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A REFORMA DO TESOURO NACIONAL E OS LIBERAIS
MODERADOS
Bruno Aidar (UNIFAL)
Resumo:
Ao lado de temas tradicionais da historiografia, como os juízes de paz, o júri, a Guarda Nacional, a liberdade de imprensa e o poder provincial, os debates na câmara dos deputados e no senado sobre a reforma do tesouro em 1830 e 1831 podem auxiliar na reconstituição histórica das alternativas de modelos estatais e da constituição de grupos políticos. O objetivo da comunicação é destacar a importância das propostas de reforma do Tesouro Nacional na delimitação das principais contendas entre os deputados governistas e da oposição, permitindo aos últimos construir um modelo estatal de cariz liberal moderado. Busca-se indicar pela análise do debate sobre a reforma na câmara dos deputados, alguns temas importantes na construção de um modelo liberal moderado para a organização do Estado, tais como a defesa da subordinação dos funcionários ao governo central, maior ênfase no poder executivo e menor autonomia provincial.
Palavras-chave: Estado, liberais moderados, Tesouro Nacional.
Abstract:
Beside some traditional subjects in historiography, such as the parish judges, the jury, the National Guard, the freedom of the press, and the provincial power, the debates in the Chamber of Deputies and the Senate on the reform of the national treasury in 1830 and 1831 may aid to reconstitute historically alternative state models and the formation of political groups. The text aims to highlight the importance of proposals to reform the National Treasury to demarcate the main struggles between the ruling and opposition deputies, allowing the latter to build a moderate liberal State model. Through the analysis of the debates in the House of Representatives, it can be noted some important issues in building this model for the State organization, as the defence of the subordination of the officials to the central government, the empowerement of Executive, and the low provincial autonomy.
Key words: State, moderate liberal, National Treasury.
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Em maio de 1830, afirmava o marquês de Barbacena, então ministro da fazenda, em seu
relatório à assembleia legislativa: “o Tesouro, as juntas da fazenda, e as secretarias de Estado
não estão organizadas [sic] em harmonia com o sistema de fiscalização, e publicidade, que
exige o governo representativo” (BRASIL, 1830: 4). Em que pesem as crescentes
necessidades financeiras ao final da década de 1820, provocadas pelas despesas bélicas no sul
e o pagamento dos empréstimos externos, havia também uma grande urgência quanto ao
reordenamento institucional da administração fazendária nos moldes do liberalismo
constitucional, como expressa a fala do marquês. Mais do que isso, havia projetos estatais
distintos defendidos por diferentes facções políticas na condução deste reordenamento. A
intersecção entre os projetos de organização estatal e a construção de grupos políticos a partir
dos debates parlamentares apresenta-se como uma alternativa possível à reconstituição da
história política entre 1826 e 1831 sem conceber um Estado alheio às modificações dos
agentes e, por outro lado, sem deixar de perceber a importância das preferências por certos
modelos estatais na construção da identidade política dos agentes.1
Ao lado de tantos temas tradicionais, como os juízes de paz, o júri, a Guarda Nacional, a
liberdade de imprensa ou o poder provincial, os debates na câmara dos deputados e no senado
sobre a reforma do tesouro2 em 1830 e 1831 podem auxiliar na reconstituição das alternativas
de modelos estatais e da constituição de grupos políticos. Em questões fazendárias, houve
avanços historiográficos com relação aos temas da repartição de rendas gerais e provinciais
pela lei de 24 de outubro de 1832 e do Ato Adicional (cf. OLIVEIRA, 2009: 332-348;
MIRANDA, 2009: 251-259; COSTA, 2005: 37-43; DOLHNIKOFF, 2005: 156-170, 262-
276), mas a reforma do tesouro ainda é tema intocado pela história político-institucional. Uma
exceção é a análise sucinta, bastante presa ao texto da lei, do historiador de origem romena
Mircea Buescu (BUESCU, 1984: 21-25). Em parte, talvez, porque tenha um semblante menos
liberal do que a reforma militar e judiciária, em parte por ter sido obliterada pela discussão da
repartição das receitas em 1832. Ademais, o relativo sucesso da reforma fazendária de 1831
apagou as diferenças entre os parlamentares durante a discussão da lei. 1 Ainda que não tratem diretamente aqui abordado, deve-se destacar, além da própria bibliografia citada ao longo do texto, a influência das interpretações seminais de Cecília Salles Oliveira e de Andréa Slemian (OLIVEIRA, 1999; SLEMIAN, 2006). 2 Há, ao final da década de 1820 e início de 1830, uma notável produção e discussão legislativa sobre temas fiscais e financeiros de igual interesse: as práticas orçamentárias, a fundação da dívida pública, os empréstimos externos, a política alfandegária, a extinção do Banco do Brasil (e a proposta de um novo), a repartição das rendas gerais e provinciais e a reforma monetária.
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Busca-se indicar no presente texto, pela análise do debate sobre a reforma do tesouro na
câmara dos deputados, alguns temas importantes na construção de um modelo liberal
moderado para a organização do Estado referentes (1) à independência dos funcionários
públicos; (2) ao equilíbrio horizontal na divisão de poderes no centro e nas províncias e (3) ao
equilíbrio vertical na divisão de poderes entre o centro e as províncias. Tal modelo contestava
uma organização estatal de tendência hierárquica de inspiração francesa com funcionários
subalternos ao governo central, maior ênfase no poder executivo (e moderador no caso
brasileiro) e menor grau de autonomia provincial. Indica-se aqui que as tensões entre dois
modelos de organização estatal,3 que não estavam fundados apenas sobre o maior ou menor
apoio ao poder do imperador, podem ser observadas nos debates parlamentares mesmo antes
da abdicação.
Modelos estatais e grupos políticos
O objetivo dessa seção é analisar brevemente como a historiografia tem caracterizado a
divisão entre os grupos políticos na década de 1820 e início de 1830. No artigo de Emília
Viotti da Costa, “A consciência liberal nos primórdios do império” (1967), há uma tensão
constante entre o movimento geral do liberalismo brasileiro e a constatação de diversos
moldes liberais desde a independência até o Regresso (COSTA, 1979). O desencanto com a
democracia restrita do liberalismo oitocentista dá o tom de sua análise: de um liberalismo
heróico da emancipação passa-se ao liberalismo conservador do Regresso. A assembleia
constituinte teria sido marcada pelo seu caráter antidemocrático, enquanto que os liberais
radicais foram derrotados paulatinamente na década de 1830. O senado, reduto de
conservadores, impediu que boa parte dos projetos liberais fosse adiante. O Ato Adicional
teria sido uma “forma conciliatória” entre liberais radicais e, do outro lado, moderados e
conservadores; por fim rompida com o regresso no predomínio do projeto conservador.
A autora aponta o legislativo como campo importante para a definição das facções. No
seu entender, o retorno de diversos temas da constituinte na reabertura do parlamento em
3 Monica Dantas, buscando superar os limites da dicotomia centralização-descentralização, propõe dois modelos de organização do judiciário, com base na distinção estabelecida pelo visconde do Uruguai, entre um modelo norte-americano de self-government e um modelo hierárquico francês (DANTAS, 2009).
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1826 permitiu a divisão do plenário em liberais radicais e liberais moderados. As lutas entre o
executivo e o legislativo entre 1826 e 1831 são também consideradas importantes, um aspecto
central para a compreensão do I Reinado. Na caracterização dos liberais moderados não os
associa a nenhum grupo econômico. Destaca seu ideal de uma monarquia constitucional, sem
os excessos dos radicais com tendências democráticas e sem as tendências absolutistas dos
corcundas e dos áulicos agarrados a d. Pedro. A caracterização de Bernardo Pereira de
Vasconcelos é neste sentido uma síntese do programa moderado: denúncia do despotismo,
crítica aos resquícios aristocráticos, extinção das instituições coloniais, meritocracia na
distribuição dos cargos, não interferência do governo na economia e defesa da propriedade.
Para Miriam Dolhnikoff, com exceção dos grupos minoritários dos republicanos e dos
restauradores, havia dois grandes grupos com projetos políticos opostos quanto à integração
das elites provinciais no Estado e às reformas sociais. O primeiro grupo era dos defensores da
constituição inalterada, partidários de reformas profundas (como a integração das populações
indígenas e a abolição da escravidão) lideradas por um governo centralista, herdeiro do
despotismo ilustrado setecentista. Para eles, a centralização e o Estado forte eram pré-
condições para a civilização. Inspirado no modelo norte-americano, o segundo grupo era dos
federalistas, mas não republicanos, defensores da continuidade da escravidão e de um maior
espaço para as elites provinciais. Buscavam incorporar as elites de proprietários brancos nas
decisões do governo ao invés de setores secularmente excluídos de negros e índios. Também
defendiam o fim de entraves para a grande propriedade (a substituição da mão-de-obra e a
regulamentação fundiária) (DOLHNIKOFF, 2005: 48-65).
Como toda seleção historiográfica, a caracterização proposta pela autora apresenta
vantagens e desvantagens. A divisão apontada de forma alguma remete ao apoio ou refutação
do poder do imperador, o que permite perceber que já na década de 1820 havia projetos de
Estado de longo prazo, para além da tendência de vincular as disputas políticas do I Reinado à
centralidade do monarca. Outro aspecto interessante é a incorporação da temática federativa
aos moderados, a despeito das resistências iniciais de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Por
outro lado, a questão da divisão de poderes no plano horizontal, ou seja, as contendas entre os
quatro poderes no centro e nas províncias são postas à margem nesta divisão. Também se
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perdem as diferenças entre grupos políticos da independência, os da constituinte e os do
período 1826-1831, apontados de forma contínua.4
Jeffrey Needell, por sua vez, distingue duas facções na câmara na constituinte e na
primeira e segunda legislaturas, sem contudo apontar projetos políticos distintos de
organização do Estado. Segundo o autor, uma facção apoiava o imperador e as oligarquias
luso-brasileiras da Corte e província fluminense e as do nordeste. Dominavam as nomeações
do governo e os benefícios do Estado. Outra facção, de oligarquias excluídas destas benesses,
aliou-se aos grupos médios urbanos, formando a oposição liberal na defesa de um governo
mais representativo. Seus principais expoentes eram Bernardo Pereira de Vasconcelos,
Evaristo da Veiga e Diogo Feijó (NEEDELL, 2009: 7).
Marcello Basile aponta dois grupos de oposição a d. Pedro I surgidos após 1826 com a
reabertura das sessões: os liberais moderados e os liberais exaltados. Os liberais moderados
possuíam bases no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, eram apoiados por homens
ligados ao abastecimento da Corte e representados por políticos como Evaristo, Vasconcelos e
Feijó. O grupo conseguiu obter representatividade substancial no parlamento, estruturando-se
por meio de coalizão no âmbito institucional. Entre 1829 e 1831, o grupo aliou-se aos liberais
exaltados, facção radical dos moderados surgida em 1829, na oposição ao imperador até sua
abdicação, sendo a aliança desfeita durante a regência.
Segundo o autor, o grupo dos liberais moderados pretendia:
(...) realizar reformas de caráter estritamente político-institucional, que limitassem os poderes do imperador, conferissem maiores prerrogativas à Câmara dos Deputados e autonomia ao Judiciário, assegurassem a aplicação das conquistas liberais já firmadas ou previstas pela Constituição (sobretudo no que concerne aos direitos civis dos cidadãos) e, ao mesmo tempo, estabelecessem uma liberdade circunscrita à esfera da lei e da ordem (BASILE, 2001: 93-94, grifos do autor).
Deve-se notar que o autor vincula o projeto federalista aos liberais exaltados, que
também defendiam a república, em contraponto à análise de Miriam Dolhnikoff que percebe a
separação dos dois projetos.
4 Segundo Miriam Dolhnikoff: “Essa divisão geracional [entre os liberais da independência e os reformadores da década de 1830], tal como apresentada por Maria Odila, deve ser questionada, pois encobre a disputa entre projetos distintos de Estado que desde a Independência estiveram em confronto. As duas correntes liberais não se sucederam no tempo, mas se confrontaram, com a vitória do liberalismo de viés federalista em 1831” (DOLHNIKOFF, 2005: 27-28).
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Sem se utilizar da divisão entre grupos políticos, Vantuil Pereira apresenta uma análise
interessante das disputas no interior da câmara dos deputados entre 1826 e 1831 em termos de
deputados governistas e de oposição (PEREIRA, 2008: 191-212). Parte desta dinâmica
dependia do ministério escolhido pelo imperador, favorecendo ou emperrando a conciliação
com a oposição parlamentar. Ademais, o autor apresenta o papel de liderança de Bernardo
Pereira de Vasconcelos na contestação das medidas do governo, sendo Lino Coutinho seu
braço direito. Os deputados Sousa França, Holanda Cavalcanti, Odorico Mendes, Custódio
Dias e José da Costa Carvalho constituíam parte da oposição. O grupo governista parecia ser
guiado pelos deputados que compuseram o ministério em diferentes momentos: José
Clemente Pereira, Lúcio Teixeira de Gouvêa e Miguel Calmon du Pin e Almeida. A despeito
do auge da radicalização das discussões ter ocorrido entre 1829 e 1831, as tensões estiveram
presentes desde a abertura das sessões, especialmente quanto à guerra, ao orçamento, aos
empréstimos externos e ao recrutamento das tropas. Os tratados internacionais com Portugal,
com pagamento de indenização, e com a Inglaterra, estipulando o fim do tráfico, foram temas
para comentários ácidos dos deputados. Um dos métodos de contestação era utilizar a
comissão da fazenda para criticar o ministério na discussão do orçamento, como ocorreu em
1828.
O autor indica que a despeito da derrota dos candidatos governistas para a segunda
legislatura, não houve uma relação linear na ascensão do grupo liderado por Vasconcelos. Em
1829, o governo recobrou força política pela própria radicalização da oposição. No mesmo
ano, Vasconcelos pediu a instauração de um processo de responsabilidade contra o ministro
da justiça durante uma revolta em Pernambuco, tendo sua proposta derrotada. A situação
complicou-se em 1830 com a possível disputa de d. Pedro pelo trono português e a
aproximação entre a oposição parlamentar e o povo nas ruas. A nomeação de um ministério
com antigos nomes próximos ao imperador em março de 1831 favoreceu o isolamento de d.
Pedro. Segundo o autor, os conflitos da câmara com o senado, especialmente com relação ao
atraso na análise dos projetos, a realização de inúmeras emendas e a resistência em realizar
votações conjuntas das duas casas marcaram o tom das contendas no legislativo.
Deve-se notar a capacidade do autor em reconstituir os debates parlamentares
ressaltando o cotidiano das discussões e as estratégias políticas tanto do governo quanto dos
deputados e senadores no interior do parlamento. Contudo, há a ausência da discussão de
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projetos estruturais de construção do Estado. Ademais, mesmo que o autor abandone a
distinção entre grupos políticos, não é difícil perceber divisões entre um núcleo formado por
políticos ligados ao imperador, mas não necessariamente absolutista, e outro de oposição,
liderada pelos liberais moderados sem qualquer proeminência dos exaltados.
O objetivo das seguintes seções é destacar a importância das reformas fazendárias na
delimitação das principais contendas entre os deputados governistas e da oposição, permitindo
aos últimos construir um modelo estatal liberal moderado. Os debates também indicam que o
legado imperial joanino, quando não foi suprimido, era transmutado pela nova linguagem da
monarquia constitucional.
O legado joanino e a constituição
Pelo alvará de 22 de junho de 1808, o príncipe regente criou na cidade do Rio de Janeiro
o Real Erário e o Conselho da Fazenda nos mesmos moldes do original lisboeta, mantendo as
prerrogativas e jurisdições da lei pombalina de 22 de dezembro de 1761. Segundo o projeto
original, ao Erário Régio caberia a concentração de todas as despesas e receitas da Coroa em
uma única instituição, não apenas materialmente como também juridicamente, evitando
descaminhos dos almoxarifes e tesoureiros, bem como a escrituração das contas pelo método
das partidas duplas. De acordo com o alvará de 1808, recriava-se o cargo de inspetor-geral do
tesouro, de tesoureiro-mor e seu escrivão e, por fim, de três contadores-gerais (um a menos do
que a lei original). A primeira contadoria era responsável pelas rendas da cidade e província
do Rio de Janeiro. A segunda pelas rendas da África Oriental, Ásia Portuguesa, Minas Gerais,
São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande de São Pedro. E a terceira pelas rendas da
Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Ceará, Piauí, Paraíba, Cabo Verde, Açores, Madeira e
África Ocidental. Nota-se que as prerrogativas do Erário Régio de Lisboa continuaram a ser
exercidas sobre a administração fazendária metropolitana, transferindo-se as instituições
ultramarinas para o Erário Régio do Rio de Janeiro. O Conselho da Fazenda, também
recriado, era composto por um presidente e por conselheiros sem número fixo, todos
nomeados pelo regente, e ocupava-se das matérias contenciosas a respeito das habilitações,
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mercês, dívidas, ordenados, rendas do Rio de Janeiro e contratos da Coroa (MENDONÇA,
1968: 172-190).
Nem bem foram criados pelo alvará, julgou-se como medida insuficiente. Em meados
da década de 1810, Silvestre Pinheiro Ferreira, homem próximo ao príncipe, dizia que era
preciso incluir um alvará para ampliar e regular os estabelecimentos da Real Fazenda para
salvar a monarquia. Os abusos na sua administração reduziam os recursos, dizia. O governo
do Erário Régio e do Conselho da Fazenda continha “regimentos insuficientes e provisórios
de sua criação”. No seu entender, o Erário Régio possuía contas ilusórias, seus pagamentos
eram feitos à revelia das ordens reais e, por fim, as leis e decretos eram cumpridos
arbitrariamente ou mesmo não executados. Ademais, o Conselho da Fazenda não podia
fiscalizar o Erário Régio, estando reduzido à nulidade (FERREIRA, 1976: 23-25).
Durante a década de 1820, o reordenamento do aparato fazendário criado por d. João VI
ocorreria pela separação dos poderes fiscais, antes unificados, entre o legislativo e o executivo
nacionais. Segundo Lúcia Bastos Neves, a linhagem de constitucionalistas baseada em
Montesquieu e Burke, e exemplificada pelo visconde de Cairu, postulava que os poderes
executivos e legislativos estavam anteriormente unidos no soberano, cabendo à constituição
definir seus verdadeiros limites e atribuições, de tal forma que se evitasse o despotismo pela
concentração de poderes (NEVES, 2009: 188).
Pela constituição de 1824, caberia à câmara dos deputados e ao senado legislar sobre
uma série de atributos anteriormente considerados direitos majestáticos5, conforme
expressava o direito romano: a fixação anual das despesas públicas, a repartição das
contribuições diretas, a autorização para o governo contrair empréstimos, a escolha dos meios
de pagamento da dívida pública, o regulamento sobre os bens nacionais e o controle sobre a
moeda nacional (art. 15). A câmara dos deputados possuía prioridade com relação à criação
de impostos (art. 36), o que excluía as pretensões dos Conselhos Gerais das províncias quanto
à matéria (art. 83). Por sua vez, o ordenamento da Fazenda Nacional versava sobre três pontos
5 Em parte a caracterização não é inteiramente exata, pois não havia uma receita, despesa ou dívida pública ou bens nacionais. Embora nos séculos XVII e XVIII houvesse a diferenciação entre as rendas e despesas da Casa de Bragança e as da Coroa, o que posteriormente considerou-se como fiscalidade pública eram as finanças da Coroa. A constituição de 1824 buscou resolver parte deste dilema pelo estabelecimento de uma dotação para a família imperial que entrava nas despesas gerais da monarquia constitucional.
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principais: a criação do Tesouro Nacional, as contribuições diretas e o orçamento anual. O
artigo 170 indicava que:
A Receita, e despesa da Fazenda Nacional será encarregada a um Tribunal, debaixo de nome de ‘Tesouro Nacional’ aonde em diversas Estações, devidamente estabelecidas por Lei, se regulará a sua administração, arrecadação e contabilidade, em recíproca correspondência com as Tesourarias, e Autoridades das Províncias do Império.
Quanto à fazenda nacional, notam-se diferenças consideráveis com relação ao projeto de
constituição apresentado pela comissão de deputados durante a constituinte de 1823. O
projeto definia a forma de repartição das contribuições diretas por comarcas, distritos, termos
e indivíduos (art. 218), sendo que as despesas de cada comarca também seriam agrupadas à
parte do orçamento geral (art. 220). A fiscalização e arrecadação das rendas, por comarcas a
serem designadas, seriam realizadas por contadores com regimento próprio e diretamente
responsáveis ao Tesouro Público (art. 223, 224) (Diário da Assembleia Geral Constituinte, 9
set. 1823, v. 2, p. 698). Percebe-se que a constituição de 1824 apresentava um formato mais
flexível e geral do que o projeto original, excluindo a divisão por comarcas, possivelmente
por se reconhecer que as atribuições fiscais das diversas esferas de poder (governo central,
provincial e local) deveriam ser encaminhadas posteriormente pela câmara dos deputados e
pelo senado ao invés de serem definidas de antemão e permanentemente pela carta
constitucional.
Na fala de abertura dos trabalhos da assembleia legislativa no ano de 1827, o imperador
notava a urgência do reordenamento de um sistema de finanças da nação:
Um sistema de finanças bem organizado deverá ser o vosso particular cuidado nesta sessão, pois o atual (como vereis do relatório do ministro da fazenda) não só é mau, mas é péssimo, e dá lugar a toda a qualidade de dilapidações: um sistema de finanças, torno a dizer, que ponha cobro, não digo a todos, mas à maior parte dos extravios, que existem, e que as leis dão lugar a que existam (...) (grifos meus) (BRASIL, 1878: Parte II, aditamento, p. 4).
Para o imperador, “sem finanças e sem justiça não pode[ria] existir uma nação”. Na fala
de abertura de 1828, chamou novamente atenção para a urgência dos dois temas. Embora a lei
da dívida pública houvesse beneficiado as finanças e o crédito público, faltavam ainda as
providências legislativas que harmonizassem os diferentes ramos da administração fazendária.
Nas falas de 1829 e 1830, o imperador tornou a repetir seu conselho aos deputados. É
interessante notar que nas sessões extraordinárias da assembleia, entre 8 de setembro e 30 de
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novembro de 1830, os temas financeiros aparecessem com primazia na fala do imperador
(embora sem mencionar diretamente a reforma do tesouro, já em discussão): a conclusão da
lei do orçamento, a circulação de papel-moeda e da moeda de cobre, a organização de um
banco nacional e a arrecadação dos dízimos (BRASIL, 1878: parte II, aditamento, p. 4;
BRASIL, 1876: parte II, aditamento, p. 7-8). Assim, apenas na segunda legislatura (1830-33)
o tema da reforma do tesouro receberia o devido cuidado dos representantes da nação. A
grande quantidade de temas financeiros a serem discutidos e uma possível oposição à
concessão de meios fiscais ao imperador pelos deputados, sobretudo após a experiência
desastrosa da Cisplatina, são hipóteses possíveis para se explicar o fato de que a reforma do
tesouro tenha tomado corpo apenas em 1830.
Em 19 de julho de 1830, o então ministro da Fazenda, o marquês de Barbacena
(Felisberto Caldeira Brant), apresentou à câmara dos deputados uma proposta de projeto de
organização do Tesouro Nacional. Pelo que se depreende de uma discussão posterior, a
autoria do projeto era em parte da comissão da fazenda para a reorganização do tesouro,
composta pelos deputados Manuel Maria do Amaral, José Bernardino Batista Pereira de
Almeida e José da Costa Carvalho, e em parte do próprio ministro que finalizou, com poucas
modificações, o projeto da comissão6. A proposta passou por três discussões na câmara entre
julho e outubro daquele ano, sendo posteriormente discutida em quatro sessões do senado em
novembro de 1830 e julho de 1831.
O projeto original propunha a criação de um Tribunal do Tesouro Nacional composto
por três membros nomeados pelo imperador: o presidente, o inspetor-geral e o procurador
fiscal. Apenas o presidente possuía voto deliberativo, sendo os outros dois consultivos.
Anexos ao tribunal, funcionariam a secretaria, a contadoria de revisão, a tesouraria-geral e o
cartório. A secretaria seria chefiada pelo inspetor-geral, a contadoria de revisão pelo contador-
geral e a tesouraria-geral pelo tesoureiro-geral. As províncias teriam uma organização similar
contando com um inspetor de fazenda, um contador e um procurador fiscal (os dois últimos
com voto consultivo). Os membros das tesourarias das províncias seriam propostos pelo
tribunal do tesouro. Também haveria uma contadoria, uma tesouraria e uma secretaria anexas
às tesourarias.
6 ACD, 10 ago. 1830, p. 360: “A comissão não acabou seus trabalhos, mas deu-mos como proêmio da minha proposta, e eu com pequenas alterações o apresentei”.
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Na sessão de 28 de julho de 1830, a comissão para reorganização do tesouro apresentou
seu parecer, concordando com o ministro da fazenda a respeito da indispensável necessidade
de reorganização da fazenda, “sem a qual a mais importante das atribuições da assembleia
geral, isto é, a fixação das despesas futuras, o orçamento da receita, o exame das contas
passadas, se não [poderiam] nunca bem verificar”. A comissão realizou poucas sugestões de
emendas no projeto original devido à necessidade urgente de melhorias na administração
fiscal dado “o mau estado em que se [achavam] as repartições da fazenda”. Nota-se a grande
pressa na aprovação do projeto, pedindo a comissão à câmara um meio “rápido e expedito” de
discussão, que por sua vez deveria ser feita por capítulos, destacando-se apenas as emendas
que se oferecessem. De fato, o projeto era bastante longo e a falta de discussões suficientes foi
reclamada diversas vezes tanto na câmara dos deputados quanto no senado. Entre as
principais alterações propostas estavam a definição das despesas gerais do império quanto à
manutenção do governo e defesa do império (art. 35), a redução do ordenado anual dos
procuradores fiscais (art. 78), o pagamento da dívida externa por meio de letras de câmbio de
negociantes de “inteiro crédito” (art. 107), a proibição de que nenhum procurador fiscal
acumulasse o emprego de julgar (art. 108) e a obrigação do ministro da fazenda apresentar um
relatório detalhado para a assembleia geral sobre as dificuldades da aplicação da lei (art. 109)
(ACD, 28 jul. 1830, p. 242-243).
Na sessão de 10 de agosto de 1830, debateu-se sobre o modo de discutir a proposta de
reforma do tesouro, defendendo o deputado Francisco de Paula e Sousa e Melo a discussão
prévia do parecer da comissão para depois se julgar se a proposta seria reduzida a projeto de
lei. Por fim, a matéria acabou sendo adiada para uma sessão seguinte, visto que naquele dia
seria discutido o orçamento da receita com o ministro da fazenda. O parecer da comissão foi
aprovado na sessão de 11 de agosto, com exceção das emendas da comissão que seriam
discutidas junto com outras emendas propostas pelos deputados durante a discussão dos
capítulos. Na sessão de 24 de agosto de 1830, discutiram-se todos os capítulos do 1º título do
projeto e o capítulo 1.º do título 2.º sobre a secretaria do tribunal do tesouro. Todos os artigos
foram apoiados com exceção do art. 21 do cap. 6.º, que tratava do cargo de procurador fiscal.
Quanto a este artigo, a única proposta apoiada foi a de Paula Sousa, que reduzia o ordenado
anual do procurador fiscal, sendo as restantes rejeitadas. Também foi aprovado o artigo
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aditivo que obrigava o ministro da fazenda a apresentar o quadro da fazenda do Rio de Janeiro
até o final de abril e das outras províncias quando chegassem ao tesouro.
Fazenda e divisão de poderes no centro
A contadoria geral de revisão
Na sessão de 25 de agosto de 1830, tratou-se da discussão a respeito da contadoria geral
de revisão (tít. 2.º, cap. 2.º). Chefiada pelo contador-geral do tesouro, competia a esta
repartição a inspeção e fiscalização da receita e despesa geral da nação. Na discussão sobre a
contadoria geral de revisão havia dois temas interligados: a independência dos funcionários da
fazenda frente ao ministro e a publicidade e exatidão das contas do governo.
A independência parcial ou completa dos funcionários do governo frente ao Estado era
uma das bandeiras dos liberais ao final da década de 1820. Era um contrapeso ao imperador e
ao poder central, evitando a “tirania”. Como expressou Thomas Flory, era uma espécie de
“guerrilha burocrática” sonhada pela oposição. Delineava-se um completo contraste com o
Antigo Regime, quando não havia uma separação nítida entre a autoridade dos funcionários e
a autoridade real. Caso fossem escolhidos pelo povo, como os juízes de paz, seriam elementos
de resistência a quaisquer intentos despóticos e ao funcionalismo real elitista, particularmente
os magistrados formados em Coimbra (FLORY, 1986: 84-85, 93).
No segundo caso, invertia-se a máxima do Antigo Regime quando o conhecimento das
receitas e despesas era um segredo de Estado e uma forma de controle régio sobre
contratadores e funcionários sem tantos escrúpulos. Segundo afirmava o geógrafo veneziano
Adriano Balbi ao início da década de 1820, ninguém conhecia o montante total de receitas do
governo, pois Pombal dividiu o Erário Régio em quatro contadorias para que nenhum
contador soubesse das rendas das outras contadorias. Apenas quatro pessoas conheciam o
quadro geral: o rei, o marquês de Pombal, o escrivão-geral e o tesoureiro-mor. A divulgação
de informações fiscais era considerada como um crime de Estado, predominando assim o
“sistema de segredo” na expressão de Balbi (BALBI, 1822: 302).
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A modificação do conceito de orçamento entre os séculos XVIII e XIX reflete essa
mudança de mentalidade em direção à publicidade das contas e à construção de uma esfera
pública. No dicionário de Bluteau, das primeiras décadas dos Setecentos, o orçamento era
simplesmente “o juízo, que se faz por maior do valor, número, ou quantidade de algumas
coisas”. O item mais próximo da noção moderna era balanço, a “conta, ou suputação, que se
faz, escrevendo de uma parte debaixo do título Entrada, o dinheiro, que se tem recebido, e da
outra debaixo do título Despesas, o dinheiro, que se tem ganhado”. Continua Bluteau:
“Chama-se balanço, porque com esta confrontação, e suputação se põem como em balança, o
recebido, e o gastado”. O conceito pertencia claramente ao universo dos comerciantes: “Dar
mercador balanço à sua fazenda, deduzindo do livro de Deve, e de Há de haver, a conta dos
bens que são seus” (BLUTEAU, 1722-1728: v. 2, p. 18; v. 6, p. 102).
Ao início do século XIX, o termo orçamento é utilizado como previsão de contas
futuras em um ofício de d. Rodrigo de Souza Coutinho ordenando à Junta da Fazenda paulista
a feitura de “um orçamento de toda a receita e despesa presumível da capitania no ano
seguinte, para ser aprovado pelo mesmo senhor [o príncipe regente]” (Arquivo Histórico do
Tribunal de Contas, cód. 4061, fl. 412). Na constituição de 1824, o termo balanço referia-se às
contas do ano antecedente e orçamento às do ano futuro (art. 172). Com as mudanças
constitucionais da década de 1820, a aprovação do orçamento passa a ser tarefa do legislativo
e símbolo do governo representativo, como atesta a frase do conde belga Straten-Ponthoz em
1854: “Com efeito, um país cujo governo é fundado sobre instituições representativas, revela-
se em seu orçamento pela exatidão de suas contas e pela sinceridade da execução de suas leis”
(Tradução própria, cf. STRATEN-PONTHOZ, 1854: v. 1, p. iv). No entanto, como apurar a
correção das contas? Quem iria realizá-la no plano do governo?
No debate sobre a contadoria geral de revisão, o deputado Mendes Viana apontou a
contradição de serem os funcionários da repartição responsáveis pelo exame das contas do
ministro da fazenda que havia nomeado os mesmos funcionários. Pedia assim a apresentação
de uma emenda que organizasse de forma diversa a contadoria geral. Bernardo Pereira de
Vasconcelos também apontou a falta de independência dos empregados da fazenda, que
poderiam ser demitidos a bel-prazer do governo. No seu entender um tribunal de contas
independente equivalia a de “membros independentes do governo” (ACD, 25 ago. 1830, p.
427). Vasconcelos também defendia que o governo estabelecesse apenas o número máximo
14
de empregados nas repartições do tesouro, sendo os ordenados definidos de acordo segundo
as circunstâncias locais pelos presidentes e conselhos nas províncias. O deputado
pernambucano Gervásio Pires Ferreira, que afirmou haver trabalhado na comissão que
preparou o projeto, apontou que a fixação dos ordenados não deveria ser deixada ao arbítrio
dos presidentes de província em conselho, denunciando a existência de “patronato”.
Outro ponto acusado por Vasconcelos, e discutido com o ministro da fazenda, era a
confusão entre as atribuições de funções entre a contadoria e a secretaria quanto à expedição
de ordens para as estações públicas, defendendo que a contadoria ficasse limitada ao exame
de contas. Com efeito, no próprio projeto havia artigos sobrepostos (art. 29, cap. 2.º: “Nesta
repartição far-se-á tudo quanto compete e se incumbe ao contador geral no cap. 5.º art. 19 da
presente lei...”).
O deputado Gervásio Ferreira, por sua vez, notou que era inevitável que o governo
tivesse influência sobre o tribunal, como em tantas outras áreas. O deputado baiano Miguel
Calmon du Pin e Almeida, que fora o ministro da fazenda anterior a Caldeira Brant,
apresentou argumentos contrários, indicando aspectos importantes a respeito da relação entre
a contadoria de revisão de contas e o funcionamento do governo representativo. Segundo o
deputado a contadoria deveria “rever e fiscalizar as contas prestadas ao tribunal do tesouro”,
sendo que posteriormente haveria um tribunal de contas, composto por deputados,
responsável por um segundo exame destas contas e das contas dos ministros. Apontava o
deputado, o exemplo das contadorias de revisão na França e nos Estados Unidos. A existência
de uma dupla revisão salvaguardava a autonomia do corpo legislativo e era uma medida
eficaz de controle da responsabilidade dos ministros. Portanto, não havia lugar para as
objeções à contadoria apresentadas por Vasconcelos.
Na réplica de Vasconcelos, o deputado defendeu a criação de um tribunal de contas
independente do governo e separado da contadoria, como havia na França. Indicava, assim,
uma leitura distinta à de Calmon a respeito das instituições liberais francesas. Propunha
Vasconcelos que o capítulo 2.º, que tratava da contadoria, apenas se referisse à classificação
das contas, mas não ao seu exame. Em um plano mais amplo, a questão levantada por
Vasconcelos indicava as tensões entre o legislativo e o executivo no desenho institucional das
novas instituições fazendárias do império: “Quando há um ministério forte, as mesmas
câmaras suam na luta com ele; e há de o tribunal de revisão com esta contadoria fazer
15
oposição ao ministério forte?” (ACD, 25 ago. 1830, p. 428). Por outro lado, arguia que a
existência do tribunal reduziria os possíveis atritos entre o ministério da fazenda e a
assembleia no caso de acusações ao ministro da fazenda. Criticando a posição de Gervásio
Ferreira, tomava o judiciário, aliás projeto da pena de Vasconcelos, enquanto modelo de
tribunal independente do governo e exemplo a ser seguido na criação do tribunal do tesouro.
O deputado Paula Souza apontou que a nomeação dos empregados do tesouro nacional
cabia ao poder executivo e não à assembleia geral. Ademais, segundo o deputado, não haveria
a necessidade de criação de um tribunal do tesouro, pois a própria assembleia geral poderia
realizar a inspeção direta, função que caberia aos conselhos gerais no plano provincial. Era da
opinião de que o tribunal, por ter seus empregados nomeados pelo governo, não seria
imparcial na censura às contas dos ministros. Para Paula Souza, a lei que reformava o tesouro
não era “perfeita e boa”, mas necessária para aquela ocasião, devendo-se ajustar anualmente o
número de empregados e seus ordenados.
Calmon, por sua vez, entendia que não cabia ao tribunal fiscalizar as contas dos
ministros, atributo da assembleia geral, apenas as contas das repartições subalternas do
tesouro. Além disso, as restrições da contadoria não alteravam a responsabilidade dos
ministros. Ao tribunal do tesouro não cabia a imposição de penas aos ministros, apenas
facilitar a organização das contas e facilitar sua aprovação pelo corpo legislativo. Ao
legislativo cabia tomar contas, mas não fiscalizar o poder executivo que era independente.
Segundo Calmon:
Sr. presidente, o poder executivo é poder independente e não pode sofrer fiscalização do corpo legislativo, porque ao corpo legislativo compete tomar contas ao poder executivo; em todas as nações este tribunal de contas de fazenda não impõe pena aos ministros: este tribunal é uma espécie de fieira na qual devem ser preparadas e dispostas as contas do ministério e facilitar sua aprovação, que o corpo legislativo pode dar (ACD, 25 ago. 1830, p. 430).
Vasconcelos respondeu às críticas de Calmon afirmando que nunca pretendera reduzir a
independência do poder executivo, que deveria ser compreendida como a capacidade de não
ter seus atos destruídos por outra autoridade. No entanto, a independência do executivo não o
livrava de “pagar a indenização”, no dizer do deputado.
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A tesouraria geral do tribunal
A questão da remessa dos excedentes das capitanias já se mostrara espinhosa na época
do príncipe regente d. João no Rio de Janeiro, fomentando divisões no seio mesmo da alta
“burocracia” fazendária. Em 1812, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, então escrivão da
tesouraria-mor do Erário Régio, calculou as sobras provenientes das capitanias, obtidas pela
boa gestão pelas Juntas da Fazenda, sem capitães-generais “condescendentes com as
pretensões, que trouxe[ssem] aumento de despesa”. O montante das sobras, especialmente as
da Bahia e Maranhão, representava cerca de 40% da receita anual orçada do Real Erário de
3.134 contos de réis. Mais realista, Francisco Maria Targini, barão de São Lourenço e
tesoureiro-mor do Erário, criticava as ideias do escrivão em carta ao conde de Aguiar por
desconsiderar as dificuldades econômicas das capitanias (Arquivo Nacional, cód. 801, fls. 6-
7, 17v., 20-22).7 É importante observar que a próprio ideia de “sobra” apresentava certo
distanciamento das práticas gerais da fazenda setecentista. Uma vez que boa parte dos tributos
e contratos estava consignada a despesas específicas, legitimando a criação de impostos pelo
soberano, e outra quantia era remetida diretamente para Lisboa, como os quintos do ouro e a
renda dos bens dos extintos jesuítas, não havia algo como uma receita e despesa gerais.
Pensava-se como a partir de pequenas caixas da fazenda sem conexão comum.
Após a independência, como aponta Wilma Peres Costa, a contenda sobre as “sobras”
evidenciaria o conteúdo fragmentador e ultrafederalista na resistência das partes do antigo
império à nova nação. Em 1823, o mesmo Nogueira da Gama, agora feito ministro da
fazenda, via-se de mãos abanando, aconselhando os empréstimos externos para fazer frente
aos gastos na ausência das sobras. Prova irrefutável de resistências regionais, somente no
primeiro orçamento de 1828, ainda restrito ao Rio de Janeiro, as províncias seriam obrigadas
a enviar as sobras para financiar as despesas gerais do império (COSTA, 2003: 182, 185-189).
Na sessão de 26 de agosto, discutiu-se o capítulo sobre a tesouraria geral do tribunal (tít.
2.º, cap. 3.º). A repartição seria responsável pela arrecadação e distribuição das sobras das
7 A reputação do barão não era das melhores a julgar pelos versos divulgados em pasquins da época: “Furta Azevedo no Paço,/ Targini rouba no Erário;/ E o povo aflito carrega/ Pesada cruz ao calvário.”, “B. L. no Calvário/ Bom Ladrão;/ L. B. [Barão de São Lourenço] no Erário/ Ladrão Bruto;/ Pois que faz?/ Furta ao público”. Como informa Marrocos, os planos de Nogueira da Gama não tinham aceitação devido à influência poderosa do grupo ligado a Targini (MARROCOS, 1934: 64, 107).
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tesourarias das províncias do império e de outros fundos existentes (art. 32). As opiniões entre
os deputados divergiam a respeito de dois pontos: a existência de sobras provinciais e a
realização das transferências pelas próprias tesourarias provinciais. Novamente, o discurso de
Pereira de Vasconcelos foi bastante polêmico, defendendo a supressão da tesouraria no
projeto de lei. Para o deputado mineiro, os cargos da tesouraria eram apenas sinecuras,
aumento desnecessário de empregados públicos, pois não havia trabalho a ser feito. O destino
das sobras das províncias já era determinado no orçamento, havendo três opções: o envio para
o Rio de Janeiro, a aplicação na própria província ou a remessa para Londres, no pagamento
da dívida externa. Nos dois últimos casos, não haveria sobra alguma a ser recebida pela
tesouraria. Ademais, no entender de Vasconcelos, os saques eram matéria da contabilidade e
não objetos das tesourarias.
O deputado Manuel Maria do Amaral argumentou que as províncias poderiam ter
sobras, mas o império não, pois os superávits de uma província seriam remetidos para outras
que fossem deficitárias. Gervásio Ferreira mais uma vez se opôs a Vasconcelos questionando-
o sobre como o tesouro distribuiria as sobras das províncias sem a tesoureira-geral.
Vasconcelos replicou dizendo que as próprias províncias poderiam realizar estas
transferências, seguindo as ordens do ministro da fazenda a partir do orçamento das despesas
gerais. Um dos deputados presentes, Rebouças, apoiou a proposta de Vasconcelos por
entender que as sobras de fato não existiam, por se consumirem no pagamento de dívidas. No
futuro, se acaso existissem sobras, era medida que apenas gravava o povo encher os cofres
sem necessidade, “idolatria do dinheiro no cofre”, devendo-se diminuir as imposições ou
manter as sobras nas províncias. Ademais, se anualmente as despesas eram determinadas pelo
orçamento, sendo desnecessário acumular montantes ociosos. O marquês de Barbacena,
ministro da fazenda, interveio defendendo a necessidade das sobras para a aplicação pelo
governo em estradas, pontes e canais.
Outro ponto de discussão era a respeito da emenda aditiva ao art. 33, proposta pelo
deputado Manuel Maria do Amaral, membro da comissão que formulou o projeto, que
propunha que o tesoureiro geral do tesouro também o fosse da província do Rio de Janeiro. O
argumento acabou servindo àqueles que propunham a extinção da tesouraria do tribunal,
como o deputado Lobo que dizia que o departamento separava (“extremava”) as funções de
administração e fiscalização da função de arrecadação. Defendia ainda que a tesouraria da
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província do Rio de Janeiro poderia realizar as transferências de sobras. Nota-se que a
proposta do deputado era condizente com o espírito da época que na reforma das câmaras em
1828 separou as funções administrativas e judiciais, deixando às câmaras funções apenas
administrativas e esvaziando-as enquanto corporações de representação política, típica do
Antigo Regime e aplicada no período colonial (LOPES, 2003: 209).
Vasconcelos argumentou que se a emenda de Amaral fosse adotada, tornava-se
desnecessária a extinção da tesouraria, visto que não se despenderia com o soldo do
tesoureiro-geral, uma sinecura “vergonhosa”. Assim, retirou sua emenda defendendo a de
Amaral. Por sua vez, o deputado Holanda Calvancanti apresentou argumentos contrários,
defendendo a separação da tesouraria do tribunal da tesouraria provincial fluminense, muito
distinta da imagem de sinecura apontada por Vasconcelos. Também apontou serem as funções
do tesoureiro-geral a movimentação e o controle os balancetes de todos os fundos do império,
não apenas das sobras.
A busca de equilíbrio nas províncias
Na década de 1820, observa-se um grande contraste entre uma legislação restritiva
quanto aos poderes fiscais das províncias e a falta de controle efetivo sobre as contas e dívidas
das juntas da fazenda. Segundo Wilma Peres Costa, o Estado independente construía-se
“reduzido ao Rio de Janeiro, incapaz de taxar o comércio interno e de coletar as sobras
provinciais”, constituindo tendências centrífugas no enfretamento do centro (COSTA, 2003:
185). Apenas ao final de 1830, consegue-se aprovar um orçamento geral para o império (ano
financeiro de 1831-1832), dado que os anteriores abrangiam somente a corte e a província do
Rio de Janeiro. Como aponta Andréa Slemian, “a corte nem recebia recursos e nem dispunha
de mecanismos eficazes para exercer um monitoramento sobre as contas das Províncias”. No
seu entender, “o orçamento era um dos instrumentos pensados para reverter esse quadro, o
que contribuiria para formação de um centro efetivo do ponto de vista administrativo
moderno” (SLEMIAN, 2006: 193). Embora a pulsão de informações contábeis pela corte
fosse menos desastrosa do que descrito por Slemian, creio que o projeto do Tesouro Nacional
enquadra-se também na construção deste centro efetivo. Na verdade, a própria lei da fundação
19
da dívida pública (15 nov. 1827) acabava separando as dívidas gerais das provinciais,
particularmente com grande prejuízo das elites gaúchas (MIRANDA, 2009: 239).
Antes da reforma do Ato Adicional, a distribuição dos poderes fiscais nas províncias foi
dividida entre três instituições após a extinção das Juntas Provisórias criadas pela revolução
do Porto: junta da fazenda, Conselho da Presidência (lei 20 out. 1823) e Conselho Geral
(Constituição de 1824, tít. 4º, cap. 5; 27 ago. 1828). O Conselho da Presidência era uma
medida provisória, enquanto não houvesse a forma definitiva da constituinte, que serviu para
organizar a esfera executiva nas províncias. Os Conselhos Gerais eram subordinados à
Assembleia Geral e ao Executivo, podendo apenas propor matérias para os deputados, durante
as sessões, ou enviar suas resoluções para o poder executivo, por intermédio do presidente de
província (OLIVEIRA, 2009: 103-110, 148-150).
A lei de 20 out. 1823, sobre o conselho da presidência, estipulava uma série de
atribuições de supervisão fiscal aos conselhos tanto com relação às câmaras municipais
quanto face às juntas da fazenda. O presidente em conselho deveria denunciar ao governo
abusos na arrecadação das rendas (art. 24, §6), examinar anualmente as contas de receita e
despesa dos conselhos e as contas do presidente da província (art. 24, §11). Um estímulo à
supervisão das juntas da fazenda era dado pelo direito a um oitavo das sobras das rendas da
província para as despesas ordinárias (art. 25). Assim como ocorria no tempo de Pombal, o
presidente da província era também presidente da junta da fazenda (art. 35). Havia ainda uma
brecha nas limitações fiscais, pois o presidente em conselho poderia determinar despesas
extraordinárias, ainda que dependentes da posterior aprovação do imperador (art. 24, §16). A
lei dos conselhos gerais (27 ago. 1828) pouco alterou o quadro anterior, pois manteve a
proibição dos conselheiros proporem medidas quanto à criação de tributos (art. 36),
competência exclusiva da Câmara dos Deputados (Constituição de 1824, art. 83, §3).
Examinando-se as atribuições de cada instituição, nota-se que a junta da fazenda era a
que possuía maior liberdade de ação, mesmo com a supervisão do Conselho da Presidência.
Em primeiro lugar, a participação simultânea do presidente da província na junta e no
conselho reduzia a independência de poderes e minava a inspeção. Em segundo, a “lei e
regimentos existentes” (lei 20 out. 1823, art. 35), que deveriam ser observados pelas juntas,
eram em boa parte fictícios. A despeito de alguns estatutos de junta elaborados na época
pombalina, não havia uma codificação de todas as práticas fazendárias a serem seguidas,
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tampouco a adequação para a monarquia constitucional. Em terceiro, a definição de “abusos”
na arrecadação de rendas era bastante vaga por melhores que fossem os esforços dos
conselhos na supervisão. Por outro lado, nenhuma das instituições possuía qualquer
prerrogativa legislativa. Desta forma, na esfera provincial havia apenas poderes executivos,
sendo que o principal corpo responsável por eles não estava nos moldes do liberalismo
constitucional.
Sem as contas corretas das províncias, emperrava-se todo o orçamento geral. A falta de
documentos suficientes, a ausência de escrituração uniforme, empregados mal remunerados e
em profusão, os atrasos das sessões das juntas e a presença de membros alheios à
administração eram as principais críticas a respeito destas instituições. Morosas, gravosas,
inúteis e vagarosas são os termos utilizados para qualificar as juntas pelo próprio ministro da
fazenda Miguel Calmon du Pin e Almeida em 1828. Se em 1829 pedia-se o fortalecimento
dos conselhos em suas atividades supervisoras, em 1831 clamava-se pela extinção das juntas.
Era usual, afirmava a comissão do orçamento em 1829, a reclamação de que “as juntas de
fazenda não obedecem, de que são formigueiros de abusos, e que obrigam os ministros a
marchar sobre terreno fofo” (Cf. COSTA, 2003: 190-191; BRASIL, 1829: supl. 5, p. 8;
BRASIL, 1831: 12). As juntas vingavam-se dos conselhos, negando-lhes as sobras das rendas,
dizendo-lhes que estas não existiam devido às grandes dívidas. Também realizavam despesas
extraordinárias à revelia dos direitos do conselho da presidência. Dependendo da situação,
também havia alianças entre as instituições, como no caso da cunhagem de moeda de cobre na
província de São Paulo (SLEMIAN, 2006: 193-194, 212; OLIVEIRA, 2009: 210-212).
Antes do projeto encaminhado pela comissão de fazenda para a reforma do tesouro em
1830, há a notícia de um projeto de lei do deputado Luís Cavalcanti apresentado na sessão de
22 de agosto de 1829. Cavalcanti propunha a abolição das juntas da fazenda nas províncias,
sendo sua administração incumbida aos presidentes de província. Os secretários auxiliariam
no expediente do despacho dos presidentes, assim como a contadoria e o procurador da
fazenda nos casos competentes. A proposta mais ousada referia-se à nomeação dos
presidentes de província e seus secretários pelo ministério da fazenda. Na mesma sessão o
projeto foi rejeitado, sem haver registro das discussões. Além de conceder amplos poderes ao
ministério da fazenda, o projeto continha o grave defeito de não propor forma alguma que
substituísse o trabalho de arrecadação e fiscalização das juntas.
21
O cargo de inspetor das tesourarias provinciais
O projeto original da reforma do tesouro propunha que as tesourarias das províncias
seriam compostas por um inspetor da fazenda, um contador e um procurador-fiscal que
cuidariam da administração, arrecadação, distribuição, contabilidade e fiscalização das rendas
públicas provinciais (art. 47). Não havia nenhuma atribuição aos presidentes de província,
sendo as tesourarias subordinadas diretamente ao tesouro nacional. Também não se dizia
quais rendas eram pertencentes ao poder provincial, apenas reiterando as rendas herdadas por
cada província no período colonial.
Na sessão de 26 de agosto de 1830, foi levantada a questão do inspetor-geral do tribunal
do tesouro. Pelo art. 13 do projeto ele seria o vice-presidente do tribunal e substituiria por
vezes o presidente, exceto na assinatura de ordens. O deputado Luiz Cavalcanti apontou a
inadequação do projeto à constituição, defendendo, com apoiados, que a suprema fiscalização
fosse realizada pela assembleia. Ademais, mostrou-se contrário ao estabelecimento de normas
para as tesourarias provinciais, pois seria melhor montar primeiro o tesouro da corte e depois
passar às províncias.
Um tópico discutido referia-se ao inspetor da fazenda de província que era o chefe da
tesouraria provincial e responsável pelo expediente da tesouraria (art. 52). Praticamente era o
principal cargo da tesouraria provincial, pois eram atributos dos inspetores: (1) fiscalizar a
arrecadação, administração, distribuição e contabilidade das rendas da província; (2) executar
as deliberações do tesouro e (3) inspecionar as administrações, recebedorias e pagadorias das
rendas públicas da província, com poder de advertência e suspensão temporária dos
empregados (art. 54).
A imprecisão do termo “negócios do expediente” foi criticada na sessão de 19 de
setembro de 1830 pelo deputado José Lino Coutinho, justamente a falta de atribuições
específicas conduzira a numerosos conflitos de jurisdição entre os presidentes e os comandos
militares nas províncias. Na sessão de 26 de agosto, o deputado Luiz Cavalcanti se havia
oposto ao cargo de inspetor nas províncias, dado que os presidentes delas eram considerados
administradores das províncias uma vez que não possuíam poder sobre as forças armadas, a
22
marinha, os negócios eclesiásticos e mesmo sobre a instrução primária, pertencente aos juízes
de paz. Criar o cargo de inspetor-geral apenas formaria duas secretarias administrativas.
Na sessão de 26 de agosto, o deputado Holanda Cavalcanti reconheceu a extinção das
juntas da fazenda como o principal objeto da criação das tesourarias provinciais. Discordava
em pontos do projeto que já eram definidos pela constituição, as províncias já possuíam
tesouro e as juntas já eram autoridades administrativas no sentido constitucional. A grande
dúvida era se a autoridade das juntas recairia na figura do inspetor das tesourarias. Propunha
assim que os presidentes de província fossem ao mesmo tempo inspetores, evitando tanto a
dupla autoridade administrativa apontada por Luiz Cavalcanti, quanto o problema da falta de
funcionários qualificados para o cargo. Ademais, os presidentes tinham a vantagem de serem
nomeados por todo o ministério e não apenas por um único ministro.
Em 16 de setembro de 1830, discutiu-se a questão dos cargos de inspetores serem
amovíveis, ou seja, não vitalícios e transferíveis. O art. 52 dizia que os inspetores seriam
amovíveis por proposta do inspetor-geral do tribunal após informação do presidente da
província em conselho e audiência do inspetor. O deputado por Minas Gerais, José Antônio
da Silva Maia, indicou que a redação do projeto não era clara, mas deveria entender-se que a
autoridade responsável por amover os oficiais era o tribunal do tesouro.
Justamente o grande poder do tribunal do tesouro na nomeação dos inspetores
representava uma ameaça para as províncias. Lino Coutinho, até então bastante calado, arguiu
que o inspetor-geral do tribunal não iria tirar os inspetores das próprias províncias, mas
indicar aqueles pertencentes à “roda de seus afilhados” na corte. Os conselhos provinciais, no
seu entender, eram os representantes das províncias, assim como os deputados eram os
representantes da nação. Promoviam o bem parcial para suas respectivas províncias, enquanto
os deputados o bem geral. O deputado defendia veementemente que os inspetores fossem
nomeados por indicação dos conselhos provinciais:
Se nós formos a sujeitar as províncias sempre e sempre à corte em tudo e por tudo, não sei onde irá parar isto: é preciso não querer julgar das coisas, para querer sujeitar a administração, e governança de províncias tão longínquas da corte de províncias que, para termos notícias, é preciso um ano; querer sujeitar todas à corte do Rio de Janeiro, não sei que sistema é este: quanto a mim é um sistema odioso, e eu me oponho a que passe semelhante doutrina. Queria que cada um dos inspetores fossem nomeados segundo a informação dos conselhos das províncias, porque eles é que estão mais ao fato de
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conhecerem os homens mais capazes das suas províncias, para essa administração (ACD, 16 set. 1830, p. 521).
Assim, o deputado propôs uma emenda para que os inspetores das tesourarias fossem
tirados da lista tríplice do conselho provincial e removíveis por queixa formada pelo
presidente em conselho. Buscava, desta forma, reduzir os amplos poderes do inspetor-geral,
que com qualquer divergência com os inspetores provinciais poderia suspendê-los por tempo
indeterminado. O presidente e o conselho provincial teriam mais informações a respeito dos
inspetores das tesourarias do que o inspetor-geral, defendia Lino Coutinho. A despeito das
queixas do deputado, a emenda foi rejeitada pela câmara, sendo que nenhum deputado apoiou
a fala de Lino Coutinho.
Considerações finais8
Os debates sobre a reforma do tesouro evidenciam alguns aspectos de um modelo de
Estado proposto pelos liberais moderados. Um tribunal do tesouro com membros
independentes do governo, críticas às “sinecuras” administrativas e a defesa das transferências
de sobras pelas próprias províncias eram os principais pontos defendidos por Bernardo Pereira
de Vasconcelos. Holanda Cavalcanti propôs que os presidentes de província fossem
inspetores das tesourarias e Lino Coutinho maior espaço dos conselhos gerais na indicação
dos inspetores das tesourarias provinciais. Miguel Calmon e Gervásio Pires Ferreira
apresentaram os principais contra-argumentos às críticas ao projeto, indicando uma visão
mais hierárquica, sem concessões ao poder provincial. Na lei de 4 de outubro de 1831,
nenhuma das críticas feitas por Vasconcelos, Holanda Cavalcanti ou Lino Coutinho foi
reconhecida como válida. Ironicamente, foi durante a gestão de Vasconcelos no ministério da
fazenda que a lei foi posta em execução, sendo suas críticas ao projeto completamente
ignoradas até mesmo por seu principal biógrafo (SOUSA, 1988: 95-98, 110-111). Assim,
contra sua experiência parlamentar anterior, Vasconcelos passou para a história como o
grande benfeitor da nova administração fazendária.
8 Não se analisou dois pontos referentes à organização das tesourarias provinciais: a impugnação de contratos arrematados (sessão de 16 out. 1830) e a determinação do número e ordenados dos empregados das tesourarias (sessão de 17 out. 1830).
24
Por sua vez, o Ato Adicional franqueou maior liberdade no tocante à fixação das
receitas e despesas da província, inclusive com forte controle sobre a esfera municipal (art.
10, §5 e §6). Contudo, os empregos municipais e provinciais ligados à “arrecadação e
dispêndio de rendas gerais” (art. 10, §7) não competiam ao controle das assembleias
legislativas provinciais, nem tampouco aos presidentes de província, mantendo-se a estrutura
fazendária estabelecida em 1831. Se autoridade sobre os empregos da tesouraria provincial
era matéria suscetível a gerar contendas ou se as assembleias controlavam de fato as
tesourarias (DOLHNIKOFF, 2005: 114) são questões a serem investigadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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à república: momentos decisivos. 2. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
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