a querela escolástica dialético versus antidialéticos · desde a revolução industrial e...

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www.aquinate.net/artigos ISSN 1808- 5733 Aquinate, n° 3, (2006), 22-46 22 A QUERELA DIALÉTICOS VERSUS ANTIDIALÉTICOS . A TUALIDADE, ORIGEM, CONTROVÉRSIAS, CONTRIBUIÇÃO E INFLUÊNCIA DE S ÃO TOMÁS DE A QUINO. PAULO FAITANIN * Introdução. 1. A razão em desencanto. Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o cientificismo e o tecnicismo, abalizados pelo primado da razão iluminista, possi- bilitaram que o homem realizasse grandes descobertas apresentadas sempre co- mo benefícios para a humanidade. Em continuidade, o recém iniciado milênio desenvolve num ritmo acelerado novas propostas científicas que prometem revo- lucionar a qualidade de vida e a cura de enfermidades até então incuráveis, a pa r- tir da decodificação genética huma na. Em meio a tantas promessas, muitas das quais infundadas, houve efetiva- mente muitos louros. Contudo, apesar de tantas glórias e compromissos de glo- balização dos benefícios da s mesmas, a ciência ainda não conseguiu incluir em sua s benfeitorias a grande maioria da população mundial, que continua vivendo às suas margens. Tamanha é a exclusão decorrente deste processo que nenhuma estatística consegue esconder a miséria da humanidade, muitas vezes, conseqüên- cia do uso da própria ciência e da técnica, como no caso do infortúnio decorrente da ciência bélica. Não existe benefício humano se não inclui todos os homens. É fato o quanto é paradoxal a relação entre o progresso e o desenvolvimen- to da técnica e o regresso e desconhecimento da dignidade humana. Apesar de sua desenvoltura, nunca o homem esteve tão ameaçado pelo uso da técnica como em nossos dias, a ponto de acelerar a desventura humana. Por que com o apogeu da técnica desencadeou-se a negação da dignidade humana? Como a técnica * Doutor em Filosofia Medieval pela Universidad de Navarra/ Espanha. Membro do S.I.E.P.M (Société International Pour L Étude de la Philosophie Médièvale). Membro do CEP (Comitê de Ética em Pesquisa) da Faculdade de Medicina da UFF. Membro do I.B.F.C.R.L (Insti tuto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio ). Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFF (Universidade Federal Fluminense). Editor e Redator da www.aquinate.net (Revista Eletrônica de Estudos Tomistas).

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Page 1: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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A QUERELA DIALEacuteTICOS VERSUS ANTIDIALEacuteTICOS ATUALIDADE ORIGEM CONTROVEacuteRSIAS CONTRIBUICcedilAtildeO E INFLUEcircNCIA DE SAtildeO TOMAacuteS DE AQUINO

PAULO FAITANIN

Introduccedilatildeo

1 A razatildeo em desencanto

Desde a Revoluccedilatildeo Industrial e especialmente a partir do uacuteltimo seacuteculo o cientificismo e o tecnicismo abalizados pelo primado da razatildeo iluminista possi-bilitaram que o homem realizasse grandes descobertas apresentadas sempre co-mo benefiacutecios para a humanidade Em continuidade o receacutem iniciado milecircnio desenvolve num ritmo acelerado novas propostas cientiacuteficas que prometem revo-lucionar a qualidade de vida e a cura de enfermidades ateacute entatildeo incuraacuteveis a par-tir da decodificaccedilatildeo geneacutetica humana

Em meio a tantas promessas muitas das quais infundadas houve efetiva-mente muitos louros Contudo apesar de tantas gloacuterias e compromissos de glo-balizaccedilatildeo dos benefiacutecios das mesmas a ciecircncia ainda natildeo conseguiu incluir em suas benfeitorias a grande maioria da populaccedilatildeo mundial que continua vivendo agraves suas margens Tamanha eacute a exclusatildeo decorrente deste processo que nenhuma estatiacutestica consegue esconder a miseacuteria da humanidade muitas vezes consequumlecircn-cia do uso da proacutepria ciecircncia e da teacutecnica como no caso do infortuacutenio decorrente da ciecircncia beacutelica Natildeo existe benefiacutecio humano se natildeo inclui todos os homens

Eacute fato o quanto eacute paradoxal a relaccedilatildeo entre o progresso e o desenvolvimen-to da teacutecnica e o regresso e desconhecimento da dignidade humana Apesar de sua desenvoltura nunca o homem esteve tatildeo ameaccedilado pelo uso da teacutecnica como em nossos dias a ponto de acelerar a desventura humana Por que com o apogeu da teacutecnica desencadeou-se a negaccedilatildeo da dignidade humana Como a teacutecnica

Doutor em Filosofia Medieval pela Universidad de Navarra Espanha Membro do SIEPM (Socieacuteteacute International Pour L Eacutetude de la Philosophie Meacutediegravevale) Membro do CEP (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa) da Faculdade de Medicina da UFF Membro do IBFCRL (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciecircncia Raimundo Luacutelio ) Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFF (Universidade Federal Fluminense) Editor e Redator da wwwaquinatenet (Revista Eletrocircnica de Estudos Tomistas)

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exaltaccedilatildeo de modelo de aplicaccedilatildeo dos recursos e avanccedilos da investigaccedilatildeo da razatildeo humana - pocircde ser valida inuacutemeras vezes contra o proacuteprio homem

A consciecircncia deste fato fez emergir a desesperanccedila com relaccedilatildeo ao que se pode esperar da ciecircncia e da teacutecnica Tem sido estrateacutegico o contiacutenuo cultivo da euforia no inconsciente coletivo para resgatar o positivismo cientiacutefico e justificar o seu desenvolvimento e aplicaccedilatildeo mesmo que contraacuteria ao bem comum e su-pondo o sacrifiacutecio de muitos

Este eufemismo cientiacutefico tem servido para ocultar a triste realidade do so-frimento de muitos enquanto resultado do desencanto humano com a ciecircncia com a teacutecnica e naturalmente com a razatildeo Eis o desencanto que o homem con-temporacircneo sente com relaccedilatildeo agrave razatildeo e o manifesta de muitos modos em linhas de pensamento que vatildeo desde negaacute-la subjugaacute-la ou tornaacute-la ainda mais autocircno-ma

De fato os pensadores contemporacircneos acertam ao centrarem os seus deba-tes ao redor da razatildeo na medida em que procuram uma resposta ao sentimento atual de desencanto adveniente do seu uso e aplicaccedilatildeo Natildeo teria este desencanto da razatildeo sua origem na exacerbaccedilatildeo dos seus domiacutenios e limites Ou no atrofiar de seus princiacutepios Ousamos dizer que estaria tanto na exacerbaccedilatildeo dos seus li-mites quanto no atrofiamento dos seus princiacutepios pois em um e outro caso vio-la-se a sua natureza e ordenaccedilatildeo negando os seus limites e desnorteando os seus princiacutepios Haacute que libertar a razatildeo de seus limites que o iluminismo racionalista e o idealismo lhe impuseram e redescobri-la dialeacutetica em sua justa medida

2 As raiacutezes do desencanto

Desde o iniacutecio do seacuteculo XX os exageros da razatildeo foram criticados por teo-rias como a de Nietzsche que denunciando o extremismo da situaccedilatildeo acabava por oferecer um outro como soluccedilatildeo o niilismo1 De fato o enfado das doutrinas herdadas da modernidade em que por um lado a razatildeo fora estabelecida como iluminadora e incoerciacutevel senhora e mestra de seus proacuteprios limites como pro-

1 Nietzsche emprega este termo para qualificar a sua oposiccedilatildeo radical aos valores morais tradi-cionais e agraves tradicionais doutrinas metafiacutesicas NIETZSCHE F Der Wille zur Macht Leipzig Kroumlners Taschenausgabe Bd 78 1996 XV sect24 O niilismo eacute somente um conjunto de con-sideraccedilotildees sobre o tema Tudo eacute vatildeo natildeo eacute somente a crenccedila de que tudo merece morrer Eacute o estado dos espiacuteritos fortes e das vontades fortes do qual natildeo eacute possiacutevel atribuir um juiacutezo ne-gativo a negaccedilatildeo ativa corresponde mais agrave sua natureza profunda

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punham as teses cartesiana2 e kantiana3 e que por outro lado a eliminava do diaacute-logo com a feacute como propunha a doutrina luterana4 minaram a proacutepria autono-mia da razatildeo e a sua condiccedilatildeo dialeacutetica propiciando criacuteticas que apontavam os seus limites ou que propunham uma nova concepccedilatildeo de dialeacutetica como ocorreu mediante a criacutetica materialista

Podemos fundamentar o desencanto poacutes-moderno da razatildeo na heranccedila mo-derna destacando dois exemplos de como a razatildeo de dialeacutetica solidaacuteria passou a ser dialeacutetica solitaacuteria Assim temos que por um lado em Lutero negava-se o papel da razatildeo na investigaccedilatildeo teoloacutegica por outro lado em Descartes subordi-nava-se toda a investigaccedilatildeo das verdades incluindo as da feacute ao escrutiacutenio da ra-zatildeo filosoacutefica

As posturas luterana e cartesiana natildeo foram senatildeo consequumlecircncias da ruptura da harmonia entre razatildeo e feacute lograda na Escolaacutestica em que para tal supunha a razatildeo dialeacutetica aberta agraves verdades transcendentes A partir de Lutero e Descartes firmou-se respectivamente a autonomia da feacute frente agrave razatildeo em assuntos teoloacutegi-cos e o primado da razatildeo frente a todo e qualquer conhecimento humano ou

2 DESCARTES R Discurso do Meacutetodo Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 Quinta Parte pp 47-66 Reneacute Descartes [1596-1650] em sua obra Discurso do Meacutetodo configura uma proposta de liber-taccedilatildeo total da razatildeo do mundo objetivo e propotildee o estabelecimento mesmo de um criteacuterio subjetivo indubitaacutevel para a investigaccedilatildeo da existecircncia de Deus atraveacutes de um meacutetodo que girava ao redor da proacutepria razatildeo pondo nela mesma todas as condiccedilotildees de conhecimento Com isso assistimos no iniacutecio da Idade Moderna o comeccedilo da total impossibilidade de esta-belecer uma ciecircncia teoloacutegica que conciliasse a razatildeo e a feacute 3 GAYGILL H Dicionaacuterio Kant Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2000 verbete feacute pp 143-146 Alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalista cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] Este filoacutesofo alematildeo com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo seus justos limites frente agraves verdades de feacute que culmina com a tese defendida na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo elimina a autonomia da feacute a subordina aos limites da simples razatildeo 4 A postura radical de oposiccedilatildeo agrave razatildeo como meacutetodo superou agrave dos que propuseram certa aproximaccedilatildeo Assim frente ao racionalismo reinante no teacutermino da Escolaacutestica surgiram posi-ccedilotildees religiosas contraacuterias a esta radical exaltaccedilatildeo da razatildeo Neste contexto a Reforma protes-tante numa de suas criacuteticas compreendia que os pensadores cristatildeos

leiam-se catoacutelicos

exageravam no uso da razatildeo nas pesquisas teoloacutegicas Martinho Lutero [1483-1546] esboccedila esta criacutetica agrave razatildeo dialeacutetica em favor da interpretaccedilatildeo biacuteblica soacute mediante a feacute Neste teoacutelogo esbo-ccedila-se o modelo da crise entre razatildeo e feacute que se havia instaurado em sua eacutepoca a partir de uma criacutetica generalizada e ateacute preconceituosa com relaccedilatildeo aos escolaacutesticos

denominados como corruptores da feacute

que em seu momento propuseram aproximar a razatildeo das verdades revela-das

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seja a razatildeo presa aos seus proacuteprios limites e a eles a feacute subordinada quando natildeo negada

Mas o desencanto natildeo parou por aiacute pois alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalis-ta cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] que com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo os justos limites da razatildeo e nela os da religiatildeo como defenderia mais tarde na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo eliminou a autono-mia da feacute a subordinou aos limites da simples razatildeo

3 As consequumlecircncias do desencanto

Segundo a criacutetica de algumas correntes poacutes-modernas como a do relativismo urgia libertar a razatildeo de seus proacuteprios limites sem restaurar qualquer diaacutelogo com a feacute afirmando em sua subjetividade o criteacuterio de valor e verdade como defende Richard Rorty em seu pragmatismo5 O pseudo-conforto que o relativismo filosoacute-fico promove deflagra por fim o real e desesperante desencanto da razatildeo agora frente ao valor e agrave verdade universais Com esta proposta a razatildeo deixa de ser ordenadora universal perde o seu rumo e se fecha novamente em seus limites

O abandono dos seus limites passa por uma tentativa de resgate de seus princiacutepios e de sua abertura para o que lhe transcende mas natildeo a contraria A razatildeo ainda prisioneira de seus limites natildeo eacute dialeacutetica eacute escrava e natildeo livre o que de per se contradiz agrave proacutepria razatildeo jaacute que ela eacute justamente a capacidade da qual emana a liberdade ao diaacutelogo com o mundo com os outros consigo mesma e com Deus

Uma causa fundamental do desencanto hodierno da razatildeo eacute a perda do diaacute-logo com a feacute Mal compreendida a feacute foi vista nos uacuteltimos seacuteculos como limite externo agrave razatildeo Visatildeo equivocada pois ela natildeo deve ser considerada um limite senatildeo um princiacutepio transcendente agrave razatildeo Esta mesma ruptura entre razatildeo e feacute

5 RORTY R Contingence ironie et solidariteacute Paris Armand Colin 1995 p53 Objetivismo relativismo e verdade Escritos Filosoacuteficos I Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002 pp 39-40 Contra a teoria de Rorty vejam VALADIER P A A narquia dos valores Seraacute o Relativismo Fatal Lisboa Instituto Piaget 1997 pp 173-180 RATZINGER J A ditadura do relativismo Aquinate 2 (2006) in Ciecircncia amp Feacute wwwaquinatenet

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tem marcado o tom da anguacutestia dos discursos humanos acerca do sentido da vi-da da razatildeo e da religiatildeo nos uacuteltimos seacuteculos E para piorar ainda mais muacuteltiplos ataques se fazem agrave razatildeo quando esta alude um possiacutevel diaacutelogo com a feacute Mas eacute bem verdade que este diaacutelogo deve pautar-se na coerecircncia onde os princiacutepios da razatildeo sejam respeitados e o dado de feacute compreendido natildeo havendo lugar para sobreposiccedilotildees ou adaptaccedilotildees

Em nossos dias tecircm sido sucessivas as contendas em que marcam a oposi-ccedilatildeo entre razatildeo e feacute Sinal dos tempos em que o desencanto da razatildeo destoa qualquer diaacutelogo Satildeo inuacutemeros exemplos que demarcam esta oposiccedilatildeo mas um em especial eacute atualiacutessimo e nos chama a atenccedilatildeo o debate criacionismo x evolucio-nismo em que certos setores da ciecircncia primam pela explicaccedilatildeo racional de todo e qualquer fenocircmeno inclusive o religioso e certas religiotildees primam pela explica-ccedilatildeo soacute pela feacute O debate dialeacuteticos x antidialeacuteticos mais do que nunca se encon-tra presente em nossos dias sob a oacutetica desta contenda

Em seu livro A caixa preta de Darwin Michael Behe apresenta como proposta cientiacutefica a teoria dos complexos irredutiacuteveis 6 ou seja a tese segundo a qual a-firma que certas estruturas moleculares

como os gloacutebulos brancos

natildeo teriam a sua origem por acaso mediante a seleccedilatildeo natural e por conseguinte natildeo estari-am sujeitas agrave teoria do evolucionismo defendida por Charles Darwin na obra Ori-gem das espeacutecies7

Como siacutentese de sua criacutetica o bioquiacutemico norte-americano conclui afirman-do a necessidade da existecircncia de um intelligent design que haveria de ter proje-tado tais estruturas Michael Behe foi criticado por seus pares

e inclusive por cientistas cristatildeos como Fiorenzo Facchini8

por defender uma doutrina que natildeo havia passado pelo crivo cientiacutefico da verificaccedilatildeo e da demonstraccedilatildeo aleacutem de ser acusado de defender atraveacutes de sua teoria a doutrina cristatilde do criacionismo que pautada no livro do Gecircnesis estabelece a necessaacuteria existecircncia de uma Causa eficiente criadora e ordenadora do universo9

Desenvolvimento

1 O resgate do encanto

6 BEHE M A Caixa Preta de Darwin O desafio da bioquiacutemica agrave teoria da evoluccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 pp 190-210 7 DARWIN CH Origem das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 pp 89-90 8 FACCHINI F Evoluccedilatildeo e Criaccedilatildeo L Osservatore Romano 17 de Janeiro de 2006 9 Gn 11

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Como vimos na contenda criacionismo x evolucionismo o debate entre ra-

zatildeo e feacute eacute atual mas as suas origens remontam ao periacuteodo patriacutestico10 em que se discutiu o papel da razatildeo nas investigaccedilotildees teoloacutegicas e onde encontraremos a bela contribuiccedilatildeo agostiniana de que a graccedila natildeo suprime a natureza racional mas a aperfeiccediloa11 Contudo foi na escolaacutestica12 do seacutec XI ao XIII que esta questatildeo teve o seu apogeu com uma proposiccedilatildeo de conciliaccedilatildeo entre razatildeo e feacute

10 Por Patriacutestica entendemos tambeacutem duas coisas o periacuteodo histoacuterico do pensamento cristatildeo compreendido entre os seacutec I e VII e a sistematizaccedilatildeo da filosofia cristatilde e da teologia ensinadas neste periacuteodo por aqueles que foram denominados Padres da Igreja justamente por gerarem e guardarem o patrimocircnio doutrinal filosoacutefico e teoloacutegico que natildeo se justapunham agraves verdades de feacute do Cristianismo DROBNER HR Manual de Patrologia Petroacutepolis Vozes 1997 pp 11-14 11 Muito enriquece o seguinte esclarecimento Para Agostinho a natureza merece elogios co-mo obra saiacuteda das matildeos criadoras de Deus mas no estado atual acha-se enferma e debilitada devido ao pecado necessitada de socorro divino isto eacute da graccedila Esta aperfeiccediloa enobrece cura e santifica o homem Reconhece o valor da natureza poreacutem deixada a si mesma natildeo tem nenhuma potencialidade a natildeo ser para o pecado Deus criara de fato o homem com perfei-ccedilatildeo equiliacutebrio e iacutentegro Com a transgressatildeo perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido agraves geraccedilotildees sucessivas Neste estado o homem natildeo teria salvaccedilatildeo se natildeo lhe fosse dada a graccedila de Deus Esta eacute dom gratuito Natildeo eacute devida aos meacuteritos humanos gratia gratis data unde et gratia nomiatur [a graccedila eacute dada de graccedila pelo que esse nome lhe eacute dado] Agostinho insiste em que a graccedila natildeo eacute dada em recompensa a nossos meacuteritos ou devido agrave nossa dignida-de natural Trabalhei mais que todos embora natildeo eu mas a graccedila de Deus que estaacute comigo (1Cor 1510) O meacuterito natildeo eacute fruto do ato humano mas da accedilatildeo amorosa de Deus Do contraacute-rio a graccedila natildeo seria dom mas soldo Para Agostinho a verdadeira graccedila eacute aquela obtida pelos meacuteritos de Jesus Cristo aquela que natildeo eacute a natureza mas a que salva a natureza Contudo o homem natildeo permanece meramente passivo sob a accedilatildeo da graccedila Haacute cooperaccedilatildeo humana A graccedila nos faz cooperadores de Deus porque aleacutem de perdoar os pecados faz com que o espiacute-rito humano coopere na praacutetica das boas obras noacutes agimos mas Deus opera em noacutes o agir Natureza e graccedila natildeo satildeo forccedilas que se opotildeem que se destroem mas que se irmanam se aju-dam Assim como a medicina natildeo vai contra a natureza mas contra a enfermidade a graccedila vai contra os viacutecios e defeitos da natureza Por isso a graccedila natildeo destroacutei a natureza mas a aperfeiccediloa [gra-tia non tollit sed perficit naturam] Contra aqueles que crecircem na inocecircncia do homem no seu poder de viver sem pecado graccedilas a seus proacuteprios esforccedilos Agostinho explora a miseacuteria espiri-tual profunda do homem tanto antes quanto depois do batismo Antes pelo fato da transmis-satildeo hereditaacuteria e da imputaccedilatildeo do pecado de Adatildeo Depois do batismo o homem se torna inevitalmente pecador por forccedila da concupiscecircncia Haacute uma espeacutecie de necessidade de pecar Por essa razatildeo o homem tem necesidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino SANTO AGOSTINHO A Graccedila (I) Satildeo Paulo Paulus 1999 Introduccedilatildeo por R Frangiotti pp106-108] 12 Por Escolaacutestica entendemos duas coisas o periacuteodo medieval da formaccedilatildeo das Escolas e a sis-tematizaccedilatildeo da filosofia e da teologia ensinadas nestas escolas Embora inicialmente no seacuteculo XVI o termo era usado de forma depreciativa em relaccedilatildeo ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais esta conotaccedilatildeo foi e ainda eacute cada vez mais sinocircnimo de um periacuteodo e sistemas aacuteureos do Medievo LOYN HR Dicionaacuterio da Idade Meacutedia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 verbete escolaacutestica pp 132-133

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 2: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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exaltaccedilatildeo de modelo de aplicaccedilatildeo dos recursos e avanccedilos da investigaccedilatildeo da razatildeo humana - pocircde ser valida inuacutemeras vezes contra o proacuteprio homem

A consciecircncia deste fato fez emergir a desesperanccedila com relaccedilatildeo ao que se pode esperar da ciecircncia e da teacutecnica Tem sido estrateacutegico o contiacutenuo cultivo da euforia no inconsciente coletivo para resgatar o positivismo cientiacutefico e justificar o seu desenvolvimento e aplicaccedilatildeo mesmo que contraacuteria ao bem comum e su-pondo o sacrifiacutecio de muitos

Este eufemismo cientiacutefico tem servido para ocultar a triste realidade do so-frimento de muitos enquanto resultado do desencanto humano com a ciecircncia com a teacutecnica e naturalmente com a razatildeo Eis o desencanto que o homem con-temporacircneo sente com relaccedilatildeo agrave razatildeo e o manifesta de muitos modos em linhas de pensamento que vatildeo desde negaacute-la subjugaacute-la ou tornaacute-la ainda mais autocircno-ma

De fato os pensadores contemporacircneos acertam ao centrarem os seus deba-tes ao redor da razatildeo na medida em que procuram uma resposta ao sentimento atual de desencanto adveniente do seu uso e aplicaccedilatildeo Natildeo teria este desencanto da razatildeo sua origem na exacerbaccedilatildeo dos seus domiacutenios e limites Ou no atrofiar de seus princiacutepios Ousamos dizer que estaria tanto na exacerbaccedilatildeo dos seus li-mites quanto no atrofiamento dos seus princiacutepios pois em um e outro caso vio-la-se a sua natureza e ordenaccedilatildeo negando os seus limites e desnorteando os seus princiacutepios Haacute que libertar a razatildeo de seus limites que o iluminismo racionalista e o idealismo lhe impuseram e redescobri-la dialeacutetica em sua justa medida

2 As raiacutezes do desencanto

Desde o iniacutecio do seacuteculo XX os exageros da razatildeo foram criticados por teo-rias como a de Nietzsche que denunciando o extremismo da situaccedilatildeo acabava por oferecer um outro como soluccedilatildeo o niilismo1 De fato o enfado das doutrinas herdadas da modernidade em que por um lado a razatildeo fora estabelecida como iluminadora e incoerciacutevel senhora e mestra de seus proacuteprios limites como pro-

1 Nietzsche emprega este termo para qualificar a sua oposiccedilatildeo radical aos valores morais tradi-cionais e agraves tradicionais doutrinas metafiacutesicas NIETZSCHE F Der Wille zur Macht Leipzig Kroumlners Taschenausgabe Bd 78 1996 XV sect24 O niilismo eacute somente um conjunto de con-sideraccedilotildees sobre o tema Tudo eacute vatildeo natildeo eacute somente a crenccedila de que tudo merece morrer Eacute o estado dos espiacuteritos fortes e das vontades fortes do qual natildeo eacute possiacutevel atribuir um juiacutezo ne-gativo a negaccedilatildeo ativa corresponde mais agrave sua natureza profunda

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punham as teses cartesiana2 e kantiana3 e que por outro lado a eliminava do diaacute-logo com a feacute como propunha a doutrina luterana4 minaram a proacutepria autono-mia da razatildeo e a sua condiccedilatildeo dialeacutetica propiciando criacuteticas que apontavam os seus limites ou que propunham uma nova concepccedilatildeo de dialeacutetica como ocorreu mediante a criacutetica materialista

Podemos fundamentar o desencanto poacutes-moderno da razatildeo na heranccedila mo-derna destacando dois exemplos de como a razatildeo de dialeacutetica solidaacuteria passou a ser dialeacutetica solitaacuteria Assim temos que por um lado em Lutero negava-se o papel da razatildeo na investigaccedilatildeo teoloacutegica por outro lado em Descartes subordi-nava-se toda a investigaccedilatildeo das verdades incluindo as da feacute ao escrutiacutenio da ra-zatildeo filosoacutefica

As posturas luterana e cartesiana natildeo foram senatildeo consequumlecircncias da ruptura da harmonia entre razatildeo e feacute lograda na Escolaacutestica em que para tal supunha a razatildeo dialeacutetica aberta agraves verdades transcendentes A partir de Lutero e Descartes firmou-se respectivamente a autonomia da feacute frente agrave razatildeo em assuntos teoloacutegi-cos e o primado da razatildeo frente a todo e qualquer conhecimento humano ou

2 DESCARTES R Discurso do Meacutetodo Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 Quinta Parte pp 47-66 Reneacute Descartes [1596-1650] em sua obra Discurso do Meacutetodo configura uma proposta de liber-taccedilatildeo total da razatildeo do mundo objetivo e propotildee o estabelecimento mesmo de um criteacuterio subjetivo indubitaacutevel para a investigaccedilatildeo da existecircncia de Deus atraveacutes de um meacutetodo que girava ao redor da proacutepria razatildeo pondo nela mesma todas as condiccedilotildees de conhecimento Com isso assistimos no iniacutecio da Idade Moderna o comeccedilo da total impossibilidade de esta-belecer uma ciecircncia teoloacutegica que conciliasse a razatildeo e a feacute 3 GAYGILL H Dicionaacuterio Kant Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2000 verbete feacute pp 143-146 Alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalista cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] Este filoacutesofo alematildeo com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo seus justos limites frente agraves verdades de feacute que culmina com a tese defendida na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo elimina a autonomia da feacute a subordina aos limites da simples razatildeo 4 A postura radical de oposiccedilatildeo agrave razatildeo como meacutetodo superou agrave dos que propuseram certa aproximaccedilatildeo Assim frente ao racionalismo reinante no teacutermino da Escolaacutestica surgiram posi-ccedilotildees religiosas contraacuterias a esta radical exaltaccedilatildeo da razatildeo Neste contexto a Reforma protes-tante numa de suas criacuteticas compreendia que os pensadores cristatildeos

leiam-se catoacutelicos

exageravam no uso da razatildeo nas pesquisas teoloacutegicas Martinho Lutero [1483-1546] esboccedila esta criacutetica agrave razatildeo dialeacutetica em favor da interpretaccedilatildeo biacuteblica soacute mediante a feacute Neste teoacutelogo esbo-ccedila-se o modelo da crise entre razatildeo e feacute que se havia instaurado em sua eacutepoca a partir de uma criacutetica generalizada e ateacute preconceituosa com relaccedilatildeo aos escolaacutesticos

denominados como corruptores da feacute

que em seu momento propuseram aproximar a razatildeo das verdades revela-das

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seja a razatildeo presa aos seus proacuteprios limites e a eles a feacute subordinada quando natildeo negada

Mas o desencanto natildeo parou por aiacute pois alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalis-ta cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] que com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo os justos limites da razatildeo e nela os da religiatildeo como defenderia mais tarde na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo eliminou a autono-mia da feacute a subordinou aos limites da simples razatildeo

3 As consequumlecircncias do desencanto

Segundo a criacutetica de algumas correntes poacutes-modernas como a do relativismo urgia libertar a razatildeo de seus proacuteprios limites sem restaurar qualquer diaacutelogo com a feacute afirmando em sua subjetividade o criteacuterio de valor e verdade como defende Richard Rorty em seu pragmatismo5 O pseudo-conforto que o relativismo filosoacute-fico promove deflagra por fim o real e desesperante desencanto da razatildeo agora frente ao valor e agrave verdade universais Com esta proposta a razatildeo deixa de ser ordenadora universal perde o seu rumo e se fecha novamente em seus limites

O abandono dos seus limites passa por uma tentativa de resgate de seus princiacutepios e de sua abertura para o que lhe transcende mas natildeo a contraria A razatildeo ainda prisioneira de seus limites natildeo eacute dialeacutetica eacute escrava e natildeo livre o que de per se contradiz agrave proacutepria razatildeo jaacute que ela eacute justamente a capacidade da qual emana a liberdade ao diaacutelogo com o mundo com os outros consigo mesma e com Deus

Uma causa fundamental do desencanto hodierno da razatildeo eacute a perda do diaacute-logo com a feacute Mal compreendida a feacute foi vista nos uacuteltimos seacuteculos como limite externo agrave razatildeo Visatildeo equivocada pois ela natildeo deve ser considerada um limite senatildeo um princiacutepio transcendente agrave razatildeo Esta mesma ruptura entre razatildeo e feacute

5 RORTY R Contingence ironie et solidariteacute Paris Armand Colin 1995 p53 Objetivismo relativismo e verdade Escritos Filosoacuteficos I Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002 pp 39-40 Contra a teoria de Rorty vejam VALADIER P A A narquia dos valores Seraacute o Relativismo Fatal Lisboa Instituto Piaget 1997 pp 173-180 RATZINGER J A ditadura do relativismo Aquinate 2 (2006) in Ciecircncia amp Feacute wwwaquinatenet

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tem marcado o tom da anguacutestia dos discursos humanos acerca do sentido da vi-da da razatildeo e da religiatildeo nos uacuteltimos seacuteculos E para piorar ainda mais muacuteltiplos ataques se fazem agrave razatildeo quando esta alude um possiacutevel diaacutelogo com a feacute Mas eacute bem verdade que este diaacutelogo deve pautar-se na coerecircncia onde os princiacutepios da razatildeo sejam respeitados e o dado de feacute compreendido natildeo havendo lugar para sobreposiccedilotildees ou adaptaccedilotildees

Em nossos dias tecircm sido sucessivas as contendas em que marcam a oposi-ccedilatildeo entre razatildeo e feacute Sinal dos tempos em que o desencanto da razatildeo destoa qualquer diaacutelogo Satildeo inuacutemeros exemplos que demarcam esta oposiccedilatildeo mas um em especial eacute atualiacutessimo e nos chama a atenccedilatildeo o debate criacionismo x evolucio-nismo em que certos setores da ciecircncia primam pela explicaccedilatildeo racional de todo e qualquer fenocircmeno inclusive o religioso e certas religiotildees primam pela explica-ccedilatildeo soacute pela feacute O debate dialeacuteticos x antidialeacuteticos mais do que nunca se encon-tra presente em nossos dias sob a oacutetica desta contenda

Em seu livro A caixa preta de Darwin Michael Behe apresenta como proposta cientiacutefica a teoria dos complexos irredutiacuteveis 6 ou seja a tese segundo a qual a-firma que certas estruturas moleculares

como os gloacutebulos brancos

natildeo teriam a sua origem por acaso mediante a seleccedilatildeo natural e por conseguinte natildeo estari-am sujeitas agrave teoria do evolucionismo defendida por Charles Darwin na obra Ori-gem das espeacutecies7

Como siacutentese de sua criacutetica o bioquiacutemico norte-americano conclui afirman-do a necessidade da existecircncia de um intelligent design que haveria de ter proje-tado tais estruturas Michael Behe foi criticado por seus pares

e inclusive por cientistas cristatildeos como Fiorenzo Facchini8

por defender uma doutrina que natildeo havia passado pelo crivo cientiacutefico da verificaccedilatildeo e da demonstraccedilatildeo aleacutem de ser acusado de defender atraveacutes de sua teoria a doutrina cristatilde do criacionismo que pautada no livro do Gecircnesis estabelece a necessaacuteria existecircncia de uma Causa eficiente criadora e ordenadora do universo9

Desenvolvimento

1 O resgate do encanto

6 BEHE M A Caixa Preta de Darwin O desafio da bioquiacutemica agrave teoria da evoluccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 pp 190-210 7 DARWIN CH Origem das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 pp 89-90 8 FACCHINI F Evoluccedilatildeo e Criaccedilatildeo L Osservatore Romano 17 de Janeiro de 2006 9 Gn 11

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Como vimos na contenda criacionismo x evolucionismo o debate entre ra-

zatildeo e feacute eacute atual mas as suas origens remontam ao periacuteodo patriacutestico10 em que se discutiu o papel da razatildeo nas investigaccedilotildees teoloacutegicas e onde encontraremos a bela contribuiccedilatildeo agostiniana de que a graccedila natildeo suprime a natureza racional mas a aperfeiccediloa11 Contudo foi na escolaacutestica12 do seacutec XI ao XIII que esta questatildeo teve o seu apogeu com uma proposiccedilatildeo de conciliaccedilatildeo entre razatildeo e feacute

10 Por Patriacutestica entendemos tambeacutem duas coisas o periacuteodo histoacuterico do pensamento cristatildeo compreendido entre os seacutec I e VII e a sistematizaccedilatildeo da filosofia cristatilde e da teologia ensinadas neste periacuteodo por aqueles que foram denominados Padres da Igreja justamente por gerarem e guardarem o patrimocircnio doutrinal filosoacutefico e teoloacutegico que natildeo se justapunham agraves verdades de feacute do Cristianismo DROBNER HR Manual de Patrologia Petroacutepolis Vozes 1997 pp 11-14 11 Muito enriquece o seguinte esclarecimento Para Agostinho a natureza merece elogios co-mo obra saiacuteda das matildeos criadoras de Deus mas no estado atual acha-se enferma e debilitada devido ao pecado necessitada de socorro divino isto eacute da graccedila Esta aperfeiccediloa enobrece cura e santifica o homem Reconhece o valor da natureza poreacutem deixada a si mesma natildeo tem nenhuma potencialidade a natildeo ser para o pecado Deus criara de fato o homem com perfei-ccedilatildeo equiliacutebrio e iacutentegro Com a transgressatildeo perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido agraves geraccedilotildees sucessivas Neste estado o homem natildeo teria salvaccedilatildeo se natildeo lhe fosse dada a graccedila de Deus Esta eacute dom gratuito Natildeo eacute devida aos meacuteritos humanos gratia gratis data unde et gratia nomiatur [a graccedila eacute dada de graccedila pelo que esse nome lhe eacute dado] Agostinho insiste em que a graccedila natildeo eacute dada em recompensa a nossos meacuteritos ou devido agrave nossa dignida-de natural Trabalhei mais que todos embora natildeo eu mas a graccedila de Deus que estaacute comigo (1Cor 1510) O meacuterito natildeo eacute fruto do ato humano mas da accedilatildeo amorosa de Deus Do contraacute-rio a graccedila natildeo seria dom mas soldo Para Agostinho a verdadeira graccedila eacute aquela obtida pelos meacuteritos de Jesus Cristo aquela que natildeo eacute a natureza mas a que salva a natureza Contudo o homem natildeo permanece meramente passivo sob a accedilatildeo da graccedila Haacute cooperaccedilatildeo humana A graccedila nos faz cooperadores de Deus porque aleacutem de perdoar os pecados faz com que o espiacute-rito humano coopere na praacutetica das boas obras noacutes agimos mas Deus opera em noacutes o agir Natureza e graccedila natildeo satildeo forccedilas que se opotildeem que se destroem mas que se irmanam se aju-dam Assim como a medicina natildeo vai contra a natureza mas contra a enfermidade a graccedila vai contra os viacutecios e defeitos da natureza Por isso a graccedila natildeo destroacutei a natureza mas a aperfeiccediloa [gra-tia non tollit sed perficit naturam] Contra aqueles que crecircem na inocecircncia do homem no seu poder de viver sem pecado graccedilas a seus proacuteprios esforccedilos Agostinho explora a miseacuteria espiri-tual profunda do homem tanto antes quanto depois do batismo Antes pelo fato da transmis-satildeo hereditaacuteria e da imputaccedilatildeo do pecado de Adatildeo Depois do batismo o homem se torna inevitalmente pecador por forccedila da concupiscecircncia Haacute uma espeacutecie de necessidade de pecar Por essa razatildeo o homem tem necesidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino SANTO AGOSTINHO A Graccedila (I) Satildeo Paulo Paulus 1999 Introduccedilatildeo por R Frangiotti pp106-108] 12 Por Escolaacutestica entendemos duas coisas o periacuteodo medieval da formaccedilatildeo das Escolas e a sis-tematizaccedilatildeo da filosofia e da teologia ensinadas nestas escolas Embora inicialmente no seacuteculo XVI o termo era usado de forma depreciativa em relaccedilatildeo ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais esta conotaccedilatildeo foi e ainda eacute cada vez mais sinocircnimo de um periacuteodo e sistemas aacuteureos do Medievo LOYN HR Dicionaacuterio da Idade Meacutedia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 verbete escolaacutestica pp 132-133

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 3: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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punham as teses cartesiana2 e kantiana3 e que por outro lado a eliminava do diaacute-logo com a feacute como propunha a doutrina luterana4 minaram a proacutepria autono-mia da razatildeo e a sua condiccedilatildeo dialeacutetica propiciando criacuteticas que apontavam os seus limites ou que propunham uma nova concepccedilatildeo de dialeacutetica como ocorreu mediante a criacutetica materialista

Podemos fundamentar o desencanto poacutes-moderno da razatildeo na heranccedila mo-derna destacando dois exemplos de como a razatildeo de dialeacutetica solidaacuteria passou a ser dialeacutetica solitaacuteria Assim temos que por um lado em Lutero negava-se o papel da razatildeo na investigaccedilatildeo teoloacutegica por outro lado em Descartes subordi-nava-se toda a investigaccedilatildeo das verdades incluindo as da feacute ao escrutiacutenio da ra-zatildeo filosoacutefica

As posturas luterana e cartesiana natildeo foram senatildeo consequumlecircncias da ruptura da harmonia entre razatildeo e feacute lograda na Escolaacutestica em que para tal supunha a razatildeo dialeacutetica aberta agraves verdades transcendentes A partir de Lutero e Descartes firmou-se respectivamente a autonomia da feacute frente agrave razatildeo em assuntos teoloacutegi-cos e o primado da razatildeo frente a todo e qualquer conhecimento humano ou

2 DESCARTES R Discurso do Meacutetodo Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 Quinta Parte pp 47-66 Reneacute Descartes [1596-1650] em sua obra Discurso do Meacutetodo configura uma proposta de liber-taccedilatildeo total da razatildeo do mundo objetivo e propotildee o estabelecimento mesmo de um criteacuterio subjetivo indubitaacutevel para a investigaccedilatildeo da existecircncia de Deus atraveacutes de um meacutetodo que girava ao redor da proacutepria razatildeo pondo nela mesma todas as condiccedilotildees de conhecimento Com isso assistimos no iniacutecio da Idade Moderna o comeccedilo da total impossibilidade de esta-belecer uma ciecircncia teoloacutegica que conciliasse a razatildeo e a feacute 3 GAYGILL H Dicionaacuterio Kant Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2000 verbete feacute pp 143-146 Alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalista cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] Este filoacutesofo alematildeo com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo seus justos limites frente agraves verdades de feacute que culmina com a tese defendida na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo elimina a autonomia da feacute a subordina aos limites da simples razatildeo 4 A postura radical de oposiccedilatildeo agrave razatildeo como meacutetodo superou agrave dos que propuseram certa aproximaccedilatildeo Assim frente ao racionalismo reinante no teacutermino da Escolaacutestica surgiram posi-ccedilotildees religiosas contraacuterias a esta radical exaltaccedilatildeo da razatildeo Neste contexto a Reforma protes-tante numa de suas criacuteticas compreendia que os pensadores cristatildeos

leiam-se catoacutelicos

exageravam no uso da razatildeo nas pesquisas teoloacutegicas Martinho Lutero [1483-1546] esboccedila esta criacutetica agrave razatildeo dialeacutetica em favor da interpretaccedilatildeo biacuteblica soacute mediante a feacute Neste teoacutelogo esbo-ccedila-se o modelo da crise entre razatildeo e feacute que se havia instaurado em sua eacutepoca a partir de uma criacutetica generalizada e ateacute preconceituosa com relaccedilatildeo aos escolaacutesticos

denominados como corruptores da feacute

que em seu momento propuseram aproximar a razatildeo das verdades revela-das

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seja a razatildeo presa aos seus proacuteprios limites e a eles a feacute subordinada quando natildeo negada

Mas o desencanto natildeo parou por aiacute pois alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalis-ta cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] que com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo os justos limites da razatildeo e nela os da religiatildeo como defenderia mais tarde na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo eliminou a autono-mia da feacute a subordinou aos limites da simples razatildeo

3 As consequumlecircncias do desencanto

Segundo a criacutetica de algumas correntes poacutes-modernas como a do relativismo urgia libertar a razatildeo de seus proacuteprios limites sem restaurar qualquer diaacutelogo com a feacute afirmando em sua subjetividade o criteacuterio de valor e verdade como defende Richard Rorty em seu pragmatismo5 O pseudo-conforto que o relativismo filosoacute-fico promove deflagra por fim o real e desesperante desencanto da razatildeo agora frente ao valor e agrave verdade universais Com esta proposta a razatildeo deixa de ser ordenadora universal perde o seu rumo e se fecha novamente em seus limites

O abandono dos seus limites passa por uma tentativa de resgate de seus princiacutepios e de sua abertura para o que lhe transcende mas natildeo a contraria A razatildeo ainda prisioneira de seus limites natildeo eacute dialeacutetica eacute escrava e natildeo livre o que de per se contradiz agrave proacutepria razatildeo jaacute que ela eacute justamente a capacidade da qual emana a liberdade ao diaacutelogo com o mundo com os outros consigo mesma e com Deus

Uma causa fundamental do desencanto hodierno da razatildeo eacute a perda do diaacute-logo com a feacute Mal compreendida a feacute foi vista nos uacuteltimos seacuteculos como limite externo agrave razatildeo Visatildeo equivocada pois ela natildeo deve ser considerada um limite senatildeo um princiacutepio transcendente agrave razatildeo Esta mesma ruptura entre razatildeo e feacute

5 RORTY R Contingence ironie et solidariteacute Paris Armand Colin 1995 p53 Objetivismo relativismo e verdade Escritos Filosoacuteficos I Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002 pp 39-40 Contra a teoria de Rorty vejam VALADIER P A A narquia dos valores Seraacute o Relativismo Fatal Lisboa Instituto Piaget 1997 pp 173-180 RATZINGER J A ditadura do relativismo Aquinate 2 (2006) in Ciecircncia amp Feacute wwwaquinatenet

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tem marcado o tom da anguacutestia dos discursos humanos acerca do sentido da vi-da da razatildeo e da religiatildeo nos uacuteltimos seacuteculos E para piorar ainda mais muacuteltiplos ataques se fazem agrave razatildeo quando esta alude um possiacutevel diaacutelogo com a feacute Mas eacute bem verdade que este diaacutelogo deve pautar-se na coerecircncia onde os princiacutepios da razatildeo sejam respeitados e o dado de feacute compreendido natildeo havendo lugar para sobreposiccedilotildees ou adaptaccedilotildees

Em nossos dias tecircm sido sucessivas as contendas em que marcam a oposi-ccedilatildeo entre razatildeo e feacute Sinal dos tempos em que o desencanto da razatildeo destoa qualquer diaacutelogo Satildeo inuacutemeros exemplos que demarcam esta oposiccedilatildeo mas um em especial eacute atualiacutessimo e nos chama a atenccedilatildeo o debate criacionismo x evolucio-nismo em que certos setores da ciecircncia primam pela explicaccedilatildeo racional de todo e qualquer fenocircmeno inclusive o religioso e certas religiotildees primam pela explica-ccedilatildeo soacute pela feacute O debate dialeacuteticos x antidialeacuteticos mais do que nunca se encon-tra presente em nossos dias sob a oacutetica desta contenda

Em seu livro A caixa preta de Darwin Michael Behe apresenta como proposta cientiacutefica a teoria dos complexos irredutiacuteveis 6 ou seja a tese segundo a qual a-firma que certas estruturas moleculares

como os gloacutebulos brancos

natildeo teriam a sua origem por acaso mediante a seleccedilatildeo natural e por conseguinte natildeo estari-am sujeitas agrave teoria do evolucionismo defendida por Charles Darwin na obra Ori-gem das espeacutecies7

Como siacutentese de sua criacutetica o bioquiacutemico norte-americano conclui afirman-do a necessidade da existecircncia de um intelligent design que haveria de ter proje-tado tais estruturas Michael Behe foi criticado por seus pares

e inclusive por cientistas cristatildeos como Fiorenzo Facchini8

por defender uma doutrina que natildeo havia passado pelo crivo cientiacutefico da verificaccedilatildeo e da demonstraccedilatildeo aleacutem de ser acusado de defender atraveacutes de sua teoria a doutrina cristatilde do criacionismo que pautada no livro do Gecircnesis estabelece a necessaacuteria existecircncia de uma Causa eficiente criadora e ordenadora do universo9

Desenvolvimento

1 O resgate do encanto

6 BEHE M A Caixa Preta de Darwin O desafio da bioquiacutemica agrave teoria da evoluccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 pp 190-210 7 DARWIN CH Origem das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 pp 89-90 8 FACCHINI F Evoluccedilatildeo e Criaccedilatildeo L Osservatore Romano 17 de Janeiro de 2006 9 Gn 11

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Como vimos na contenda criacionismo x evolucionismo o debate entre ra-

zatildeo e feacute eacute atual mas as suas origens remontam ao periacuteodo patriacutestico10 em que se discutiu o papel da razatildeo nas investigaccedilotildees teoloacutegicas e onde encontraremos a bela contribuiccedilatildeo agostiniana de que a graccedila natildeo suprime a natureza racional mas a aperfeiccediloa11 Contudo foi na escolaacutestica12 do seacutec XI ao XIII que esta questatildeo teve o seu apogeu com uma proposiccedilatildeo de conciliaccedilatildeo entre razatildeo e feacute

10 Por Patriacutestica entendemos tambeacutem duas coisas o periacuteodo histoacuterico do pensamento cristatildeo compreendido entre os seacutec I e VII e a sistematizaccedilatildeo da filosofia cristatilde e da teologia ensinadas neste periacuteodo por aqueles que foram denominados Padres da Igreja justamente por gerarem e guardarem o patrimocircnio doutrinal filosoacutefico e teoloacutegico que natildeo se justapunham agraves verdades de feacute do Cristianismo DROBNER HR Manual de Patrologia Petroacutepolis Vozes 1997 pp 11-14 11 Muito enriquece o seguinte esclarecimento Para Agostinho a natureza merece elogios co-mo obra saiacuteda das matildeos criadoras de Deus mas no estado atual acha-se enferma e debilitada devido ao pecado necessitada de socorro divino isto eacute da graccedila Esta aperfeiccediloa enobrece cura e santifica o homem Reconhece o valor da natureza poreacutem deixada a si mesma natildeo tem nenhuma potencialidade a natildeo ser para o pecado Deus criara de fato o homem com perfei-ccedilatildeo equiliacutebrio e iacutentegro Com a transgressatildeo perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido agraves geraccedilotildees sucessivas Neste estado o homem natildeo teria salvaccedilatildeo se natildeo lhe fosse dada a graccedila de Deus Esta eacute dom gratuito Natildeo eacute devida aos meacuteritos humanos gratia gratis data unde et gratia nomiatur [a graccedila eacute dada de graccedila pelo que esse nome lhe eacute dado] Agostinho insiste em que a graccedila natildeo eacute dada em recompensa a nossos meacuteritos ou devido agrave nossa dignida-de natural Trabalhei mais que todos embora natildeo eu mas a graccedila de Deus que estaacute comigo (1Cor 1510) O meacuterito natildeo eacute fruto do ato humano mas da accedilatildeo amorosa de Deus Do contraacute-rio a graccedila natildeo seria dom mas soldo Para Agostinho a verdadeira graccedila eacute aquela obtida pelos meacuteritos de Jesus Cristo aquela que natildeo eacute a natureza mas a que salva a natureza Contudo o homem natildeo permanece meramente passivo sob a accedilatildeo da graccedila Haacute cooperaccedilatildeo humana A graccedila nos faz cooperadores de Deus porque aleacutem de perdoar os pecados faz com que o espiacute-rito humano coopere na praacutetica das boas obras noacutes agimos mas Deus opera em noacutes o agir Natureza e graccedila natildeo satildeo forccedilas que se opotildeem que se destroem mas que se irmanam se aju-dam Assim como a medicina natildeo vai contra a natureza mas contra a enfermidade a graccedila vai contra os viacutecios e defeitos da natureza Por isso a graccedila natildeo destroacutei a natureza mas a aperfeiccediloa [gra-tia non tollit sed perficit naturam] Contra aqueles que crecircem na inocecircncia do homem no seu poder de viver sem pecado graccedilas a seus proacuteprios esforccedilos Agostinho explora a miseacuteria espiri-tual profunda do homem tanto antes quanto depois do batismo Antes pelo fato da transmis-satildeo hereditaacuteria e da imputaccedilatildeo do pecado de Adatildeo Depois do batismo o homem se torna inevitalmente pecador por forccedila da concupiscecircncia Haacute uma espeacutecie de necessidade de pecar Por essa razatildeo o homem tem necesidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino SANTO AGOSTINHO A Graccedila (I) Satildeo Paulo Paulus 1999 Introduccedilatildeo por R Frangiotti pp106-108] 12 Por Escolaacutestica entendemos duas coisas o periacuteodo medieval da formaccedilatildeo das Escolas e a sis-tematizaccedilatildeo da filosofia e da teologia ensinadas nestas escolas Embora inicialmente no seacuteculo XVI o termo era usado de forma depreciativa em relaccedilatildeo ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais esta conotaccedilatildeo foi e ainda eacute cada vez mais sinocircnimo de um periacuteodo e sistemas aacuteureos do Medievo LOYN HR Dicionaacuterio da Idade Meacutedia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 verbete escolaacutestica pp 132-133

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 4: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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seja a razatildeo presa aos seus proacuteprios limites e a eles a feacute subordinada quando natildeo negada

Mas o desencanto natildeo parou por aiacute pois alguns seacuteculos depois no periacuteodo aacuteureo da instauraccedilatildeo fideista luterana da autonomia e primado da feacute e racionalis-ta cartesiana da autonomia e primado da razatildeo surgiu um pensador cristatildeo de influecircncia luterana e inspiraccedilatildeo cartesiana Emanuel Kant [1724-1804] que com a sua obra A criacutetica da razatildeo pura procurava estabelecer sem negar a autonomia da razatildeo os justos limites da razatildeo e nela os da religiatildeo como defenderia mais tarde na obra A religiatildeo dentro dos limites da simples razatildeo onde se natildeo eliminou a autono-mia da feacute a subordinou aos limites da simples razatildeo

3 As consequumlecircncias do desencanto

Segundo a criacutetica de algumas correntes poacutes-modernas como a do relativismo urgia libertar a razatildeo de seus proacuteprios limites sem restaurar qualquer diaacutelogo com a feacute afirmando em sua subjetividade o criteacuterio de valor e verdade como defende Richard Rorty em seu pragmatismo5 O pseudo-conforto que o relativismo filosoacute-fico promove deflagra por fim o real e desesperante desencanto da razatildeo agora frente ao valor e agrave verdade universais Com esta proposta a razatildeo deixa de ser ordenadora universal perde o seu rumo e se fecha novamente em seus limites

O abandono dos seus limites passa por uma tentativa de resgate de seus princiacutepios e de sua abertura para o que lhe transcende mas natildeo a contraria A razatildeo ainda prisioneira de seus limites natildeo eacute dialeacutetica eacute escrava e natildeo livre o que de per se contradiz agrave proacutepria razatildeo jaacute que ela eacute justamente a capacidade da qual emana a liberdade ao diaacutelogo com o mundo com os outros consigo mesma e com Deus

Uma causa fundamental do desencanto hodierno da razatildeo eacute a perda do diaacute-logo com a feacute Mal compreendida a feacute foi vista nos uacuteltimos seacuteculos como limite externo agrave razatildeo Visatildeo equivocada pois ela natildeo deve ser considerada um limite senatildeo um princiacutepio transcendente agrave razatildeo Esta mesma ruptura entre razatildeo e feacute

5 RORTY R Contingence ironie et solidariteacute Paris Armand Colin 1995 p53 Objetivismo relativismo e verdade Escritos Filosoacuteficos I Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2002 pp 39-40 Contra a teoria de Rorty vejam VALADIER P A A narquia dos valores Seraacute o Relativismo Fatal Lisboa Instituto Piaget 1997 pp 173-180 RATZINGER J A ditadura do relativismo Aquinate 2 (2006) in Ciecircncia amp Feacute wwwaquinatenet

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tem marcado o tom da anguacutestia dos discursos humanos acerca do sentido da vi-da da razatildeo e da religiatildeo nos uacuteltimos seacuteculos E para piorar ainda mais muacuteltiplos ataques se fazem agrave razatildeo quando esta alude um possiacutevel diaacutelogo com a feacute Mas eacute bem verdade que este diaacutelogo deve pautar-se na coerecircncia onde os princiacutepios da razatildeo sejam respeitados e o dado de feacute compreendido natildeo havendo lugar para sobreposiccedilotildees ou adaptaccedilotildees

Em nossos dias tecircm sido sucessivas as contendas em que marcam a oposi-ccedilatildeo entre razatildeo e feacute Sinal dos tempos em que o desencanto da razatildeo destoa qualquer diaacutelogo Satildeo inuacutemeros exemplos que demarcam esta oposiccedilatildeo mas um em especial eacute atualiacutessimo e nos chama a atenccedilatildeo o debate criacionismo x evolucio-nismo em que certos setores da ciecircncia primam pela explicaccedilatildeo racional de todo e qualquer fenocircmeno inclusive o religioso e certas religiotildees primam pela explica-ccedilatildeo soacute pela feacute O debate dialeacuteticos x antidialeacuteticos mais do que nunca se encon-tra presente em nossos dias sob a oacutetica desta contenda

Em seu livro A caixa preta de Darwin Michael Behe apresenta como proposta cientiacutefica a teoria dos complexos irredutiacuteveis 6 ou seja a tese segundo a qual a-firma que certas estruturas moleculares

como os gloacutebulos brancos

natildeo teriam a sua origem por acaso mediante a seleccedilatildeo natural e por conseguinte natildeo estari-am sujeitas agrave teoria do evolucionismo defendida por Charles Darwin na obra Ori-gem das espeacutecies7

Como siacutentese de sua criacutetica o bioquiacutemico norte-americano conclui afirman-do a necessidade da existecircncia de um intelligent design que haveria de ter proje-tado tais estruturas Michael Behe foi criticado por seus pares

e inclusive por cientistas cristatildeos como Fiorenzo Facchini8

por defender uma doutrina que natildeo havia passado pelo crivo cientiacutefico da verificaccedilatildeo e da demonstraccedilatildeo aleacutem de ser acusado de defender atraveacutes de sua teoria a doutrina cristatilde do criacionismo que pautada no livro do Gecircnesis estabelece a necessaacuteria existecircncia de uma Causa eficiente criadora e ordenadora do universo9

Desenvolvimento

1 O resgate do encanto

6 BEHE M A Caixa Preta de Darwin O desafio da bioquiacutemica agrave teoria da evoluccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 pp 190-210 7 DARWIN CH Origem das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 pp 89-90 8 FACCHINI F Evoluccedilatildeo e Criaccedilatildeo L Osservatore Romano 17 de Janeiro de 2006 9 Gn 11

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Como vimos na contenda criacionismo x evolucionismo o debate entre ra-

zatildeo e feacute eacute atual mas as suas origens remontam ao periacuteodo patriacutestico10 em que se discutiu o papel da razatildeo nas investigaccedilotildees teoloacutegicas e onde encontraremos a bela contribuiccedilatildeo agostiniana de que a graccedila natildeo suprime a natureza racional mas a aperfeiccediloa11 Contudo foi na escolaacutestica12 do seacutec XI ao XIII que esta questatildeo teve o seu apogeu com uma proposiccedilatildeo de conciliaccedilatildeo entre razatildeo e feacute

10 Por Patriacutestica entendemos tambeacutem duas coisas o periacuteodo histoacuterico do pensamento cristatildeo compreendido entre os seacutec I e VII e a sistematizaccedilatildeo da filosofia cristatilde e da teologia ensinadas neste periacuteodo por aqueles que foram denominados Padres da Igreja justamente por gerarem e guardarem o patrimocircnio doutrinal filosoacutefico e teoloacutegico que natildeo se justapunham agraves verdades de feacute do Cristianismo DROBNER HR Manual de Patrologia Petroacutepolis Vozes 1997 pp 11-14 11 Muito enriquece o seguinte esclarecimento Para Agostinho a natureza merece elogios co-mo obra saiacuteda das matildeos criadoras de Deus mas no estado atual acha-se enferma e debilitada devido ao pecado necessitada de socorro divino isto eacute da graccedila Esta aperfeiccediloa enobrece cura e santifica o homem Reconhece o valor da natureza poreacutem deixada a si mesma natildeo tem nenhuma potencialidade a natildeo ser para o pecado Deus criara de fato o homem com perfei-ccedilatildeo equiliacutebrio e iacutentegro Com a transgressatildeo perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido agraves geraccedilotildees sucessivas Neste estado o homem natildeo teria salvaccedilatildeo se natildeo lhe fosse dada a graccedila de Deus Esta eacute dom gratuito Natildeo eacute devida aos meacuteritos humanos gratia gratis data unde et gratia nomiatur [a graccedila eacute dada de graccedila pelo que esse nome lhe eacute dado] Agostinho insiste em que a graccedila natildeo eacute dada em recompensa a nossos meacuteritos ou devido agrave nossa dignida-de natural Trabalhei mais que todos embora natildeo eu mas a graccedila de Deus que estaacute comigo (1Cor 1510) O meacuterito natildeo eacute fruto do ato humano mas da accedilatildeo amorosa de Deus Do contraacute-rio a graccedila natildeo seria dom mas soldo Para Agostinho a verdadeira graccedila eacute aquela obtida pelos meacuteritos de Jesus Cristo aquela que natildeo eacute a natureza mas a que salva a natureza Contudo o homem natildeo permanece meramente passivo sob a accedilatildeo da graccedila Haacute cooperaccedilatildeo humana A graccedila nos faz cooperadores de Deus porque aleacutem de perdoar os pecados faz com que o espiacute-rito humano coopere na praacutetica das boas obras noacutes agimos mas Deus opera em noacutes o agir Natureza e graccedila natildeo satildeo forccedilas que se opotildeem que se destroem mas que se irmanam se aju-dam Assim como a medicina natildeo vai contra a natureza mas contra a enfermidade a graccedila vai contra os viacutecios e defeitos da natureza Por isso a graccedila natildeo destroacutei a natureza mas a aperfeiccediloa [gra-tia non tollit sed perficit naturam] Contra aqueles que crecircem na inocecircncia do homem no seu poder de viver sem pecado graccedilas a seus proacuteprios esforccedilos Agostinho explora a miseacuteria espiri-tual profunda do homem tanto antes quanto depois do batismo Antes pelo fato da transmis-satildeo hereditaacuteria e da imputaccedilatildeo do pecado de Adatildeo Depois do batismo o homem se torna inevitalmente pecador por forccedila da concupiscecircncia Haacute uma espeacutecie de necessidade de pecar Por essa razatildeo o homem tem necesidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino SANTO AGOSTINHO A Graccedila (I) Satildeo Paulo Paulus 1999 Introduccedilatildeo por R Frangiotti pp106-108] 12 Por Escolaacutestica entendemos duas coisas o periacuteodo medieval da formaccedilatildeo das Escolas e a sis-tematizaccedilatildeo da filosofia e da teologia ensinadas nestas escolas Embora inicialmente no seacuteculo XVI o termo era usado de forma depreciativa em relaccedilatildeo ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais esta conotaccedilatildeo foi e ainda eacute cada vez mais sinocircnimo de um periacuteodo e sistemas aacuteureos do Medievo LOYN HR Dicionaacuterio da Idade Meacutedia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 verbete escolaacutestica pp 132-133

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 5: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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tem marcado o tom da anguacutestia dos discursos humanos acerca do sentido da vi-da da razatildeo e da religiatildeo nos uacuteltimos seacuteculos E para piorar ainda mais muacuteltiplos ataques se fazem agrave razatildeo quando esta alude um possiacutevel diaacutelogo com a feacute Mas eacute bem verdade que este diaacutelogo deve pautar-se na coerecircncia onde os princiacutepios da razatildeo sejam respeitados e o dado de feacute compreendido natildeo havendo lugar para sobreposiccedilotildees ou adaptaccedilotildees

Em nossos dias tecircm sido sucessivas as contendas em que marcam a oposi-ccedilatildeo entre razatildeo e feacute Sinal dos tempos em que o desencanto da razatildeo destoa qualquer diaacutelogo Satildeo inuacutemeros exemplos que demarcam esta oposiccedilatildeo mas um em especial eacute atualiacutessimo e nos chama a atenccedilatildeo o debate criacionismo x evolucio-nismo em que certos setores da ciecircncia primam pela explicaccedilatildeo racional de todo e qualquer fenocircmeno inclusive o religioso e certas religiotildees primam pela explica-ccedilatildeo soacute pela feacute O debate dialeacuteticos x antidialeacuteticos mais do que nunca se encon-tra presente em nossos dias sob a oacutetica desta contenda

Em seu livro A caixa preta de Darwin Michael Behe apresenta como proposta cientiacutefica a teoria dos complexos irredutiacuteveis 6 ou seja a tese segundo a qual a-firma que certas estruturas moleculares

como os gloacutebulos brancos

natildeo teriam a sua origem por acaso mediante a seleccedilatildeo natural e por conseguinte natildeo estari-am sujeitas agrave teoria do evolucionismo defendida por Charles Darwin na obra Ori-gem das espeacutecies7

Como siacutentese de sua criacutetica o bioquiacutemico norte-americano conclui afirman-do a necessidade da existecircncia de um intelligent design que haveria de ter proje-tado tais estruturas Michael Behe foi criticado por seus pares

e inclusive por cientistas cristatildeos como Fiorenzo Facchini8

por defender uma doutrina que natildeo havia passado pelo crivo cientiacutefico da verificaccedilatildeo e da demonstraccedilatildeo aleacutem de ser acusado de defender atraveacutes de sua teoria a doutrina cristatilde do criacionismo que pautada no livro do Gecircnesis estabelece a necessaacuteria existecircncia de uma Causa eficiente criadora e ordenadora do universo9

Desenvolvimento

1 O resgate do encanto

6 BEHE M A Caixa Preta de Darwin O desafio da bioquiacutemica agrave teoria da evoluccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 pp 190-210 7 DARWIN CH Origem das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 pp 89-90 8 FACCHINI F Evoluccedilatildeo e Criaccedilatildeo L Osservatore Romano 17 de Janeiro de 2006 9 Gn 11

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Como vimos na contenda criacionismo x evolucionismo o debate entre ra-

zatildeo e feacute eacute atual mas as suas origens remontam ao periacuteodo patriacutestico10 em que se discutiu o papel da razatildeo nas investigaccedilotildees teoloacutegicas e onde encontraremos a bela contribuiccedilatildeo agostiniana de que a graccedila natildeo suprime a natureza racional mas a aperfeiccediloa11 Contudo foi na escolaacutestica12 do seacutec XI ao XIII que esta questatildeo teve o seu apogeu com uma proposiccedilatildeo de conciliaccedilatildeo entre razatildeo e feacute

10 Por Patriacutestica entendemos tambeacutem duas coisas o periacuteodo histoacuterico do pensamento cristatildeo compreendido entre os seacutec I e VII e a sistematizaccedilatildeo da filosofia cristatilde e da teologia ensinadas neste periacuteodo por aqueles que foram denominados Padres da Igreja justamente por gerarem e guardarem o patrimocircnio doutrinal filosoacutefico e teoloacutegico que natildeo se justapunham agraves verdades de feacute do Cristianismo DROBNER HR Manual de Patrologia Petroacutepolis Vozes 1997 pp 11-14 11 Muito enriquece o seguinte esclarecimento Para Agostinho a natureza merece elogios co-mo obra saiacuteda das matildeos criadoras de Deus mas no estado atual acha-se enferma e debilitada devido ao pecado necessitada de socorro divino isto eacute da graccedila Esta aperfeiccediloa enobrece cura e santifica o homem Reconhece o valor da natureza poreacutem deixada a si mesma natildeo tem nenhuma potencialidade a natildeo ser para o pecado Deus criara de fato o homem com perfei-ccedilatildeo equiliacutebrio e iacutentegro Com a transgressatildeo perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido agraves geraccedilotildees sucessivas Neste estado o homem natildeo teria salvaccedilatildeo se natildeo lhe fosse dada a graccedila de Deus Esta eacute dom gratuito Natildeo eacute devida aos meacuteritos humanos gratia gratis data unde et gratia nomiatur [a graccedila eacute dada de graccedila pelo que esse nome lhe eacute dado] Agostinho insiste em que a graccedila natildeo eacute dada em recompensa a nossos meacuteritos ou devido agrave nossa dignida-de natural Trabalhei mais que todos embora natildeo eu mas a graccedila de Deus que estaacute comigo (1Cor 1510) O meacuterito natildeo eacute fruto do ato humano mas da accedilatildeo amorosa de Deus Do contraacute-rio a graccedila natildeo seria dom mas soldo Para Agostinho a verdadeira graccedila eacute aquela obtida pelos meacuteritos de Jesus Cristo aquela que natildeo eacute a natureza mas a que salva a natureza Contudo o homem natildeo permanece meramente passivo sob a accedilatildeo da graccedila Haacute cooperaccedilatildeo humana A graccedila nos faz cooperadores de Deus porque aleacutem de perdoar os pecados faz com que o espiacute-rito humano coopere na praacutetica das boas obras noacutes agimos mas Deus opera em noacutes o agir Natureza e graccedila natildeo satildeo forccedilas que se opotildeem que se destroem mas que se irmanam se aju-dam Assim como a medicina natildeo vai contra a natureza mas contra a enfermidade a graccedila vai contra os viacutecios e defeitos da natureza Por isso a graccedila natildeo destroacutei a natureza mas a aperfeiccediloa [gra-tia non tollit sed perficit naturam] Contra aqueles que crecircem na inocecircncia do homem no seu poder de viver sem pecado graccedilas a seus proacuteprios esforccedilos Agostinho explora a miseacuteria espiri-tual profunda do homem tanto antes quanto depois do batismo Antes pelo fato da transmis-satildeo hereditaacuteria e da imputaccedilatildeo do pecado de Adatildeo Depois do batismo o homem se torna inevitalmente pecador por forccedila da concupiscecircncia Haacute uma espeacutecie de necessidade de pecar Por essa razatildeo o homem tem necesidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino SANTO AGOSTINHO A Graccedila (I) Satildeo Paulo Paulus 1999 Introduccedilatildeo por R Frangiotti pp106-108] 12 Por Escolaacutestica entendemos duas coisas o periacuteodo medieval da formaccedilatildeo das Escolas e a sis-tematizaccedilatildeo da filosofia e da teologia ensinadas nestas escolas Embora inicialmente no seacuteculo XVI o termo era usado de forma depreciativa em relaccedilatildeo ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais esta conotaccedilatildeo foi e ainda eacute cada vez mais sinocircnimo de um periacuteodo e sistemas aacuteureos do Medievo LOYN HR Dicionaacuterio da Idade Meacutedia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 verbete escolaacutestica pp 132-133

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 6: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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Como vimos na contenda criacionismo x evolucionismo o debate entre ra-

zatildeo e feacute eacute atual mas as suas origens remontam ao periacuteodo patriacutestico10 em que se discutiu o papel da razatildeo nas investigaccedilotildees teoloacutegicas e onde encontraremos a bela contribuiccedilatildeo agostiniana de que a graccedila natildeo suprime a natureza racional mas a aperfeiccediloa11 Contudo foi na escolaacutestica12 do seacutec XI ao XIII que esta questatildeo teve o seu apogeu com uma proposiccedilatildeo de conciliaccedilatildeo entre razatildeo e feacute

10 Por Patriacutestica entendemos tambeacutem duas coisas o periacuteodo histoacuterico do pensamento cristatildeo compreendido entre os seacutec I e VII e a sistematizaccedilatildeo da filosofia cristatilde e da teologia ensinadas neste periacuteodo por aqueles que foram denominados Padres da Igreja justamente por gerarem e guardarem o patrimocircnio doutrinal filosoacutefico e teoloacutegico que natildeo se justapunham agraves verdades de feacute do Cristianismo DROBNER HR Manual de Patrologia Petroacutepolis Vozes 1997 pp 11-14 11 Muito enriquece o seguinte esclarecimento Para Agostinho a natureza merece elogios co-mo obra saiacuteda das matildeos criadoras de Deus mas no estado atual acha-se enferma e debilitada devido ao pecado necessitada de socorro divino isto eacute da graccedila Esta aperfeiccediloa enobrece cura e santifica o homem Reconhece o valor da natureza poreacutem deixada a si mesma natildeo tem nenhuma potencialidade a natildeo ser para o pecado Deus criara de fato o homem com perfei-ccedilatildeo equiliacutebrio e iacutentegro Com a transgressatildeo perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido agraves geraccedilotildees sucessivas Neste estado o homem natildeo teria salvaccedilatildeo se natildeo lhe fosse dada a graccedila de Deus Esta eacute dom gratuito Natildeo eacute devida aos meacuteritos humanos gratia gratis data unde et gratia nomiatur [a graccedila eacute dada de graccedila pelo que esse nome lhe eacute dado] Agostinho insiste em que a graccedila natildeo eacute dada em recompensa a nossos meacuteritos ou devido agrave nossa dignida-de natural Trabalhei mais que todos embora natildeo eu mas a graccedila de Deus que estaacute comigo (1Cor 1510) O meacuterito natildeo eacute fruto do ato humano mas da accedilatildeo amorosa de Deus Do contraacute-rio a graccedila natildeo seria dom mas soldo Para Agostinho a verdadeira graccedila eacute aquela obtida pelos meacuteritos de Jesus Cristo aquela que natildeo eacute a natureza mas a que salva a natureza Contudo o homem natildeo permanece meramente passivo sob a accedilatildeo da graccedila Haacute cooperaccedilatildeo humana A graccedila nos faz cooperadores de Deus porque aleacutem de perdoar os pecados faz com que o espiacute-rito humano coopere na praacutetica das boas obras noacutes agimos mas Deus opera em noacutes o agir Natureza e graccedila natildeo satildeo forccedilas que se opotildeem que se destroem mas que se irmanam se aju-dam Assim como a medicina natildeo vai contra a natureza mas contra a enfermidade a graccedila vai contra os viacutecios e defeitos da natureza Por isso a graccedila natildeo destroacutei a natureza mas a aperfeiccediloa [gra-tia non tollit sed perficit naturam] Contra aqueles que crecircem na inocecircncia do homem no seu poder de viver sem pecado graccedilas a seus proacuteprios esforccedilos Agostinho explora a miseacuteria espiri-tual profunda do homem tanto antes quanto depois do batismo Antes pelo fato da transmis-satildeo hereditaacuteria e da imputaccedilatildeo do pecado de Adatildeo Depois do batismo o homem se torna inevitalmente pecador por forccedila da concupiscecircncia Haacute uma espeacutecie de necessidade de pecar Por essa razatildeo o homem tem necesidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino SANTO AGOSTINHO A Graccedila (I) Satildeo Paulo Paulus 1999 Introduccedilatildeo por R Frangiotti pp106-108] 12 Por Escolaacutestica entendemos duas coisas o periacuteodo medieval da formaccedilatildeo das Escolas e a sis-tematizaccedilatildeo da filosofia e da teologia ensinadas nestas escolas Embora inicialmente no seacuteculo XVI o termo era usado de forma depreciativa em relaccedilatildeo ao sistema de filosofia praticado nas escolas e universidades medievais esta conotaccedilatildeo foi e ainda eacute cada vez mais sinocircnimo de um periacuteodo e sistemas aacuteureos do Medievo LOYN HR Dicionaacuterio da Idade Meacutedia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997 verbete escolaacutestica pp 132-133

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 7: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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O tema de que se ocupou esta calorosa disputa13 ocorrida na Escolaacutestica do

seacuteculo XI14 entre dialeacuteticos15 e antidialeacuteticos16 foi acerca da licitude do uso da razatildeo dialeacutetica em questotildees teoloacutegicas e teve por personagens principais Berengaacute-rio de Tours [1000-1088] atraveacutes da obra De Sacra Coena adversus Lanfrancum17 e Pedro Damiatildeo [1007-1072] atraveacutes da obra De divina omnipotentia18

Alguns dialeacuteticos afirmaram que as realidades que natildeo se enquadravam nos princiacutepios de demonstraccedilatildeo dialeacutetica natildeo poderiam ser consideradas verdadeiras Ora para eles as verdades de feacute por natildeo se enquadrarem nos justos limites da razatildeo natildeo poderiam ser verdadeiras se natildeo pudessem ser demonstradas Os an-tidialeacuteticos alegaram em oposiccedilatildeo que as verdades de feacute natildeo se enquadrariam nos justos limites da demonstraccedilatildeo dialeacutetica por natildeo estarem sujeitas a eles e que em-bora natildeo os contrariassem natildeo dependia deles para serem verdadeiras

2 Aristoacuteteles a fonte da dialeacutetica como meacutetodo

Esta querela escolaacutestica supocircs em todo o seu desenvolvimento a dialeacutetica que no Medievo era entendida como uma das disciplinas que compunham o trivi-

13 A disputa forma parte do meacutetodo de investigaccedilatildeo escolaacutestico As mencionadas trecircs etapas no desenvolvimento do meacutetodo na filosofia e na teologia escolaacutestica caracterizam-se pelo su-cessivo primado de trecircs elementos a palavra de Deus [lectio ou leitura do texto sagrado] a utili-zaccedilatildeo das autoridades [auctoritas ou Padres da Igreja] o uso da razatildeo para a formulaccedilatildeo de questotildees [quaestiones ou das duacutevidas] e a discussatildeo [dialeacutetica] acerca da questatildeo [disputatio ou disputa] 14 As bibliografias especializadas em Histoacuteria da Filosofia Medieval destacam a importacircncia deste debate natildeo soacute para a configuraccedilatildeo da ulterior conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo mas tambeacutem para uma mais plena e adequada discussatildeo do tema da onipotecircncia divina Como referecircncias noacutes indicamos FRAILE G Historia de la Filosofia II (1deg) Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1986 pp 345-353 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 pp 281-288 GILSON E L Esprit de la Philosophie Meacutedieacutevale Paris Vrin 1989 pp 1-38 SARANYA-NA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 116-119 15 O termo dialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que sustentaram que pelo uso da dialeacutetica soacute a razatildeo atinge a verdade cuja tarefa consiste em esclarecer os conceitos de tal maneira que o uso da razatildeo neste meacutetodo e disciplina esteja acima da autoridade ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensa-mento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 16 O termo antidialeacutetico se aplica aos escolaacutesticos que se opuseram aos que consideravam o uso da dialeacutetica o uacutenico meio de atingir a verdade e de inclusive debater acerca das verdade revela-das ZILLES U Feacute e Razatildeo no Pensamento Medieval Porto Alegre Edipucrs 1996 p 57 17 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101 18 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 144-145

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 8: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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um19 necessaacuteria para a formaccedilatildeo intelectual do homem livre e usada como meacuteto-do para aperfeiccediloar a arte de argumentar Originalmente foi transmitida da An-tiguumlidade claacutessica ao Medievo a partir de sucessivas contribuiccedilotildees mas a sua fon-te principal eacute a loacutegica do filoacutesofo grego Aristoacuteteles [384-322 aC] de quem W Jaeger afirma ser o primeiro pensador que forjou ao mesmo tempo que a sua filosofia um conceito de sua importacircncia na histoacuteria20

Aristoacuteteles eacute o pai da loacutegica mas poderiacuteamos dizer que os meacutetodos de pes-quisa de Zenatildeo de Eleacutea Soacutecrates a dialeacutetica de Platatildeo a dos Eleatas e a dos So-fistas jaacute eram loacutegicos tendo ele dado continuidade a um esforccedilo jaacute comeccedilado21 Foi Alexandre de Afrodiacutesia [200 dC] que denominou Oacuterganon ou instrumento agrave seacuterie de obras loacutegicas do Estagirita [Categorias Sobre a Interpretaccedilatildeo Primeiros Analiacuteti-cos Segundo A naliacuteticos Toacutepicos e Refutaccedilotildees Sofiacutesticas] e que por primeiro valeu-se da palavra loacutegica logikraquo pois como nos atesta D Ross este nome era desconhecido de Aristoacuteteles22 embora natildeo o fosse o de dialeacutetica dialektikOgravej23

A doutrina loacutegica aristoteacutelica sobre a dialeacutetica foi tratada especialmente na obra Toacutepicos a ponto de M C Sanmartiacuten afirmar que nesta obra se encontre in nuce toda a loacutegica aristoteacutelica24 Segundo M-D Philippe essa obra trata da ativi-dade de nossa razatildeo empenhada numa procura intelectual em meio agraves diversas opiniotildees dos homens que se serve dos argumentos mais comuns25

Muito oportunas satildeo as palavras de ECB Bittar que nos recorda que em-bora o termo toacutepos em Aristoacuteteles signifique originalmente limite fixo do corpo continente [Fiacutesica IV 212ordf] aqui neste contexto o toma em outro sentido para significar e indicar os lugares comuns tOgravepoi do silogismo dialeacutetico aqueles ar-

19 O programa de educaccedilatildeo medieval tinha o nome de A rtes liberales A instruccedilatildeo correspondia aos livres e o trabalho manual aos escravos Daiacute tais artes darem somente o nome ao programa de educaccedilatildeo dos homens livres e afeitos ao trabalho intelectual Tais artes eram distribuiacutedas em sermocinales de sermo palavra com trecircs disciplinas

gramaacutetica retoacuterica e dialeacutetica eis o trivium e reales de res real com quatro disciplinas

aritmeacutetica geometria astronomia e muacutesica eis o quatrivium A dialeacutetica dentre tais disciplinas teve grande importacircncia tanto no uso quanto na forma pois servia de instrumento para a busca da verdade mas tambeacutem de falaacutecia e engano 20 JAEGER W Aristoteles bases para la historia de su desarrollo intelectual Meacutexico Fondo de Cultura Econocircmica 1984 p 11 21 ARISTOacuteTELES Refutaccedilotildees sofiacutesticas 34 183b 15 22 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 23 BONITZ H Index A ristotelicus Berlin Walter de Gruyter 1961 p 183 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 20 24 SANMARTIacuteN MC Toacutepicos in Aristoacuteteles Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) I Madrid Gredos 1994 81 25 PHILIPPE M-D Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Pulo Paulus 2002 p 242

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 9: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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gumentos comumente explorados nos debates entre pensadores e profissionais da palavra puacuteblica26 Assim M Kappes se refere aos lugares comuns no sentido dialeacutetico e retoacuterico satildeo o tOgravepoi os pontos de vista comuns a partir dos quais uma coisa pode ser considerada 27

O tratado apresenta no Livro I uma introduccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico que se desenvolveraacute em outros seis livros em que apresentaratildeo os lugares comuns da argumentaccedilatildeo Os livros II e III trataratildeo da predicaccedilatildeo acidental em geral O livro IV trataraacute do primeiro lugar comum ou da predicaccedilatildeo geneacuterica O livro V do segundo lugar comum ou da predicaccedilatildeo proacutepria e os livros VI do terceiro ou da predicaccedilatildeo definidora e o VII do quarto lugar comum ou da predicaccedilatildeo de identidade E finaliza com uma proposta praacutetica do uso da dialeacutetica no Livro VII-I

Assim ele apresenta o objetivo de sua obra

Nosso tratado se propotildee encontrar um meacutetodo de investigaccedilatildeo graccedilas ao qual possamos raciocinar partindo de opiniotildees geralmen-te aceitas sobre qualquer problema que nos seja proposto e sejamos tambeacutem capazes quando replicamos a um argumento de evitar di-zer alguma coisa que nos cause embaraccedilos Devemos em primeiro lugar explicar o que eacute o raciociacutenio e quais satildeo as suas variedades a fim de entender o raciociacutenio dialeacutetico pois tal eacute o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de noacutes 28

Antes mesmo de estabelecer a dialeacutetica como um tipo de raciociacutenio o autor comeccedila por dizer o que eacute o raciociacutenio

O raciociacutenio eacute um argumento em que estabelecidas certas coisas outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primei-ras29

Feito isso distingue quatro tipos de raciociacutenios dos quais um eacute o dialeacutetico

26 BITTAR ECB Curso de Filosofia Aristoteacutelica Satildeo Pulo Manole 2003 p 292 27 KAPPES M Aristoacuteteles-Lexikon New York Burt Franklin 1971 p 57 28 ARISTOacuteTELES Toacutepicos I 1 100ordf 18-24 29 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 25-26

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 10: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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o raciociacutenio eacute dialeacutetico quando parte de opiniotildees geralmente acei-

tas 30

E para tanto ele precisa que

a proposiccedilatildeo dialeacutetica eacute uma interrogaccedilatildeo provaacutevel quer para to-dos quer para a maioria quer para os saacutebios e dentro destes quer para todos quer para a maioria quer para os mais notaacuteveis 31

Concluindo podemos dizer que para ele a dialeacutetica eacute a arte de argumentar um meacutetodo que permite desempenhar com ecircxito em toda discussatildeo dialeacutetica o papel de questionador e de respondente

3 Santo Agostinho a dialeacutetica como disciplina

Muito provavelmente deveu-se a Ciacutecero [106-43 aC] em liacutengua latina tomar como sinocircnimo de loacutegica o termo dialeacutetica32 embora nos ateste P Alcoforado ter sido o seu uso comum a partir de Santo Agostinho33 De fato com Santo Agosti-nho [354-430] o uso deste vocaacutebulo como sinocircnimo de disputa se torna comum em liacutengua latina Soma-se a isso o testemunho favoraacutevel de sua aplicaccedilatildeo agrave anaacutelise das questotildees filosoacuteficas e inclusive teoloacutegicas

Restando considerar as artes que natildeo pertencem aos sentidos mas agrave razatildeo da alma onde reina a disciplina dialeacutetica [disciplina disputa-tionis] e a aritmeacutetica [disciplina numeris] A dialeacutetica eacute de muitiacutessi-mo valor para penetrar e resolver todo gecircnero de dificuldades que se apresentam nos Livros Sagrados 34

Sem sombras de duacutevidas a contribuiccedilatildeo de Marciano Capella [365-430]35

foi fundamental para que se configurasse desde entatildeo o meacutetodo dialeacutetico como uma das disciplinas que compondo o trivium fossem necessaacuterias para a formaccedilatildeo

30 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 100ordf 30 31 ARISTOacuteTELES Toacutepicos 104ordf 8-10 32 ROSS D Aristoacuteteles Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1987 p 31 33 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70 34 SANTO AGOSTINHO De doctrina christiana II c 31 ndeg 48 35 ALCOFORADO P Loacutegica Analiacutetica Dialeacutetica ampc Coletacircnea n 5 (2004) pp 66-70

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 11: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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intelectual do homem de seu tempo36 Com Severino Boeacutecio [480-525] conside-rado

o uacuteltimo dos romanos e o primeiro dos escolaacutesticos37

estabelecer-se-ia

de vez a importacircncia da dialeacutetica como disciplina que dispotildee o espiacuterito para a in-vestigaccedilatildeo racional Sua importacircncia para a transmissatildeo da loacutegica grega aristoteacuteli-ca para o medievo eacute indiscutiacutevel Podemos inclusive arriscar a dizer que sine Boe-thio in logica Aristotele mutus esse

4 A dialeacutetica na Escolaacutestica do seacutec XI

Severino Boeacutecio foi o mais importante veiacuteculo de transmissatildeo da cultura loacute-gica greco-latina ao Ocidente medieval ateacute o seacuteculo XIII Como atesta E Gilson ele eacute o professor de loacutegica da Idade Meacutedia Ateacute o seacuteculo XII os medievais co-nheceram as Categorias o Peri hermeneias de Aristoacuteteles e a Isagogeacute de Porfiacuterio pelas traduccedilotildees e comentaacuterios que Boeacutecio fez desta logica vetus Entre 1120 e 1160 tra-duzir-se-iam os Primeiro e Segundo Analiacuteticos os Toacutepicos e as Refutaccedilotildees Sofiacutesticas a as-sim denominada logica nova Assim pois jaacute se tinha no seacutec XI intenso uso da dia-leacutetica e a partir do seacutec XII jaacute se conhecia por inteiro o Oacuterganon aristoteacutelico Fato que nos conta o historiador A Rivaud que jaacute neste periacuteodo eram muitas as esco-las dialeacuteticas

No seacuteculo XI se vecirc pulular retoacutericos e dialeacuteticos e desde o iniacutecio se desencadeia a oposiccedilatildeo entre teoacutelogos seacuterios que se relacionam com profundidade com as coisas e sofistas e oradores que procu-ram ocasiatildeo para brilhar 38

Eacute tambeacutem interessante o testemunho de Guiberto de Nogent [1060-1124] que narra como em cinquumlenta anos a gramaacutetica e a dialeacutetica se tornaram presen-tes na formaccedilatildeo intelectual

Era pequena naquele tempo por isso naquele entatildeo era raro (o es-tudo) de tantas questotildees gramaticais [dialeacutetica] Com o passar do

36 FRAILE G Historia de la Filosofia I Madrid Biblioteca de Autores Cristianos 1990 p 810 37 GRABMANN M Die theol Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl Thomas von A quin auf Grund seiner Schrift in Boethium de Trinitate Im Zusammenhang der Scholastik des 13 Und beginnenden 14 Jarhunderts dargestellt Paulusverlag Freiburg in der Schweiz 1948 p1 38 RIVAUD A Histoire de la Philosophie Tome II De la Scolastique agrave l eacutepoque classique Paris PUF 1950 p 4

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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tempo vimos ferver a gramaacutetica de tal modo que era evidente esta disciplina nas inuacutemeras escolas 39

A querela teve o seu iniacutecio oficialmente no seacuteculo XI muito provavelmente em razatildeo do crescente nuacutemero de escolas oferecendo estudos em Teologia e da natural exigecircncia da dialeacutetica como disciplina que auxiliava nas demonstraccedilotildees racionais e logo como meacutetodo e criteacuterio de hermenecircutica na investigaccedilatildeo dos textos das Sagradas Escrituras O mau uso em aplicaccedilatildeo das demonstraccedilotildees filo-soacuteficas contribuiria e muito para justificar os ulteriores exageros do uso da dialeacute-tica em Teologia Caso notoacuterio foi o de Anselmo de Besata [c 1050] que mal se valendo das regras de raciociacutenio e muito bem dos sofismas chegava ao extremo do absurdo com as suas conclusotildees como por exemplo Mus [rato] eacute um monos-siacutelabo ora mus come queijo logo um monossiacutelabo come queijo

O exagero e a imprudecircncia no uso deste meacutetodo nas questotildees teoloacutegicas ge-raram seacuterias controveacutersias e produziram inuacutemeras heresias como quando

ao relatar-nos Pedro Damiatildeo contra os dialeacuteticos da aplicaccedilatildeo da dialeacutetica na anaacuteli-se da onipotecircncia divina se Deus eacute onipotente pode a contradiccedilatildeo logo pode fazer com que natildeo tenham existido as coisas que existiram40 E Gilson assim se expressou acerca des-ta questatildeo

Por mais modesto que tenha permanecido o niacutevel dos estudos e por mais vacilante que tenha sido a sorte da civilizaccedilatildeo desde o de-senvolvimento caroliacutengio a praacutetica do triacutevio e do quadriacutevio tornara-se apesar de tudo tradicional No proacuteprio interior da Igreja jaacute en-contraacutevamos certos cleacuterigos cujas disposiccedilotildees de espiacuterito pendiam para a sofiacutestica e que foram tomados de tal ardor pela dialeacutetica e pe-la retoacuterica que faziam a teologia passar naturalmente para o segun-do plano 41

Este exagero transcendia o terreno da filosofia vindo a minar o da teologia Por esta razatildeo natildeo raro no centro das controveacutersias havia muito mais um mal resolvido problema metafiacutesico do que um problema do uso da dialeacutetica nas in-vestigaccedilotildees teoloacutegicas pois a querela natildeo era soacute acerca do uso da razatildeo como meacutetodo dialeacutetico senatildeo tambeacutem sobre o estatuto metafiacutesico das questotildees debati-

39 GUIBERTO DE NOGENT De vita sua I c 4 PL 156 844A 40 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia c 16 41 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 281

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 13: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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das E neste sentido foi tambeacutem uma querela metafiacutesica aleacutem de uma discussatildeo acerca da honestidade viabilidade e possibilidade do uso da razatildeo nas investiga-ccedilotildees teoloacutegicas O historiador medieval J-I Saranyana jaacute havia salientado a ques-tatildeo de que o debate dialeacutetico supunha uma atrofia metafiacutesica

Esta dialeacutetica exagerada possiacutevel por causa de uma atrofia da me-tafiacutesica teve tambeacutem suas repercussotildees nas ciecircncias sagradas 42

A posiccedilatildeo radical e equivocada de Berengaacuterio de Tours [1000-1088] que proclamou como norma que a razatildeo e a evidecircncia eram superiores agrave autoridade desencadeou uma seacuterie de debates cujo exagero o levaria agrave heresia

O agir racional na compreensatildeo da verdade eacute incomparavelmente superior pois chega agrave evidecircncia da verdade da coisa e de nenhum modo a negaria e salienta que em tudo deve aplicar-se o meacutetodo dialeacutetico A maior perfeiccedilatildeo do coraccedilatildeo eacute diante de todas as dispu-tas aplicar a dialeacutetica 43

Como nos adverte G Fraile o exagero na aplicaccedilatildeo da dialeacutetica aos dogmas o conduziu a uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica simboacutelica e falsamente espiritualista da real presenccedila de Cristo na Eucaristia Para Berengaacuterio o patildeo seria somente um siacutembolo da presenccedila de Cristo na hoacutestia consagrada Negara a transubstanciaccedilatildeo do patildeo e vinho em corpo e sangue de Cristo por admitir impossiacutevel que os aci-dentes do patildeo e do vinho subsistissem agrave mudanccedila de substacircncia de patildeo para a do corpo de Cristo Interpretaccedilatildeo dialeacutetica da Eucaristia que lhe renderam fortes oposiccedilotildees e geraram uma grande controveacutersia

Como oponente ao uso exagerado da dialeacutetica e de suas maleacuteficas conse-quumlecircncias teoloacutegicas surgiu naquele entatildeo Pedro Damiatildeo [1007-1072] que saiu em defesa do seu justo uso Ele qualificara a dialeacutetica de sutileza aristoteacutelica por meio da qual os que dela se valiam poderiam tornar-se hereacuteticos

42 SARANYANA JI Historia de la Filosofia Medieval Tercera Edicioacuten Pamplona Eunsa 1999 pp 117 43 BERENGAacuteRIO DE TOURS De Sacra Coena adversus Lanfrancum Ed Vischer Berlin 1834 pp 100-101

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 14: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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eles vecircm por meio da dialeacutetica ou seja por seu uso equivocado

tornarem-se hereacuteticos 44

Sem abandonar a dignidade do seu uso filosoacutefico Damiatildeo proporaacute subordi-na-la agrave Ciecircncia Sagrada isto eacute agrave Teologia o que significa entender a filosofia co-mo serva da teologia

Esta arte do engenho humano [dialeacutetica] se admitida no tratamen-to da ciecircncia sagrada natildeo deve ser tomada como arrogante mestra mas deve servir agrave senhora [teologia] com algum obseacutequio para o seu proveito portanto nem precipitar-se nem corrompecirc-la 45

Com relaccedilatildeo agrave sua maacute aplicaccedilatildeo teoloacutegica asseverou que a razatildeo humana eacute incapaz de vir a entender os problemas divinos especialmente aos que se referem agrave onipotecircncia de Deus que se estende a tudo pois a potecircncia divina estaacute acima de toda a compreensatildeo humana e os misteacuterios da feacute natildeo podem ser entendidos pela dialeacutetica

Sem negar o princiacutepio da natildeo contradiccedilatildeo sustentou que Deus pode tudo mas isso natildeo significa que possa fazer coisas contraditoacuterias Ao argumento ainda muito atual que questiona se Deus poderia fazer uma pedra que natildeo pudesse le-vantar responderia Damiatildeo se vivo fosse em nossos dias dizendo que Deus natildeo pode a contradiccedilatildeo De tal modo sem cometer contradiccedilatildeo Deus pode fazer que natildeo tenham existido as coisas que existiram pois sendo coeternas com Ele pode suprir o seu caraacuteter temporal

Se pois as coisas podem ser coeternas com Deus pode Deus fa-zer com que as coisas que foram feitas natildeo fossem ora todas as coisas podem ser coeternas a Deus logo Deus pode fazer que natildeo tenham sido as coisas que existiram 46

44 PEDRO DAMIAtildeO De sancta simplicitate scientiae inflanti anteponenda Ed Migne Patrologia Latina 145 689-699 45 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 603 46 PEDRO DAMIAtildeO De divina omnipotentia in reparatione corruptae et factis infectis reddendis Ed Migne Patrologia Latina 145 c 16

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 15: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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Por todo o dito anteriormente esta questatildeo que ocupa significativas paacuteginas

das Histoacuterias da Filosofia Medieval foi propriamente mais do que uma mera dis-puta mas uma contenda que se configurou efetivamente como uma querela ou seja um debate inflamado sobre pontos de vista contraacuterios47 De fato muitas questotildees jaacute haviam sido disputadas desde o iniacutecio na Patriacutestica como as disputas contra as heresias48 em especial contra o adocionismo docetismo gnosticismo monarquia-nismo arianismo e o pelagianismo49 Na Escolaacutestica as disputas acerca do prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo 50 e a dos universais 51 ocupariam igualmente lugar de des-taque ao lado da controveacutersia entre os dialeacuteticos e os antidialeacuteticos A diferenccedila fundamental eacute que a disputa dialeacutetica incorria em doutrinas hereacuteticas e com infe-recircncias teoloacutegicas Durante certo tempo um olhar condenaacutevel por parte dos teoacute-logos pairou sobre a honestidade e a viabilidade do uso da razatildeo e de seu meacutetodo dialeacutetico nas investigaccedilotildees teoloacutegicas Assim nos atestava E Gilson este senti-mento de desconfianccedila

Essa intemperanccedila de dialeacutetica natildeo podia deixar de provocar uma reaccedilatildeo contra a loacutegica e mesmo em geral contra o estudo da filoso-fia Aliaacutes havia nesta eacutepoca em certas ordens religiosas um movi-mento de reforma que tendia a fazer da vida monaacutestica mais rigoro-sa o tipo normal da vida humana Portanto compreende-se facil-mente que em vaacuterias partes tenham sido envidados esforccedilos para desviar os espiacuteritos da cultura das ciecircncias profanas em especial da filosofia que pareciam simples sobrevivecircncias pagatildes numa era em

47 HOUAISS A E VILLAR M DE S Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Objeti-va 2001 verbete querela col 1 p 2325 48 Por heresia haiacuteresis entendemos a escolha livre que implica na negaccedilatildeo pertinaz apoacutes a recep-ccedilatildeo do Batismo de qualquer verdade que se deve crer com feacute divina e catoacutelica ou na duacutevida pertinaz a respeito dessa verdade 49 FRANGIOTTI R Histoacuteria das Heresias (Seacuteculos I-VII) Conflitos ideoloacutegicos dentro do Cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1995 50 O debate acerca deste problema foi acirrado durante a Alta Escolaacutestica e a Baixa Escolaacutestica Duas posiccedilotildees se tomaram com vigor

a de Tomaacutes de Aquino que havia sustentado a tese materia signata quantitate em que se afirmava a mateacuteria como o princiacutepio de individuaccedilatildeo das substacircncias corporais e posteriormente a de Duns Escoto sintetizada na doutrina da haecceitas ou seja de que era a forma o princiacutepio de individuaccedilatildeo dos entes Sobre isso FAITANIN P A querela da individuaccedilatildeo na Escolaacutestica Aquinate ndeg 1 (2005) pp 74-91 [wwwaquinatenet] 51 Sobre a histoacuteria desta questatildeo recomendamos DE LIBERA A La querelle des universaux De Platon agrave la fin du Moyen Age Paris Editions du Seuil 1996 pp 262-283

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 16: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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que todas as forccedilas humanas deviam ser empregadas na obra da sal-vaccedilatildeo 52

5 Tomaacutes de Aquino e a proposta de uma dialeacutetica no seacutec XIII

Jaacute no seacuteculo XIII convictos de que a verdade revelada o artigo de feacute dado por Deus ao homem natildeo poderia contrariar a natureza da proacutepria razatildeo que a aceita e nela crecirc sem deixar de buscar entendecirc-la alguns teoacutelogos como Alberto Magno [1205-1280] e posteriormente Tomaacutes de Aquino [1225-1274] procuraram conciliar razatildeo e feacute Particular importacircncia teve o esforccedilo tomista de conciliaacute-las valendo-se muitas vezes dos ensinamentos respectivamente de Santo Agostinho e de Aristoacuteteles de que a graccedila e a feacute natildeo suprimem a natureza racional do homem senatildeo antes a supotildee e a aperfeiccediloa e de que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo para o conhecimento da verdade A tese que sustentamos eacute a de que esta querela ajudou a consolidar a partir da contribuiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino natildeo soacute a conciliaccedilatildeo de filosofia [ratio] e teologia [fides] no seacuteculo XIII plasmada na co-nhecida sentenccedila philosophia ancilla theologiae est senatildeo tambeacutem uma adequada compreensatildeo de dialeacutetica como salientou Eacutemile Breacutehier

Destas discussotildees que se seguiram durante tantos anos tenderam a oferecer um resultado positivo que dissipa um pouco a ambiguumlidade da noccedilatildeo de dialeacutetica distinguiu-se a dialeacutetica como pretensatildeo de determinar os estatutos do real e a dialeacutetica como simples arte for-mal da discussatildeo 53

Dando importacircncia agrave dialeacutetica enquanto arte da argumentaccedilatildeo no estudo da doutrina sagrada assim se expressou o Aquinate

As outras ciecircncias natildeo argumentam em vista de demonstrar seus princiacutepios mas para demonstrar a partir deles outras verdades de seu campo Assim tambeacutem a doutrina sagrada natildeo se vale da argu-mentaccedilatildeo para provar seus proacuteprios princiacutepios as verdades de feacute mas parte deles para manifestar alguma outra verdade como o A-

52 GILSON E A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 283 53 BREHIER E La Philosophie du Moyen Age Paris Eacuteditions Albin Michel 1949 p 117

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 17: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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poacutestolo na Primeira Carta aos Coriacutentios se apoacuteia na ressurreiccedilatildeo para provar a ressurreiccedilatildeo geral

54

A anaacutelise da questatildeo nos confirma que isso natildeo foi de imediato pois haveria de demonstrar primeiro que a verdade revelada natildeo se opotildee agrave verdade que alcan-ccedila a razatildeo a que o Aquinate dedicou-se amplamente e que aqui assim resume

a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para pro-var a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina Como a graccedila natildeo suprime a natu-reza mas a aperfeiccediloa conveacutem que a razatildeo natural sirva agrave feacute

55

Visto isso passemos a esclarecer o modo como em Tomaacutes de Aquino feacute e razatildeo foram harmonizadas Por ser tal questatildeo desconhecida entre os gregos o Aquinate buscou na Patriacutestica os elementos para a sua proposta de harmonia sem deixar de valer-se da contribuiccedilatildeo aristoteacutelica acerca da razatildeo Ele se opocircs agrave teoria patriacutestica que conduzia agrave afirmaccedilatildeo de uma antinomia ou seja contradiccedilatildeo entre feacute e razatildeo tal como defendera por exemplo Tertuliano [157-220] que sus-tentava que a aceitaccedilatildeo da feacute cristatilde implica na renuacutencia ao direito de livre exame dessa feacute56

Mas tambeacutem criticou a doutrina escolaacutestica da dupla verdade que considerava que os juiacutezos da feacute e da verdade natildeo tratavam de uma mesma verdade que fora atribuiacuteda aos disciacutepulos de Averroacuteis [1126-1198] como por exemplo a Siger de Brabant [1240-1284] que desvinculava a filosofia da teologia afirmando que con-quanto a Revelaccedilatildeo contenha toda a verdade natildeo eacute necessaacuterio que se harmonize com a filosofia57 Tendo em vista que o Angeacutelico procurara harmonizar feacute e ra-zatildeo antes mesmo de expor sua proposta eacute conveniente que consideremos o que eacute razatildeo sua natureza distinccedilatildeo do intelecto e sua relaccedilatildeo com a feacute bem como saber o que eacute a feacute sua natureza e sua relaccedilatildeo com a razatildeo

O termo latino ratio que aqui nos serve mais imediatamente para significar em liacutengua portuguesa o que entendemos por razatildeo eacute tomado em muitos sentidos Em liacutengua latina o substantivo ratio derivado de ratus particiacutepio passado do verbo

54 TOMAS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 55 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo I q 1 a8 c 56 TERTULIANO De Praescriptione haereticorum c7 [PL 2 13-92] 57 MANDONNET P Siger de Brabant Louvain 1911 t VI pp 148 ss

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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reor reris ratus sum reri [contar calcular] significa primitivamente caacutelculo conta58 Em contexto filosoacutefico ratio serviu adequadamente para Ciacutecero [106-43 aC] in-troduzir o termo na latinidade traduzindo o termo grego lo goj que original-mente possuiacutea tambeacutem diversos sentidos dentre os quais em especial destacam-se os de conta caacutelculo consideraccedilatildeo explicaccedilatildeo palavra e discurso 59

Em Tomaacutes de Aquino ratio60 [razatildeo] designa comumente a faculdade cog-noscitiva proacutepria do homem mas tambeacutem serve para significar conceito no-ccedilatildeo essecircncia definiccedilatildeo procedimento especulativo princiacutepio discurso 61 Ao que podemos resumir em dois sentidos fundamentais (a) ratio enquanto natu-ra [natureza] e que significa a faculdade e (b) ratio enquanto ato da natureza e que designa o ato da razatildeo ou a sua potecircncia que indica a essecircncia da coisa Feito isso em linhas gerais para o Aquinate razatildeo designa62

a) ontoloacutegica

I causalidade b) loacutegica

a) definiccedilatildeo

II noccedilatildeo b) essecircncia Ratio significa 1 sensiacutevel Particularis cogitativa

a) apetitiva vontade

III faculdade 2 imaterial

b) cognosciti-ca

intelecto

Adverte-nos o Angeacutelico que intelecto e razatildeo satildeo dois nomes diferentes que designam dois atos diversos de uma mesma potecircncia Razatildeo designa o processo ou discurso e intelecto o entendimento do que se resulta deste discurso63 De um outro modo podemos dizer que a razatildeo eacute a potecircncia discursiva do intelecto Por isso raciocinar significa passar de uma intelecccedilatildeo a outra [Sum Theo Iq79a8] Passemos agora a considerar o que eacute a feacute Tomada em sentido geral esta palavra

58 ERNOUT A ET MEILLET A Dictionnaire Eacutetymologique de la Langue Latine 4 eacutedition Paris Eacutedi-tions Klincksieck 1994 p 570 59 CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire decircs mots Paris Klincksieck 1999 p 625 60 DEFERRARI R A Lexicon of St Thomas A quinas based on The Summa Theologica and selected pas-sages of his other works Vol1 New York Books on Demand 2004 pp 937-942 61 TOMAacuteS DE AQUINO In I Sent D33q1a1ad3 In Lib De Div nom c7 lec5 62 PEGHAIRE J Intellectus et Ratio selon S Thomas D A quin Paris Vrin 1936 p 17 63 TOMAacuteS DE AQUINO Sum Theo II-IIq49a5ad3

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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designa a disposiccedilatildeo de acolher como verdade as informaccedilotildees das quais natildeo te-mos provas pessoais baseando-nos sobre a autoridade de outros Em sentido estrito-teoloacutegico designa uma das trecircs virtudes teologais [feacute esperanccedila e carida-de] que dispotildee o crente a abandonar-se pela feacute nas matildeos de Deus aceitando humildemente suas palavras

O Aquinate afirma ser a feacute um dom de Deus [Sum Theo II-IIq2a2] que dispotildee o homem a participar da ciecircncia divina ainda que pela feacute obtenha um co-nhecimento imperfeito de Deus [CG IIIc40] Como natildeo poderia ser virtude apta ao homem se intrinsecamente natildeo se relacionasse com o intelecto o Aqui-nate afirma ser a feacute um dom de Deus que recebida no homem pela vontade livre habita no intelecto como ato Em outras palavras a feacute entra no homem pela von-tade e nele permanece no intelecto enquanto ato E eacute conveniente que perma-neccedila no intelecto enquanto ato pois eacute do ato que se gera o haacutebito do qual emer-ge a virtude

Por isso a feacute recebida na alma habita no intelecto enquanto ato e como ato dispotildee o homem pelo haacutebito a manter a virtude neste caso a virtude teologal da feacute para nela aprofundar-se pelo uso do proacuteprio intelecto na medida em que a virtude da feacute ali habitando permaneccedila continuamente dispondo o intelecto agrave recepccedilatildeo habitual dos princiacutepios da feacute revelados continuamente por Deus Aleacutem do mais eacute conveniente que a feacute sendo uma virtude apta ao homem natildeo seja contraacuteria agrave proacutepria capacidade humana de adquiri-la pois o que eacute objeto de feacute para o intelecto lhe pertence propriamente como complemento e perfeiccedilatildeo da natureza

Neste sentido a feacute

enquanto dom de Deus

eacute princiacutepio deste ato que ha-bita no intelecto [Sum Theo II-II q4a2 De veritate q14a4] Mas natildeo eacute um ato abstrato ou do raciociacutenio senatildeo do juiacutezo pelo qual se conhece a verdade pois eacute proacuteprio do intelecto conhecer a verdade pelo juiacutezo mediante o qual julga algo verdadeiro Eacute ato investigativo pois natildeo se obteacutem a verdade de modo imediato senatildeo que supotildee da parte do homem a disposiccedilatildeo habitual para a busca da ver-dade que o dom de Deus oferece ao intelecto como seu ato

Como vimos acima a feacute depende como condiccedilatildeo para habitar no intelecto humano como ato do qual emerge a proacutepria virtude do livre assentimento da vontade A feacute bate agrave porta da vontade humana e nela somente entra se o assenti-mento for livre e este sendo livre a possibilita entrar na alma e passar a habitar a sua parte principal que eacute o proacuteprio intelecto Neste sentido a feacute se manifesta no proacuteprio ato de crer do intelecto cuja certeza natildeo se alcanccedila mediante a verifica-ccedilatildeo e demonstraccedilatildeo empiacutericas

embora alcanccedila-la natildeo exclua a possibilidade de

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

64 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d A quino Bologna ESD 2000 pp 289

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

70 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 20: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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ambas

senatildeo pelo ato de iluminaccedilatildeo divina infusa no intelecto humano [In Io-

an c4 lec5] Em outras palavras natildeo eacute contraacuterio agrave feacute que a sua certeza possa ser mediata ou imediatamente verificada empiricamente Portanto como condi-ccedilatildeo primeira para o ato de crer estaacute a abertura humana agrave iluminaccedilatildeo e que consis-te no assentimento livre da vontade [SumTheo II-IIq2a1ad3 De veritate q14a1]

Os princiacutepios infusos por Deus no intelecto se lhe parecem evidentes pois a graccedila neste caso o dom de Deus Sua verdade transmitida pela feacute supotildee a natu-reza do intelecto humano bem como os seus princiacutepios de tal maneira que ao serem recebidos no intelecto eles natildeo o contrariam senatildeo que se assentam nele como ato e o dispotildee agrave maneira de haacutebito que o aperfeiccediloa agrave manutenccedilatildeo e apro-fundamento da virtude que eacute a feacute Estes princiacutepios revelados por Deus ao cora-ccedilatildeo do intelecto humano natildeo carecem de demonstraccedilatildeo racional pois lhe satildeo evidentes ainda que isso natildeo impeccedila o homem de buscar nas razotildees naturais das coisas princiacutepios analoacutegicos aos que recebeu de Deus em luz no intelecto para comprovar a sua existecircncia A feacute eacute necessaacuteria para a perfeiccedilatildeo da natureza huma-na sua felicidade que eacute a proacutepria visatildeo de Deus [Sum Theo II-II q2 a3a7 De veritate q14a10]

Concluindo nos informa B Mondin que segundo Satildeo Tomaacutes o ato de feacute pertence seja ao intelecto seja agrave vontade mas natildeo do mesmo modo formalmen-te eacute ato do intelecto porque resguarda a verdade efetivamente eacute ato da vontade porque eacute a vontade que move o intelecto a acolher a verdade de feacute64 Nesta pers-pectiva em Tomaacutes feacute e razatildeo satildeo harmonizadas pois a razatildeo eacute apta naturalmen-te a entender os princiacutepios que se seguem das demonstraccedilotildees ou que para elas satildeo supostos e os princiacutepios que se seguem da Revelaccedilatildeo que chegam a conhecer mediante a infusatildeo de princiacutepios superiores cuja ciecircncia eacute a teologia [Sum Theo Iq1a2]

Assim a razatildeo e feacute satildeo procedimentos cognoscitivos distintos um eacute a razatildeo que acolhe a verdade em virtude de sua forccedila intriacutenseca e outro eacute a feacute que aceita uma verdade tendo por base a autoridade da Palavra de Deus E a verdade da Palavra de Deus natildeo se opotildee agrave verdade inquirida pela razatildeo jaacute que nada vem de Deus para ser ato do intelecto humano que se lhe oponha intrinsecamente Eacute bem certo que as verdades reveladas superam em muito em razatildeo do seu conte-uacutedo agrave capacidade intelectiva humana de entendecirc-las como a da afirmaccedilatildeo da Trindade na unicidade divina [CG Ic3] mas isso natildeo comprova a incerteza da

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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verdade de feacute senatildeo a imperfeiccedilatildeo de nosso intelecto para entendecirc-las imediata-mente tais como satildeo em si mesmas

Somente a constacircncia no haacutebito da feacute permite ao intelecto penetrar pouco a pouco e segundo os desiacutegnios das revelaccedilotildees divinas no misteacuterio de Sua verda-de A partir desta intriacutenseca relaccedilatildeo em que de uma parte a razatildeo busca natural-mente entender os princiacutepios superiores agrave sua natureza e de outra parte a feacute que enquanto dom de Deus e verdade uacuteltima da razatildeo humana na alma que livre-mente crecirc eacute ato do intelecto que se torna efetivo pelo assentimento da vontade Tomaacutes harmoniza feacute e razatildeo fazendo-as dependerem-se mutuamente entre si

6 A querela no seacuteculo XX a questatildeo da Filosofia Cristatilde

Pois bem se com Tomaacutes entrelaccedilam-se feacute e razatildeo como jaacute haviacuteamos dito no iniacutecio a partir do seacuteculo XIV emergiria a ruptura entre ambas face agraves postu-ras extremistas que por um lado afirmaria a autonomia da razatildeo e por outro a da feacute Tendo percorrido esta ruptura num processo intermitente ateacute o seacuteculo XX nele encontra-se novamente um lugar de debate para saber se seria possiacutevel uma filosofia [razatildeo] cristatilde [feacute] Corpo velho em roupa nova todo o debate eacute uma ou-tra leitura da querela escolaacutestica dialeacuteticos versus antidialeacuteticos Vejamos resumida-mente pois como na primeira metade do seacuteculo XX o debate entre feacute e razatildeo traduziu-se na disputa acerca da possibilidade de uma filosofia cristatilde

No seacuteculo XIX natildeo raro em razatildeo dos extremismos idealista e materialista os historiadores natildeo viam valores culturais proacuteprios da Idade Meacutedia Muitos dos quais sequer reconheciam a filosofia e a teologia escolaacutesticas como valores cultu-rais Durante certo tempo era lugar comum afirmar isso Contudo a tensatildeo para um debate mais pertinaz surgiu mediante a afirmaccedilatildeo de um professor da Antiga Universidade do Brasil o francecircs historiador da filosofia medieval E Breacutehier [1876-1952] que afirmara que o Cristianismo natildeo exercera influecircncia essencial sobre a filosofia a ponto de natildeo ser adequado falar de uma filosofia cristatilde ainda que no periacuteodo medieval da Escolaacutestica65 Em 1929 em seu artigo Y a-t-il une phi-losophie chreacutetienne indo ainda mais longe Breacutehier sustentara que o Cristianismo natildeo havia dado nenhuma contribuiccedilatildeo ao progresso da filosofia nem sequer com Santo Agostinho e Satildeo Tomaacutes de Aquino66 Natildeo com os mesmos argumentos mas na mesma vertente daquele historiador tambeacutem sustentaram a negaccedilatildeo da

65 BREHIER E Histoire de la Philosophie Vol1 Paris Eacuteditions Albin Michel 1927 p 494 66 BREHIER E laquoY a-t-il une philosophie chreacutetienne raquo Revue de Meacutetaphysique et de Morale (1931) p 162

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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existecircncia de uma filosofia cristatilde os seguintes autores P Mandonnet [1858-1936] e o teoacutelogo brasileiro M-T Penido [1895-1970]

A partir de 1930 natildeo houve congresso encontro ou reuniatildeo filosoacutefica em ciacuterculos cristatildeos que natildeo abordasse a controveacutersia Em defesa de uma essencial contribuiccedilatildeo do Cristianismo para a filosofia E Gilson [1884-1978] mediante um argumento histoacuterico sustentara que natildeo houve uma filosofia cristatilde na medida em que o Cristianismo a tenha elaborado ao modo de uma filosofia proacutepria dis-tinta das demais mas houve e haacute uma filosofia cristatilde enquanto isso significa que o Cristianismo tomou muitos elementos da especulaccedilatildeo filosoacutefica grega subme-tendo-os a um processo de assimilaccedilatildeo e transformaccedilatildeo do qual resultou uma siacutentese cristatilde e acrescentou ainda um outro argumento favoraacutevel agrave filosofia cristatilde na medida em que alguns dogmas cristatildeos como a noccedilatildeo de um Deus criador foi princiacutepio de uma especulaccedilatildeo racional proacutepria da filosofia67

De outra parte favoraacutevel tambeacutem agrave afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde esteve J Maritain [1882-1973] que por uma outra via numa argumentaccedilatildeo mais especu-lativa do que histoacuterica estabelecia que na dimensatildeo abstrata de suas considera-ccedilotildees filosofia e cristianismo satildeo distintas mas no sujeito cristatildeo em virtude da influecircncia da feacute na especulaccedilatildeo racional estrutura-se numa dimensatildeo concreta Nesta perspectiva haveria de afirmar a existecircncia de uma filosofia cristatilde68 Segui-ram a tese da afirmaccedilatildeo de uma filosofia cristatilde AD Sertillanges [1863-1948] e R Jolivet [1891-1966] Utiliacutessima eacute a contribuiccedilatildeo de G Fraile [1970 ] que sinteti-zando as teorias anteriores resume dizendo que a proacutepria palavra filosofia quando surge para denominar a ciecircncia das causas uacuteltimas natildeo era senatildeo uma etiqueta sob a qual se encontravam formas de teologias mais ou menos camufladas69

7 O resgate da harmonia Joatildeo Paulo II e a Enciacuteclica Fides et Ratio

Na segunda metade do seacuteculo XX especificamente em seu teacutermino no ano de 1998 o Papa Joatildeo Paulo II por um lado consciente do desencanto da razatildeo por causa dos extremismos racionalistas e do esvaziamento da feacute por motivo dos fundamentalismos religiosos e por outro lado por ser conhecedor da riqueza da contribuiccedilatildeo da doutrina de Tomaacutes de Aquino para a questatildeo pocircs em dia o deba-te dialeacutetico [razatildeo] versus antidialeacuteticos [feacute] inovando em sua resposta a partir do

67 GILSON E BOEHNER PH Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 8ordf ediccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 2003 pp 9-22 68 MARITAIN J De la philosophie chreacutetienne Paris Descleacutee de Brouwer 1933 69 FRAILE G Historia de la Filosofiacutea II (1deg) Madrid BAC 1986 p 50

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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resgate da teoria tomista da conciliaccedilatildeo entre feacute e razatildeo na qual a filosofia se potildee a serviccedilo da teologia Assim iniciava o texto

A feacute e a razatildeo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pe-las quais o espiacuterito humano se eleva para a contemplaccedilatildeo da verda-de Foi Deus quem colocou no coraccedilatildeo do homem o desejo de co-nhecer a verdade e em uacuteltima anaacutelise de O conhecer a Ele para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave verdade plena sobre si proacuteprio (cf Ex 33 18 Sal 2726 8-9 6362 2-3 Jo 14 8 1 Jo 3 2)

Mais adiante no Capiacutetulo IV onde trata da Relaccedilatildeo entre Feacute e Razatildeo resgata a perenidade da doutrina tomista dizendo

Neste longo caminho ocupa um lugar absolutamente especial S Tomaacutes natildeo soacute pelo conteuacutedo da sua doutrina mas tambeacutem pelo diaacutelogo que soube instaurar com o pensamento aacuterabe e hebreu do seu tempo Numa eacutepoca em que os pensadores cristatildeos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga e mais diretamente da filo-sofia aristoteacutelica ele teve o grande meacuterito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razatildeo e a feacute A luz da razatildeo e a luz da feacute provecircm ambas de Deus argumentava ele por isso natildeo se podem contradizer entre si [CGI7] 70

Natildeo se opondo agrave contribuiccedilatildeo que a filosofia pode dar para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Joatildeo Paulo II mostrando-se defensor de uma filosofia cristatilde enaltece o modo como o Aquinate soube aproximar estes dois campos do saber

Indo mais longe S Tomaacutes reconhece que a natureza objeto proacute-prio da filosofia pode contribuir para a compreensatildeo da revelaccedilatildeo divina Deste modo a feacute natildeo teme a razatildeo mas solicita-a e confia nela Como a graccedila supotildee a natureza e leva-a agrave perfeiccedilatildeo assim tambeacutem a feacute supotildee e aperfeiccediloa a razatildeo Embora sublinhando o caraacuteter sobrenatural da feacute o Doutor Angeacutelico natildeo esqueceu o valor da racionabilidade da mesma antes conseguiu penetrar profunda-

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

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mente e especificar o sentido de tal racionabilidade Efetivamente a feacute eacute de algum modo laquoexerciacutecio do pensamentoraquo a razatildeo do homem natildeo eacute anulada nem humilhada quando presta assentimento aos con-teuacutedos de feacute eacute que estes satildeo alcanccedilados por decisatildeo livre e consci-ente 71

Em elogio agrave doutrina tomista que havia estabelecido a harmonia e cumpli-cidade entre feacute e razatildeo o Papa ressaltou que somente o amor desinteressado pela verdade poderia mover tal propoacutesito

S Tomaacutes amou desinteressadamente a verdade Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-se colocando em relevo a sua universalidade Nele o Magisteacuterio da Igreja viu e apreciou a paixatildeo pela verdade o seu pensamento precisamente porque se manteacutem sempre no horizonte da verdade universal objetiva e transcendente atingiu laquoalturas que a inteligecircncia humana jamais poderia ter pensa-doraquo Eacute pois com razatildeo que S Tomaacutes pode ser definido laquoapoacutestolo da verdaderaquo Porque se consagrou sem reservas agrave verdade no seu realismo soube reconhecer a sua objetividade A sua filosofia eacute ver-dadeiramente uma filosofia do ser e natildeo do simples aparecer 72

Concluindo vimos como a querela medieval dialeacuteticos versus antidialeacuteticos tinha em seu epicentro a suposta oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e como se logrou compro-var natildeo haver oposiccedilatildeo entre feacute e razatildeo e mesmo harmonizaacute-las na Escolaacutestica pelo engenho da doutrina de Tomaacutes de Aquino Contudo a ruptura Moderna com os princiacutepios da filosofia e teologia medievais fez instaurar novamente o antagonismo entre feacute e razatildeo agora reconhecido nas vertentes racionalista e fi-deista ou seja uma nova versatildeo da disputa entre dialeacuteticos e antidialeacuteticos na modernidade Esta disputa na modernidade gerou o desencanto da razatildeo e o es-vaziamento da feacute que se prolongaria ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX onde novamente o debate recobraria forccedilas e voltaria agrave tona a partir da disputa acerca da possibi-lidade de uma filosofia cristatilde em que as contribuiccedilotildees conciliadoras de E Gilson J Maritain e G Fraile apaziguaram num primeiro momento o caloroso debate e depois jaacute no final do seacuteculo XX em 1998 seriam novamente resgatadas pelo Papa Joatildeo Paulo II que colocaria na ordem do dia pertinentes argumentos favo-

71 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 43 72 PAPA JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio cIV ndeg 44

wwwaquinatenetartigos ISSN 1808-5733

Aquinate ndeg 3 (2006) 22-46 46

raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo

Page 25: A querela escolástica dialético versus antidialéticos · Desde a Revolução Industrial e especialmente a partir do último século, o ... Quinta Parte, pp. 47-66. René Descartes

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raacuteveis agrave conciliaccedilatildeo de feacute e razatildeo onde mais uma vez recordava o valor perene da doutrina de Tomaacutes de Aquino como sendo a mais adequada e pertinaz para compreender o modo como se deu e ainda se daacute a harmonia a conciliaccedilatildeo e a cumplicidade entre feacute e razatildeo