a reforma psiquiátrica

Upload: thais-de-sa-oliveira

Post on 03-Mar-2016

5 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

A Reforma Psiquiátrica

TRANSCRIPT

A REFORMA PSIQUITRICA - UM ESTUDO PARCIAL ACERCA DA PRODUO CIENTFICA DA TEMTICA

Luciane Prado Kantorski

KANTORSKI, L. P. - A REFORMA PSIQUITRICA - um estudo parcial acerca da produo cientfica. Revista Eletrnica de Enfermagem (online), Goinia, v.3, n.2, jul-dez. 2001. Disponvel: http://www.fen.ufg.br/revista

INTRODUOOBJETIVOMETODOLOGIAA PRODUO CIENTFICA NA LILACS ACERCA DA REFORMA PSIQUITRICAA PRODUO CIENTFICA DA ENFERMAGEM ACERCA DA REFORMA PSIQUITRICACONSIDERAES FINAISREFERNCIAS BIBLIOGRFICASAUTORA

RESUMO: Este artigo visa refletir teoricamente a temtica da reforma psiquitrica, em suas concepes terico-prticas. Para isto realizei uma anlise parcial da produo cientfica sobre a reforma psiquitrica, tomando como referncia os resumos veiculados na LILACS e nos programas e anais dos Congressos Brasileiros de Enfermagem, a partir de 1987. Para tratamento dos dados levantados elegi como categoria analtica excluso e como categoria emprica a desinstitucionalizao. Procurei produzir um olhar sobre a reforma psiquitrica que aproxime os profissionais de sade das reflexes mais atuais acerca de novas formas de pensar e agir frente problemtica da loucura. PALAVRAS CHAVE: enfermagem, psiquitrica

ABSTRACT: This work describes a theoretical reflection about the theme of the psychiatric reform in its theorics and practicals conceptions. For this objective was made a partial analysis of the scientific production about the psychiatric reform, taking like reference the abstracts published in the LILACS and in the programs and communications on the Congresso Brasileiro de Enfermagem, since 1987. For the treatment of the raised data was elected like analytical category the exclusion and like empirical category the disinstitutionalization. It was looked for the production of a vision about the psychiatric reform that approximate the health staff to the present reflections regarding new forms for to think and to act towards the craziness problematic.KEY WORDS: nursing, psychiatric.

1. INTRODUO

Entendo que a discusso em torno da necessidade de reformulao da assistncia ao doente mental consiste em uma necessidade colocada e discutida j h vrias dcadas. No entanto, este tem se configurado em um campo de conflito bastante intenso visto que a reforma proposta por distintos grupos sociais apresenta divergncias em relao s mudanas a serem realizadas, conforme a insero social e interpretao dos sujeitos que a apresentam. Independente disto discusso da mudana da legislao vigente tem se constitudo em um fator importante no sentido de questionar os modelos hegemnicos de assistncia ao doente mental e propor novos modos de pensar e fazer em sade mental.

Segundo BEZERRA JR. (1994), no campo da sade mental tem-se, no ano de 1989, dois marcos importantes que ajudam a compreender o processo de resistncia psiquiatria tradicional: a interveno realizada pela Prefeitura de Santos na Casa de Sade Anchieta em Santos/SP - nico hospital psiquitrico privado da regio e que representava o universo manicomial - e a apresentao no Congresso Nacional do Projeto de lei No 3.657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado, que previa a reestruturao da assistncia psiquitrica brasileira com a substituio progressiva dos manicmios por novos dispositivos de tratamento e acolhimento.Diversos autores, como FOUCAULT (1993), GOFFMAN (1990), CASTEL (1978, 1987) (Michel Foucault em a Histria da loucura na Idade Clssica (e em outras obras) produziu um estudo importante em que reconstitui a histria dos saberes e prticas acerca da loucura considerando a organizao da sociedade em termos de trabalho, produo de saberes, poderes, constituio histrica das prticas de interveno mdica que produz a reduo do fenmeno da loucura doena mental. Erving Goffman em Manicmios, prises e conventos traz uma contribuio fundamental quando introduz em seu estudo a noo de instituio total (como o caso dos manicmios) onde as pessoas convivem por algum tempo, compartilhando o espao, o trabalho, os afazeres cotidianos, as regras administrativas, enfim as regras da instituio. O autor atravs de um estudo sociolgico a partir da estrutura do eu do internado, gera a possibilidade de reflexo sobre a instituio psiquitrica enquanto totalizadora do indivduo que sofre. Robert Castel em A ordem psiquitrica: a idade de ouro do alienismo estuda os saberes e prticas psiquitricas emergentes considerando a constituio do espao institucional, a possibilidade de classificao, de arranjo nosogrfico das doenas mentais e de elaborao das bases do tratamento moral. O mesmo autor em A gesto dos riscos - da antipsiquiatria psicanlise dirige suas discusses para os movimentos que emergem como tentativas de produzir reformas psiquitricas. Estes se configuram em alguns dos estudos essenciais para se compreender a constituio dos saberes e prticas psiquitricos, bem como, as origens das crticas elaboradas a partir de ento), abordaram a histria da loucura, do nascimento da psiquiatria, da instituio psiquitrica e das prticas mdicas sobre a loucura instituda desde a idade clssica, mdia e modernidade, acompanhando a partir do sculo XIX a transformao do fenmeno da loucura em doena mental. Neste contexto o hospcio, que na idade clssica tinha como funo principal servir de hospedaria, passa a constituir-se em instituio de enclausuramento e internao que assume a conotao do hospital moderno medicalizado e responde a exigncias econmicas, polticas e sociais da modernidade.

Os autores citados, abordaram a referida temtica de maneira crtica assinalando quais as prticas e saberes psiquitricos que do sustentao institucionalizao da loucura e a ordenao do espao asilar a partir do tratamento moral, inaugurado pela tecnologia pineliana. Desde a reforma pineliana at as propostas reformistas ps-segunda guerra os questionamentos incidem sobre a instituio asilar e/ou o saber psiquitrico, modificando-se conforme cada poca em que se apresentam historicamente.

BIRMAN e COSTA (1994) afirmam que aps a Segunda Guerra Mundial, o contexto de preocupaes com relao impotncia teraputica da psiquiatria, os altos ndices de cronificao das doenas mentais e de incapacitao social, redimensiona-se o campo terico assistencial da psiquiatria, configurando-se dois grandes perodos de crtica e proposies reformistas, a saber: movimentos de crtica estrutura asilar envolvendo reformas circunscritas ao interior do hospcio como a psicoterapia institucional (na Frana) e as comunidades teraputicas (na Inglaterra e EUA), atingindo seu extremo com as terapias de famlia; e num segundo momento a psiquiatria de setor (Frana) e a psiquiatria comunitria ou preventiva (EUA) que de certa forma superam as propostas anteriores, expandindo as reformas para alm do espao asilar e introduzindo a psiquiatria no espao pblico com o seu novo objeto, a sade mental. AMARANTE (1995, p. 29) complementa esta discusso acrescentando a emergncia da antipsiquiatria (Inglaterra) e as experincias italianas que surgem a partir de Basaglia enquanto rupturas com as propostas de reforma apresentadas at ento, por questionarem ... o prprio dispositivo mdico-psiquitrico e as instituies e dispositivos teraputicos a ele relacionados.

BASAGLIA (1991) em A Instituio Negada rene documentos, notas e testemunhos relacionados experincia italiana que se inicia em 1961, com influncias da psicoterapia institucional e da comunidade teraputica e a transformao do hospital psiquitrico de Gorizia com a qual se buscava a superao da internao manicomial. Mesmo tendo sofrido um desmanche, com o afastamento da equipe que impulsionou tais mudanas, devido s foras sociais em jogo no cenrio poltico italiano, Gorizia constituiu-se em uma experincia precursora de outras experincias como no caso de Trieste (BARROS (1994) em Jardins de Abel - desconstruo do manicmio de Trieste realizou um estudo sobre a tradio basagliana recompondo historicamente os antecedentes, determinantes, pressupostos do que se configurou no processo de desinstitucionalizao de Trieste) e fundamentalmente redimensionou as reflexes de Basaglia e outros sobre a questo da desinstitucionalizao.

Nos EUA, o processo de desospitalizao significou o fechamento dos hospitais psiquitricos, objetivando reduzir despesas do Estado, sem ter a contrapartida adequada da criao de servios comunitrios, configurando-se no fenmeno os loucos na rua. Na Itlia, o contexto era diferente e havia basicamente duas situaes, a saber: o movimento liderado por Franco Basaglia e a situao italiana geral, pois a Lei 180, aprovada em 1978, passou por dez anos de desaplicao.

importante assinalar que o modelo clnico na realidade brasileira expandiu-se e contou com importante impulso durante o processo de industrializao nos anos 70, quando ocorreu uma grande expanso da indstria farmacutica e de equipamentos mdico-hospitalares. Chama-se a ateno para o fato de que enquanto o mundo voltava-se para a desospitalizao, o Brasil, sob o cenrio do golpe militar, investia na extenso dos cuidados psiquitricos atravs do aumento de leitos e da multiplicao da rede privada contratada.

Segundo RESENDE (1990) o perodo que se seguiu ao movimento militar de 1964 representou um marco na assistncia psiquitrica destinada ao doente mental indigente e a uma nova fase de extenso de cobertura aos trabalhadores e seus dependentes. No entanto isto se fez sob a gide privatista que, somada precariedade da rede ambulatorial ainda incipiente, representou uma captao de pacientes para hospitalizao. O autor afirma que entre 1965-1970 houve um fenmeno de afluxo macio de doentes para os hospitais psiquitricos da rede privada. Neste perodo enquanto as internaes nos hospitais pblicos psiquitricos permaneceram estveis, nas instituies privadas conveniadas a clientela passou de 14.000 em 1965 para 30.000 no final de 1970. O tempo mdio de permanncia nas instituies privadas na poca chegou h trs meses.

Entendo que embora as mudanas ocorridas no Brasil tenham sofrido influncia das experincias citadas, o processo atualmente ainda lento, no se tendo constitudo uma rede de servios de sade mental capaz de suprir a demanda dos portadores de sofrimento psquico de forma alternativa. Os servios existem, mas so ainda insuficientes. Ainda, os servios existentes carecem de constante reflexo de suas prticas e referenciais tericos adotados a fim de no se institucionalizarem dentro de uma lgica manicomial.

Compartilho com AMARANTE (1994: 43) da compreenso de que a reforma psiquitrica:

... no mais se refere exclusivamente reformulao dos servios, ao rearranjo do aparato assistencial-normativo, nem reestruturao do texto jurdico que trata da matria; no significa ainda a descoberta de novas tcnicas, de uma escuta ou de uma teraputica perfeitamente qualificada e competente, de por assim dizer, definitiva. Reforma psiquitrica no nosso entendimento, o conjunto de iniciativas polticas, sociais, culturais, administrativas e jurdicas que visam transformar a relao da sociedade para com o doente. A reforma psiquitrica que estamos construindo vai das transformaes na instituio e no poder mdico psiquitrico at as prticas em lidar com as pessoas portadoras de problemas mentais. Deste modo este trabalho pretende abrir mais um espao de discusso e reflexo em torno do que tem sido produzido sobre a temtica. Cabe salientar que compreendo que a produo cientfica analisada neste artigo resulta de sucessivos esforos da autora em olhar para a prtica - realidade concreta - e abstrair sobre ela, devolvendo a mesma um conhecimento sintetizado e elaborado que inclusive auxilie na sua transformao.Topo da pgina

2. OBJETIVO

O presente estudo tem como objetivo analisar criticamente o processo de introduo na produo cientfica latino-americana da sade e da enfermagem da temtica da reforma psiquitrica.Topo da pgina

3. METODOLOGIA

Para materializar este estudo realizei um percurso metodolgico que envolveu o levantamento dos trabalhos publicados na Literatura Latino-Americana em Cincias da Sade (LILACS), tomada enquanto referncia mais geral na rea da sade. Buscando compreender como esta questo vem sendo tratada pela enfermagem realizei este levantamento na Revista Latino-Americana de Enfermagem - por ser esta uma revista de circulao internacional - e nos Programas e/ou Anais em que so publicados os resumos dos trabalhos, temas livres, teses e dissertaes do Congresso Brasileiro de Enfermagem (CBEn). Destaco que este veculo contm quantitativamente maior volume de produo na rea, o que pode significar uma abrangncia qualitativamente importante da produo. Observo, no entanto, uma certa dificuldade em ter acesso nas bibliotecas a estes programas e/ou anais conjuntamente.

Justifico a escolha intencional destes veculos de divulgao da produo cientfica que compem o material analisado atravs de alguns critrios. A abrangncia constitui-se em um destes critrios. Apesar da LILACS englobar somente a produo indexada, esta consiste em uma fonte primeira importante de divulgao na Amrica Latina, assim como, os programas e Anais do CBEn que abrangem globalmente boa parte da produo cientfica na rea de enfermagem. Outros veculos foram levantados, porm pela riqueza do material coletado optou-se por analis-los em momentos diferentes e em textos diversos, resguardando-se a densidade do contedo apresentado e no incorrendo na precipitao de aglutin-los e acabar reduzindo este contedo na anlise. Outro critrio observado refere-se ao fato da produo acerca da reforma psiquitrica ser muito recente, em funo disto entendeu-se que selecionando veculos de maior abrangncia como por exemplo programas e Anais do CBEn se teria acesso a trabalhos como relatos de experincias, notas prvias, resumos de dissertaes/teses e reflexes, que somente aps maior amadurecimento seriam publicados na forma de artigos ou livros.

O recorte histrico realizado foi de 1987 at junho de 1995, alertando-se para o fato da Revista Latino-Americana de Enfermagem ter iniciado suas publicaes em 1993 e no constar no material analisado os trabalhos apresentados nos CBEn de 1988 e 1990 (que segundo informaes no foram publicados) e 1993 (o qual no se teve acesso at a finalizao da coleta de dados).

Atribui-se o recorte histrico no ano de 1987 por ter sido realizada neste ano a I Conferncia Nacional de Sade Mental ( I CNSM) - no Rio de Janeiro, a qual constituiu-se em importante frum de discusso que situou a sade mental na luta de classes, questionou o modelo psiquitrico vigente e props a substituio dos leitos psiquitricos por leitos em hospitais gerais pblicos e/ou servios alternativos. Apesar do recorte ter sido feito tendo como marco o ano histrico para a sade mental como 1987, em um primeiro momento foi levantado nos veculos de produo analisado todo o resumo de trabalhos desde o incio dos anos 80. Alm das peculiaridades histricas da dcada de 80, que sero explicitadas a seguir, este levantamento retrospectivo possibilitou observar que o marco da I CNSM, consolidou uma efervescncia de discusses que j vinham ocorrendo na sociedade civil. Assim, o recorte foi estabelecido em funo deste contexto de justificativas, o qual apontou no material analisado uma primeira publicao acerca da temtica datada de 1987.

Para compreender este momento histrico necessrio retroceder aos anos 70, perodo em que no contexto brasileiro j havia lutas setoriais contra o regime manicomial, denncias de violncias a doentes mentais e experincias com inspirao na comunidade teraputica, na psicoterapia institucional, na psiquiatria de setor e na psiquiatria comunitria (BEZERRA, 1994). Contraditoriamente, quando no mundo cresciam as propostas de desospitalizao e reestruturao da assistncia psiquitrica, o Brasil vivenciava um perodo ditatorial e aumentava a contratao de leitos privados nos hospitais psiquitricos tradicionais, estimulando o desenvolvimento de um amplo parque manicomial. Este foi o contexto que antecedeu uma srie de transformaes nas prticas psiquitricas, pautadas no paradigma da reforma, implementadas j nos anos 80.

Dando continuidade aos encaminhamentos metodolgicos, aps o levantamento, fichamento e leitura exaustiva dos dados procurei agrup-los em categorias empricas (MINAYO, 1992). Tomei a desinstitucionalizao como categoria emprica maior na medida em que esta operacionaliza a proposta da Reforma Psiquitrica ao menos no que corresponde ao modelo assistencial, a legislao psiquitrica e a cidadania.

A categoria eleita para anlise foi excluso, na medida em que esta legitima uma perverso que poltica, cientfica e cultural, a qual consiste no elemento central da crtica exercida a partir dos movimentos de Reforma Psiquitrica. Para fins de sistematizao optei por dividir a anlise em dois blocos, a saber: resumos da LILACS e os resumos dos trabalhos apresentados nos Anais do CBEn. Segui uma ordenao temporal histrica e privilegiei abordar particularmente os resumos dos trabalhos, na tentativa de contemplar a riqueza de discusses que os mesmos contm.Topo da pgina

4. A PRODUO CIENTFICA NA LILACS ACERCA DA REFORMA PSIQUITRICA

Constatei que a primeira publicao data de 1987 (FORTES, J.R. et al., 1987.), ano j mencionado de intensas discusses acerca do modelo assistencial psiquitrico. Este trabalho discorre sobre a compreenso histrica da loucura desde os gregos at as reformas posteriores Revoluo Francesa e a sua aquisio de estatuto de doena mental. Resgata a psicofarmacologia e as teorias sociolgicas, j no sculo XX, como marcos no questionamento das instituies psiquitricas, remarcando a dcada de 60 e a implantao de servios alternativos em pases ricos como os EUA, Inglaterra, Frana e Itlia (com Basaglia). Os autores utilizam-se das reflexes feitas sobre estes processos diversificados para pensar o recente movimento ocorrido no estado de So Paulo, o qual denominam desospitalizao e analisam as vantagens e riscos desta proposta, no sentido de contribuir no avano das reflexes acerca da desinstitucionalizao.

Constato a partir deste resumo que o aparecimento das publicaes acerca do referencial da desinstitucionalizao, encontra-se relacionado com o processo de democratizao da sociedade brasileira desencadeado pelo fim do regime militar e com a luta por eleies diretas para presidente no final de 70 e incio dos anos 80. Este processo de democratizao vincula-se organicamente a uma crise econmica caracterizada pela inflao crnica, estagnao econmica, ajustes externos e polticas recessivas do Estado brasileiro. A realidade da sade no se diferencia da conjuntura mais geral e sob a gide das medidas reformistas e racionalizadoras de assistncia sade, as polticas sociais encaminham-se para a implementao, sendo entendidas como possibilidades de conteno dos gastos do Estado. Temos ento o Conselho Consultivo da Administrao de Sade Previdenciria (CONASP), as Aes Integradas de Sade, o Sistema nico e Descentralizado de Sade e o Sistema nico de Sade tomados pelo governo como propostas de conteno de gastos e utilizadas pela sociedade civil como espao de participao, organizao e resistncia na busca de um sistema de sade baseado na lgica da solidariedade. O ano de 1987 justamente aquele que antecede o processo da Constituinte e que subseqente mobilizao em torno da VIII Conferncia Nacional de Sade. Assim, este perodo constitui-se em um tempo histrico caracterizado pela crise econmica e a reduo de investimentos pblicos em polticas sociais, bem como, pelo crescimento da mobilizao em prol da Reforma Sanitria e da Reforma Psiquitrica. Neste tempo histrico a publicao latino-americana busca, no resgate das experincias europias e norte-americanas refletir seus contedos terico-prticos, suas diversidades, suas contribuies, conflitos e limites, alm de debruar-se sob a criao de novos espaos de assistncia ao doente mental situados no contexto brasileiro.

Explorando mais detalhadamente as experincias internacionais que tem subsidiado prticas nacionais, considera-se relevante resgatar a distino bsica entre os processos europeus e dos EUA . ROTELLI (1991), ao tratar da Lei 180 da reforma psiquitrica italiana (A Lei 180/78 italiana, probe a recuperao de qualquer cidado em hospital psiquitrico, declara que o vnculo entre doena mental e periculosidade no tem sustentao cientfica, e em substituio aos hospitais psiquitricos prev a construo de servios comunitrios), resgata nos anos 60 a crtica realizada ao saber, poder e operacionalidade da psiquiatria que historicamente legitimou a excluso de milhes de cidados, geralmente oriundos de classes menos favorecidas. Enfatiza que na prtica, nos ltimos vinte anos grande parte dos pases ocidental tentou reformar seus sistemas psiquitricos, utilizando a estratgia de construir servios externos ao hospital psiquitrico. O autor afirma que, no entanto, este sistema faliu na Inglaterra, na Frana, nos pases Escandinavos e na Alemanha, no importando em melhoria da assistncia, nem reduzindo a populao internada. O processo desencadeado nos EUA recebeu outra conduo pois, a desospitalizao dos doentes mentais no implicou na construo de servios comunitrios suficientes para prestar assistncia aos doentes mentais e tinha como objetivo claro reduzir despesas do Estado. Este fenmeno ocorrido a partir da implantao desta poltica tornou-se historicamente conhecido como os loucos pelas ruas.

Ao abordar ao processo italiano, que se constitui em referncia para muitas das experincias brasileiras, ROTELLI (1990) tem o cuidado de distinguir duas realidades, a saber: o movimento liderado por Franco Basaglia e a situao italiana em geral. Evidencia-se que o movimento da Psiquiatria Democrtica Italiana lutava pela extino progressiva dos manicmios, com a progressiva substituio destes por servios comunitrios que rompessem com o paradigma clnico, com a relao linear de causa-efeito na concepo e tratamento da loucura, com o vnculo entre a loucura e periculosidade e referia-se a necessidade de negar a instituio psiquitrica e inventar um outro modo de assistir ao doente mental. Entretanto, a distino exposta anteriormente importante porque os princpios da Psiquiatria Democrtica Italiana foram explicitados atravs da lei 180 aprovada em 1978, que apesar de ser revolucionria em termos de legislao psiquitrica - visto que desde 1838, na Frana, uniformizou-se a custdia e a privao dos direitos de cidadania do doente mental - esta lei passou por cerca de dez anos de desaplicao.

Este relato da experincia italiana e suas pertinentes reflexes demonstram que somente a lei no capaz de modificar a estrutura psiquitrica existente. Ainda remete para questes de poder implicadas nesta luta e a divergncia de interesses econmicos e polticos envolvidos. Instiga a reflexo sobre a importncia das mobilizaes populares e da construo de servios alternativos enquanto instrumentos de um trabalho cultural necessrio no sentido de desmistificao da loucura.

A presente discusso traz reflexes sobre modelo assistencial vigente e sobre o papel da legislao para implementao de mudanas, o qual consistem em um ponto de partida importantssimo para pensar-se a questo da reforma psiquitrica e o contexto brasileiro.

Os prximos trs resumos divulgados atravs da LICACS encontram-se na dcada de 90. BARROS (1990) discute o contedo e as prticas que constituem cada um destes movimentos processados no mbito internacional e a representao do manicmio enquanto instituio de violncia. BANDEIRA (1990) aborda os erros e limites da proposta de desinstitucionalizao tais como: dificuldades de financiamento para criao de servios alternativos na comunidade, de aceitao das pessoas em acolher o doente mental, de coordenao dos servios, de divergncias ideolgicas entre trabalhadores de sade e tantas outras. Sugere uma discusso ampla sobre as conseqncias da desinstitucionalizao para que se utilize positivamente a experincia dos outros pases. BANDEIRA (1992) traz o enfoque da preparao dos profissionais de psicologia para insero neste processo. A investigao realizada pela autora, abrangeu 81 departamentos de psicologia das universidades brasileiras onde apenas 43% responderam aos questionrios. O percentual de acerto das questes (58%) foi prximo ao nvel de acaso o que denotou, entre outras questes, pouca nfase na preparao profissional para o trabalho comunitrio e lentido na aplicao das polticas em sade mental.

Considero oportuno refletir primeiramente sobre o contexto histrico em que se inserem estes artigos. Na dcada de 90 o processo de contradies na sociedade brasileira encontra-se cada vez mais acirrado. A tnica neoliberal orienta grande parte dos encaminhamentos dados pelos governantes. No mbito da sade por exemplo observa-se um retraimento nos investimentos pblicos em sade e um grande retrocesso relativo ao descompromisso do Estado com a manuteno de um sistema de sade pblica de acordo com o que havia sido preconizado na Constituio de 1988. Explicita-se uma tendncia de que a lgica de mercado sirva como reguladora no acesso aos servios de sade, ficando a cargo do Estado apenas aqueles que no conseguirem garantir a sua sade pelas vias do mercado. Em contrapartida, a sociedade tem respondido a isto com a organizao de lutas por projetos emancipatrios, que visem garantir um sistema de sade mais solidrio que no venha a pautar-se na lgica da excluso. A exemplo desta resistncia temos as lutas pela Reforma Sanitria e a luta pela Reforma Psiquitrica. Comumente argumenta-se, na tentativa de desqualificar o movimento, que estas lutas so iniciativas corporativas e segmentadas de pequenos grupos sociais. Entretanto, concretamente o surgimento destes novos movimentos sociais tem proposto novas formas de participao e construdo novas identidades sociais. Acrescento ainda, que o processo de articular a resistncia em uma sociedade complexo, exige atores diversificados e tem se caracterizado historicamente por ser construdo pelas minorias defensoras de interesses contra-hegemnicos.

Neste sentido de pensar sobre a luta contra- hegemnica, trazendo-a para o campo da sade mental, destaco ao menos dois processos ocorridos em 1989, que inauguram um tempo histrico singular que remarca a dcada de 90. Os referidos processos so: a interveno da Prefeitura de Santos na Casa de Sade Anchieta, com a subseqente criao dos Ncleos de Ateno Psicossocial (NAPS) e a apresentao no Congresso Nacional do projeto de lei no. 3657/89 (Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG) que prev a extino dos manicmios, com a substituio progressiva destes por servios comunitrios e regulamenta os direitos do doente mental). (BEZERRA JR., 1994).

DELGADO (1992) ao discutir a reforma psiquitrica a partir da legislao, tendo como referncia o projeto de lei 3657/89 que segundo o autor intervm no modelo assistencial, e somente indiretamente na cidadania - quando se refere ao direito essencial de liberdade e ao caso do tratamento obrigatrio - , destaca que o modelo assistencial consiste na reforma em si, no rearranjo dos servios, modelo e mtodo de atendimento, na democratizao e na ruptura do paradigma manicomial. Ao discutir a cidadania, retoma a incapacidade civil prescrita no Cdigo Civil de 1916, refletida pela expresso loucos de todo gnero. Para este autor, a relao entre incapacidade civil do louco e direito penal, implica em duas conseqncias: priso perptua nos manicmios judicirios aos loucos pobres - como regra, ou a impunidade para maridos homicidas como exemplo de regularidade (DELGADO, 1992: 81).

Destaco a riqueza do momento histrico vivenciado no contexto brasileiro e que este serve de pano de fundo, auxiliando a compreenso das reflexes trazidas pelos trabalhos publicados na dcada de 90. Estas publicaes direcionam suas abordagens neste momento, para o resgate das experincias europia e norte-americana refletindo sobre seu contedo terico-prtico, suas diversidades, conflitos e limites, para que tais contribuies permitam uma construo mais pensada das experincias brasileiras. Observo um avano quando se expe a preocupao do modo como o profissional vai passar a inserir-se neste processo, o que pode refletir um amadurecimento das reflexes.

Retomo a abordagem de BARROS (1990) acerca do manicmio e da violncia institucional, observando que a mesma autora em outro trabalho em 1993, ao discutir a temtica tomava como eixo cidadania. A autora afirma que a noo de desinstitucionalizao delimita-se no interior dos processos de reestruturao scio-institucionais das sociedades europias (sob a tnica de duas grandes guerras e o clima de denncias sobre o tratamento nos hospitais psiquitricos) e americanas (nos EUA, ligada definio do papel do Estado de regulao do capital-trabalho). Discute ainda, que o esteretipo da periculosidade e o no compreender o doente mental encobrem e impedem que a situao de sofrimento seja superada. A autora remarca que as criaes de novas alternativas so necessrias no sentido de estabelecer relao no mais com a doena mas com a pessoa que sofre, gerar servios sem critrios generalizadores, perceber que a doena no totaliza a pessoa - que todo gesto pode ser compreendido, tem significado comunicativo e faz parte da vida do indivduo. Comenta ainda, que a periculosidade no se constitui em uma categoria abstrata, pois as instituies podem ser perigosas aos cidados se no permitirem acesso a instrumentos de cuidado ou no responderem as suas solicitaes (BARROS, 1993).

Concluo as anlises deste primeiro bloco, evidenciando o fato de que as quatro publicaes encontradas na LILACS foram produzidas por autores brasileiros, o que refora a dimenso que esta questo da reforma tem assumido em nosso contexto. Embora possa parecer reduzida a quantidade de publicaes, remarco ser este um referencial terico-prtico relativamente novo na realidade brasileira e extremamente conflituoso com os interesses dominantes nesta sociedade.Topo da pgina

5. A PRODUO CIENTFICA DA ENFERMAGEM ACERCA DA REFORMA PSIQUITRICA

Ao analisar a produo cientfica acerca da reforma psiquitrica na enfermagem observo, primeiramente, que na Revista Latino-Americana de Enfermagem, que passou a ser publicada em janeiro de 1993, no foi encontrada nenhuma publicao sobre a temtica at junho de 1995. Atribuo esta ausncia recente circulao da revista, assim como ao fato do mundo acadmico estar vagarosamente aproximando-se das questes da reforma. Observo que esta discusso vem travando-se na enfermagem, mais recentemente.

Com relao aos trabalhos apresentados em Congressos Brasileiros de Enfermagem (CBEn) e publicados em Anais, destaco que o primeiro a tratar claramente a questo reforma aparecem j na dcada de 90, mais precisamente nos Congressos de 1992 (trs trabalhos) e de 1994 (seis trabalhos). Apesar de o material analisado apresentar-se sob a forma de resumos, mostra uma riqueza na medida em que permite perceber, por exemplo, que mesmo durante a dcada de 80 j havia uma preocupao em realizar uma crtica ao modelo psiquitrico vigente, embora muito relacionada criao de servios externos e ao preventivismo. Tratavam tambm, nesta poca, dos limites da proposta de tratamento da doena mental em instituies totais e sobre a importncia da enfermagem inserir-se nestas discusses e refletir sobre sua prtica nesta rea. Para fins de sistematizao, agrupei os trabalhos em dois blocos que renem, primeiramente, os trabalhos publicados em 1992 e a seguir, os trabalhos publicados em 1994.

O trabalho de KIRSCHBAUM (1992) relata a experincia de um projeto em sade mental de articulao entre escola-servio na instituio Cndido Ferreira em Campinas (SP). Este relato fala de um servio que buscava a transformao de seu modelo assistencial psiquitrico voltando-se para a ressocializao e desinstitucionalizao do doente mental. Refere-se ainda utilizao do hospital-dia enquanto campo de estgio possvel de viabilizar a apreenso de novas formas de tratamento ao doente mental. Os outros dois trabalhos so reflexes tericas. TAVARES (1992) reflete sobre os papis assumidos pelo enfermeiro em seu pensar e fazer incorporado do modelo assistencial manicomial e o desafio de colocar-se enquanto sujeito nas novas propostas que acreditam no trabalho interdisciplinar. MIRANDA (1992) trata da histria e das representaes coletivas herdadas sobre o louco, no cotidiano das relaes que se estabelecem no espao asilar.

Considero um avano para a enfermagem que profissionais envolvidos na criao de outros modos de pensar, viver e trabalhar com a loucura estejam neste momento divulgando suas experincias e suas inquietudes. Erroneamente, poderia se pensar que isto acontece tarde para a enfermagem, no entanto proponho que se pense de outra forma, j que o tempo histrico em que possvel questionar um antigo paradigma, secularmente consolidado e passar a pensar um novo paradigma emergente, depende de muitas outras relaes bastante complexas considerando-se a formao histrica da profisso, ou at da prpria sociedade brasileira. A discusso explicitada nas publicaes retrata a complexidade de repensar a representao social da loucura no espao asilar, a relao ensino-servio neste novo contexto e o papel da enfermagem nos trabalhos interdisciplinares emergentes enquanto o processo contra-hegemnico que se trava lenta e sutilmente no interior inclusive das corporaes profissionais, enquanto grupos sociais portadores de concepes de mundo de determinada classe social.

A discusso trazida ao menos explicitamente, em dois dos trabalhos sobre o modelo assistencial, remete para um dos pontos cruciais da reforma. Entendo que a proposta de mudana tornou-se uma motivao de organizao e luta a partir da constatao de que o modelo de assistncia psiquitrica convencional no tem historicamente dado conta nem de cuidar, nem de curar a doena mental e o doente. Frente a esta incapacidade e constituio do espao asilar enquanto excludente, segregador e violento, inaugurado um novo modo de pensar e fazer.

Entretanto, este percurso muito tortuoso, permeado por contradies e conflitos, com todos os percalos que constituem um processo em construo. No sentido de contribuir para esta reflexo, CAMPOS (1992), ao abordar o modelo assistencial, entende-o como um conceito que estabelece intermediaes entre o tcnico e o poltico e configura-se em uma sntese cambiante que requer a concretizao de diretrizes polticas e de princpios ticos, jurdicos, organizativos, clnicos, scio-culturais, epidemiolgicos e o desejo de viver saudvel. Ao elaborar a crtica ao projeto da reforma, refere que este tem sido muito mais anti do que pr carecendo dirigir-se da negao para a superao. Destaca que alm dos limites financeiros, o Brasil convive com o enfoque abusivamente normalizador das disciplinas em sade mental e com uma transposio mecnica de diretrizes ordenadoras dos sistemas pblicos de sade - como o caso da hierarquizao e da regionalizao. Alerta que a hierarquia dos servios pode determinar a fragmentao da doena, impor rigidez de papis e uma lgica definida por interesses corporativos ou burocrticos. O autor remarca que, para assegurar a qualidade do cuidado e a legitimao dos servios pblicos pelos usurios, deve-se ter presente as ... noes de vnculo, da acolhida e de responsabilizar-se pelo cuidado integral da sade coletiva e individual, que deveriam sobredeterminar todo o desenho de modelo em sade - assegurar os contornos e o rtmico de movimento do redemoinho (CAMPOS, 1992:18).

Considero que a preocupao que a enfermagem tem demonstrado em seus trabalhos - desde a representao da loucura, as experincias dos outros pases, o modelo assistencial e sua insero na reforma, traduz um comprometimento, mesmo que parcial ou de grupos, com a essncia apreendida pelo cuidado enquanto uma prtica social.

No CBEn de 1994, alm dos seis trabalhos que sero abordados posteriormente, dois trabalhos, os quais no dispem de resumo no programa e/ou anais, tratam da temtica em estudo. Um dos temas oficiais do Congresso (DAUT Jr.,N. e MARCOLAN, J., 1994) um trabalho apresentado sob a forma de pster (FRAGA, N.N.O. e PONTES, P.A.R., 1994). Evidencio que, no material analisado, pela primeira vez o tema da desinstitucionalizao do doente mental objeto de preocupao dos temas oficiais do CBEn. Contriburam para isto alguns fatores, tais como: o processo histrico de discusso e acmulo de experincias no cenrio nacional e, particularmente, por este CBEn ter sido sediado na capital do estado do Rio Grande do Sul. Cabe aqui relembrar que este estado tem se constitudo em um importante plo de resistncia e luta pela reforma psiquitrica, tendo um movimento social aglutinado em torno disto, um crescente nmero de experincias alternativas de assistncia e a 1a lei estadual no contexto brasileiro a tratar da reforma psiquitrica.

Com relao ao outro grupo de trabalhos apresentados em 1994, inicio por CASTRO (1994), que elaborou uma crtica ao modelo manicomial em seu carter excludente, apontando que o modelo hospitalocntrico tem se demonstrado substituvel pelos servios alternativos. Em contrapartida, ao tratar da reestruturao da assistncia em sade mental em Cuiab, chama a ateno para fatores como a inexistncia de participao comunitria ativa neste processo, a equipe encontrar-se desarticulada e o fato de a assistncia ser centrada na figura do mdico. Destaco que para realizar este trabalho a autora examinou duzentos pronturios do Centro de Sade de Cuiab durante o ms de agosto de 1992, observando ainda, a inexistncia de registros acerca de orientaes a pacientes ou familiares. A autora toma como referncia o Documento de Caracas (OMS, 1990) onde veiculada a compreenso da doena mental enquanto um fenmeno complexo, que requer integrao entre o indivduo, a famlia, os servios e a comunidade, tendo na educao um elemento fundamental para a democratizao do conhecimento e o modo de compreender a sade. Conclui que existe um distanciamento entre os propsitos tericos e a prtica efetiva na reestruturao da assistncia extra-hospitalar.

interessante perceber que esta reflexo parte para uma anlise crtica dos servios que esto sendo estruturados, avanando na discusso acerca do novo paradigma e do modelo assistencial que este prope. Constitui-se numa referncia fundamental no sentido de repensar formas de assistir o doente mental que no reproduzam o pensamento, o fazer, enfim, toda a estrutura manicomial. Estas experincias e reflexes contribuem para reestruturar as prticas em sade mental sem retornar aos mesmos pressupostos de periculosidade, excluso, causa-efeito, entre outros, que voltem a reproduzir a cultura manicomial. Considero ser esta uma tarefa muito complexa, j que a simples extino dos manicmios no garante a desconstruo dos modos de pensar e fazer que instituram formas to arraigadas de lidar com a loucura.

SCHNEIDER (1994) trabalhou a esquizofrenia na perspectiva fenomenolgica, repensando um caminho para o cuidado em enfermagem psiquitrica. Neste trabalho, o autor apresenta uma crtica ao modelo clnico, embora o autor no se refira, explicitamente, instituio manicomial. A opo metodolgica pela fenomenologia, justifica que o autor no apreenda o objeto de estudo tendo como eixo de preocupao a crtica mais geral a instituies como os hospitais psiquitricos.

PENTEADO e MIRANDA (1994) questionam o hospital psiquitrico enquanto instituio total e sua contribuio na ressocializao do indivduo. Elaboram um estudo de caso que tem como instrumento sete entrevistas semi-estruturadas, realizadas com membros da equipe multidisciplinar de um hospital psiquitrico pblico e de ensino. Na anlise, observam que o significado institucional hospitalar de tratar a doena mental implica, na maioria das vezes, em conceber o paciente como reprodutor de normas e regras que organizam o espao asilar, objetivando ambient-lo ao trabalho da chamada equipe teraputica.

As autoras apontam para uma questo fundamental, sobre a qual CAMPOS (1992) referiu-se ao tratar do modelo assistencial, que consiste em: em torno do que e de quem se organizam os servios de sade; ou seja, em torno da burocracia, da hierarquia e dos interesses corporativos, como tem sido observado historicamente ou dos usurios dos servios.

WETZEL E MIRON (1994) discutem o paradigma preventivista e o paradigma da reforma psiquitrica em suas origens - enquanto movimentos que desde os anos 60 buscavam transformaes no setor de sade mental no Brasil, analisando a insero da enfermagem neste processo. Utilizam um recorte de 1970 a 1994 e, ao examinarem a produo dos enfermeiros de forma mais ampla, relacionam esta ao paradigma preventivista, que serviu para que a enfermagem buscasse autonomia frente ao trabalho mdico e obtivesse reconhecimento da populao. Referem que a produo relacionada reforma psiquitrica tem crescido de modo geral na sade, mas que o mesmo no se verifica na enfermagem. Sugerem que isto possa estar relacionado ao fato de que estas prticas so recentes, a estarem os enfermeiros vinculados a servios mais tradicionais e situao de afastamento da academia dos servios alternativos.

Um dos aspectos relevantes que as autoras trazem nesta discusso refere-se a busca de legitimidade e autonomia profissional da enfermagem, ancorada no referencial preventivista. Considero que a se inclui o modo de ver a enfermagem e suas relaes sociais. Algumas correntes defendem que a autonomia frente ao trabalho mdico poder garantir a identidade e o status profissional ao enfermeiro. Em contraposio - pessoalmente - penso que o prprio processo de diviso tcnica e social do trabalho encaminha uma certa submisso do trabalho da enfermagem ao trabalho mdico. Compreendo a enfermagem como uma prtica social e entendo que o caminho possvel de ser percorrido e construdo seja aquele em que o engajamento, a participao e a constituio dos sujeitos sociais possvel. Questiono nas aproximaes da enfermagem com o preventivismo, pois como afirma ROTELLI, (1991), este movimento demonstra uma incapacidade de firmar propostas resolutivas e confrontadoras estrutura manicomial.

MIRON (1994), em seu trabalho, busca compreender as prticas de ateno sade em um servio ambulatorial pblico, tendo como eixo de anlise o processo de trabalho. Utiliza-se dos seguintes instrumentos: entrevistas com trabalhadores do servio e dirigentes de sade do mbito municipal, observao direta e documentos oficiais. Faz um breve relato do processo e conclui que o processo de trabalho organiza-se em torno do comportamento desviante, que reproduz o modelo assistencial da clnica - centrada no trabalho mdico, reforando a diviso tcnica do trabalho e reduzindo a reforma psiquitrica diminuio de internaes e conteno de crises, embora a linguagem da reforma esteja presente. A autora destaca ainda o municpio como um espao privilegiado para construo da reforma.

Alm da crtica ao que pode ser reproduzido nos novos servios, j abordadas no corpo deste trabalho, MIRON (1994) resgata outra discusso interessante acerca do espao local enquanto potencialidade para a construo de novas prticas e novos sujeitos deste processo de reforma.

HOLANDA et al (1994) fala do Projeto Arte, implantado h dois meses em um hospital-dia com uma perspectiva de introduzir novas formas de abordagem no cuidado, fundamentada nas concepes da antipsiquiatria. Descreve como se desenvolve o estgio, que d nfase s dinmicas mltiplas e participativas, pressupondo o exerccio da cidadania, despertando para direitos e deveres no convvio social e propondo-se a discutir a percepo social da loucura.

Este ltimo, embora no se refira reforma psiquitrica, traz de volta um referencial utilizado em metade dos anos 60, na Inglaterra, que contribuiu na crtica instituio psiquitrica e ao modelo assistencial vigente. Este referencial o da antipsiquiatria que compreendia a loucura como conseqncia de uma realidade social alienadora, recusava a descrio da loucura como doena, valorizava a experincia psictica e acreditava que a transformao subjetiva individual poderia transformar as estruturas da sociedade.

Finalizando a presente anlise dos trabalhos produzidos pela enfermagem e veiculados nos congressos brasileiros da rea afirmo que este apesar de ser recente, pois data de 1992 no material analisado, apresenta uma produo densa que abrange um leque de preocupaes centrais para a profisso. Preocupaes estas que visam elucidar papis assumidos pela enfermagem no modelo manicomial, de desafios frente aos novos servios propostos, de repensar as representaes acerca da loucura, a relao ensino-servio neste movimento e fundamentalmente de tentar ir da crtica ao modelo assistencial hegemnico sua superao.Topo da pgina

6. CONSIDERAES FINAIS

Considero que este trabalho de tentar compreender a reforma psiquitrica atravs da anlise de parte da produo cientfica em sade e em enfermagem especificamente, contribui no sentido de se refletir criticamente como tem se dado o pensar e o fazer desta reforma. Procuro na anlise realizada apontar para um exerccio reflexivo acerca de contextos onde tem se produzido novas formas de pensar a loucura, considerando as contradies da existncia humana e quelas produzidas social e historicamente. Debruar-me sobre este passado ainda recente, constituiu-se em um desafio que me remete a inmeras reflexes sobre as possibilidades de construo de um processo extremamente singular, que guarda conflitos e singularidades da sociedade brasileira. O olhar produzido sobre as publicaes neste espao analisadas apresentado no artigo como uma modesta contribuio frente aos crescentes desafios que a reforma impem.

Acerca desta contribuio explicito que a escolha da categoria de anlise - excluso atribuo ao fato desta guardar um perfil explicativo que permite compreender como os saberes e prticas psiquitricas tm se institudo, se reproduzido e se sustentado historicamente. Espero que a leitura produzida neste trabalho permita aos demais profissionais da enfermagem e da sade realizarem uma aproximao crtica do referencial da reforma psiquitrica, compreendendo-se assim enquanto sujeitos histricos que tem contribudo para reproduo de um modelo hegemnico ou para a construo coletiva incerta e conflituosa de novas formas de se lidar com o sofrimento psquico. No minha inteno polarizar a discusso da reforma em modelos opostos, pois entendo que estas novas formas vem sendo produzidas e pautadas em princpios de acolhida, de solidariedade e de profundo respeito vida humana, o que por si s no se enquadra na necessidade de homogeneizao conformada em modelos de cuidado. Em nome destas diferenas este trabalho se apresenta como uma entre muitas alternativas de repensar o paradigma e a realidade que conformam a proposta da reforma psiquitrica.

https://www.fen.ufg.br/fen_revista/revista3_2/reforma.html