvercom o cuidado do seu familiar, possivelmente pelofato de os profissionais de saúde não reconheceremsua condição de “ser capaz”. Apesar disso, estesúltimos mantêm o discurso de que é no seiofamiliar que o portador de transtorno mental tem deestar inserido para a manutenção do cuidado, etambém para poder encontrar subsídios para mantera vida em sociedade. Também pudemos perceberque, muitas vezes, os profissionais de saúde nãoconseguem ter a sensibilidade e a habilidadenecessárias na relação interpessoal com a família doportador de doença mental, para atender à suanecessidade de apoio e suporte emocional diante darealidade da doença.

A interação da família com os serviços desaúde mental é uma fonte de estresse. Geralmente,o contato com os profissionais de saúde resultanuma experiência frustrante, confusa e humilhante.Isso se dá pelo fato de esses profissionaisdesconhecerem não só o que significa para afamília vivenciar esta experiência, mas tambémseus sentimentos, dúvidas, incertezas, necessidadese desejos. Nesse sentido, observamos a supremaciado instituído, que percebe a família como culpada ecomo um grupo em que é impossível a construçãode outro tipo de relação com o usuário do serviçode saúde, um tipo de relação que não sejaadoecedor. Provavelmente, a partir da compreensãodo significado do que é vivenciar a doença mental,para a família, o cuidado com estes seres possa sedar de maneira mais compreensiva e humanizada,possibilitando que eles sejam mais bem atendidos,como pontua Medeiros (2007).

Moura e Araújo (2005) afirmam que, a partirde meados do século XX, o Estado brasileiro vemorganizando uma série de propostas e programas demodo a considerar a importância da família. Osautores, porém, ressaltam que, muitas vezes, taispropostas são idealizadas por gestoresdesconectados com as características e necessidadesda população que procuram ajudar, além deprivilegiarem soluções economicamente maisvantajosas para problemas complexos. Além disso,tais programas tomam como homogêneos práticas,experiências e valores que podem ser muitodiversos em nossa sociedade, especialmente comrelação à instituição familiar.

A desospitalização configura uma novarealidade, na qual um número cada vez maior depessoas passou a ser assistido em serviços extra-hospitalares. Esse fenômeno introduz novoselementos no campo de negociação entre famílias eos serviços de saúde mental, obrigando as partesenvolvidas a rediscutirem as bases de uma novarelação (Melman, 2001). Conforme Lima Júnior eVeloso (2007), essa nova forma de cuidar estimulauma significativa queda nas internaçõespsiquiátricas, e intensifica a exigência docomportamento da família, o que modifica, deforma significativa, sua a participação nesseprocesso.

Sendo assim, verificamos, a partir dasentrevistas realizadas, que, se com a reformapsiquiátrica não é mais aceitável estigmatizar,excluir e recluir os loucos, também não se podereduzir a reforma psiquiátrica à devolução destes àsfamílias, sem nenhum tipo de intervenção ouacolhimento desses grupos, como se a família fosse,indistintamente, capaz de resolver a problemáticada vida cotidiana acrescida das dificuldades geradaspela convivência, pela manutenção e pelo cuidadocom o doente mental, conforme alertam Gonçalvese Sena (2001). É necessário que o sistema de saúdee todos os dispositivos que abarcam a assistência aoportador de transtorno mental estejam preparadospara receber e dar suporte à família.

Por outro lado, percebemos que a famíliadelega ao serviço de saúde mental a tarefa deresolver todos os problemas do paciente e,conseqüentemente, os da família. Ainda prevalece aidéia de que a instituição de saúde mental é a únicaresponsável pelo tratamento e a ela caberia decidire resolver o que é melhor. Esta é a idéia que aindaprevalece entre os familiares, apesar de não ser issoo que a Reforma Psiquiátrica propõe. Para essemovimento, a idéia é que a família seja co-responsável pelo tratamento, atuando como parceirado serviço de saúde mental.

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Além de esperar que o serviço de saúde mentalpreencha essa lacuna, e muitas vezes suprir aquiloque falta em suas vidas, os familiares nãoapresentam críticas quanto a tudo mais que poderiaser feito. Não sentem que é possível fazer algomais, insistindo em não avaliar a assistênciaprestada e em manter uma postura passiva. Tantoslevam uma vida tão dura, com tamanha privação,que quando encontram uma instituição que lhesproporciona o mínimo de assistência ou amparo,isso já lhes parece suficiente.

Em nossas entrevistas pudemos constatar queos familiares não conseguem perceber apossibilidade de outra postura frente à assistênciados serviços de saúde, mantendo-se, geralmente, nolugar de incapazes, por não possuírem títulos esaber. Além disso, apresentam certa passividade,forma com que geralmente as camadas baixas seinserem no cenário social, nesse processo. É precisoque as forças instituintes, nesse jogo da ReformaPsiquiátrica, ganhem maior vigor e não deixem queimperem as forças instituídas. É preciso ir muitoalém do que atualmente os serviços têm ofertado àfamília. Esta oferta tem que se sobrepor às forçasinstituintes e a todo tempo inventar e reinventarpráticas que incluam a família, enquanto assistidase também enquanto parceiras no tratamento doportador de transtorno mental, oferecendo apoio ealgum tipo de ajuda.

Sabemos que existe certa dificuldade, por parteda equipe, ao considerar a família como parceira notratamento e como alvo também da assistência.Saraceno (1999) interpreta o movimento deculpabilização da família como uma espécie dedefesa ante as dificuldades no tratamento dosdoentes mentais. Para ele, ocupar-se dos pacientesfora do manicômio é uma tarefa difícil, trabalhosa,complexa, que exige responsabilidade, e talvez sejamais fácil para alguns terapeutas remeter oproblema de volta à família culpada, elaborandoteorias que legitimem essa prática.

São diversas as formas como os membros dasfamílias podem participar do processo terapêuticodo portador de transtorno mental. Porém, grandeparte da adesão decorre do papel desempenhadopelas instituições no sentido de sensibilizar oscomponentes da rede sociofamiliar a participar deforma mais ativa no tratamento do paciente,fortalecendo o vínculo com a instituição, o que nemsempre é observado. Gonçalves e Sena (2001)salientam que, na prática, a equipe, como um todo,dificilmente está disponível e/ou disposta atrabalhar a dimensão subjetiva e objetiva docuidado com o doente mental. Os autores observamtambém que é comum profissionais da saúde

mental exigirem que a família aceite a doença semoferecer-lhe suporte e orientações.

É importante lembrar que as famílias estãoexpostas às sobrecargas emocionais, comoafirmamos anteriormente, e, mesmo com a ReformaPsiquiátrica, elas são alvos de preconceitos ediscriminação. A própria carência de suportesinstitucionais não permite que as famílias sejamsuficientemente amparadas para o enfrentamento doproblema.

Observamos que, na atualidade, muitos são osprofissionais que ainda apresentam concepçõesequivocadas quanto às causas da doença mental edefendem os modos de tratamento tradicionais. Emuma dessas concepções, podemos destacar apressuposição usual de que, se a família tivesseadotado outro padrão de relacionamento com opaciente, este não teria desenvolvido a doença. Essaforma de perceber a doença mental, nos aspectosexclusivos no campo relacional família-paciente,mostra efeitos desfavoráveis para os familiarescuidadores, pois gera uma atmosfera poucoamistosa e tende a inibir as manifestações desolidariedade e amparo que as famílias desejamreceber dos profissionais e da comunidade.

Na pesquisa realizada por Melman (2001), foipossível observar o relato de familiares quedisseram da presença, com certa freqüência, decomentários culpabilizantes por parte de algunstécnicos, que responsabilizam, direta ouindiretamente, a família pelo adoecimento dopaciente. Tais observações acabam reforçando aresistência das pessoas quanto a sua participação notratamento. Além disso, trazem nas entrelinhasalgum tipo de punição, como se a família nãopudesse sair desse processo sem o devido castigo.E, ao contrário do que acontece, com o processo daReforma Psiquiátrica espera-se que a família deixede ser culpabilizada pela doença do seu familiar epasse a atuar como coadjuvante em seu tratamentoe reabilitação. Embora a associação com o grupoapareça nos discursos e nas propostas dessemovimento, é preciso que haja ações concretas queviabilizem essa aliança. A proposta da ReformaPsiquiátrica não pode ser apenas uma utopia.

A partir dos relatos, percebemos que, muitasvezes, os profissionais julgam os comportamentosda família, em vez de tentar entendê-los e efetivarlaços, criam barreiras que acabam afastando essaspessoas. De uma forma geral, constatamos quesempre vai existir algum membro da família queassume o lugar do responsável pelo usuário, e éessa a pessoa que muitas vezes é julgada. Essejulgamento evidencia a primazia do instituído, pois,ao fazê-lo, os profissionais levam em consideração

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um modelo abstrato de família, ou do modo de serelacionar desse grupo ideal. É inegável aimportância da família em todo esse processo, masem geral um único familiar assume os principaiscuidados e tem mais ligação com o portador detranstorno mental. Observamos que é esse cuidadorquem acaba por ter uma relação mais próxima como serviço de saúde.

Essa relação, muitas vezes, não permite umolhar crítico do familiar diante da assistênciafornecida. Assim, os familiares passam a ocupar umlugar passivo no tratamento do portador detranstorno mental. Entretanto, o serviço de saúdepode também ser responsabilizado por essapassividade, uma vez que coloca em segundo planoa assistência da família, resumindo-a a uma fontede informações sobre a história pregressa doportador de transtorno mental. Com isso, a famíliatem apenas participação em reuniões, em algumasvisitas espontâneas, com predominância de umaorientação diretiva e/ou aconselhamento. Dessaforma, o sofrimento da família não é acolhido, emsua intensidade e integralidade, pelo serviço desaúde, tampouco ela é instruída sobre como lidarcom a sintomatologia do transtorno mental (Rosa,2003). E aqui, mais uma vez, vemos que o discursode trazer a família para ser parceira do serviço fica,quase sempre, no campo da demagogia, e o queacontece, de fato, é a repetição do instituído, apredominância do que já está estabelecido.

Contudo, como o instituído existeconcomitantemente com o instituinte, percebemosque esse embate de forças se dá num momento desingularidade, acontece na especificidade de cadaserviço. Sendo assim, a proposta de o CAPSsubstituir o hospital psiquiátrico, esta forma maishumanizada de lidar com o transtorno mentaltambém tem alcançado seus objetivos. Os relatosdos familiares sobre o tratamento dispensado aoportador de transtorno mental, no CAPS, revelamque esta instituição é a que melhor atende asexpectativas dos usuários e familiares, se acompararmos ao hospital psiquiátrico. Ressaltamos,no entanto, que os relatos dos informantes dizemrespeito apenas à instituição que serviu de contextopara esta pesquisa, e que não refletem,necessariamente, a situação de outros CAPS, emoutras regiões do estado e do país.

Considerações Finais

Embora a Reforma Psiquiátrica tenha tidorepercussões positivas com os familiares e acomunidade em geral, a partir da pesquisarealizada, ainda fica clara a necessidade de

melhorar a relação do serviço de saúde mental coma família. Romagnoli (2004) acredita que “[…] osserviços de saúde mental têm potencial paraestabelecer uma parceria com as famílias, paraajudar a construir outro arranjo coletivo, outrarelação com a doença mental” (p.79), sendopossível gerar um campo de afetamento que opere acriação de novos modos de subjetivação, e que,portanto, possibilite que forças instituintes estejammais atuantes. É possível que isso aconteça a partirda associação do conhecimento teórico-técnico doprofissional ao conhecimento da família sobre simesma. Porém, cabe ressaltar que o conhecimentoteórico-técnico não cabe a todos os profissionaisque trabalham em um CAPS. Os profissionais, taiscomo auxiliares de enfermagem, profissionais deapoios, pessoal administrativo, porteiro, dentreoutros, na maioria das vezes vão primeiramentepara a prática. Alguns deles nunca haviam ouvidofalar de Reforma Psiquiátrica, mas precisamconhecê-la para aprender a lidar com o portador detranstorno mental, e reconhecer todo o processo queenvolve o tratamento e os familiares.

Para cuidar, são necessários suporte e alívio detensões e de angústia. Possibilitar para o familiarum espaço em que ele possa se sentir apoiado,onde, diferentemente do papel que desempenha emcasa, ele tenha espaço para dizer daquilo que éinsuportável, que não dá conta de resolver e que oincomoda, pois espera-se que essa pessoa resista atodo tipo de sofrimento, demanda e angústias quepairam sobre sua vida. Frente à estrutura do seucotidiano, não lhe resta tempo para lidar com essasquestões.

Diante dos dados analisados, observamos que éfundamental que a referência técnica crie vínculos,conheça a casa, a família, para poder cuidar. Éimportante a atenção voltada para o portador detranstorno mental, mas também é relevante que afamília esteja inserida no processo. Para que sejaparceira do serviço, ela precisa de ser cuidada,necessita de alguém para escutá-la, acolhê-la eorientá-la. A partir do momento em que isso éproporcionado aos familiares, todos passam a sentirque estão envolvidos na assistência, e fica maisfácil para a família ser parceira da equipe. Nessesentido, esperamos que esse estudo favoreça aconstrução de trabalhos com famílias, que dêempassagem às forças instituintes, a novas formas detratar e trabalhar com o grupo, a outras conexõescom a loucura.

Referências

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Categoria de contribuição: Relato de PesquisaRecebido: 12/03/2008

Aceito: 31/07/2008