“a psicologia e as politicas pÚblicas de Álcool e outras drogas”

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“A PSICOLOGIA E AS POLITICAS PÚBLICAS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS” Marcus Vinicius de Oliveira Resistirei ao gentil convite da organização deste evento para predicar sobre os comportamentos virtuosos - e os interditáveis - aos profissionais psicólogos na sua lida com os sujeitos que não exercem um desejável auto controle na sua relação com certas substâncias psicoativas. Deles dizemos, os excessivos. Aqueles que, tocados pelos efeitos que estas substâncias exercem sobre as nossas bases neurais e dinâmicas da fisiologia, induzindo aos estados alterados de consciência registrados como gozosos - mesmo que isso se distancie de uma noção convencional de prazer - não conseguem regular a sua relação para com estas possibilidades, caracterizando condição danosa a sua existência e inquietação para os que com eles convivem. Sem dúvidas, ao CRP é conferida a legitimidade para dispor sobre “o que cabe ao psicólogo fazer na atenção ao usuário? O que não se deve fazer?”. Sobre isto, como psicólogo, docente e pesquisador militante já fixei algumas contribuições para com as nossas entidades, no âmbito dos documentos elaborados e publicados pelo CREPOP - frutos de processos de construção coletivas de posicionamentos -, bem como em algumas videoconferências promovidas pelo CFP e temo me repetir. Todavia, considerada a possibilidade de que os alcances das iniciativas cubram públicos diferenciados, vale a pena insistir em alguns destes elementos, mas me distanciando de qualquer certificação da virtude e do indesejável. O que se pode, nestas circunstâncias, é, como das outras vezes, sintetizar preocupações e advertir sobre o inegligenciável. Começo pelo que nunca é dito: em relação às drogas, somos todos suspeitos. A temática do autocontrole sobre o que nos faz gozar confunde-se, nas origens, com a complexa trama que fez produzir em nós - nos complexos jogos de interdições e liberações - o sujeito. Que cada um, por mais diversas que sejam as circunstâncias que o levam à cena do cuidado de pessoas que fazem usos abusivos de substâncias psicoativas, possa estar situado diante da matriz-fonte que lhe imprimiu a marca da sua condição auto regulatória dos seus gozos e que se fez também a base da moralidade a partir da qual ele se mede/julga, bem como ao alheio. Porém, para mais além deste insubstituível processo de autoanálise a partir do qual nos situamos eticamente como Agentes de Cuidado, é importante levar em conta os aspectos relacionados à constituição do campo de intervenção relacionado ao uso de drogas no Brasil. O mesmo pode ficar incompreensível

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A “demonização” das drogas entre nós seria apenas mais uma expressão componente do “racismo” derivado de uma “história das relações raciais” marcadas por um profundo e secular desprezo étnico em relação aos negros e afrodescendentes, básica matriz da depreciação social e desqualificação moral, que se estende por nossas “classes populares” quando estas traem o figurino das expectativas em relação ao tipo “pobre, porém honesto e limpinho”. Deste modo é possível compreender a condição de um verdadeiro “pânico moral” que se encontra estabelecido, no âmbito da sociedade brasileira, quando trata do tema das Drogas e que a recentíssima questão da presença do Crack faz acentuar. O “crackeiro” seria apenas o sucessor, na linha evolutiva das substâncias vitimadoras, do “cachaceiro” e do “maconheiro” que lhe antecederam nesta história de violência e dominação, na qual a miséria econômica associada à marca de raça e de classe, antecipa o risco do desenvolvimento da miséria moral, condição de uma desqualificação plena daqueles indivíduos que não foram “fortes o bastante”, “resilientes” e “sucumbiram ao mal”.

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Page 1: “A PSICOLOGIA E AS POLITICAS PÚBLICAS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS”

“A PSICOLOGIA E AS POLITICAS PÚBLICAS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS”

Marcus Vinicius de Oliveira

Resistirei ao gentil convite da organização deste evento para predicar sobre os comportamentos virtuosos - e os interditáveis - aos profissionais psicólogos na sua lida com os sujeitos que não exercem um desejável auto controle na sua relação com certas substâncias psicoativas. Deles dizemos, os excessivos. Aqueles que, tocados pelos efeitos que estas substâncias exercem sobre as nossas bases neurais e dinâmicas da fisiologia, induzindo aos estados alterados de consciência registrados como gozosos - mesmo que isso se distancie de uma noção convencional de prazer - não conseguem regular a sua relação para com estas possibilidades, caracterizando condição danosa a sua existência e inquietação para os que com eles convivem.

Sem dúvidas, ao CRP é conferida a legitimidade para dispor sobre “o que cabe ao psicólogo fazer na atenção ao usuário? O que não se deve fazer?”. Sobre isto, como psicólogo, docente e pesquisador militante já fixei algumas contribuições para com as nossas entidades, no âmbito dos documentos elaborados e publicados pelo CREPOP - frutos de processos de construção coletivas de posicionamentos -, bem como em algumas videoconferências promovidas pelo CFP e temo me repetir. Todavia, considerada a possibilidade de que os alcances das iniciativas cubram públicos diferenciados, vale a pena insistir em alguns destes elementos, mas me distanciando de qualquer certificação da virtude e do indesejável. O que se pode, nestas circunstâncias, é, como das outras vezes, sintetizar preocupações e advertir sobre o inegligenciável.

Começo pelo que nunca é dito: em relação às drogas, somos todos suspeitos. A temática do autocontrole sobre o que nos faz gozar confunde-se, nas origens, com a complexa trama que fez produzir em nós - nos complexos jogos de interdições e liberações - o sujeito. Que cada um, por mais diversas que sejam as circunstâncias que o levam à cena do cuidado de pessoas que fazem usos abusivos de substâncias psicoativas, possa estar situado diante da matriz-fonte que lhe imprimiu a marca da sua condição auto regulatória dos seus gozos e que se fez também a base da moralidade a partir da qual ele se mede/julga, bem como ao alheio.

Porém, para mais além deste insubstituível processo de autoanálise a partir do qual nos situamos eticamente como Agentes de Cuidado, é importante levar em conta os aspectos relacionados à constituição do campo de intervenção relacionado ao uso de drogas no Brasil. O mesmo pode ficar incompreensível se não acionarmos as perspectivas históricas que nos ofereçam elementos que permitam identificar as fontes das quais proveem a produção de uma certa “sensibilidade social nacional” materializada nos valores, ideias e práticas que nos especificam em relação a esta temática e dão base, entre nós, aos processos de institucionalização dos saberes e fazeres a ela relacionados, inclusive os dos profissionais.

A marca da desqualificação moral e social das pessoas, correlacionada a alguns tipos de uso de algumas das drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, apesar de se apresentar contemporaneamente como uma invariante do Ocidente, guardam peculiaridades correlacionadas com os processos histórico-culturais através dos quais foram produzidas modernamente cada nação e suas respectivas sociedades.

Assim, a trajetória através da qual se produziu o atual “consenso mundial proibicionista”, no século XX, que prescreve a ilegalidade de algumas substâncias, sem dúvidas, é um importante fator da marginalização e desqualificação social dos sujeitos cujas trajetórias ficam de algum modo associado às drogas, sobretudo pela sua vinculação ao comportamento criminoso, gerador de preconceitos e condenações valorativas - na maioria das sociedades ocidentais modernas - a tudo que a elas esteja ligado.

Mas isso não explica as formas de desqualificação moral associadas ao descontrole em relação às substâncias lícitas, na maioria das nações modernas, como o álcool, por exemplo. Nem que, todos os processos de desqualificações morais tenham tido essa mesma e única fonte, sendo,

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portanto, igualmente distintas as ideias que lhes dão base de sustentação e a organização das práticas sociais que são destinadas em cada sociedade, em relação a uns e a outros.

No caso norte americano, por exemplo, a vertente moral de base religiosa puritana consubstanciada no ideal ascético é, sem dúvidas, uma das principais fontes da condenação moral em relação ao uso do álcool, pelo fato de que o gozo das sensações fortes por ele induzidas fosse geradora de um “embrutecimento” do espírito, diminuindo o triunfo da dimensão divina como responsável pelo bom governo das ações humanas. A força deste tipo de concepção, base de sustentação da vertente protestante, de tal modo informava a sociedade e a cultura norte americana, que deu base, nos anos trinta do século passado, à mais importante experiência social de tentativa de proscrição social, cultural e religiosamente motivada, de uma substância - o álcool -, consubstanciada na política da “Lei Seca”. Toda uma concepção de “guerras às drogas” ganha aí materialização, dando base para a produção de uma configuração, no campo moral, de um modo ocidental de se relacionar com o tema.

A percepção dos excessivos nunca nos é isenta no Ocidente. A transgressão, à qual corresponde a perda de controle do espírito sobre o corpo, é dificilmente desculpável e, se recalcitrante, imperdoável. Desde Tomás de Aquino a moralidade do Ocidente se desenvolveu a partir da hierarquia valorativa que estabelece a supremacia do espírito sobre o corpo, e a onipresente e incessante reiteração dessa condição constitui-se pilar central da edificação axiológica estruturante dessa matriz cultural. Todas as ocasiões em que esta hierarquia é subvertida, nós, os que fomos produzidos como sujeitos sob a égide dessa influência, somos acometidos por intenso desconforto moral. Estas seriam as bases da dura recriminação, no espectro da civilização ocidental moderna, para a entrega do sujeito à condição abjeta de um corpo que goza sem qualquer controle da instância superior/espírito. Esta seria a base de toda ideologia proibicionista que vê nas substâncias psicoativas a fonte do mal que subverte o poder do Espírito sobre o corpo. Há algo de desprezível que incide na percepção social sobre aqueles que “fracos de espírito”, “fracos da vontade” sucumbem, cedem, se acovardam, se entregam, “se deixam levar” por forças sobre as quais não exercem domínio.

Já no mundo árabe, marcado por projetos civilizatórios diversos, no qual o álcool é, há séculos, religiosamente proscrito, não se registram as cenas de violência relacionadas ao seu tráfico, como foi o caso do surgimento de máfias nos EUA, nos anos 30, em decorrência da “Lei Seca”, mas, certamente, a depreciação dos que dele fazem uso têm, no plano legal, religioso e moral, efeitos profundos decorrentes de uma história cultural que definiu igualmente, modos de relacionamento (des)qualificadores que inscrevem os sujeitos que fazem usos das substâncias proibidas – legalmente ou religiosamente – em categorizações e hierarquizações valorativas.

No caso brasileiro, esta superveniência dos processos transnacionais que desde o Ocidente misturam proscrição e ilegalidade de algumas substâncias psicoativas e a condenação moral aos excessos e descontroles em relação às demais substâncias lícitas que induzem e conduzem o cidadão a “abrir mão” do seu autogoverno e da sua autodeterminação - base política do Estado, prescrita desde as sociedades ocidentais modernas – podem limitar a nossa percepção acerca das formas singulares de engendramento de uma sensibilidade social peculiar, historicamente organizada, que modula as percepções e enquadramentos que essa problemática recebe entre nós brasileiros.

Assim, poderíamos dizer que, ainda que tenham estado presentes, não seriam as referências religiosas – como no caso norte-americano e árabe – que ensejaram, e enseja ainda, a organização de um paradigma da apreciação moral sobre os usos das drogas, entre nós, no âmbito da sociedade brasileira, e que - de forte referência cultural - de algum modo se fazem presentes como signos, ideias e valores, orientando as práticas na organização de um campo de cuidados aos seus usuários.

Para tal deveríamos recuar uma pouco mais em nossa história e analisar a trajetória peculiar do tema Drogas correlacionada com os processos de constituição da própria sociedade brasileira. As primeiras legislações do país que trataram do tema, no início do século XX, produzindo as

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primeiras restrições e condenações legais a algumas substâncias tomaram como foco os chamados “vícios elegantes” (cocaína, heroína, ópio, absinto) - as chamadas “drogas de salão” - que ganharam a preocupação dos legisladores pelo seu caráter ameaçador à dissipação da juventude rica da época, verdadeiro “patrimônio nacional”, que poderia se dilapidar caso não houvera controles e restrições ao que parecia ameaçá-la.

Todavia, ainda que não tenham sido alvo deste tipo de legislação, tão especifica, foram o Álcool e a Maconha, de trajetória bastante anterior e de uso amplamente disseminado nos grupos sociais subalternos - sobretudo afrodescendentes - que parecem ter oferecido a base valorativa mais permanentemente marcados pela vigorosa e persistente desqualificação moral e social que, segue ainda hoje, informando a percepção social relacionada a apreciação deste tema. Podemos afirmar que as sensibilidades sociais que ainda hoje reverberam nas abordagens contemporâneas da chamada “questão das drogas” na sociedade brasileira, são tributárias do enquadramento dado à questão do álcool e da maconha e sua pertença sócio-étnico-racial.

A “demonização” das drogas entre nós seria apenas mais uma expressão componente do “racismo” derivado de uma “história das relações raciais” marcadas por um profundo e secular desprezo étnico em relação aos negros e afrodescendentes, básica matriz da depreciação social e desqualificação moral, que se estende por nossas “classes populares” quando estas traem o figurino das expectativas em relação ao tipo “pobre, porém honesto e limpinho”.

Deste modo é possível compreender a condição de um verdadeiro “pânico moral” que se encontra estabelecido, no âmbito da sociedade brasileira, quando trata do tema das Drogas e que a recentíssima questão da presença do Crack faz acentuar. O “crackeiro” seria apenas o sucessor, na linha evolutiva das substâncias vitimadoras, do “cachaceiro” e do “maconheiro” que lhe antecederam nesta história de violência e dominação, na qual a miséria econômica associada à marca de raça e de classe, antecipa o risco do desenvolvimento da miséria moral, condição de uma desqualificação plena daqueles indivíduos que não foram “fortes o bastante”, “resilientes” e “sucumbiram ao mal”.

Portanto, não nos esqueçamos nunca de que a autoanálise dos materiais psíquicos que nos constituem como sujeitos, para mais além da nossa história individual nos faz depositários de uma história social que produz violência, discriminação e preconceitos que, muitas vezes – como no caso da Liga Brasileira de Higiene Mental dos anos trinta -, foram contrabandeados para o espaço discursivo das nossas disciplinas médico-psicológicas.