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A QUESTÃO DO SUJEITO NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA1
Prof. Dr. Rogério Miranda de Almeida2
I.
No artigo intitulado Uma dificuldade da psicanálise, escrito em 1916 e publicado em 1917 pela
revista Nyugat, de Budapest, Freud analisa as três grandes humilhações que sofrera o narcisismo da
humanidade a partir do nascimento e desenvolvimento da ciência moderna. No final do artigo, o
inventor da psicanálise faz este reconhecimento surpreendente: “Muitos filósofos podem ser citados
como precursores e, sobretudo, o grande pensador Schopenhauer, cuja ‘vontade’ inconsciente pode
ser comparada às pulsões psíquicas de que fala a psicanálise”.3 Antes, porém, de fazer esta
declaração – inabitual em Freud em virtude de suas resistências vis-à-vis da filosofia – ele examina
as três grandes humilhações infligidas ao orgulho humano nos últimos cinco séculos. Trata-se,
resumidamente, de uma humilhação cosmológica, de uma humilhação biológica e, finalmente, de
uma humilhação psicológica. Vejamos, pois, em que consistem estas três humilhações.
01. A primeira humilhação ocorreu na primeira metade do século XVI, com a teoria
heliocêntrica do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473–1543). Como se sabe, Copérnico, no
seu De revolutionibus orbium coelestium (1543), introduziu uma importante reforma na antiga
astronomia geocêntrica de Cláudio Ptolomeu, astrônomo, matemático e geógrafo grego, nascido no
Egito por volta de 100 d. C. Com a sua nova teoria do heliocentrismo, o astrônomo polonês teria não
somente destronado a terra do centro do universo, mas também mudado a visão do homem sobre si
mesmo, sobre o mundo e sobre a existência em geral. Com efeito, a crença na posição central da
Terra, inferida ingenuamente a partir da percepção que se tem da abóbada celeste, se apresentava
como capaz de garantir o papel de dominação que o homem acreditava exercer sobre todo o
universo. No entanto, diz Freud, a destruição de semelhante ilusão acarretou um golpe ou um agravo
no interior mesmo do narcisismo, ou do amor próprio da humanidade. É o que ele designa como
sendo uma humilhação de ordem cosmológica.4
1 Este texto é o resumo de uma conferência proferida na FASBAM (06/02/2013) e baseada no último capítulo do
meu livro: A fragmentação da cultura e o fim do sujeito, São Paulo, Loyola, 2012. 2 Doutor em filosofia pela Universidade de Metz (França) e em teologia pela Universidade de Estrasburgo (França).
Professor de filosofia na FASBAM, de teologia no Studium Theologicum e de filosofia no programa de pós-graduação
da PUCPR. 3 Cf. S. FREUD, Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse, in Gesammelte Werke (doravante abreviado assim: GW),
Frankfurt am Main, Fisher, 1999, XII, p. 12. 4 Cf. ibid., p. 7.
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02. A segunda humilhação, sobrevinda em meados do século XIX, foi devida às teorias
enunciadas e desenvolvidas por Charles Darwin e seus colaboradores sobre a ascendência humana.
Para Freud, a obra, A origem das espécies por via da seleção natural (1859), veio efetivamente
infligir um violento golpe na pretensão de o homem considerar-se oriundo de uma estirpe nobre e
divina, porque saída diretamente, segundo as Escrituras, das mãos do Criador. Agora, no entanto, o
homem se sabe descender, como as demais criaturas, de um ser igualmente animal. Certo, depois
que se arrefeceram os debates em torno do “dogma do darwinismo”, as descobertas de Darwin
também passaram a ser analisadas, por assim dizer, com mais serenidade e objetividade. Não mais
se pensou, por exemplo – pelo menos como se costumava fazê-lo –, que a teoria darwiniana
resolvera todos os problemas da biologia, nem que ela tenha elucidado todos os enigmas do
universo. Contudo, a teoria da seleção natural defendida por Darwin teria infligido, segundo Freud,
uma segunda humilhação ao narcisismo ou ao amor próprio da humanidade. Foi esta uma
humilhação de caráter biológico.5
03. A terceira humilhação – que Freud considera como sendo a mais carregada de
consequências e transformações – foi causada pelos aportes da própria ciência analítica. Para
demonstrá-lo, ele evoca primeiramente a formação da consciência, aquela instância que a psicologia
representa como sendo o núcleo do ego e pela qual o homem desenvolveu a capacidade de observar
e controlar, até certo limite, seus impulsos e suas ações. Enquanto estes impulsos e estas ações se
harmonizarem com as exigências da consciência, eles receberão, em contrapartida, seu beneplácito e
sua aprovação. Do contrário, serão implacavelmente inibidos ou afastados como indesejáveis ou
ameaçadores. A percepção interna é, consequentemente, encarregada de transmitir ao ego tudo de
importante que se desenrola nas operações da mente, de forma que a vontade, dirigida por essas
informações, possa realizar o que o eu ordena, ou comanda. Inversamente, a consciência procurará
modificar as afecções que tentem impor-se independentemente deste mesmo ego. Todavia,
conquanto o eu se sinta “soberano na própria psique”, determinadas neuroses levam-no a embater-se
contra dificuldades e resistências cuja proveniência ele ignora e cuja potência não se deixa dobrar
por nenhum raciocínio. Trata-se efetivamente de forças ou de pulsões que se manifestam – apesar do
sujeito – através dos atos falhos e dos demais sintomas que remetem à ordem do inconsciente. Neste
sentido, o sujeito não é mais “senhor na própria casa”, porquanto ele se acha à mercê de forças que
nele falam, agem e comandam, apesar do recalcamento que ele não cessa de operar.6
5 Cf. ibid., pp. 7-8. 6 Cf. ibid., pp. 8-12.
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Tendo, pois, mostrado em plena luz o jogo das pulsões que subjazem às formações psíquicas, a
experiência analítica veio revelar a Freud que o ego é, afinal de contas, um pobre ego. Com efeito,
ao se achar divido entre aquelas duas instâncias que, mais tarde, Freud chamará de id e superego, o
eu tenta simultaneamente fazer as pazes com ambas e, desta maneira, satisfazer as exigências do
desejo que – incondicionalmente – quer ser satisfeito. Assim, o sujeito se mostra como um sujeito
errante, faltante, hiante, cuja presença está em toda parte e, ao mesmo tempo, em parte alguma.
II.
E, de fato, para Jacques Lacan, a importância da descoberta de Freud reside justamente na
heterogeneidade do sujeito com relação ao ego, que a linguagem não cessa de exprimir, de significar
e, consequentemente, de trair. Porque o sujeito é sujeito na medida mesma em que fala e, portanto,
trai, revela, esconde e torna a revelar, sob a forma de sintomas, aquilo que a sua vigilância não pôde
recalcar, ou reprimir. É nisto também que se manifesta o gozo fálico do ainda não: ainda não dito,
ainda não escrito, ainda não falado, ainda não completado, ainda não arrematado, ainda não
terminado. Na verdade, seria mais exato afirmar: ainda não completamente gozado. Porque é nesta
defasagem ontológica, ou pré-ontológica, que se instaura entre o significante e o significado, ou
entre o já dito e o que ainda permanece em suspensão, que a tensão do desejo e, logo, do sujeito, não
cessa de se descarregar, de se saciar, de se colmatar e de querer mais. Para o autor dos Escritos:
“Essa hiância inscrita no status mesmo do gozo como di-mensão do corpo, no ser falante, é o que
ressurge com Freud através deste teste – nada mais acrescentarei – que é a existência da palavra. Lá
onde se fala, goza-se”.7
Ora, para se entender a dinâmica do desejo, tal como Lacan a reelaborou, convém primeiramente
fazer uma distinção capital entre, de um lado, a necessidade (besoin) e, de outro, o pedido
(demande). A necessidade, que remete ao biológico e ao instintual, visa um objeto determinado e
com ele se satisfaz; por exemplo, a fome com o alimento, a sede com o líquido, o cansaço com o
sono, etc. É bem verdade que, uma vez aplacado o estímulo, o ciclo estará mais uma vez apto a tudo
recomeçar. Mas ele o fará de maneira ritmada, isto é, obedecendo a uma ordem e a uma regularidade
inerentes ao próprio organismo. Já com relação ao pedido, as coisas se passam de outro modo, na
medida em que este pedido deve ser articulado, simbolizado, significado. Falado. Em outros termos,
o pedido não está ligado à esfera do biológico, do orgânico ou do instintual, mas à da pulsão que,
como uma força constante – e ao contrário da função biológica – não conhece nem ritmo nem
7 J. LACAN, Le Séminaire, Livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 104. Itálicos meus.
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escansão, nem dia nem noite, nem primavera nem outono, nem subida nem descida. Justamente
porque ela é uma força constante, eine constante Kraft.8
Esta distinção fundamental entre o instintual e o pulsional a que se refere Lacan se encontra num
escrito de Freud de 1915, intitulado: Pulsões e destino das pulsões. Neste ensaio, o inventor da
psicanálise chama a pulsão de um “conceito fundamental convencional”, e ele a considera
efetivamente como uma “força constante”. Ao contrário, pois, das outras excitações – fisiológicas
ou biológicas – esta força ataca não a partir do exterior, mas de dentro do próprio organismo. Ela é,
portanto, “um conceito-limite entre o psíquico e o somático”, porquanto ela age como um
representante psíquico das excitações oriundas do interior do corpo, alcançando assim a mente
como uma medida de exigência do trabalho psíquico. Mas este trabalho só lhe é imposto justamente
porque existe uma ligação, uma passagem, uma ponte ou um entre-dois vinculando o psíquico e o
somático.9 Por conseguinte – repita-se – estamos no nível do simbólico, ou do inconsciente, em que
o sujeito, na maioria das vezes, se comporta sem conhecer as razões do seu próprio agir. O
inconsciente – diz Freud – é atemporal. Ele não conhece nem tempo nem contradição, porquanto ele
se manifesta ao modo de uma instância acefálica que fala do sujeito, ou no sujeito, apesar do sujeito.
Todavia, o acesso para se chegar ao inconsciente é, paradoxalmente, o próprio consciente, pois é
através do trabalho analítico, observa Freud, que o inconsciente se revela e se esconde
simultaneamente devido às transformações, transposições e deformações que se operaram pela
dinâmica do recalcamento. O inconsciente, no entanto, permanece inconsciente. Mas cabe ao
processo analítico fazer com que se traduzam esses deslocamentos, desde que se consigam vencer
aquelas resistências que, em sua época, foram responsáveis pelo recalque das respectivas
representações.10
Ora, não é por acaso que Freud denomina os conteúdos do inconsciente pelos termos:
“representantes da pulsão”. Achando-se situada entre o psíquico e o somático, a pulsão jamais
poderá tornar-se objeto da consciência, pois ela se faz presente no inconsciente somente através de
seus representantes, vale dizer, daqueles elementos e processos que a revelam psiquicamente,
simbolicamente. Significantemente. De sorte que, sem a linguagem, que já é a expressão e a
estruturação do inconsciente, não haveria sujeito, um sujeito cuja realidade se situa no inconsciente,
8 Cf. J. LACAN, Le Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1973,
p. 150. 9 Cf. S. FREUD, Triebe und Triebschicksale, GW, X, pp. 211-214. 10 Cf. S. FREUD, Das Unbewusste, GW, X, p. 264.
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ou melhor, se desenrola e se manifesta como inconsciente. Donde a asserção de Lacan: “No
inconsciente, excluído do sistema do eu, o sujeito fala”.11
III.
Não obstante isso, o ponto de partida de Freud continua sendo – na perspectiva de Lacan – o
fundamento cartesiano do sujeito da certeza. Mas uma certeza que supõe, no seu próprio enunciado,
um questionamento sobre a veracidade desta mesma certeza. Ora, seria ingênuo perguntar-se se o
enunciado da certeza acarreta dúvida ou se, ao inverso, é a própria dúvida que induz a asserir
categoricamente a certeza como uma tentativa para dela assegurar-se. O certo, porém, é que não se
pode pensar uma sem a outra. Assim, se se parafrasear o cogito cartesiano dizendo: tenho certeza de
que eu duvido, de que eu penso que duvido, tornar-se-á talvez mais inteligível a observação de
Lacan segundo a qual lá onde Freud duvida, haverá a certeza de que lá também se encontra um
pensamento que é inconsciente, ou que se revela como ausente. Mas, pondera o analista francês, é
justamente neste lugar que Freud, ao confrontar-se com os outros, irá igualmente evocar o “eu
penso” como a condição ou o caminho pelo qual se manifesta o sujeito. E é também neste ponto que
poderá sobrevir um salto qualitativo: alguém pensa em seu lugar. Então, concluirá Lacan, a
dissimetria existente entre Freud e Descartes reside não no método inicial da certeza – que é fundada
sobre o sujeito – mas no fato de o sujeito freudiano pertencer essencialmente, radicalmente, ao
campo do inconsciente.12
Todavia, uma interrogação não cessa de se insinuar e de se impor sub-repticiamente neste
questionamento que instaura Lacan vis-à-vis do fundamento cartesiano do sujeito em Freud: não
será também a questão do fundamento do sujeito cartesiano que retorna na teoria e na prática
analíticas de Lacan? Evidentemente não mais se trata do sujeito da consciência, uma consciência
racional que aspira à construção de uma ciência universal a partir das ideias claras e distintas que
ela própria se outorgara. Não! O que está em jogo, tanto em Freud quanto em Lacan, é um sujeito
que experienciou um mergulho, um salto, uma imersão ou uma incursão no inconsciente através dos
meandros e das ambiguidades que encerra a própria linguagem. É isto, de resto, que o próprio Lacan
deixa pressupor no Seminário XX, ao afirmar: “Em primeiro lugar, a substância pensante. Pode-se
no entanto dizer que nós a modificamos sensivelmente. Desde este eu penso que, supondo-se a si
11 J. LACAN, Le Séminaire, Livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la techniuqe de la psychanalyse,
Paris, Seuil, 1978, p. 77. 12 Cf. J. LACAN, Le Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, op. cit., p. 36.
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mesmo, funda a existência, tivemos de dar um passo a mais, que é o do inconsciente”.13 Mas, sendo
assim, poder-se-á avançar esta outra interrogação: terá o inconsciente um saber que lhe é
peculiarmente característico? A este respeito, Lacan fará a seguinte ponderação: se o inconsciente
nos ensinou alguma coisa, esta consiste em que em algum lugar, isto é, no Outro, algo (em francês:
ça, em português: isso) sabe. E poderíamos ajuntar, além do “sabe”, o “fala”. Isso sabe, isso fala,
porque este “isso” se suporta, se baseia ou se estriba justamente nos significantes que constituem o
sujeito da linguagem e, portanto, da falta.14 Daí podermos melhor entender a frase lapidar do analista
francês, segundo a qual: “O sujeito não é outra coisa – que ele tenha ou não consciência de qual
significante ele é efeito – senão o que resvala numa cadeia de significantes”.15
Mas, a bem considerar a história do pensamento ocidental, que outra coisa fizeram todos os
filósofos – dos pré-socráticos ao próprio Lacan – senão tentar indefinidamente estruturar, forjar,
plasmar e modelar a realidade humana como uma realidade significante? Se se pode, pois, falar da
questão do sujeito na filosofia contemporânea, esta reside na tentativa – mil vezes renovada e mil
vezes recomeçada – de apreender um significante que, todavia, continua a resistir, a elidir-se e a
subtrair-se ao predomínio do discurso ou da significação enquanto tal...
13 J. LACAN, Le Séminaire, Livre XX, Encore, op. cit., p. 25. Itálicos do autor. 14 Cf. ibid., p. 81. 15 Ibid., p. 48.
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