a-química-segundo-michael-faraday-jose-otavio-baldinato.pdf
TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO Mestrado Interunidades em Ensino de Cincias
Modalidade Qumica
A qumica segundo Michael Faraday Um caso de divulgao cientfica no sculo XIX
Jos Otavio Baldinato
Orientador: Prof. Dr. Paulo Alves Porto
So Paulo
2009
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Universidade de So Paulo Instituto de Fsica
Instituto de Qumica Instituto de Biocincias Faculdade de Educao
A qumica segundo Michael Faraday Um caso de divulgao cientfica no sculo XIX
Jos Otavio Baldinato
Orientador: Prof. Dr. Paulo Alves Porto
Dissertao de mestrado apresentada ao Instituto de Fsica, ao Instituto de Qumica, ao Instituto de Biocincias e Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Ensino de Cincias.
So Paulo 2009
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FICHA CATALOGRFICA Preparada pelo Servio de Biblioteca e Informao do Instituto de Fsica da Universidade de So Paulo
Baldinato, Jos Otavio A qumica segundo Michael Faraday: um caso de
divulgao cientfica no sculo XIX. So Paulo, 2009. Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo. Faculdade de Educao, Instituto de Fsica, Instituto de Qumica e Instituto de Biocincias. Orientador: Prof. Dr. Paulo Alves Porto rea de Concentrao: Ensino de Qumica Unitermos: 1. Qumica (Estudo e ensino); 2. Histria da cincia; 3. Ensino e atividades correlatas; 4.Divulgao de cincias; 5. Ensino de Cincias. USP/IF/SBI-071/2009
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Para minha me, que me apoiaria
em qualquer bobagem.
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Agradecimentos
turma de 2002 do IQ-USP, que tornou suportvel e at
interessante uma graduao em qumica. Em especial Tnia e ao
Vina, por continuamente me esclarecerem o que um
voltamograma e uma amizade verdadeira. Ao Xando, que me
mostrou como legal aparecer nos agradecimentos da tese de um
amigo, e ao Bolo, por sua forma sutil de me incentivar a terminar
este mestrado e parar de falar da famigerada vela que, no meu
entendimento, explica quase tudo sobre qumica.
Ao meu orientador, Paulo Porto, que faz histria com seu
trabalho, em todos os sentidos. Questo de justia expressar aqui
minha admirao pela sua capacidade de escolher as palavras,
particularmente instigantes nas reflexes e custicas nas ironias.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa em Histria da Cincia e
Ensino de Qumica, pelo incentivo e pelas valiosas conversas em que
trocamos referncias, crticas e muito mais dvidas que respostas!
Ao professor Frank James, atual guardio dos arquivos de
Michael Faraday na Royal Institution, pelas valiosas referncias e
dicas que me deu numa tarde de conversas.
s vrias equipes de professores e coordenadores com que
trabalhei nos ltimos anos, por me ajudarem a enxergar e aceitar
minhas reais concepes sobre a educao e sobre o papel do
professor dentro da sociedade. Em particular, agradeo ao professor
Pimenta, que me contratou, me ensinou a dar aulas e depois aceitou
minha demisso, para que eu pudesse terminar este mestrado.
Aos amigos do ITB, que primeiro me receberam como aluno e
agora como colega de trabalho. Em especial Ana Paula e Cris
Rocha, pela imensa ajuda com as tradues e com nosso novo e
querido acordo ortogrfico.
Ao diretrio Books, da Google, por destruir as barreiras de
tempo e espao no acesso a fontes bibliogrficas.
Aos meus irmos, Cibele, Cintia e Eduardo, que habitam trs
mundos completamente distintos, e que me acolhem dentro de suas
fantsticas especificidades.
Ao meu pai, que me ensinou a gostar dos livros e me deixou de
presente a estante que eu tanto invejava durante a infncia.
E Juzinha, minha mais que amiga, que pacientemente me
deixa praticar a estratgia de aprendizado que mais me agrada (e
sobre a qual discorro neste trabalho), que aproveitar a primeira
oportunidade para conversar sobre qualquer coisa que aprendo.
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Nunca fale sobre cincia, mostre a eles.
LAWRENCE BRAGG
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Resumo
A qumica segundo Michael Faraday: Um caso de divulgao cientfica no sculo XIX
A presente pesquisa apresenta um estudo do ciclo de palestras intitulado A
histria qumica de uma vela, proferido por Michael Faraday como parte das celebraes natalinas de 1860, na Royal Institution, em Londres. Nas palestras, Faraday apresentou uma vela como objeto motivador para o estudo de vrios aspectos da cincia contempornea, e a transcrio da sua fala nos permite observar como o tema detinha a ateno do pblico do perodo.
Seguindo os preceitos da nova historiografia da cincia, procuramos reconstruir parte do contexto de formao de Faraday, para entender como se consolidaram seus mtodos de trabalho como palestrante. Algumas obras de influncia sobre sua formao inicial so revisitadas: Conversations on Chemistry, de Jane Marcet (1805) e The Improvement of the Mind, de Isaac Watts (1741). O primeiro texto representa uma introduo qumica do sculo XIX. Escritas sob a forma de dilogos, as conversas de Jane Marcet teriam nutrido o jovem Faraday de fatos cientficos, que o motivaram no aprendizado das cincias naturais e renderam vrias manifestaes de reconhecimento do posterior filsofo para com a autora. J a segunda obra se constitui num manual que instrumentaliza o autoaprendizado. Dividido em dois volumes, The improvement of the mind primeiro trata das regras para a aquisio de conhecimentos, amplamente estudadas e defendidas por Faraday em sua formao e, em seguida, das estratgias para a comunicao de conhecimentos, com particular nfase sobre as palestras. Esta segunda parte da obra de Watts tambm foi objeto da ateno de Faraday, e os registros primrios de ambos os autores nos fornecem critrios contemporneos para a anlise da atuao de Faraday como palestrante.
Os resultados da pesquisa apontam para a coerncia do trabalho de Faraday em relao aos preceitos que construiu sob a orientao de referncias pessoais e textuais, como os palestrantes a que assistiu na juventude, e as obras que estudou em suas etapas de formao. Faraday conciliou e incorporou vrios dos aspectos atribudos por Watts ao bom palestrante, e tambm promoveu uma viso da qumica consoante com a divulgada por Jane Marcet em seu livro.
Este estudo de caso busca na histria da cincia a anlise de fatores que contribuem ao xito de uma iniciativa de divulgao cientfica. Dentro do seu contexto, o livro de Jane Marcet e as palestras de Faraday se constituram em duas formas distintas de abordagem, e ambas lograram sucesso ao conseguirem ganhar a ateno do pblico para tratar das cincias naturais em geral, e da qumica em particular. Entendendo que nas iniciativas de divulgao cientfica a demanda por criatividade atemporal, buscamos neste estudo histrico alguns argumentos que permitam refletir sobre essa prtica em qualquer tempo.
Palavras-chave: Michael Faraday, divulgao de cincias, histria da cincia,
Jane Marcet, Isaac Watts.
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Abstract
Chemistry according to Michael Faraday: A case of science popularization in the 19th century
This work presents a study on Michael Faradays six-lecture course entitled
The chemical history of a candle, delivered as part of the 1860 Christmas celebrations at the Royal Institution, London. In the lectures, Faraday departed from an ordinary candle to motivate the study of several current scientific issues. The transcription of his speech allows us to investigate how science attracted general public attention at the time.
In order to understand how Faraday achieved the maturity of his work as a lecturer, we considered the precepts of the new historiography of science and followed up on the context of his early intellectual development. Some works of reference are revisited: Conversations on Chemistry, by Jane Marcet (1805) and The Improvement of the Mind, by Isaac Watts (1741). The first book represents an introductory course in chemistry, written in the form of dialogs for the early nineteenth century general public. According to Faradays own reports, such book had nourished him with scientific facts, which stimulated him to pursue a scientific career. The second book consists in a manual aimed to improve self-learning initiatives. The Improvement of the Mind is divided in two volumes, being the first dedicated to the rules for the acquisition of knowledge, and the second to the skills to communicate such knowledge, specially by means of lectures. Both volumes seem to have influenced the young Faraday remarkably, not only by helping him to establish his methods of study but also by instructing him about dealing with knowledge. Moreover, this second volume of the book gives us contemporary criteria to analyze Faradays later work as a lecturer.
Our research results point out to the coherence between Faradays work and the precepts he developed under the guidance of both personal and textual references, such as the lecturers he attended to or the books he read during his apprenticeship. Faraday was able to personify many of the attributes of the good lecturer described by Watts, and also promoted a view of chemistry which coincides on several aspects with the one popularized by Jane Marcet in her conversations.
This case study focuses on a science popularization initiative, and analyzes the factors which influence its outcome. Within their particular context, Jane Marcets conversations and Faradays lectures represent two different approaches to science popularization, and they both achieved great success in getting the publics attention to chemistry, and to science in general. Taking creativity as a timeless requirement for any initiative in science popularization, we hope with this work to promote reflections about such practices at any time.
Key-words: Michael Faraday, science popularization, history of science, Jane
Marcet, Isaac Watts.
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Programa de Ps Graduao Interunidades no Ensino de Cincias
Sumrio
Introduo
A divulgao da cincia: algumas questes .................................................. 10
Propondo um estudo de caso: a divulgao da cincia na Inglaterra do
incio do sculo XIX ....................................................................................... 16
A nova historiografia da cincia e os estudos de casos ................................. 18
Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia no sculo XIX .......... 25
Faraday, suas fontes, e a divulgao da cincia ............................................ 29
Captulo I - Da livraria do Sr. Riebau Royal Institution
A formao de Michael Faraday .................................................................... 32
O trabalho na Royal Institution ....................................................................... 42
Captulo II - Orientaes ao autodidata: As fontes de Michael Faraday
Um outro padro de formao ....................................................................... 53
Jane Marcet e Conversations on Chemistry .................................................. 62
Isaac Watts e The improvement of the mind .................................................. 74
A aquisio de conhecimento segundo Faraday ............................................ 83
A comunicao do conhecimento segundo Watts e Faraday ......................... 89
Captulo III - Faraday como divulgador da cincia
Michael Faraday e A histria qumica de uma vela ........................................ 97
Por trs do brilho da vela ............................................................................. 115
Consideraes Finais ............................................................................................. 124
Referncias Bibliogrficas ...................................................................................... 129
Anexo A Mapa de Londres sc. XIX ................................................................. 138
Anexo B Programas impressos Christmas Lectures ......................................... 139
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Introduo A divulgao da cincia
Introduo
A divulgao da cincia: algumas questes
A cincia uma construo humana. Ainda que sua crescente especializao
a tenha afastado da cultura geral, criando algo como um corpo de conhecimentos
paralelo, ou cientfico (KNIGHT, 2004), inegvel que os produtos da cincia
invadem o cotidiano das pessoas. Isso no ocorre apenas na forma de tecnologia e
bens de consumo, mas tambm por meio dos tratamentos mdicos, do
aprimoramento de tcnicas produtivas, referncias para melhora da qualidade e do
tempo de vida, alm de teorias, necessrias para embasar o debate de vrias
questes sociais, ambientais e polticas (DURANT et al, 1989). Tudo isso nos ajuda
a perceber como a cincia participa diretamente do processo de desenvolvimento
das sociedades (MORA, 1998).
Se aceitarmos que a cincia tem de fato essa relevncia, ento a difuso do
conhecimento cientfico se torna algo da maior importncia para ns, pois, numa
perspectiva otimista, ela estaria ligada reaproximao da cultura geral cientfica
(CALVO HERNANDO, 2003).
Luis Estrada, prmio Kalinga da UNESCO ao lado do brasileiro Jos Reis,1
afirma que a divulgao cientfica nasce com a prpria cincia, e se refere ao que
chamamos de cincia moderna: ligada a um movimento de abandono das
concepes aristotlicas e de valorizao do empirismo, com a unio de
experimentos e teorias que marcou os trabalhos de muitos autores no sculo XVII
(apud MORA, 1998, p. 17). A prpria opo de Galileu e outros autores, que
publicaram seus textos em vernculo em vez do latim, como seria usual na poca, j
foi entendida por alguns autores como um marco na histria das iniciativas pela
divulgao cientfica (GERMANO; KULESZA, 2007, p. 8).
Nesta dissertao, desenvolvemos um estudo de caso sobre um ciclo de
palestras que tinha a qumica como tema principal. As palestras foram proferidas por
Michael Faraday (1791-1867) para um pblico muito diversificado, majoritariamente
1 O prmio Kalinga concedido anualmente pela UNESCO, desde 1952, em reconhecimento ao trabalho de
divulgadores da cincia com destaque no aprimoramento do bem estar do pblico, enriquecimento da herana cultural dos povos e soluo de problemas humanitrios. Alm de Jos Reis, que dividiu o prmio com o mexicano Luis Estrada em 1974, outros quatro brasileiros j foram agraciados: Oswaldo Frota-Pessoa (1982); Ennio Candotti (1998); Ernst W. Hamburger (2000) e Jeter J. Bertoletti (2005).
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Introduo A divulgao da cincia
composto por no-especialistas na cincia do perodo. Alm de notvel pesquisador,
Faraday se celebrizou como divulgador da cincia num perodo em que a qumica
atravessava importantes transformaes. Assim, nosso principal objetivo neste
trabalho analisar uma situao concreta de divulgao cientfica que logrou
sucesso dentro do seu tempo e espao. Para tanto, propomos a reconstruo de
parte desse contexto, investigando fatores ligados formao do divulgador e
racionalizao dos seus mtodos de lidar com o conhecimento em geral e com os
estudos cientficos em particular. Como objetivo secundrio, buscamos identificar
reflexos das referncias que ajudaram na formao inicial de Faraday as quais
teriam orientado seus estudos e influenciado a construo de seu perfil de trabalho
como pesquisador e divulgador da cincia.
Embora se possa considerar que esse tipo de atividade tenha j alguns
sculos de histria, so bastante recentes os debates da literatura especializada
sobre a divulgao cientfica. Segundo Mendes (2006), ainda no h consenso
sobre questes fundamentais da rea, incluindo sua terminologia, que mantm em
aberto a conceituao do que seja popularizao, disseminao, divulgao,
vulgarizao, difuso e outros tantos termos vinculados ao tema.
Seguindo a conceituao de Antonio Pasquali (1978), qualquer iniciativa de
veicular ou propagar informaes cientficas e tecnolgicas se enquadra na noo
de difuso. Dentro deste conceito estariam as prticas de disseminao e
divulgao, diferenciadas apenas pelo seu pblico alvo: a disseminao seria
dirigida a especialistas, membros da comunidade cientfica de diversas reas; e a
divulgao seria orientada ao pblico leigo em geral.
A distino do pblico tambm acarretaria diferentes padres de linguagem.
Enquanto a disseminao se daria por meio de cdigos e linguagem especializada,
somente inteligveis ao seu seleto pblico de iniciados, a divulgao exigiria dos
seus agentes a capacidade de converter essa linguagem das cincias em outra,
no-especializada, de modo a tornar o conhecimento cientfico acessvel ao grande
pblico (MENDES, 2006, p. 28).
Neste trabalho, nos restringiremos a considerar o conceito de divulgao
cientfica ressalvando, porm, que a literatura especializada abarca um debate
mais amplo, incluindo o papel do pblico, a legitimao da atividade cientfica e
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Introduo A divulgao da cincia
outros fatores ligados comunicao da cincia (ESTRADA, 1992; LEWENSTEIN,
1994; MORA, 1998; CALVO HERNANDO, 2003; MYERS, 2003; MENDES, 2006).2
Sanchez Mora (1998, p. 17) define a divulgao da cincia de modo
operacional, como uma recriao do conhecimento cientfico para torn-lo acessvel
ao pblico, e Calvo Hernando (2003) destaca duas caractersticas que considera
necessrias na atividade:
a primeira, que a explicao e a divulgao se faam fora do marco do ensino oficial ou equivalente; a segunda, que estas explicaes extraescolares no tenham como objetivo formar especialistas ou aperfeio-los em seu prprio campo, pois o que se pretende, pelo contrrio, complementar a cultura dos especialistas fora de sua especialidade.
(LE LIONNAIS apud CALVO HERNANDO, 2003, p. 37)
importante que ampliemos um pouco o entendimento sobre o trabalho do
divulgador da cincia, pois se o vislumbrarmos como um mero tradutor da linguagem
cientfica para a lngua cotidiana do pblico, corremos o risco de assumir um ponto
de vista ultrapassado: colocando o discurso cientfico e o discurso de divulgao em
duas esferas separadas, mas que pretensiosamente respeitariam essa ordem
hierrquica (MYERS, 2003). Segundo essa viso dominante da divulgao
cientfica, a comunicao entre a cincia e o pblico se daria por uma via de mo
nica. Os cientistas e instituies de pesquisa representariam as autoridades,
produtoras e detentoras do conhecimento a ser escrito em pginas praticamente em
branco, representadas pelo pblico leigo. Assim, todas as iniciativas de divulgao
cientfica seriam conduzidas com o mesmo objetivo: de identificar e suprir essas
regies deficitrias da esfera de conhecimentos da audincia (Ibid., p. 266).
Esse modo de encarar a divulgao cientfica, que tambm j foi chamado de
modelo de dficit, tem sido aos poucos substitudo por uma concepo mais
abrangente e social da relao entre produtores e consumidores da cincia. A
interao desses personagens adquire contorno mais cclico e menos linear
medida que o conhecimento do pblico, suas expectativas, dvidas, desejos e
demandas ganham relevncia no dilogo (MASSARANI; MOREIRA, 2004, p. 78).
Dentro desta nova viso, a cincia assume o carter de empreendimento pblico,
pois influenciada pelos diversos componentes da sociedade. Parte do
2 A anlise das referncias citadas nos faz concluir que prefervel traduzir como divulgao cientfica o que os falantes de lngua inglesa chamam de popularization of science. Isto porque a atividade de popularizao, dita em portugus, carrega um compromisso social mais abrangente que o da divulgao. Vide Germano & Kulesza (2007, p. 14-20).
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13
Introduo A divulgao da cincia
financiamento para pesquisas depende do xito do pesquisador em interessar no-
especialistas pelos seus projetos. Existem fatores ticos, econmicos, ambientais e
de diversas outras naturezas que afetam a imagem da cincia. Assim, o papel da
divulgao cientfica tambm se amplia, passando a considerar o suprimento de
necessidades no apenas do pblico, mas tambm da prpria cincia, numa relao
de interdependncia que contribui com a horizontalidade do processo.
Os propsitos mais diretos da divulgao cientfica tambm merecem nossa
ateno, e constituem outro tpico que ainda alimenta debate. De acordo com
Eugene Rabinowitch, tambm ganhador do prmio Kalinga da UNESCO, no
passado, a divulgao cientfica tinha dois objetivos fundamentais: o primeiro, de
natureza intelectual, seria o de permitir que pessoas sem profunda formao
cientfica pudessem se aproximar do processo investigativo, e que tivessem a
oportunidade de se emocionar frente beleza que encerram as grandes
construes tericas da cincia moderna; o segundo objetivo, este de ordem
prtica, seria disponibilizar aos profissionais informaes teis para o seu trabalho
cotidiano, ajudando-os a compreender a importncia imediata que tm para eles as
novas descobertas cientficas (apud CALVO HERNANDO, 2006, p. 2).
Numa abordagem que talvez possa ser caracterizada como um pouco mais
comportamentalista, Lubinski encontra argumentos na teoria da seleo natural de
Darwin para afirmar que a funo da divulgao cientfica propor estmulos ao
pblico, que o motivem a buscar conhecimento. De acordo com a analogia do autor,
a Natureza impe algumas necessidades sobrevivncia dos seres humanos, como
comer, respirar, reproduzir, etc. A genialidade do mundo natural estaria em nos
lembrar dessas necessidades atravs de estmulos sensveis, como a fome, a asfixia
e a libido. Em condies ideais, so estes estmulos que nos fazem atender s tais
necessidades, e eles se processam em nvel fisiolgico, provocando dor,
desconforto ou desejo pela execuo de uma ao. Ento, se convencionamos que
o conhecimento das cincias constitui algo desejvel, ou mesmo necessrio para
nossa melhor sobrevivncia, torna-se prioritria a proviso de um estmulo, para que
as pessoas sejam lembradas disso, e sintam vontade disso. Enquanto a seleo
natural no isola os indivduos capazes de sentirem essa necessidade como uma
coceira ou um pequeno incmodo, caberia divulgao cientfica oferecer os
estmulos para a busca pelos conhecimentos da cincia (LUBINSKI, 1994, p. 296-
298).
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Introduo A divulgao da cincia
Em diversos artigos, Calvo Hernando considera a cincia contempornea
inserida num contexto social mais amplo, e atribui muito mais funes divulgao
cientfica, todas elas ligadas democratizao do saber e aproximao dos grupos
sociais, que devem, no mnimo, ser capazes de se comunicar melhor. A presena
mais viva da cincia no pensamento de um povo vista como fator de
desenvolvimento cultural, que pode contribuir para a melhora da qualidade de vida
(como se daria pelo amplo conhecimento de mtodos para o melhor aproveitamento
de recursos naturais e utilizao dos progressos da cincia e tecnologia) e tambm
para o que o autor chama de comunicao de risco: ligada ao esclarecimento da
populao quanto aos riscos aos quais estamos expostos, considerando problemas
ambientais, surtos de doenas infecciosas, consumo de drogas e medicamentos,
segurana em meios de transporte, etc. Tudo isso dependeria do estabelecimento
de polticas de comunicao cientfica, com pesquisadores preocupados em
aprender a informar populao sobre os resultados do seu trabalho, enquanto os
interesses coletivos da sociedade de alguma maneira tambm interagiriam com a
prtica dos pesquisadores. Por fim, o autor ainda destaca um possvel aspecto
pedaggico da divulgao cientfica, ressaltando que ela no substitui a educao,
mas pode preencher alguns vazios do ensino moderno, contribuindo exatamente
para a adoo de determinada postura frente cincia (CALVO HERNANDO, 1998,
p. 47-48).
Em meio a tantas divergncias ligadas ao conceito e aos propsitos da
divulgao cientfica, um ponto de consenso entre pesquisadores se refere
criatividade necessria aos agentes dessa prtica (MORA, 1998, p. 54; CALVO
HERNANDO, 2006, p. 1). Para que seja capaz de recriar o conhecimento cientfico
de modo a contribuir com a formao e com a ampliao da cultura do pblico, o
trabalho de divulgao cientfica eminentemente criativo, e esse um dos fatores
que contribuem para que a fala do divulgador seja repleta de analogias e metforas,
que se prestam no s s explicaes sobre o contedo das cincias, mas tambm
s reflexes sobre a prpria atividade de divulgao.
Assim como a msica requer intrpretes para ser apreciada, a cincia demanda profissionais que interpretem as obras cientficas diante do pblico.
(Fernando Del Rio apud MORA, 1998, p. 50)
A aceitao do pblico fundamental para avaliarmos se uma iniciativa de
divulgao cientfica boa ou ruim, e os resultados de alguns levantamentos do
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Introduo A divulgao da cincia
margem para interpretaes preocupantes. Em pesquisa realizada simultaneamente
nos Estados Unidos e no Reino Unido, a maior parte dos entrevistados atestou ser
pessoalmente interessada por assuntos da cincia mas, diferente do que acontece
com outros temas (como esportes, poltica ou cinema), declarar-se interessado por
assuntos cientficos no implica estar bem informado sobre eles, tampouco indica o
domnio de alguns conceitos especficos. Alguns resultados da pesquisa chamam a
ateno, como por exemplo: 54,5% dos entrevistados disseram acreditar que
antibiticos so eficazes contra vrus; apenas 34,1% entendiam que a Terra
completa uma volta ao redor do Sol a cada ano; e 31,6% acreditavam que os
primeiros humanos viveram junto aos dinossauros (DURANT; EVANS; THOMAS,
1989).
Desses dados emerge a ineficcia da divulgao cientfica orientada pelo
modelo de dficit (MILLER, 2001), e a alternativa mais promissora para melhorar
esta situao parece estar mais prxima do pblico que dos cientistas, isto , propor
uma abordagem contextualizada, que considere a cincia a partir das demandas,
interesses e problemas a serem resolvidos por cada comunidade. Essa mudana de
enfoque pode contribuir para que o conhecimento cientfico seja valorizado no
apenas pela sua utilidade, mas por sua real presena na vida e na cultura das
pessoas (WYNNE, 1995; IRWIN, 1995).
Tal preocupao muito caracterstica dos tempos atuais, em que a cincia
ocupa papel essencial na sociedade. Como afirmamos, porm, a prtica da
divulgao cientfica vem sendo feita j h muito tempo. Assim, uma das motivaes
desta pesquisa analisar uma experincia bem sucedida de divulgao cientfica no
passado, que pode fornecer subsdios para reflexes sobre essa atividade mesmo
nos dias de hoje. claro que tais reflexes, a partir da anlise histrica, no podem
incorrer na armadilha do anacronismo, de se julgar as prticas do passado como se
o contexto em que elas faziam sentido fosse idntico ao contexto atual. Tendo isso
em mente, acreditamos que a adequada anlise histrica tem muito a contribuir para
o pensamento sobre a atividade de divulgao cientfica.
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Introduo Propondo um estudo de caso
Propondo um estudo de caso: a divulgao da cincia na Inglaterra do incio
do sculo XIX
No sculo XIX, dentro de um contexto amplo de valorizao das cincias, que
abrangia tanto o divertimento da aristocracia como o ideal de progresso, ligado ao
advento da mquina a vapor e aplicao de novas tecnologias para o trabalho, a
qumica se destacava aos olhos de vrias esferas da sociedade, obtendo inclusive o
suporte social que facilitava seu prprio desenvolvimento. Suas contribuies como
via de conhecimentos teis eram vrias, do aperfeioamento de ferramentas e
materiais sua participao nos estudos de fenmenos eltricos, e seu alcance
como entretenimento tambm era notvel. A qumica era a cincia das qualidades
secundrias, das cores, cheiros e gostos, e sua parte prtica podia ser apresentada
de maneira muito chamativa, que garantia a lotao de auditrios em Londres e
Paris, onde Humphry Davy e Antoine Fourcroy conduziam suas palestras animadas
por experimentos explosivos e empolgantes performances. David Knight descreve
com certo saudosismo um tempo no qual tomar contato com a qumica era algo
vibrante, o que talvez no combine com nossas modernas legislaes de sade e
segurana (KNIGHT, 2007, p. 125).
Com o avano das tcnicas de impresso no segundo quarto do sculo, os
excludos das palestras podiam contar com interessantes livros de divulgao a
preos reduzidos. A Enciclopdia, alinhada aos ideais iluministas do sculo anterior,
objetivava aproximar o erudito ao popular, representando a conjuno da atitude
emprica da Inglaterra com o desejo de mudana da Frana (MORA 1998, p. 27-28).
Entre os textos que alcanaram grande popularidade, poderamos destacar
Conversations on Chemistry, de Jane Marcet (1805), que introduzia os conceitos da
qumica para leigos. Por incrvel que possa parecer, essa classe de pblico era bem-
vinda aos estudos cientficos do perodo.
A parcela mais ativa dos interessados pela cincia tambm encontrava kits de
reagentes e laboratrios portteis venda, de vrios preos e tamanhos, e mesmo
para os menos dedicados ao desenvolvimento de suas habilidades manuais na
conduo de experimentos, a qumica ainda contava com um dinamismo bastante
atrativo, ligado s suas ideias e aplicaes (KNIGHT, 2007, p. 127).
At a segunda metade do sculo, as frentes de divulgao andavam lado a
lado com os mais recentes avanos da cincia qumica, da descoberta do potssio e
outros elementos at o estudo do magnetismo. Mas isso comeou a mudar com a
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Introduo Propondo um estudo de caso
crescente profissionalizao dos qumicos, que passaram a se comunicar por meio
de textos sucintos, cada vez mais dependentes de argumentos tcnicos e
matemticos. Aos poucos, a cultura cientfica se afastava da cultura geral das
pessoas e os amadores perdiam seu espao. No final do sculo, as atividades de
divulgao j eram vistas por muitos cientistas profissionais como algo abaixo do
seu prestgio, e a partir dali at mesmo os especialistas de uma rea enfrentavam
dificuldades para acompanhar o desenvolvimento de outras (KNIGHT, 2007, p. 129-
131).
Algumas instituies se colocaram margem deste processo, mantendo
atividades de divulgao como parte da rotina dos seus pesquisadores. Este o
caso da Royal Institution londrina, que nos ltimos duzentos anos passou por vrias
reformas para cumprir sua meta de oferecer cincia para os propsitos cotidianos
da vida, e que hoje difunde pela televiso alguns dos seus ciclos de palestras de
divulgao cuja origem remonta ao incio do sculo XIX (JAMES, 2007, p. 141).
Massarani e Moreira (2004, p. 76) associam a criao da Royal Institution com
o estabelecimento de um novo marco sobre as atividades de divulgao cientfica.
A instituio foi fundada em 1799 por Joseph Banks, Benjamin Thompson e Thomas
Bernard, entre outros, com o objetivo de
difundir o conhecimento e facilitar a introduo de invenes e aprimoramentos mecnicos teis: e para o ensino, atravs de cursos com palestras e experimentos filosficos, das aplicaes da cincia dentro dos propsitos cotidianos da vida.
(JAMES, 2007, p. 141)
A Royal Institution oferecia vrios tipos de palestras e cursos para diferentes
pblicos, e seus pesquisadores/palestrantes mais notveis durante o sculo XIX
foram Humphry Davy e Michael Faraday, cujas biografias atestam vises de mundo
completamente distintas, em contraste com duas caractersticas que tinham em
comum: as habilidades na pesquisa e na divulgao cientfica.
Exemplo destacado entre as atividades de divulgao da qumica em meados
do sculo XIX foram as palestras proferidas por Michael Faraday na Royal
Institution. Algumas delas eram organizadas na forma de sries (ou cursos), como
o conjunto de palestras intitulado A histria qumica de uma vela. Esta foi uma das
duas sries de palestras que receberam autorizao de Faraday para que fossem
transcritas e publicadas por editores contemporneos, compondo uma fonte primria
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18
Introduo Propondo um estudo de caso
que nos permite boa aproximao ao contexto em que se inseria a atividade de
divulgao.
Os objetivos deste trabalho se situam na esfera da anlise da atuao de
Faraday como divulgador da cincia. Ento, fundamental que nos aprofundemos
no contexto que cercava suas atividades. Como veremos no desenrolar desta
dissertao, os registros da correspondncia de Faraday, associados a outras fontes
primrias, nos do dimenso do que se entendia por um bom palestrante e uma boa
palestra no perodo, alm de uma viso da qumica dentro do panorama de
desenvolvimento das cincias naturais do incio do sculo XIX.
Tal necessidade de reconstruir um contexto para proceder com a anlise se
alinha aos preceitos da nova historiografia da cincia, que tomamos como referencial
terico para este trabalho e que discutiremos brevemente na sequncia.
A nova historiografia da cincia e os estudos de casos
medida que se desenvolve, a cincia produz sua histria. Nesta afirmao,
o termo desenvolve no guarda qualquer relao com um ideal de progresso ou de
evoluo positiva da cincia atravs dos tempos. Quer dizer apenas que a histria
da cincia se constri junto prpria cincia, entendida aqui como um
encadeamento de atividades humanas que se sucedem, dia aps dia, perodo aps
perodo. Nas palavras de Roberto Martins, a histria existe independentemente da
existncia dos historiadores (MARTINS, R., 2004, p. 115). Seguindo esta linha, o
produto do trabalho dos historiadores, isto , a sua maneira de escrever e lidar com
o passado em livros e comunicaes constitui algo que no a histria trata-se de
historiografia.
Em termos gerais e simplificados, Histria o conjunto dos acontecimentos humanos ocorridos no passado, e a Historiografia o conjunto dos registros, interpretaes e anlises desses acontecimentos.
(DAMBROSIO, 2004, p. 166)
Se considerarmos a cincia moderna como algo que se desenvolve h cerca
de quatrocentos anos, e que j recebeu vrias denominaes ao longo deste
perodo (como filosofia natural, nova cincia, magia universal, etc.),
perceberemos que os estudos histricos da cincia j assumiram vrios papis e se
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19
Introduo A nova historiografia da cincia
prestaram a diferentes objetivos (ALFONSO-GOLDFARB, 1994). Seja para justificar
os rumos a serem seguidos pela nova cincia, elucidar o mtodo cientfico, ou para
ressaltar um passado de glrias que nos permitiu alcanar o corpo de
conhecimentos do presente, Debus nos mostra como, em todos os perodos, o
historiador escreve com um propsito em mente (DEBUS, 1984, p. 15). Assim, no
de se estranhar a existncia de vrios padres historiogrficos da cincia.
Considerando qual deveria ser o lugar da histria da cincia, se dentro de um
departamento de histria, filosofia, cincias ou se numa frente independente e
interdisciplinar, Canguilhem (1972) problematiza o prprio objeto de estudo da rea.
Segundo o autor, o trabalho do historiador da cincia no admite analogia com o de
um microscopista, que apenas amplia seu objeto de estudo com vias de observar e
descrever melhor os seus detalhes. A crtica de Canguilhem metfora do
microscpio ressalta que o instrumento s serviria para observar algo concreto, que
j estivesse ali, como objetos j constitudos (CANGUILHEM, 1972, p. 11). A
histria da cincia no pode ser vista ao microscpio porque enxerg-la depende de
escolhas do observador. Ela no se apresenta como um objeto natural, mas sim
como algo que se constri medida que interpretado. O vis historiogrfico
decisivo sobre a histria da cincia a ser narrada, e a problemtica vai mais longe,
pois a construo desse objeto de estudo histrico tambm dependente do
desenvolvimento da cincia atual, haja vista que uma mudana no corpo de saberes
da cincia corrente pode contribuir para que se mude o foco ao olhar para a histria
da cincia. Assim, como em diferentes contextos e sob diferentes perspectivas
historiogrficas, os mesmos episdios ou perodos da histria da cincia podem ser
interpretados de maneira diversa, no se configura a existncia de uma histria
definitiva da cincia. Ento, nas palavras de Hbner, o trabalho do historiador da
cincia deve ser o de
reescrever continuamente a histria, tendo em conta a inevitvel mudana a que o passado est exposto, no decurso das pocas.
(HBNER, 1993, p. 226)
Foi nas primeiras dcadas do sculo XX que a histria da cincia se
institucionalizou como uma disciplina acadmica. Neste processo, destacam-se os
esforos de George Sarton (1884-1956), que tomou parte no estabelecimento de
vrias sociedades para a histria da cincia ao redor do mundo e tambm fundou o
peridico ISIS ainda hoje um dos mais conhecidos e respeitados da rea (DEBUS,
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20
Introduo A nova historiografia da cincia
1984, p. 31). De origem belga e radicado nos Estados Unidos em consequncia da
Primeira Guerra Mundial, Sarton guardava grande admirao pelo positivismo de
Auguste Comte (1798-1857). Tal inclinao se refletia em seu modo de olhar para a
histria da cincia e, consequentemente, a historiografia que desenvolveu era
imbuda de um notvel continusmo das ideias cientficas. Dentro das produes do
perodo, era comum que se encontrasse uma espcie de histria dos vencedores,
pois o olhar para o passado sempre objetivava o entendimento do presente, numa
busca muitas vezes anacrnica pelos precursores das ideias cientficas vitoriosas,
que compunham a cincia contempornea (ALFONSO-GOLDFARB; FERRAZ;
BELTRAN, 2004, p. 50-51).3 Segundo Debus (1991, p. 5), Sarton buscava uma
histria da cincia verdadeira, ou seja, cincia tal como a concebemos hoje. Assim,
qualquer linha de pensamento do passado que no houvesse positivamente
prosperado, e no integrasse o conhecimento cientificamente aceito, poderia ser
descartada nos estudos histricos.
Por focalizar os avanos da cincia sem maiores consideraes sobre seus
contextos sociais e de poca, essa historiografia da cincia j foi chamada de
internalista. Entre os estudos representativos desta corrente, Alfonso-Goldfarb e
colaboradoras destacam: Histoire des Sciences: Antiquit, de A. Mieli (1935);
LApoge de La Science de La Mathmatique, de A. Rey (1948); e An Introduction to
the History of Science, do prprio Sarton (1927) (ALFONSO-GOLDFARB et al, 2004,
p. 51).
Nas dcadas de 1930 e 1940 que surgiriam os primeiros trabalhos pautados
por um vis historiogrfico diferente (externalista), com particular ateno voltada a
fatores adjacentes prtica cientfica. Estudos como os de B. Hessen (The Social
and Economic Roots of Newtons Principia), J. D. Bernal (Cincia na Histria) e J.
Needham (Science and Civilization in China) introduziam a influncia de questes
sociais sobre o desenvolvimento da cincia. E, no mesmo perodo, G. Bachelard
propunha um debate que colocava em dvida o continusmo das ideias na histria
da cincia (Ibid., p. 51-52).
3 H. Butterfield chamaria este tipo de narrativa de histria Whiggish, em referncia tica progressista do partido britnico dos Whigs (DEBUS, 1991, p. 6). Para uma discusso sobre distores da histria da cincia, seu vnculo com questes historiogrficas e suas consequncias para o ensino de cincias, vide Baldinato & Porto (2008a).
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Introduo A nova historiografia da cincia
Segundo Bachelard, os partidrios do continusmo da cultura cientfica
encobrem as descontinuidades no curso das cincias com base em alguns
subterfgios: 1) a vagarosidade dos progressos cientficos, notadamente nos seus
incios, faz com que paream contnuos. Assim, toda linha de continuidade
sempre um trao muito muito grande [e, portanto], um grande esquecimento da
especificidade dos detalhes; 2) as descontinuidades podem ser encobertas
atribuindo seu mrito a massas de trabalhadores annimos, seguindo a ideia de que
os progressos estavam no ar quando o gnio os descobriu. Isto contribui com o
padro de busca por pais e precursores de ideias, por mais distantes que estes se
encontrem no tempo e no espao; e 3) a lgica de uma cincia de saberes
acumulativos e continustas parece ser pedagogicamente menos problemtica
(BACHELARD, 1972, p. 30-33). Com relao a este ltimo tpico, de fato, abordar
as descontinuidades da histria da cincia pode ter implicaes sobre o seu
aprendizado, mas, nas palavras de outro importante historiador da cincia, ignor-las
pode prejudicar a apresentao da verdade histrica (PAGEL apud DEBUS, 1991,
p. 7).
De acordo com Debus (1991), foi Walter Pagel quem explicitou a necessidade
da contextualizao nos estudos histricos. Contudo, Pagel tambm advertiu que, se
ela fosse devidamente realizada, as narrativas histricas da cincia poderiam
parecer muito mais complicadas do que se afiguram na perspectiva usual de linhas retas do progresso. Todavia, teremos que assumir a tarefa incmoda de reconstituir o pensamento antigo se desejamos escrever histria em vez de best-sellers.
(PAGEL apud DEBUS, 1991, p. 8)
Considerando aspectos da cincia de diferentes pocas, Bachelard j
observava descontinuidades na linguagem, nos conceitos, e at mesmo nas
dificuldades enfrentadas pelos estudiosos de cada perodo (BACHELARD, 1972, p.
36-38) mas foi apenas no ano de sua morte, em 1962, que a polmica obra A
estrutura das revolues cientficas, de Thomas Kuhn, parece ter motivado o debate
que levaria ruptura definitiva com o modo continusta de se olhar para a histria da
cincia (ALFONSO-GOLDFARB et al, 2004, p. 53). Kuhn apresenta seu conceito de
revoluo cientfica, e discute como um corpo de conhecimentos e prticas que goza
de relativa aceitao e consenso (cincia paradigmtica) pode sofrer abalos ao
deparar-se com questes novas (crise), que s se acomodam mediante
modificaes drsticas da forma de pensar e trabalhar sobre os assuntos cientficos
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Introduo A nova historiografia da cincia
(revoluo), levando ao estabelecimento de um novo corpo de conhecimentos que,
em sua essncia, no guarda semelhanas e no pode ser comparado ao anterior
(incomensurabilidade) (KUHN, 1962). Apesar de todas as crticas possveis quanto
clareza e a abrangncia do modelo de Kuhn (que se baseia essencialmente na
histria da fsica, enquanto ignora particularidades de outras cincias, notadamente
das mais jovens), inegvel o seu destaque dentro do debate sobre os estudos
histricos da cincia, principalmente no que tange contextualizao e
acomodao dos perodos de continuidade e de ruptura que se sobrepem na
histria da cincia (ALFONSO-GOLDFARB et al, 2004, p. 53-54).
O trabalho de Kuhn tambm parece ter influenciado novos estudos no campo
da sociologia do conhecimento cientfico que, nas ltimas dcadas, tm defendido
um modo bastante peculiar de observar o empreendimento cientfico: desprovendo
as teorias cientficas de qualquer valor epistemolgico interno, ou melhor, abordando
o desenvolvimento da cincia como fruto de um processo de negociao social de
construes tericas, cuja aceitao ou esquecimento depende mais de interaes
sociais localizadas que de critrios estritamente cientficos, como a capacidade de
elucidar resultados experimentais, por exemplo (PINCH, 1990).
O chamado programa forte da sociologia da cincia representa uma forma
de expressar os pressupostos analticos da nova sociologia do conhecimento
cientfico (Ibid., p. 89). Introduzido por David Bloor e Barry Barnes na dcada de
1970, esse programa estabelece um compromisso com a simetria nas anlises
sociolgicas de questes do conhecimento. Assim, nenhuma interpretao deve ser
julgada por critrios de verdade ou falsidade cientfica. Como o prprio
conhecimento cientfico representa apenas um sistema de convenes socialmente
estabelecido e reproduzido (KROPF; FERREIRA, 1997, p. 592), o cientista atua
como qualquer outro agente social, e procura garantir a aceitao de suas
concepes por meio de tcnicas persuasivas, que no necessariamente as
aproximam de uma verdade concreta, ligada ao mundo real.
Socilogos do conhecimento cientfico devem ser imparciais frente verdade ou falsidade das crenas que pretendem explicar. Do mesmo modo que um socilogo da religio no almejaria explicar o domnio da f Hindu sobre a Islmica na ndia em termos do hindusmo ser mais bem qualificado para representar Deus, o socilogo da cincia tambm deveria resistir a explicaes fceis para o triunfo de ideias cientficas particulares em termos de aquelas ideias serem mais aptas a representar o mundo natural.
(PINCH, 1990, p. 90)
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Introduo A nova historiografia da cincia
Martins (2000) pontua que esse programa forte da sociologia da cincia
advoga um relativismo radical, e que o direcionamento da ateno dos socilogos
para a cincia, orientada por este tipo de abordagem, talvez represente na verdade
uma vingana histrica, pelas dcadas nas quais as cincias naturais relegaram
sociologia um carter de cincia inferior (MARTINS, R., 2000, p. 48-49). Os
argumentos de defesa da sociologia da cincia vo na linha que assume o
relativismo como uma heurstica metodolgica. Por perceberem todo e qualquer
conhecimento como construo social, poucos socilogos do conhecimento
cientfico demandariam, atualmente, qualquer garantia epistemolgica para suas
prprias descobertas (PINCH, 1990, p. 90).
Na viso de Martins, os estudos sociais contribuem sim com a compreenso
da dinmica cientfica, e seguramente auxiliam na eliminao de alguns mitos
comuns, tirando o pesquisador de seu pedestal (MARTINS, R., 2000, p. 49).
Contudo, a histria da cincia no pode ser limitada sociologia da cincia, pois a
abordagem desta ltima simplesmente probe muitos tipos de investigao histrica
em particular, aqueles que dependem do conhecimento de conceitos e vises
intrnsecas das cincias desenvolvidas em cada perodo.4
Depois de discutir vrias outras deficincias que observa na atual abordagem
sociolgica da cincia, Roberto Martins prope uma viso mais equilibrada do
tema, que pode orientar futuros estudos histricos. Seu principal argumento que a
pluralidade de questes ligadas histria da cincia demanda variadas
metodologias de trabalho investigativo. Questes como por que a produo
cientfica diminuiu durante a Segunda Guerra Mundial? s podero ser respondidas
pela via sociolgica, enquanto o estudo de por que a maioria dos cientistas, em
dado contexto, optou pela hiptese A e no B? demanda a anlise de fatores
internos e externos cincia, que devem ser balanceados nas investigaes
histricas (MARTINS, R., 2000, p. 52). Como Lilian Martins destaca em suas
recomendaes para pesquisas em histria da cincia, entre uma abordagem
estritamente internalista ou externalista, prefervel a juno de ambas, sendo
4 Por exemplo, nesta dissertao, destacaremos como vrios aspectos tericos da qumica divulgada por
Michael Faraday eram condizentes com os trabalhos de Lavoisier. Contudo, ao tratarmos da questo da ausncia do elemento oxignio na composio do cido muritico, apresentaremos argumentos qumicos, ligados sntese dessa substncia, que teriam incentivado Faraday a adotar a nova teoria de Humphry Davy em detrimento daquela de Lavoisier. Esta aproximao, que justifica a validao de ideias por critrios de coerncia interna da cincia, no seria apropriada num estudo com o vis sociolgico do programa forte.
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Introduo A nova historiografia da cincia
possvel, para efeito de estudo, dividir o processo em duas partes e, normalmente,
um estudo no-conceitual deve ser precedido de um estudo conceitual bem feito
(MARTINS, L., 2005, p. 306).
A nova historiografia da cincia, descrita por Alfonso-Goldfarb e
colaboradoras (2004) e que tomamos como referencial terico neste trabalho, pauta-
se por esta linha. Considerando superada a discusso entre internalismo e
externalismo, admite que ambas as anlises tm vital importncia nos estudos
histricos. Uma adequada contextualizao das ideias fundamental, pois, para que
se possa entender efetivamente um perodo de debate, ou mesmo uma contribuio
aceita ou descartada pelo corpo de conhecimento cientfico atual, necessrio que
tal contribuio seja interpretada dentro de seu tempo e espao, sob a luz dos
conhecimentos e valores da poca, para que no se faam anlises anacrnicas
que julgam o passado com juzos de valor do presente.
Levando em conta a complexidade da cincia e de sua construo,
encontramos nos estudos de casos uma forma de interpretar a cincia do passado
de modo mais fidedigno. Mediante anlise aprofundada dos fatores de poca
(sociais, econmicos, religiosos, de formao e cultura das personagens estudadas,
etc.), verificam-se as influncias e inter-relaes mais sutis que podem ter
contribudo para a proposio de tal e qual interpretao da cincia. Assim, torna-se
mais verossmil o entendimento dos processos pelos quais se constri a cincia
dentro da histria e, talvez mais importante que isso, pode-se tentar compreender
como a cincia era pensada dentro do contexto observado. Para tanto, os estudos
de casos histricos so dependentes de fontes primrias, e de fontes secundrias
historiograficamente atualizadas, de modo que se possa reconstituir o contexto no
qual o objeto de interesse histrico se desenvolveu. Nesse sentido, esta dissertao
se apresenta como um estudo de caso centrado na questo da divulgao da
qumica por Michael Faraday, levando em considerao algumas fontes que
contriburam para sua formao como divulgador da cincia.
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Introduo Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia
Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia no sculo XIX
Michael Faraday integra o reduzido grupo de homens e mulheres que se
dedicaram com igual ateno pesquisa e divulgao cientfica ao longo de toda a
sua carreira. O histrico de personagens como este nos fornece ferramentas e
nimo para refletir sobre a prtica e a divulgao da cincia em qualquer poca,
embora caiba notar que o contexto no qual se insere a atuao de Faraday foi
particularmente interessante, principalmente pela proximidade fsica que se
estabelecia entre o pblico e as instituies de pesquisa, com seus filsofos naturais
que mantinham participao ativa na construo dos entendimentos cientficos
daquele tempo.
A linha de atuao de Faraday que nos interessa neste trabalho se refere
divulgao cientfica. Neste aspecto, podemos assumir que parte do seu estilo como
divulgador ficou registrada pela transcrio de palestras que proferiu nos auditrios
da Royal Institution, e os relatos deixados pelo pblico nos do dimenso do seu
alcance.
Em sua maioria, os registros da audincia de Faraday destacam a eloquncia
verbal e a clareza dos seus argumentos, alm de sua cordialidade e destreza na
execuo de experimentos. Mas tambm so comuns os comentrios sobre uma
curiosa elevao, ou inquietude espiritual, que acompanharia o pblico mais atento
aps cada palestra.
Nenhum ouvinte atento jamais saiu de uma palestra de Faraday sem ter ampliados os limites de sua viso espiritual, ou sem sentir que a sua imaginao fora estimulada a algo alm da mera exposio de fatos fsicos.
(Cornlia Crosse apud CANTOR, 1991a, p. 29)
Com alguns ouvintes, a impresso formada era to profunda que os conduzia aos laboriosos rumos da filosofia.
(Juliet Pollock apud FORGAN, 1985, p. 63)
A atuao de Faraday como palestrante j foi analisada sob diversos ngulos,
incluindo: 1) suas habilidades e tcnicas especficas, relacionadas atuao nos
auditrios de conferncia; 2) as qualidades pessoais projetadas pelo palestrante e,
em particular, sua habilidade de relacionar-se com o pblico; e 3) seu apelo a ideias
e valores que transcendiam os tpicos cientficos discutidos nas palestras. Todos
esses vieses de anlise enaltecem a capacidade que Faraday tinha de cativar seu
pblico, aparentemente derivada de seu modo peculiar de lidar no somente com as
informaes e contedos da cincia propriamente ditos, mas tambm com as
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Introduo Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia
pessoas que assistiam a ele, alm das implicaes morais, ou dos julgamentos,
que poderiam ser feitos a partir da aquisio de conhecimento (CANTOR, 1991a).
Uma das caractersticas que chamam a ateno no discurso de Faraday nos
remete ao modo como ele usualmente encerrava suas intervenes: com apelos de
cunho moral ou religioso que transcendiam os temas abordados da cincia,
contribuindo para a citada inquietude relatada pelo pblico. Tomando o exemplo de
um ciclo de palestras sobre as foras da matria, proferido em 1859, Faraday cita
Shakespeare ao finalizar sua argumentao, desejando que o pblico volte sua
ateno para algumas leis que regem o Universo,
[leis] cujo conhecimento confere interesse aos fenmenos mais banais da natureza, e leva o observador estudioso a encontrar lnguas nas rvores, livros nos riachos, sermes nas pedras e o bem por toda parte.
(FARADAY, 2003, p. 222)5
Outro recurso bastante popular no perodo consistia em motivar as palestras
pela proposta de estudar um objeto cotidiano, mostrando como a cincia revelava
mincias curiosas do seu funcionamento. Assim como Thomas Huxley era capaz de
introduzir seus ouvintes nas reas da geologia e da paleontologia a partir de um
pedao de giz, Faraday o fazia para a qumica a partir de uma vela (GREGORY;
MILLER, 1998, p. 133-134). O discurso do palestrante confere contornos quase
mticos ao cotidiano, e uma msera chama se torna algo de
tal beleza e brilho que nenhuma outra coisa pode produzir [...] H a beleza resplandecente do ouro e da prata, e o brilho ainda maior de joias como o rubi e o diamante. Mas nenhum desses rivaliza com o brilho e a beleza da chama. Qual diamante pode luzir como a chama? Ele deve seu brilho noturno prpria chama que o ilumina. A chama brilha na escurido, mas a luz que o diamante tem no nada at que a chama o ilumine [...] A vela sozinha ilumina por si mesma e para si mesma, e para aqueles que combinaram os seus materiais.
(FARADAY, 2003, p. 37)
Segundo Forgan (1985), toda essa personalidade exposta por Faraday em
seu discurso fazia com que, muitas vezes, o tema da palestra se tornasse algo de
menor importncia. Os olhos do pblico facilmente se apegavam s ilustraes e
experimentos, enquanto seus ouvidos eram cativados pela eloquncia do discurso.
Em meio a tanta admirao, seria ingnuo acreditar que aquelas pessoas saam do
auditrio dominando todos os conceitos cientficos abordados, ou mesmo que
5 A pea de Shakespeare citada As you like it, escrita em 1599 e publicada pela primeira vez em 1623
(SHAKESPEARE, 2003).
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Introduo Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia
entendiam sua complexidade alm dos exemplos cotidianos. Mas de fato isto no
parecia representar um problema, e por vezes passava despercebido do prprio
pblico, que deixava o auditrio satisfeito com a apresentao.
Nada pode dar ideia do encanto que ele emprestava a estas palestras, nas quais sabia combinar linguagem vigorosa e frequentemente expressiva com um bom senso e percia em seus experimentos, que se somavam clareza e distino de sua exposio. Ele provocava real fascnio sobre a audincia; e quando, depois de t-los iniciado nos mistrios da cincia, ele terminava suas palestras como lhe era habitual, ascendendo a regies muito acima da matria, tempo e espao, a emoo que ele experimentava no falhava em se transferir para aqueles que o ouviam, e o entusiasmo de todos no encontrava mais qualquer limite.
(DE LA RIVE, 1867, p. 147)
Com mais de cinco dcadas a servio exclusivo da Royal Institution, as
imagens de Faraday e da instituio se tornariam indissociveis. Faraday ajudou a
consolidar os formatos de vrios programas de palestras da casa, e at hoje se
mantm como o palestrante que mais ministrou cursos na histria da instituio
(JAMES, 2002, p. 136-140).
Pelas ltimas oito temporadas, o Professor Faraday tem se incumbido da tarefa com vigor e modstia tais, que nenhum elogio pode ser tomado como exagero. No pode haver prazer maior para qualquer afeioado pelas atividades cientficas do que assistir a um curso destas palestras.
(Illustrated London News, 1861 apud JAMES, 2008b, p. xx)
Sries de estudos recentes destacam que o sucesso de Faraday em cativar a
audincia certamente no se devia a nenhum tipo de dom ou genialidade inata, mas
sim a anos de trabalho duro e dedicao no aperfeioamento de tcnicas e prticas.
Forgan (1985) destaca que Faraday cuidadosamente analisou os ingredientes que
contribuiriam ao xito de uma palestra, e Cantor (1991a) e James (2002) detalham
essa anlise, relatando que desde sua contratao como assistente de laboratrio
na Royal Institution, Faraday tomou contato com grandes palestrantes do perodo, e
desenvolveu o hbito de analisar as palestras que assistia, isolando diversos fatores
favorveis e contrrios ao sucesso de cada evento (CANTOR, 1991a, p. 29; JAMES,
2002, p. 122-123). Futuramente, estes apontamentos auxiliariam Faraday na
composio de suas prprias palestras, e o rigor dos seus planejamentos ficaria
registrado em seus cadernos de notas para conferncias (ROYAL INSTITUTION,
2004).
Talvez parea curioso e imprprio que algum inteiramente incapacitado para a tarefa e que nem ao menos tem a pretenso de alcanar os requisitos para tanto deva ocupar-se
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Introduo Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia
de criticar e elogiar outros [palestrantes] [...] Se eu sou incapacitado para tal, evidente que tenho ainda que aprender[,] e como aprender melhor que pela observao de outros[?]
(Michael Faraday, em carta para B. Abbott datada de junho de 1813.
JAMES, 1991, letter 23, p. 55)
sob perspectiva historiogrfica semelhante que se orienta este estudo.
Mesmo com relao s etapas iniciais da formao de Faraday, antes do incio do
trabalho na Royal Institution, recusamos o romantismo que comumente se verifica
nas biografias apresentadas nos livros didticos, e at admitimos que a formao
dos grandes nomes da cincia dependa de um pouco de inspirao, mas que nem
de longe se compara transpirao necessria para atingir tal prestgio. Desse
modo, a grande nfase dada ao termo autodidata nos recortes biogrficos
dedicados a Michael Faraday nos faz pressupor a existncia de influncias textuais,
que o teriam ajudado no delineamento e na consolidao de seus mtodos, tanto
como cientista experimental, quanto como pensador e divulgador da cincia
(BALDINATO; PORTO, 2009).
Sua correspondncia, hoje compilada em volumes e publicada,6 traz vrias
referncias a obras literrias que estavam em destaque no final do sculo XVIII e
incio do XIX. Particular interesse para o presente trabalho repousa sobre as obras
de Jane Marcet e de Isaac Watts, sendo a primeira uma introduo aos conceitos da
cincia qumica para pblico no-especializado (de moas, em particular), e a
segunda uma espcie de manual prtico para o autoaprimoramento, focado no
desenvolvimento intelectual do leitor. O sucesso de ambos os textos pode ser
aferido pelo nmero de citaes e publicaes que receberam ao longo dos ltimos
sculos.7
Ambos os textos parecem ter exercido forte influncia sobre a formao inicial
de Faraday, refinando seus hbitos e direcionando seus interesses ligados cincia
6 Existem sete volumes publicados com os dirios de pesquisa de Faraday (MARTIN, 1932-36), e cinco com a
correspondncia que trocou com amigos e outros pesquisadores contemporneos (JAMES, 1991-2008), alm de outros originais fragmentados nas obras de diversos bigrafos (BENCE-JONES, 2008; THOMPSON, 2005) e nos acervos de instituies inglesas com as quais Faraday manteve vnculo de pesquisa.
7 Como apresentaremos ao longo deste trabalho, existem vrios estudos sobre as obras citadas de Marcet e Watts, e interessante notar como as duas ainda recebem republicaes nos dias de hoje. Conversations on Chemistry teve dezesseis edies revisadas pela prpria autora entre 1805 e 1856, e recebeu recentemente uma inusitada adaptao para a sala de aula (ROSSOTTI, 2006). J The Improvement of the Mind foi reeditado por mais de trinta vezes desde a sua edio original de 1741. A ltima reimpresso que encontramos data de 2007, e se constitui em verso fac-similar da edio de 1837.
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Introduo Michael Faraday e as conferncias pblicas de cincia
(WILLIAMS, 1960; JENKINS, 2008). Traos dessas influncias so percebidos em
vrios aspectos de sua atuao como homem da cincia, do valor que atribua
preciso e eficincia no trabalho de pesquisa at seu interesse pela divulgao
caractersticas centrais dos trabalhos de Watts e Marcet, respectivamente.
Como Bence-Jones destacou ao tratar das primeiras etapas da formao de
Faraday,
The improvement of the mind o ensinou a pensar, e Conversations on Chemistry e os verbetes da Enciclopdia Britnica direcionaram sua ateno para a cincia.
(apud WILLIAMS, 1960, p. 515)
Faraday, suas fontes, e a divulgao da cincia
Alm de ampliar o conhecimento histrico de um caso que remonta a uma
sociedade especfica, estudar as preocupaes e o estilo de clebres divulgadores
da cincia pode suscitar reflexes valiosas para iniciativas de divulgao em
qualquer tempo.
Mesmo uma leitura superficial das palestras de Faraday capaz de revelar
uma preocupao muito particular do autor: a de que seus ouvintes tivessem contato
com a cincia pelas suas vias prticas, tendo por certa a necessidade de realizar
bons experimentos para que pudessem vislumbrar as verdades reveladas pela
Natureza. Tal preocupao pode ser reconhecida como uma caracterstica que
sempre pautou o modo de trabalho de Faraday, sendo particularmente marcante na
forma de suas principais contribuies cincia: com forte valorizao da parte
experimental das pesquisas. Assim, o presente trabalho se coloca como um estudo
de caso em histria da cincia, com o propsito de identificar e analisar algumas das
estratgias utilizadas por Michael Faraday para tornar efetiva a divulgao do que
julgava ser til ao pblico, em termos da cincia de sua poca.
Nosso foco recair sobre a transcrio do curso intitulado A histria qumica
de uma vela, composto por seis palestras ministradas por Faraday durante a
celebrao dos feriados natalinos de 1860, na Royal Institution. Dada a extenso
das contribuies de Faraday cincia, optamos por enfatizar seu trabalho ligado
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Introduo Faraday, suas fontes e a divulgao da cincia
qumica,8 lembrando que embora seu nome seja mais conhecido pelos estudos no
campo do eletromagnetismo, sua formao em cincias foi essencialmente a de um
qumico, e nesta rea da cincia, Michael Faraday realizou notvel trabalho tanto na
pesquisa9 quanto na divulgao.
Considerando o contexto da divulgao cientfica no sculo XIX, uma das
hipteses a orientar este trabalho de que Faraday foi capaz de identificar conceitos
e organiz-los em torno de um tema central de estudo, alm de se utilizar de
tcnicas para chamar a ateno da audincia.
A popularidade alcanada por suas palestras constitui um forte indcio de
pesquisa, e os recentes estudos dedicados divulgao cientfica em diferentes
momentos histricos (LEWENSTEIN, 1994; MASSARANI, 1998; MENDES, 2006),
ao perodo ureo de popularidade da qumica no incio do sculo XIX (KNIGHT,
2007), assim como s imagens associadas qumica atravs dos tempos
(SCHUMMER et al, 2007), deixam claro que ainda h muito para ser analisado no
que tange a relao entre cincia e pblico ao longo da histria.
Neste trabalho, propomos uma aproximao focada na contextualizao do
estudo de caso. Nossa anlise da atuao de Faraday como divulgador da cincia
se constri a partir de critrios contemporneos, incluindo o que se entendia por um
bom palestrante e qual era a viso da qumica que se comunicava em discursos de
divulgao do perodo. Um panorama dessas questes emerge do estudo das obras
que, segundo o prprio Faraday, influenciaram sua formao inicial, direcionando
seus interesses cientficos e aperfeioando seus mtodos de interao com o
conhecimento (WILLIAMS, 1960): especificamente, nos referimos aos textos
Conversations on Chemistry, de Jane Marcet, e The improvement of the mind, de
8 Para um estudo das contribuies de Faraday no campo da fsica, com nfase sobre o eletromagnetismo, vide
Dias & Martins (2004). 9 Apenas listando algumas das contribuies de Faraday para a qumica, podemos citar: o aprimoramento das
lmpadas de segurana para mineiros de Davy; o estudo e a preparao de ligas de ao; a determinao da pureza e da composio da plvora, ferrugem, gua, argila, cal virgem e outros compostos; a descoberta do benzeno, isobuteno, tetracloroeteno, hexaclorobenzeno, ismeros de alcenos e dos cidos naftalenosulfnicos e , vulcanizao da borracha etc.; o aperfeioamento de vidros para tica; a liquefao de gases; o reconhecimento da existncia de temperaturas crticas, relacionadas possibilidade de liquefao por compresso; o estabelecimento das leis da eletrlise; a equivalncia entre as eletricidades esttica, voltaica e animal; a utilizao eletroltica de sais fundidos; a catlise heterognea; a inibio de reaes de superfcie; os estudos sobre adsoro seletiva e propriedades hidroflicas de slidos; o estudo de descargas eltricas em gases (plasma) e de propriedades magnticas da matria; o efeito Faraday (efeito magntico-ptico); os conceitos de diamagnetismo, paramagnetismo e anisotropia; o trabalho com metais coloidais, alm do estudo de sis, hidrogis e do espalhamento da luz (THOMAS, 1991, p. 23).
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Introduo Faraday, suas fontes e a divulgao da cincia
Isaac Watts. Depois de apresentar os contedos destas duas obras, destacando
seus papis na formao inicial de Faraday, tomaremos o caso concreto de A
histria qumica de uma vela para verificar como algumas ideias centrais de Marcet e
Watts foram incorporadas e transformadas na elaborao do ciclo de palestras.
Dessa forma, no primeiro captulo desta dissertao apresentamos uma breve
biografia de Faraday, com nfase sobre alguns aspectos da sua formao e do seu
posterior trabalho na Royal Institution, aproximando-o do contexto das palestras de
divulgao de cincias. No segundo captulo discutimos a questo do seu
autodidatismo, apresentando um estudo das fontes que auxiliaram sua formao
inicial. Chamamos a ateno para algumas anlises disponveis sobre os trabalhos
de Jane Marcet e Isaac Watts, e detalhamos o contedo de suas obras, delineando
alguns paralelos com a produo de Faraday. Por fim, no terceiro captulo,
apresentamos A histria qumica de uma vela como exemplo da atuao de Faraday
no papel de divulgador da cincia. As estratgias de comunicao utilizadas, e a
viso da qumica que transparece no discurso de Faraday, sero consideradas a
partir dos critrios levantados no segundo captulo, com as observaes de Watts,
Marcet e do prprio Faraday, sobre como interagir com o conhecimento e entender a
relao entre os estudos qumicos e a Natureza.
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Captulo I A formao de Michael Faraday
Captulo I Da livraria do Sr. Riebau Royal Institution
A formao de Michael Faraday
No incio do ano de 1791, em meio aos desdobramentos da Revoluo
Francesa e com a crise do comrcio agravando a situao econmica na Inglaterra,
James Faraday viu-se obrigado a deixar a vila de Outhgill, na regio noroeste da
Gr-Bretanha, e seguiu com sua famlia para Londres. poca, James Faraday
tinha j dois filhos, Elisabeth e Robert, e trazia sua esposa, Margaret Hastwell,
grvida de poucos meses.10
Antes de emigrar, James Faraday j praticava sua f crist como membro da
seita dos sandemanianos. To logo chegou a Londres ele se juntou igreja local, e
foi com a ajuda dessa comunidade religiosa que conseguiu se estabelecer na
capital, ocupando-se do ofcio de ferreiro. Aos 22 de setembro daquele mesmo ano,
nascia seu terceiro filho, Michael Faraday.
Michael nasceu enquanto sua famlia morava na Newington Butts, em
Southwark, margem sul do Tmisa, mas logo mudaria com seus pais e irmos para
a Gilbert Street, em Westminster, na outra margem do rio. A Figura 1 mostra o
registro mais antigo relacionado a Michael Faraday: trata-se de uma bblia da famlia,
na qual foram registradas as datas de nascimento de todos os seus membros.
Muito pouco conhecido sobre a infncia de Michael. Sabe-se que em 1796,
aos cinco anos, ele se mudou com a famlia para a viela Jacobs Well Mews, dentro
da mesma vizinhana em Westminster, e l nasceu sua irm mais nova, Margaret,
em 1802. Conta-se que numa ocasio, na escola, Michael estava prestes a ser
castigado pela professora por errar a pronncia do nome de seu irmo mais velho,
Robert Michael chamava o irmo de Wobert, ou algo assim. A professora teria
incumbido o prprio Robert Faraday de conseguir uma vareta, com a qual Michael
seria castigado. Mas, em vez de atender solicitao da professora, Robert correu
at a casa da famlia, retornando com sua me, que prontamente reagiu a tal
mtodo educativo, tirando os dois filhos da escola (THOMPSON, 2005, p. 2-3).
10 Os dados biogrficos compilados nesta seo so baseados em Williams (1960), James (1991) e Thompson
(2005).
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Captulo I A formao de Michael Faraday
Em nota autobiogrfica posterior, Michael Faraday descreveria sua educao
inicial em poucas palavras:
...minha educao foi do tipo mais comum, consistindo de pouco mais que os rudimentos da leitura, escrita e aritmtica em uma escola diurna comum. Minhas horas fora da escola eram passadas em casa e nas ruas.
(BENCE-JONES apud JAMES, 1991, p. xxvii)
Figura 1 Registro da data de nascimento dos membros da famlia Faraday. No topo da pgina, o registro do casamento dos pais de Michael e, ao centro, as datas de morte e sepultamento de seu pai.
(apud JAMES, 1991, p. xxviii)
Michael comeou a trabalhar ainda durante a infncia. Aos quatorze anos ele
foi admitido como aprendiz de encadernador, depois de um perodo prestando
pequenos servios de entregas e recados para a livraria do Sr. George Riebau. Na
poca era comum que os aprendizes morassem com seus mestres. Assim, o jovem
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Captulo I A formao de Michael Faraday
Michael Faraday passou a viver no nmero 2 da Blandford Street, endereo da
livraria, onde permaneceu por sete anos.
Antes de se tornar aprendiz, enquanto apenas entregava e recolhia jornais
pelas ruas, Michael tinha o compromisso de manter-se atento aos seus horrios,
especialmente aos domingos, quando precisava terminar o servio a tempo de ir
com os pais igreja prestar seus cultos. Da mesma forma que seus pais e avs,
Michael Faraday assumiu os valores da doutrina sandemaniana, e manteve-se
ligado sua f durante toda a vida.
A seita sandemaniana teve sua origem numa corrente protestante, que rompeu
com a igreja presbiteriana da Esccia em meados do sculo XVIII. Inicialmente
liderados por John Glas e seu genro, Robert Sandeman, os membros da seita se
distinguiam por seu afastamento de qualquer outro grupo religioso, e tambm por
sustentarem suas crenas e prticas sobre interpretaes literais da Bblia
(CANTOR, 1989, p. 433). Os dogmas da doutrina sandemaniana foram mantidos por
seus seguidores com notvel seriedade e honestidade de causa. Acreditando que o
cristianismo jamais poderia ser estabelecido como a religio de uma nao sem ter
seus princpios subvertidos, os sandemanianos mantiveram-se em grupos
pequenos, porm fiis e extremamente devotados sua f. Seus cultos eram
simples e a religio era entendida como uma questo do indivduo para com sua
alma, sendo a Bblia o nico e exclusivo guia para as almas. Os sandemanianos
desprezavam todos os padres e ministros que recebessem qualquer pagamento
para exercerem tal funo, mas admitiam uma instituio de ancies no
remunerados, da qual Michael Faraday faria parte anos mais tarde. No h dvidas
de que a crena religiosa de Faraday tenha influenciado suas atividades, tanto como
homem da cincia quanto como cidado comum.11
Voltando ao trabalho de Michael como aprendiz de encadernador, em meio s
prateleiras que organizava e livros que tinha para encadernar, o jovem Faraday tinha
sua curiosidade instigada por todo tipo de informao. Inicialmente perdido entre
tantos assuntos que lhe chamavam a ateno, aos poucos aprenderia a selecionar
alguns tpicos nos quais se aprofundaria, formando opinies e inclusive deixando
registros delas, como discutiremos nos prximos captulos deste trabalho.
11 A religiosidade de Faraday e as relaes entre suas crenas e prticas so analisadas por Cantor em vrios
trabalhos (1989, 1991b, 1992).
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Captulo I A formao de Michael Faraday
Figura 2 Livraria do Sr. Riebau, na qual Faraday trabalhou como aprendiz de encadernador. (THOMPSON, 2005, p. 3)
Existem vrios indcios de que o avano nos hbitos de leitura de Michael no
foi fruto do acaso. Algumas leituras em particular lhe teriam servido de guia,
orientando-o para a melhora do seu modo de interagir com o conhecimento
(WILLIAMS, 1960).
Um dos textos mais lidos e conhecidos no perodo era The improvement of
the mind, escrito pelo clrigo Isaac Watts e publicado pela primeira vez em 1741. A
obra foi inicialmente lanada como suplemento para um tratado anterior do autor,
sobre a lgica, tambm muito lido ao longo do sculo XVIII.
The improvement of the mind pode ser entendido como um guia de estudos,
ou mais precisamente, um manual que instrumentaliza o autoaprendizado. Vrias
cpias desse manual passaram pelas mos de Michael para serem encadernadas e,
aparentemente, os interesses do jovem aprendiz vinham ao encontro dos
ensinamentos do livro, ligados ao aperfeioamento da percepo mental, por meio
de exerccios ordenados e da prtica sistemtica da observao. Mais que isso, o
livro propunha planos de estudos e orientava o leitor quanto aos processos
desejveis ao aprendizado autodidata (DOS REIS, 2006). Como detalharemos no
prximo captulo, Watts teria suprido um aspecto importante da formao inicial de
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Captulo I A formao de Michael Faraday
Michael: o de ensin-lo a focar seus interesses sobre alguns temas, treinando e
organizando seu raciocnio de modo a alcanar o entendimento (WILLIAMS, 1960).
Outros textos tambm teriam exercido forte influncia sobre o direcionamento
dos interesses de Michael, destacando-se as entradas de cincia da Enciclopdia
Britnica (com particular nfase para o artigo de James Tytler sobre eletricidade) e o
livro Conversations on Chemistry, de Jane Marcet. Esse ltimo constitua-se numa
introduo cincia qumica, editada sob a forma de dilogos entre uma professora
e suas duas alunas, que diretamente representam o pblico alvo da obra. Michael
teria encadernado vrias cpias dessas obras entre 1809 e 1812, perodo no qual
mais sensvel sua aproximao s cincias. curioso notar como esses dois temas,
a eletricidade e a qumica, constituiriam focos de sua posterior atuao como
pesquisador. Faraday contribuiria para a sobreposio dessas reas da cincia, com
os estudos eletroqumicos.
Ainda na livraria do Sr. Riebau, Michael realizava alguns experimentos
qumicos simples e tambm improvisava aparelhos eltricos, tendo construdo uma
mquina de testes de eletricidade esttica. Conta-se que ele teria namorado duas
garrafas num armazm da pequena Chesterfield Street por dias, at que conseguiu
juntar seis pence para comprar uma delas, e um penny para a outra.12 A primeira foi
transformada por ele num cilindro eltrico, e a segunda numa garrafa de Leyden.
Uma bala de revlver e um pedao de arame teriam servido como condutores.13
A partir de 1810, o Sr. Riebau consentiu que Michael se ausentasse em alguns
momentos do trabalho para frequentar palestras sobre cincia. poca, Michael
havia lido um panfleto que anunciava palestras sobre filosofia natural, proferidas por
John Tatum em sua casa, no nmero 53 da Dorset Street, a algumas quadras da
livraria. Nas tardes de segunda-feira, Michael carregava seu caderno de anotaes,
encadernado por ele prprio, e assistia s suas primeiras palestras sobre cincia.14
12 Atualmente, um penny o menor valor monetrio utilizado na Inglaterra e em vrios outros pases de lngua
inglesa. Equivale a um centsimo de libra esterlina (ou de dlar, nos EUA e Canad). Pence o plural de penny. Na poca de Faraday, antes da decimalizao do sistema monetrio ingls, uma libra era dividida em vinte shillings, e cada shilling em doze pence, totalizando duzentos e quarenta pence por libra. Desde a decimalizao, ocorrida em 1971, os shillings no so mais utilizados.
13 Baseado no texto Faraday, Memoir of his Life (apud WILLIAMS, 1960, p. 518). 14
Faraday tambm frequentou palestras sobre eletricidade, proferidas por George John Singer, na Princes Street, algumas quadras a leste, seguindo pela Oxford Street. No presente trabalho, damos certa nfase aos endereos frequentados por Michael Faraday para ressaltar a proximidade entre eles. Consideramos interessante notar que as etapas iniciais da sua formao se restringiam fisicamente a um pequeno nmero
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Captulo I A formao de Michael Faraday
Esses ciclos de palestras eram abertos ao pblico mediante pagamento de
pequenas taxas um shilling, no caso das palestras do Sr. Tatum. Robert, o irmo
mais velho de Michael, conseguia o dinheiro para custe-las.
Dois anos antes, em 1808, o arteso de prata John Tatum havia inaugurado
em sua casa a City Philosophical Society, uma espcie de grupo de estudos e
discusses dedicado ao autoaprimoramento.15 O local tambm fora pensado como
um facilitador para que outros artesos e aprendizes, como o jovem Faraday,
tivessem acesso ao conhecimento cientfico. L, Michael conheceu outros jovens
com interesses semelhantes aos seus, e pde trabalhar novos mtodos de
aprendizagem, estabelecendo fortes amizades com Benjamin Abbott, T. Huxtable,
Edward Magrath e Richard Phillips, entre outros com os quais manteria
correspondncia por muitos anos.
Com a ajuda de Benjamin Abbott e John Tatum, Faraday seguia alguns dos
ensinamentos de Watts quanto organizao de dados e informaes, estudando
artigos e arquivando resenhas junto de recortes, que colecionava em portflios sobre
os assuntos de seu interesse. Os trs organizaram um plano conjunto para o
aprimoramento mental, que foi redigido e apresentado sob a forma de discurso.
Alm das palestras que eram abertas ao pblico, a City Philosophical Society
tambm mantinha reunies semanais de debate, alternando os encontros entre uma
palestra proferida por algum membro do grupo numa semana, e a discusso do
tema apresentado na semana seguinte, nas chamadas private evenings. As
primeiras palestras de Michael Faraday seriam proferidas neste grupo, anos mais
tarde, depois de j ter iniciado o trabalho com Humphry Davy e Thomas Brande na
Royal Institution.
Sociedades dessa natureza eram comuns, tanto em Londres como em outras
cidades britnicas, e o interesse em divulgar a cincia por meio de palestras se
justificava por questes materiais e morais do perodo. Os ganhos materiais viriam
da contribuio dada por essas sociedades disseminao de avanos ligados
crescente industrializao inglesa, enquanto os benefcios morais decorreriam de um
de quarteires, na margem norte do rio Tmisa, em Londres. O Anexo A deste trabalho traz um mapa da regio datado do incio do sculo XIX, destacando os endereos frequentados por Faraday.
15 Self-improvement, ou autoaprimoramento, em traduo nossa, um termo muito utilizado por Isaac Watts (1801) quando se refere aos objetivos do aprendizado autodidata.
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Captulo I A formao de Michael Faraday
iderio comum da poca: de que homens iniciados em assuntos da filosofia teriam
entendimentos morais aprimorados (JAMES, 1991).
De certo modo, assim como Williams (1960) observa com relao s obras de
Watts, Tytler e Marcet, tambm poderamos atribuir City Philosophical Society o
preenchimento de uma lacuna na formao inicial de Faraday, que seria a
possibilidade de partilhar seus conhecimentos e de aprender em grupo, mediante
contato direto com um professor representado por John Tatum e com outros
alunos, como foram seus colegas na sociedade.
Em 1811 Faraday completava vinte anos, e tanto seu tempo como sua ateno
eram muito mais exigidos pelas atividades de aprendiz na loja do Sr. Riebau. Assim,
sua frequncia na City Philosophical Society diminuiria bastante. atravs das
cartas que trocou com Benjamin Abbott e T. Huxtable que conseguimos montar uma
imagem mais fiel do que se passava com o jovem Faraday no perodo.
Faraday e Abbott diferiam em idade e formao (Abbott era alguns anos mais
novo e, diferente do amigo, teve acesso a boa educao), mas a amizade entre os
dois era algo valioso. Ambos partilhavam de um interesse vvido pela qumica, e foi
acerca desse tema que trocaram vasta correspondncia, levantando questes e
comentando as ideias um do outro.
Em sua primeira carta para Abbott, Faraday descreve a construo de uma
pilha voltaica e relata sua surpresa ao perceber a capacidade daquele aparelho para
decompor o sulfato de magnsio. Sua curiosidade fora despertada ao observar que
alguns dos discos de zinco haviam sido revestidos por cobre metlico, enquanto os
discos de cobre apresentavam uma capa de xido de zinco. Faraday observa que os
metais devem ter passado um pelo outro e que as circunstncias merecem ser
notadas. Em carta imediatamente posterior, Faraday lamenta no poder continuar a
investigao por falta de tempo, e ento relata o efeito observado ao amigo,
solicitando comentrios (WILLIAMS, 1960, p. 526).
O evento que mudaria o curso da vida de Faraday viria, segundo vrios
bigrafos, no incio de 1812, alguns meses antes do trmino de seu perodo como
aprendiz de encadernador. O Sr. Willian Dance, cliente da loja, membro da Royal
Institution of Great Britain e tambm um dos fundadores da Royal Philarmonic
Society, seria informado das inclinaes de Faraday para os assuntos da cincia, e o
convidaria para acompanh-lo a quatro das ltimas palestras proferidas por Sir
Humphry Davy na Royal Institution. O Sr. Dance teria tomado conhecimento dos
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Captulo I A formao de Michael Faraday
interesses de Faraday atravs de uma encadernao, enviada pelo Sr. Riebau,
contendo anotaes tomadas pelo seu aprendiz sobre os temas abordados por John
Tatum na City Philosophical Society.
Nas palestras, Davy defendia sua viso sobre a composio do cido
muritico. A grande novidade trazida por sua teoria era admitir a ausncia de
oxignio na frmula do cido,16 que se formaria experimentalmente por meio da
combinao do gs hidrognio com outra substncia de carter elementar, o gs
cloro. A empolgao de Faraday com a discusso introduzida nas palestras ficaria
registrada em cartas enviadas a Benjamin Abbott.
No se surpreenda, meu caro Abbott, pelo entusiasmo com o qual acolhi esta nova teoria Eu vi o prprio Davy a defendendo[.] Eu o vi apresentar experimentos conclusivos quanto a isto e o ouvi acomodar aqueles experimentos teoria[,] os explicando e impondo de modo incontestvel[.] Convico, senhor, me chocou e fui compelido a confiar nele[,] e com tal confiana veio admirao.
(Michael Faraday, em carta para Benjamin Abbott datada de agosto de 1812.
JAMES, 1991, letter 8, p. 19)
Essa questo particular da qumica tornou-se um assunto de grande interesse
para Faraday, e a aparente rejeio de seu amigo Abbott quanto nova teoria de
Davy s o impulsionou a se empenhar cada vem mais em sua defesa. Assim, vrias
cartas foram trocadas entre os amigos, cada um apresentando seus argumentos,
dvidas e objees. Revisando anotaes dos experimentos de Humphry Davy,
Faraday chegou a questionar a autoridade de grandes filsofos naturais, como
Lavoisier e Nicholson.
Verifique o artigo sobre o cido Oxi-Muritico em seu Lavoisier, em seu Nicholson, Fourcroy ou em qualquer outro de seus livros de Qumica[.] Eles diro que o Oxignio [no cido Oxi-Muritico] mantido por uma afinidade to fraca que os combustveis queimam muito facilmente em contato com a substncia[,] obtendo-se compostos do Oxignio com os inflamveis, alm do cido Muritico Voc considerar atrevimento meu, caro A[bbott], se eu negar todas essas autoridades, mas Davy o fez e eu o farei tambm, sob a fora de seus argumentos[.] Um copiou os erros dos outros e todos esto errados.
(Michael Faraday, em carta para Benjamin Abbott datada de setembro de 1812.
JAMES, 1991, letter 9, p. 23)
Mas, mesmo com a euforia trazida pelo contato com o desenvolvimento vivo da
qumica, presenciado atravs das palestras de Davy, para Faraday as coisas no
16 Etimologicamente, a palavra oxignio quer dizer gerador de cidos. Lavoisier ac