a rainha de chuteiras
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Nas páginas do livro de Marcos Alvito, você acompanha uma temporada inteira de futebol inglês – apresentada em divertidíssimas crônicas – com todos os detalhes: os jogos, os times, os hooligans, os torcedores, fish and chips, os campeões, aqueles clubes que não ganham nunca... E, como não poderia deixar de ser, há espaço para o rúgbi, o críquete, opiniões perspicazes e até um passeio a Gales.TRANSCRIPT
1ª ediçãoRio de Janeiro 2014
MARCOS ALVITO
UM ANO DE FUTEBOL NA INGLATERRA
APRESENTAÇÃO 10
INTRODUÇÃO, OU DE COMO A RAINHA VEIO A CALÇAR CHUTEIRAS 14
PARTE 1 : BREVE HISTÓRIA DO FUTEBOL INGLÊS 20
1 . V A G A B U N D O J O G A D O R D E F U T E B O L 22
2 . C O M Q U E R E G R A ? 28
3 . A M Á Q U I N A D E F A Z E R D I N H E I R O 34
4 . A É P O C A D E O U R O 42
5 . C A S A , A U T O M Ó V E L E T E L E V I S Ã O 48
6 . O S H O O L I G A N S E A G R A N D E C R I S E D O F U T E B O L I N G L Ê S 54
7. R E N A S C E N D O D A S C I N Z A S 60
8 . P R E M I E R L E A G U E S . A . 66
PARTE 2: UM ANO DE FUTEBOL NA TERRA DA RAINHA 72
9 . 3 4 G R A U S 74
1 0 . C U I D A D O P A R A N Ã O E S C O R R E G A R 80
1 1 . U M G U E R R E I R O Z U L U C O N T R A O C A P I T A L I S M O : O S F A N Z I N E S 84
1 2 . M I S S Ã O ( Q U A S E I M P O S S Í V E L ) – C O M P R A R U M I N G R E S S O P A R A A L I G A M A I S R I C A ( E C A R A ) D O M U N D O 90
1 3 . R Ú G B I , O P R I M O A R I S T O C R Á T I C O D O F U T E B O L 96
1 4 . J O G A D O R I N G L Ê S , U M A N I M A L E M E X T I N Ç Ã O 102
1 5 . A P I R Â M I D E : E X P L I C A N D O A S D I V I S Õ E S D O F U T E B O L I N G L Ê S 108
1 6 . Q U E R A P O S T A R ? 112
1 7. A A L D E I A M Á G I C A E O M A I S I N G L Ê S D O S E S P O R T E S 118
1 8 . R E B E L D E S F C 126
1 9 . V I S I T A N D O O P A R A Í S O 132
2 0 . C O M E O N , B R A K E S ! V A M B O R A , B R E Q U E S ! 140
2 1 . M U I T O A L É M D O F U T E B O L 146
2 2 . P O R A M O R A O J O G O 150
2 3 . T E A T R O D O S S O N H O S : A D I S N E Y L Â N D I A D O F U T E B O L 158
2 4 . U M D I A D E L O R D ’ S 166
2 5 . N O C O V I L D O L E Ã O 174
2 6 . B L U E S Q U A R E P R E M I E R O U “ F E L I Z D A Q U E L E Q U E S A B E S O F R E R ” 184
2 7. M E U P É E S Q U E R D O 188
2 8 . U M A Z E R O P A R A O S A M A N T E S D E O V E L H A S 194
2 9 . T O O N A R M Y E S E U R E I B A R R I G U D I N H O 204
3 0 . O I N I M I G O N Ú M E R O U M D O S H O O L I G A N S 214
3 1 . I N D O A U M J O G O … C O M A P O L Í C I A 224
3 2 . Y O U ’ L L N E V E R W A L K A L O N E – O C L U B E 236
3 3 . Y O U ’ L L N E V E R W A L K A L O N E – A P A R T I D A 244
3 4 . Q U E M S Ã O V O C Ê S ? 252
3 5 . G I R L S J U S T W A N N A H A V E F … O O T B A L L 262
3 6 . R O V E R S F O R E V E R 268
3 7. C O R U J A S N A N E V E 274
3 8 . A D O N A D A B O L A 284
3 9 . U M A V E L H A A M I Z A D E : O P U B E O F U T E B O L 294
4 0 . W E A R E S T I L L H E R E ( A I N D A E S T A M O S A Q U I ) 300
A G R A D E C I M E N T O S 306
I N D I C A Ç Õ E S D E L E I T U R A 310
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MARCOS ALVITO
INTRODUÇÃO, OU DE COMO A RAINHA VEIO A CALÇAR CHUTEIRAS
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A RAINHA DE CHUTEIRAS
Foi uma festa e tanto. Também, não era para menos. Depois de dez anos de guerra,
vendo das muralhas o sangue dos seus heróis banhando o chão, finalmente os
troianos teriam paz. Era o que indicava aquele gigante cavalo de madeira à porta
da cidade. Os gregos, depois de sumirem do campo de batalha, haviam depositado
o presente, uma espécie de troféu que reconhecia a vitória troiana. Os donos da
casa colocaram o “bicho” para dentro e celebraram a noite inteira em torno dele.
O resto é história, ou lenda. De madrugada, cem fortes guerreiros saem de dentro
do cavalo de pau, abrem os portões da cidadela e o que parecia impossível ocorre:
Troia é tomada, saqueada e destruída pelo exército grego.
Podemos dizer que a Copa do Mundo de 2014 é também uma espécie de
Cavalo de Troia. Ela serviu de alavanca para um perverso processo de elitização
do futebol brasileiro. Nas novas “arenas”, construídas com bilhões e bilhões do
dinheiro público, os ingressos custam agora o dobro e às vezes o triplo, afastando
de vez as camadas com menor poder aquisitivo, num curioso retorno em dire-
ção ao passado aristocrático do futebol brasileiro. Esquemas de sócio-torcedor
passaram a funcionar com a mesma filosofia da fidelidade comercial, fazendo
com que apenas um grupo limitado tenha acesso privilegiado aos ingressos e,
consequentemente, aos estádios. A camisa oficial de um clube custa hoje muito
mais do que uma boa camisa social. Inúmeras proibições são impostas ao ato de
torcer, visando à transformação do instável, irrequieto e apaixonado torcedor em
um consumidor equilibrado, obediente e, preferencialmente, de grande poder
aquisitivo. A principal rede de televisão do país, entusiasta da Copa do Mundo e
da “reforma do futebol brasileiro”, vende cada dia mais pacotes de TV a cabo para
os torcedores que se afastam dos estádios.
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MARCOS ALVITO
Na verdade, este processo nem mesmo é original. Ele começou na Inglaterra,
no início da década de 1990, com a criação da Premier League. Sem dúvida o
que ocorreu e continua a ocorrer no Brasil se inspira no modelo inglês. Mas com
algumas diferenças, é claro. A nossa “modernização” é híbrida: convive com uma
cartolagem de tipo feudal que se perpetua no poder usando artifícios que dei-
xariam Maquiavel envergonhado. Há muitas torcidas organizadas, mas nenhu-
ma associação nacional de torcedores realmente representativa, ao contrário da
Inglaterra. De qualquer forma, creio que a leitura de A Rainha de Chuteiras irá
esclarecer o sentido do processo de transformação do futebol brasileiro em uma
direção nada democrática. Mas, antes, eu preciso explicar como é que fui parar na
Inglaterra com a “pesada” incumbência de pesquisar o futebol local…
Até hoje me lembro dela. Era uma caixinha de papelão branco. Na tampa,
eu havia recortado e colado uma foto da seleção inglesa pisando o solo sagrado
de Wembley. Lá dentro, meus craques de galalite, o material de que eram feitos
os times de botão naquela época. Muita atenção para o número sete, o diabólico
ponta-direita Kevin Keegan. Eu devia ter uns doze anos e sonhava com o futebol
inglês. Claro que gostava do futebol brasileiro e também tinha outro time com
a Seleção de 70. Destaque para Tostão, um botão amarelado e mais alto do que
os outros, mas que gostava de fazer gols de longe. O futebol da terra da rainha,
porém, não me saía da cabeça.
O tempo passou, os botões ficaram guardados na caixinha. Eu me formei em
história, tornei-me professor universitário e doutor em antropologia. Em 2005,
comecei uma pesquisa chamada “A paixão vigiada”. O objetivo era comparar o
policiamento de torcedores no Brasil e (adivinhem!) na Inglaterra. Afinal, os in-
gleses tinham enfrentado e, aparentemente, resolvido o problema dos hooligans.
Fiz dois anos de pesquisa no Brasil e, em julho de 2007, viajei para passar um
ano na Inglaterra. A pesquisa me “obrigou” a assistir a jogos de todo tipo, desde
Liverpool versus Arsenal até partidas da Oitava ou Nona Divisões. Assisti a jogos
da Liga dos Campeões da Europa (Champions League), da Copa da Inglaterra
(fa Cup) e do Campeonato Escocês. Acompanhei até as aventuras de um time de
futebol feminino. Entrevistei policiais e torcedores; fui com eles a jogos no frio,
na chuva e na neve.
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A RAINHA DE CHUTEIRAS
Um ano de futebol na Inglaterra contado na forma de pequenas crônicas.
Sobre os hooligans, os fanzines, os clubes semiprofissionais e os gigantes como o
Liverpool e o Manchester United. Sobre a atuação da polícia, as grandes rivalida-
des, o processo de hipercomercialização do futebol e a reação a ele.
Enfim, é um livro sobre a cultura do futebol inglês, sem dispensar breves
visitas à Escócia e a Gales. Há também uma ou duas crônicas sobre outras paixões
inglesas: as apostas, o rúgbi, o críquete… Sempre com um enfoque antropológico
e bem-humorado.
Os leitores também ganharão oito “faixas bônus” com uma breve história do
futebol inglês – das batalhas campais da Idade Média até a Premier League. É por
aqui que começamos o nosso A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra.
1VAGABUNDO JOGADOR DE FUTEBOL
23
A RAINHA DE CHUTEIRAS
“Não quer que o chutem também, vagabundo jogador de futebol?” É com essas
palavras, seguidas de um pontapé, que o leal conde de Kent agride um mordomo
que ousara desrespeitar o rei. É uma cena da tragédia Rei Lear, escrita por
Shakespeare em 1605, há mais de quatrocentos anos. Naquele tempo, o fute-
bol era considerado um jogo da ralé, e ser chamado de jogador se convertia em
xingamento. Na verdade, Shakespeare não era o primeiro, nem seria o último a
condenar o futebol. Philip Stubbes, um contemporâneo do bardo, considerava o
jogo “um passatempo demoníaco […] que nos afasta da divindade, seja jogado no
domingo ou em outro dia, é maldito e deve ser proibido […] uma prática sangren-
ta e mortal mais do que um esporte ou passatempo”.
No entanto, em 1914, quando o rei da Inglaterra, Eduardo vii, cumprimen-
tou os jogadores que disputaram a final da fa Cup (Copa da Inglaterra), o futebol
já era respeitável o suficiente para justificar a presença da família real, interessa-
da na enorme popularidade do esporte. Exatos seiscentos anos antes, em 1314,
o também rei Eduardo ii proibira os jogos de futebol em Londres devido “aos
tumultos causados em locais públicos, gerando inúmeros males”. Como se deu
essa transformação?
Jogos com bola existiram em diversas sociedades ao longo da história, na
Grécia e em Roma, na China do início do século ii, bem como em diversos países
da Europa durante a Idade Média – França e Itália, entre outros. Mas a matriz do
futebol jogado hoje em todo o planeta veio da Inglaterra.
Durante séculos, não havia apenas uma, mas várias modalidades do jogo de
football. Na ausência de sistemas de transportes e de comunicações mais desen-
volvidos, cada localidade criava seus próprios costumes. Esses jogos faziam parte
do calendário agrícola, tradicional e religioso dessas comunidades: eram dispu-
tados no Natal, na Páscoa e, sobretudo, na Terça-Feira Gorda, quando assumiam
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MARCOS ALVITO
um caráter carnavalesco de inversão da ordem social. Por um dia, os jovens da
aldeia se reuniam às centenas para beber, brincar e finalmente jogar o futebol.
Por vezes, jogavam contra os jovens de uma aldeia vizinha, às vezes se dividiam
em casados contra solteiros ou em dois grupos quaisquer, sem que houvesse pre-
ocupação em que os dois lados tivessem números iguais.
A bola normalmente era uma bexiga de animal, às vezes revestida de couro,
e quase sempre não havia regras; era um vale-tudo com o propósito de levar a bola
até os goals (objetivos). Olhos roxos, braços machucados e pernas quebradas eram
muito comuns, e as mortes não raras, casos que os legistas costumavam registrar
como Death by Football1 (Morte por Futebol). Ainda hoje, em algumas regiões
da Inglaterra, existem festas em que há um jogo de bola muito semelhante aos
descritos nas fontes históricas. Em Ashbourne, no norte da Inglaterra, perto de
Derby, por exemplo, há dois jogos em dias seguidos, na Terça-Feira Gorda e na
Quarta-Feira de Cinzas. Os confrontos se dão entre os Up’ards (os “de cima”) e os
Down’ards (os “de baixo”), representando duas áreas da cidade. A disputa começa
nas ruas, mas depois se dá em campo aberto, e a distância entre os gols é grande:
mais de cinco quilômetros. O percurso inclui um pequeno rio, e a massa de jo-
gadores briga pela bola na água. Há registros do jogo de Ashbourne pelo menos
desde 1683, mas é bem possível que ele já ocorresse muito antes.
Durante a Idade Média, os reis e as autoridades locais promulgaram uma
série de proibições, impondo multas e até a prisão de quem participasse da ativi-
dade, mas de nada adiantou. Esse tipo de jogo havia se tornado uma tradicional
diversão popular. Quando era jogado nas cidades, causava ainda mais problemas,
pois interrompia o comércio e os negócios em geral, destruía propriedades e
ameaçava a ordem pública. Além disso, os reis preferiam que seus súditos prati-
cassem o arco e flecha, preparando-se para a guerra, em vez de baterem uns nos
outros em disputa pela pelota.
Ajuntamentos de jovens eram por si uma ameaça à ordem pública, numa
época em que não havia sistema de policiamento e os ânimos populares se infla-
mavam com facilidade. Para “piorar”, jogos de futebol começaram a ser utilizados
como forma de resistência contra medidas impopulares.
Há pelo menos dois registros do século xviii de multidões que se reuniram
supostamente para jogar futebol, mas na verdade tinham o objetivo de destruir 1 Há uma diferença de vocabulário entre o inglês falado no Reino Unido e o dos Estados Unidos: no primeiro caso, o termo para futebol é football; no segundo, é soccer.
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A RAINHA DE CHUTEIRAS
as cercas que lhes estavam impedindo o acesso a uma terra que durante séculos
fora comum. Em 1765, em West Haddon, no condado de Northampton, depois
de verem seus protestos formais ignorados pelas autoridades, os camponeses co-
locaram um anúncio no jornal convocando os “jogadores” a se reunirem nos pubs
para em seguida praticarem o futebol. Poucos minutos depois de a bola rolar, a
multidão tocou fogo nas cercas, causando enorme prejuízo aos proprietários, que
queriam expulsá-los daquelas terras. Cinco homens chegaram a ser presos, mas
os organizadores do “jogo de futebol” desapareceram. O aumento do preço dos
alimentos também gerava revoltas populares, como a ocorrida em Kettering, em
1740, quando quinhentos homens se reuniram com o pretexto de jogar futebol,
para em seguida destruir um moinho como forma de protesto.
As autoridades laicas não representavam os únicos inimigos do jogo. Mui-
tas vezes o futebol era praticado no domingo, o raro dia livre de que dispunham
os trabalhadores, no campo ou na cidade. Em vão, as autoridades eclesiásticas
clamaram contra o desrespeito ao dia santo, pedindo a supressão do futebol e a
punição daqueles que blasfemassem contra o Senhor. Pelo número de conde-
nações que conhecemos, a turma da bola não parecia muito preocupada com a
possibilidade de arder no inferno. Em 1589, dois homens foram multados em
Chester por jogar futebol no cemitério da igreja durante o sermão. Em 1688,
dez foram processados em Richmond por bater sua bolinha durante a missa.
Em 1722, um furacão derrubou o teto da igreja em Looe, Cornwall, mas o núme-
ro de vítimas foi pequeno porque a maioria dos paroquianos estava longe dali,
jogando futebol.
Mais do que um divertimento, o futebol tradicional era uma forma de afir-
mar identidades locais, fortalecendo a solidariedade de uma comunidade ou de
um grupo. Seu caráter violento deve ser entendido no contexto das outras diver-
sões populares: brigas de galo, luta livre, disputas entre animais envolvendo ursos
contra cachorros e outras modalidades do mesmo teor. O buldogue (bulldog) tem
esse nome porque era utilizado no bull-baiting, quando um touro (bull), com uma
das patas presas ao chão, enfrentava um ou mais buldogues. Esses cães são famo-
sos por suas poderosas mandíbulas. Normalmente atacavam a genitália ou uma
perna do touro e só largavam depois de arrancar um pedaço ou quando se jogava
farinha em seu focinho. Essa ferocidade era tão admirada que o buldogue acabou
virando símbolo nacional da Inglaterra.
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MARCOS ALVITO
Os reformistas sociais consideravam todas essas formas de recreação da
plebe como exemplos de crueldade, indisciplina e descontrole que barravam o
desenvolvimento moral, social e material. Uma classe média cada vez mais in-
fluente e educada, que abraçava o ideal civilizatório de um comportamento
regrado, racional e produtivo, lançou-se em campanhas contra os maus-tratos aos
animais e consequentemente contra diversas práticas populares. Condenava-se o
futebol também por incitar à vadiagem, perturbar a ordem e ser violento. Os seus
inimigos eram muitos e poderosos, mas o jogo, em suas diversas variações, tor-
nara-se mais popular do que nunca, apesar das proibições, mas também graças a
elas: o desrespeito se convertia numa maneira de as classes populares afirmarem
seus valores e práticas.
Entretanto, o futebol tradicional logo enfrentaria uma ameaça muito maior:
as transformações decorrentes do processo de urbanização e de industrialização.
No campo, com os cercamentos,2 e nas cidades, com a crescente concentração
populacional, havia cada vez menos espaço para praticar o jogo. Obrigados a
trabalhar durante catorze e até dezesseis horas por dia, sobrava menos tempo
e disposição dos operários para o futebol. O enorme desenvolvimento das
indústrias e do comércio nas cidades fazia com que o futebol deixasse de ser mera
perturbação para se tornar um sério inimigo do progresso material. O esporte
passou a ser duramente reprimido com a ajuda da recém-formada força policial.
Em 1835, o Parlamento aprovou uma lei proibindo o futebol de rua em toda
a Inglaterra, mas houve resistência popular. Em Derby, por exemplo, havia um
jogo entre duas paróquias disputado na Terça-Feira Gorda que se transformara
num grande festival popular, cujo pontapé inicial era dado na praça do mercado
e que chegava a reunir mil jogadores. A despeito da resistência popular, durante
toda a década de 1830, formou-se uma oposição ao jogo, composta por industriais,
comerciantes, lojistas e artesãos, bem como por religiosos e até por um movi-
mento contrário à bebida alcoólica (os teetotallers). As autoridades e os homens de
negócios viam o jogo como uma grave ameaça à ordem num contexto de crescente
influência dos sindicatos e de outros movimentos sociais. Finalmente, em 1845,
2 Em inglês, enclosures. Os cercamentos foram o processo de apropriação de terras de uso comum por grandes comercian-tes ingleses num momento de efervescência econômica e ampliação das manufaturas, a fim de aumentar a área destinada à produção da matéria-prima de produtos têxteis. Uma das consequências desse processo foi a expulsão de camponeses para as cidades: sem os meios de subsistência, essas pessoas se tornaram mão de obra barata para as manufaturas e, em seguida, para as indústrias, no contexto da Revolução Industrial.
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A RAINHA DE CHUTEIRAS
conseguiram que o prefeito declarasse o futebol ilegal em Derby. Durante pelo
menos uma década os trabalhadores resistiram à proibição, o que levou a re-
voltas contidas com o auxílio de tropas militares convocadas especialmente para
esse objetivo.
Mesmo no seio da classe trabalhadora havia aqueles que consideravam que
o jogo era algo promovido pela elite local como um tipo de paternalismo que en-
corajava os trabalhadores a se comportar de modo pouco respeitável. Sindicalistas
de Derby, a cidade onde ocorria o importante festival mencionado, afirmaram que
o jogo local era “uma imprudência bárbara e uma suprema estupidez”.
A parcela mais bem remunerada da classe trabalhadora, sobretudo,
começou a se dedicar a outros lazeres, como a leitura, a dança, os passeios nos par-
ques e a jardinagem. Isso mostra que estava havendo uma mudança gradativa na
sociedade, no sentido de uma “pacificação dos costumes”, embora as diferenças
de comportamento e valores entre as classes ainda fossem muito significativas.
Ironicamente, a sobrevivência do futebol seria garantida por alguns mem-
bros das classes dominantes que não só defendiam o jogo, como o praticavam
com frequência ao menos semanal – de forma regrada e domesticada, como
veremos no próximo capítulo.