a psicologia como campo de conhecimento e

9

Click here to load reader

Upload: pedro-couto

Post on 23-Dec-2015

8 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Texte relacionado com o tema Psicologia Clínica.

TRANSCRIPT

Page 1: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

17Estudos de Psicologia 2004, 9(1), 17-24

A Psicologia como campo de conhecimento e como profissão deajuda1

Emmanuel Zagury TourinhoMarcus Bentes de Carvalho Neto

Simone NenoUniversidade Federal do Pará

ResumoO presente artigo discute um modelo de interpretação da Psicologia, de acordo com o qual conteúdos filosó-ficos/reflexivos, empíricos e aplicados imprimem uma configuração original à disciplina. Alguns aspectoshistóricos que estão na base dessa configuração são considerados, a fim de lançar luz sobre a heterogeneidadede objetos, métodos, objetivos e vínculos filosóficos das diferentes abordagens psicológicas. Em seguida,discutem-se algumas implicações do modelo para uma apreciação de certos fazeres (acadêmicos e não acadê-micos) psicológicos contemporâneos. Argumenta-se que o sucesso de cada abordagem psicológica depende,em alguma medida, do reconhecimento do caráter multifacetado do campo da Psicologia e da capacidade deresponder de modo consistente e integrado às diferentes demandas sociais que definem esse campo.

Palavras-chave: ciência psicológica; sistemas psicológicos; aplicações da Psicologia

AbstractPsychology as a field of knowledge and a helping profession. The present article focuses an interpretation ofpsychology according to which philosophical/reflexive, empirical, and applied contents account for an origi-nal configuration of the discipline. The paper considers some historical facts that ground such configuration,which should be considered in order to achieve a better understanding of the heterogeneity of objects,methods, goals and philosophical commitments of the diverse psychological approaches. Some implicationsof the model to an appreciation of (academic and non academic) doings in contemporary psychology are thendiscussed. It is argued that the success of each psychological approach depends, to a certain extent, on itsrecognition of the multifold character of the psychological field and its capacity to give consistent andintegrated responses to the different social demands that give rise to the field.

Key words: psychological science; psychological systems; applications of psychology

Este artigo aborda a Psicologia como campo de conhe-cimento e como profissão de ajuda. Ele parte de ummodelo de interpretação, apresentado por Tourinho

(1999, 2001) ao discutir a análise do comportamento, acres-centando algumas considerações históricas e discutindo im-plicações para uma apreciação dos fazeres psicológicos con-temporâneos. As questões abordadas são pertinentes a umdebate amplo sobre a disciplina e não apenas a uma aborda-gem teórica com a qual cada um tenha optado por trabalhar.Ao mesmo tempo, são questões que possibilitam discutir oalcance de cada projeto de Psicologia, do ponto de vista doatendimento das demandas culturais que constituem a basepara a sua existência e regulam, de diferentes modos, seudesenvolvimento como área de conhecimento e como profis-são de ajuda. O trabalho leva em conta principalmente a pro-

dução literária em Psicologia, portanto, a referência às práti-cas que definem a Psicologia como profissão de ajuda estarábaseada principalmente no que os psicólogos veiculam comoum saber sistematizado sobre o processo de intervenção psi-cológica voltada para a solução de problemas humanos.

O(s) objeto(s) da PsicologiaComo ponto de partida, esclarecemos o que conside-

ramos ser a problemática em torno da qual se organizam asdemandas culturais que possibilitaram a constituição da Psi-cologia como disciplina independente. São notórias a diver-sidade e abrangência dos problemas que no mundo modernodemandam respostas de uma disciplina psicológica. De outrolado, é usual considerar-se insuficiente ou discutível o alcan-

Page 2: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

E. Z. Tourinho et al.

ce das definições de Psicologia ensaiadas em contextos inte-lectuais particulares, daí não ser rigorosamente possível falardo objeto da Psicologia, mas apenas dos objetos da Psicolo-gia. Ainda assim, na literatura mais histórica, a subjetividade,ou a “experiência subjetiva privatizada” tem sido referida (e.g.,Figueiredo, 1991) como o objeto original da Psicologia e ex-pressão das demandas que justificam a existência da discipli-na. Sob esse conceito de experiência subjetiva, geralmenteconsideramos sentimentos, pensamentos, crenças, fantasi-as, etc. Mas aquela mesma análise histórica nos diz que aproblemática reservada à Psicologia não é um conjunto defenômenos humanos naturais. Mais especificamente, a expe-riência subjetiva do homem moderno deveria ser abordadacomo um tipo de experiência instituída sob condições histó-rico-culturais particulares, no âmbito de relações interpessoaisque promovem, de modos originais, a vigilância do própriocorpo, o autocontrole, e a reduzida capacidade de percepçãodos laços de interdependência entre os indivíduos, ou dadimensão relacional de seus modos de experimentar ou lidarcom o mundo (cf. Tourinho, 2002). Portanto, quando falamosde pensamentos e sentimentos tal como são experimentadosna cultura ocidental moderna (esta, na qual a Psicologia flo-resceu) não estamos falando de uma experiência natural ouuniversal. Para a configuração dessa experiência foi essenci-al o advento de práticas e discursos individualistas no quediz respeito às realizações afetivas, cognitivas, econômicas eespirituais. Sob essas condições é que se instituiu uma auto-imagem interiorizada e de autonomia do homem moderno(Tourinho, 1993). A Psicologia científica tem levantado sériasobjeções a essa auto-imagem, em um movimento às vezesconsiderado de negação da própria disciplina. Mas compre-ender a inadequação dessa auto-imagem requer uma aprecia-ção mais ampla de sua base histórico-social. Em uma de suasapreciações da concepção moderna do homem, Elias (1987/1994) sugere uma chave para tal discussão afirmando que

a modificação nos estilos de vida social impôs uma crescente

restrição aos sentimentos, uma necessidade maior de observar

e pensar antes de agir, tanto com respeito aos objetos físicos

quanto em relação aos seres humanos. Isso deu mais valor e

ênfase à consciência de si mesmo como um indivíduo desligado

de todas as outras pessoas e coisas. O desprendimento no ato

de observar os outros e se observar consolidou-se numa atitude

permanente e, assim cristalizado, gerou no observador uma

idéia de si como um ser desprendido, desligado, que existia

independentemente de todos os demais. Esse ato de desprendi-

mento ao observar e pensar condensou-se na idéia de um des-

prendimento universal do indivíduo; e a função da experiência,

do pensar e observar, passível de ser percebida de um nível

superior de autoconsciência como uma função da totalidade

do ser humano, apresentou-se pela primeira vez, sob a forma

reificada, como um componente do ser humano semelhante

ao coração, ao estômago ou ao cérebro, uma espécie de subs-

tância insubstancial no ser humano, enquanto o ato de pensar

se condensou na idéia de uma “inteligência”, uma “razão” ou,

no linguajar antiquado, um “espírito” (p. 91).

A conformação histórica da auto-imagem do homemmoderno ilustra um conjunto de problemas que se colocarãoà Psicologia para circunscrever com precisão seu objeto, ouos limites de um saber que dê conta da problemática que estána sua origem como disciplina independente.

A definição do campo da Psicologia: notas históricas

A discussão sobre o processo de constituição do cam-po de conhecimento psicológico visa prover uma melhor com-preensão dos desenvolvimentos contemporâneos da Psico-logia e uma apreciação mais crítica da (im)possibilidade desuperação de alguns de seus problemas históricos. Na dire-ção desse tipo de compreensão, pode ser também produtivorefletir sobre a configuração (histórica e contemporânea) docampo psicológico considerando os saberes que o compõeme o definem. Para introduzir essa discussão, iniciamos comalgumas observações históricas sobre a definição dos limitesda ciência psicológica.

Em seu Curso de Filosofia Positiva, publicado emseis volumes, de 1830 a 1842, o filósofo Auguste Comte (1830-1842/1978) questionava a possibilidade ou pertinência de umaciência psicológica, a partir de dois problemas. Em primeirolugar, argumentava que faltava à disciplina uma viabilidademetodológica, posto que a introspecção como método eralogicamente inconsistente; em segundo lugar, indagava so-bre o espaço para um saber sobre o homem que fosse diferen-te da abordagem dos fatos biológicos e sociais. Sua referên-cia básica era a investigação do funcionamento da mentehumana, especialmente dos processos de representação darealidade, ou as funções intelectuais, que constituíam umproblema de interesse central para a reflexão de ordemepistemológica, no interior da qual a problematização do mun-do subjetivo assumiu sua primeira conformação conceitual.Com respeito à introspecção, diz ele que “é perceptível que,por uma necessidade invencível, o espírito humano podeobservar diretamente todos os fenômenos, exceto os seuspróprios. Pois quem faria a observação?” (Comte, 1830-1842/1978, p. 13). A possibilidade de uma auto-observação é rejei-tada de pronto: se o sujeito observa a si mesmo, como garan-tir que o que está sendo observado é um acontecimento par-ticular qualquer e não o próprio ato de observar a si mesmo?O argumento é exposto do seguinte modo:

Constitui o melhor meio de conhecer as paixões sempre

observá-las de fora. Porquanto todo estado de paixão muito

pronunciado, a saber, precisamente aquele que será mais essen-

cial examinar, necessariamente é incompatível com o estado

de observação. No entanto, quanto a observar da mesma ma-

neira os fenômenos intelectuais durante o seu exercício, há

uma impossibilidade manifesta. O indivíduo pensante não po-

deria dividir-se em dois, um raciocinando enquanto o outro o

visse raciocinar. O órgão observado e o órgão observador sen-

do, neste caso, idênticos, como poderia ter lugar a observação?

(Comte, 1830-1842/1978, p. 14).

Comte (1830-1842/1978) conclui “Esse pretenso méto-do psicológico é, pois, radicalmente nulo em seu princípio”

18

Page 3: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

19A psicologia como campo de conhecimento

(p. 14). Ainda que possamos não partilhar dos compromissospositivistas de Comte, sua crítica ao uso da introspecção erajustificada. As limitações da introspecção como método fo-ram longamente debatidas na Psicologia dos séculos XIX eXX e a idéia de que Comte tinha alguma razão alcança razoá-vel assentimento na atualidade. O abandono da introspecçãopelas principais versões contemporâneas de mentalismo, es-pecialmente as inseridas no grande leque conceitual chama-do de “cognitivismo”, é evidência da dificuldade para insti-tuir uma Psicologia científica, mesmo mentalista, baseadanaquele método. Ainda assim, a previsão de Comte (sobre aviabilidade da Psicologia) não se confirmou; a Psicologia pôdeflorescer a despeito de dificuldades para se estabelecer comociência. Vejamos, agora, sua segunda restrição. Comte alegaque as funções intelectuais só poderiam ser objeto de duasciências: uma fisiologia do conhecimento e uma sociologiado conhecimento. Sua tese é explicada nos seguintes termos:

todo ser ativo, especialmente todo ser vivo, pode ser estudado,em todos os seus fenômenos, de duas ópticas fundamentais, aestática e a dinâmica, isto é, como apto a agir e como agindoefetivamente.Se considerarmos [as funções intelectuais] sob o ponto de vistaestático, seu estudo só pode consistir na determinação dascondições orgânicas de que dependem. Forma, assim, parteessencial da anatomia e da fisiologia. Considerando sob o pon-to de vista dinâmico, tudo se reduz a estudar a marcha efetivado espírito humano em exercício, graças ao exame dos proces-sos realmente empregados para obter os diversos conhecimen-tos exatos que já adquiriu, o que constitui essencialmente oobjeto geral da filosofia positiva.Percebe-se que de nenhuma perspectiva há lugar para essaPsicologia ilusória, última transformação da teologia, que setenta em vão reanimar hoje e que, sem perturbar nem o estudofisiológico de nossos órgãos intelectuais, nem a observaçãodos processos racionais que dirigem efetivamente nossas di-versas pesquisas científicas, pretende chegar à descoberta dasleis fundamentais do espírito humano, contemplando-o elepróprio, a saber, fazendo completa abstração das causas e dosefeitos (Comte, 1830-1842/1978, p. 13).

Dois aspectos das críticas de Comte merecem especi-al atenção. Primeiro, foi restritiva - e equivocada - a suposi-ção de que apenas sob soluções metodológicas bem funda-mentadas e definitivas a Psicologia se instituiria como campode conhecimento. Não só a Psicologia se tornou uma área deconhecimento antes que as exigências metodológicas típicasdas ciências naturais fossem cumpridas, como também, mes-mo com o advento de projetos de Psicologia baseados nosmétodos das ciências naturais, a disciplina não se resumiu aoque vem sendo produzido por esse meio. Segundo, a noçãode que as funções intelectuais precisam ser compreendidasenquanto fatos sociais antecipa uma dificuldade em circuns-crever ao domínio das ocorrências subjetivas a investigaçãode problemas reservados à disciplina psicológica. Esse seráum motivo a mais para que a Psicologia não venha a ser um

exemplo autêntico de disciplina que se integra ao corpo dasciências pela “unidade do método”2,3.

Uma outra crítica à limitação da Psicologia ao estudodos fatos subjetivos pode ser identificada no projeto deWundt (1832-1920) para a Psicologia. Este projeto, semprereferido como aquele que representou a maioridade da disci-plina, tornando-a científica e independente da filosofia, eraoriginalmente um projeto de via dupla. Em uma obra de apre-sentação da Psicologia a um público genérico (Wundt, 1911/1973), publicada já no século XX, em 1911, Wundt nos fala deuma Psicologia que busca edificar-se enquanto ciência expe-rimental de processos subjetivos individuais, mas tambémuma ciência que se ocupa do homem como condição para oconhecimento e assim dissolve fronteiras com as ciênciashistórico-culturais (história, antropologia, filologia). DizWundt (1911/1973):

a Psicologia deve não apenas empenhar-se para tornar-se umabase útil para as demais ciências da mente, mas deve tambémvoltar-se seguidamente para as ciências históricas, a fim decompreender os processos mentais altamente desenvolvidos.A Psicologia racial é a prova maior disso. É uma das maisjovens ciências da mente e depende absolutamente dessas rela-ções entre a Psicologia e as ciências históricas. Ela é a primeiratransição da Psicologia para as outras ciências da mente (pp.194-195).

Se a Psicologia precisa servir-se das ciências históri-cas e, nesse processo, assumir variações que a tornam algu-ma coisa intermediária, suas fronteiras não são precisas, nemdefinitivas. Também não o podem ser seus programas de pes-quisa e seus métodos. Algumas conseqüências desse proje-to de Wundt são assinaladas por Figueiredo (1986) do se-guinte modo:

Wundt introduz-nos a duas Psicologias: uma Psicologia “indi-vidual”, a que se aplica a metodologia experimental, e umaPsicologia étnica, assentada em material filológico e antropo-lógico e, portanto, a que se aplicam os procedimentos dasciências histórico-culturais. Esta duplicidade interna à Psico-logia, na verdade, reproduz a duplicidade epistemológica quesepara as ciências da natureza, de um lado, da Psicologia edemais ciências da mente, do outro. São graves as implicaçõesdestes dois níveis de duplicidade. Separando o ponto de vistadas ciências físicas do ponto de vista da Psicologia, Wundt, serende tributo aos dois componentes da unidade psicofísica dossujeitos, faz desta unidade mesmo algo inconcebível, o queestilhaça necessariamente a consistência interna de qualquerciência do sujeito. O segundo nível de duplicidade, portanto, éuma decorrência inevitável do primeiro, mas tem suas própri-as conseqüências: à Psicologia acaba sendo atribuída uma posi-ção intermediária entre as ciências da natureza e as ciências doespírito... Mais que intermediária, esta posição é ambígua: é elaque possibilita a Wundt reivindicar para a Psicologia, simulta-neamente, o caráter de ciência empírica, e a função de ciênciatranscendental (p. 46).

Thomae (1998) também assinala um dualismometodológico no projeto de Wundt. Segundo ele, “Wundt

Page 4: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

20

acreditava que o método experimental restringia-se em suaaplicação aos processos mentais ‘simples’, enquanto os pro-cessos mentais complexos, como o pensamento e a motiva-ção, podiam ser estudados apenas pelo uso de material cole-tado na área da antropologia cultural” (p. 381). De acordocom Thomae, portanto, a proposição da Psicologia como ci-ência experimental é restritiva à luz do projeto de Wundt: “asdivergências entre o dualismo metodológico de Wundt e omonismo experimental da maior parte dos psicólogos desteséculo aponta para uma limitada influência do ‘Wundt poste-rior’ sobre os cenários nacional e internacional” (p. 382).

Enquanto o projeto de Wundt ilustra, em alguma me-dida, problemas antecipados por Comte, ele mesmo será umaamostra do que se seguirá no campo psicológico, não porquea Psicologia resista em amadurecer e se edificar como ciênciaintegrada e independente, mas porque as demandas culturaisque justificam sua existência requerem uma produção difusae variada. Essas demandas, de um lado, têm a forma de uminteresse pela identificação de regularidades nos fenômenospsicológicos, pela apreensão de uma ordem subjacente aoque parece caótico, de modo a prover uma instrumentalizaçãooperativa, como alcançaram as ciências naturais com respei-to a seus objetos. Isso sem deixar de tomar o homem como umser sobre o qual é necessário e justificado refletir, abordando-o enquanto condição transcendental para o conhecimento.Também precisa a Psicologia desenvolver-se como técnica,em condições de prover soluções para os problemas huma-nos construídos no âmbito de relações interpessoais cadavez mais formais, representacionais e burocráticas, não maiscaracterizadas por laços sociais de solidariedade.

Ainda que no final do século XIX a Psicologia assu-ma, ela própria, a condição de disciplina científica, convémobservar que o fazer-se ciência não representou o cumpri-mento de um estágio de desenvolvimento que permitiu defi-nir a Psicologia, a partir de então, como um saber estritamentecientífico. Como outros campos de conhecimento, mas demodo mais acentuado devido ao objeto que define seu cam-po, o conhecimento psicológico continua nutrido de uma pro-dução tipicamente reflexiva. Isto é, a Psicologia não deixoude ser um campo reflexivo sobre o homem, seus problemas eas possibilidades de realizar-se em diferentes domínios davida (cognitivo, espiritual, etc.) para edificar-se como um fa-zer científico. Ela passou a ser também uma ciência.

Temos sugerido até aqui que a Psicologia pode servista como um campo de conhecimento no interior do qualarticulam-se conteúdos reflexivos, empíricos e aplicados.Convém olharmos para esse campo como um triângulo cujosvértices são representados por aqueles conteúdos. Uma in-terpretação que guarda semelhança com essa foi recentementeapresentada por Machado, Lourenço e Silva (2000). Para es-ses autores qualquer ciência, e a Psicologia em particular,demanda “pelo menos três tipos de investigação - factual,teórica e conceitual” (p. 1). Acrescentam que “esses três ti-pos de investigação estão inter-relacionados de modo próxi-mo e para enfatizar esse ponto podemos vê-los como vérticesde um triângulo eqüilátero” (p. 14). Como se vê, o triângulo

epistemológico referido por Machado et al. (2000) não seocupa de especificidades da Psicologia na definição de suaconformação. Mas os autores identificam, sim, algo próprioda Psicologia no que concerne à produção nos três domíni-os. Para Machado et al. (2000), há, na Psicologia, significativaprodução empírica, mas muito pouca produção teórica econceitual, o que tem representado um desequilíbrio para aárea:

uma variedade de problemas bem conhecidos na Psicologiarefletem um padrão de desenvolvimento não saudável devido àênfase desproporcional em investigações factuais, às custas deinvestigações teóricas e conceituais, particularmente as últi-mas. Em outras palavras, o triângulo epistêmico da Psicologiaparece ter perdido sua harmonia porque tem sido excessiva-mente estendido na direção de fatos...Se o nosso diagnóstico estiver correto, então a harmonia dotriângulo precisa ser restaurada antes que os problemas possamser resolvidos (p. 2).

O desequilíbrio na produção psicológica, voltada de-masiadamente para a identificação de evidências empíricasque dariam suporte a sistemas explicativos, que na verdadeencontram-se insuficientemente desenvolvidos, fica ilustra-do, segundo Machado et al. (2000), em fatos como: “o núme-ro excessivo de publicações empíricas, a assimetria entre so-fisticação técnica e pobreza teórica, a fragmentação do cam-po e a especialização artificial de seus membros, e a freqüên-cia de distorções ou caracterizações erradas do trabalho deoutros pesquisadores” (p. 34).

A interpretação de Machado et al. (2000) tem pontosem comum com a interpretação apresentada por Tourinho(1999, 2001): primeiro, a idéia de que o campo de conhecimen-to das ciências em geral e da Psicologia em particular compor-ta conteúdos diversos; segundo, que é produtivo abordar aarticulação desses conteúdos com a imagem de um triânguloepistêmico, na medida em que essa representação sugere acontinuidade dos conteúdos pelas linhas que ligam os vérti-ces do triângulo/áreas de produção; terceiro, que uma produ-ção sistemática e articulada nas diferentes áreas é requeridapara um desenvolvimento da disciplina psicológica. Diferen-te de Machado et al. (2000), porém, Tourinho (1999, 2001)coloca em um mesmo vértice as produções teóricas econceituais e introduz como terceiro vértice as aplicações daPsicologia na solução de problemas humanos (um tipo deconteúdo que não parece requerido, nos mesmos termos, parao desenvolvimento de outros campos de conhecimento). Osdetalhes da análise de Machado et al. (2000) não serão aquireconstituídos em razão dos objetivos deste artigo, mas me-rece ser comentado que o dado sobre a predominância deuma produção empírica na Psicologia é sugestivo de váriosaspectos de nossa atividade dirigida à construção de conhe-cimento. Por exemplo, ela sinaliza uma dificuldade em promo-ver a integração conceitual de investigações empíricas quese dissolvem em uma diversidade de problemáticas eenfoques; também é possível que a lacuna de produçõesconceituais exista apenas do ponto de vista do que é acade-

E. Z. Tourinho et al.

Page 5: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

21

micamente validado (e, assim, publicado nos periódicos dePsicologia)4, devendo-se considerar sistemas explicativos quese pretendem psicológicos, mas que circulam na cultura àmargem das exigências de cientificidade (pensamos, aqui, naschamadas “Psicologias alternativas”). É claro que podemosdizer que explicações desse tipo não constituem propriamen-te o corpo de conhecimento da Psicologia, mas sua existêncianão deixa de ter relação em alguma medida (ainda que nãodecorra exclusivamente disso) com a lacuna de produçõesconceituais abrangentes e consistentes.

A definição do campo da Psicologia: um modelointerpretativo

O modelo que estamos discutindo para a interpreta-ção da Psicologia como campo de saber e suas relações comdemandas culturais é resumido por Tourinho (2001) nos se-guintes termos:

o campo de saber da Psicologia já nasce multifacetado, nãosimplesmente porque é habitado por discursos conflitantes,mas no sentido de que seus conteúdos têm uma conformaçãovariada, respondendo a demandas sociais em várias direções. APsicologia edifica-se como um campo de saber que envolve,simultaneamente: a) um esforço reflexivo sobre a naturezahumana, seus problemas e suas possibilidades de realização emdiferentes domínios da vida (social, material, intelectual, reli-gioso, etc.); b) uma investigação cientificamente orientadapara a descoberta de regularidades dos fenômenos psicológicos(um modo de tentar apreender as novas experiências sob aforma de enunciados que incorporam os requisitos empírico-racionais da emergente ciência); c) uma profissão de ajuda,voltada para a solução de problemas humanos. Ou seja, o cam-po psicológico constitui-se historicamente como filosofia,como ciência e como profissão. Pensar a Psicologia dessemodo ajuda na tarefa de compreender seus desenvolvimentosem muitas direções e o conflito entre discursos que são concor-rentes, mas nem sempre comparáveis (pp. 18-19).

Olhar para a Psicologia como um conjunto de produ-ções que se articulam como em vértices de um triângulo, querdizer mais do que simplesmente que a produção psicológicaabrange as três áreas (conceitual, empírica e aplicada) e quehá pontos intermediários nas linhas que ligam as três áreas.Pretendemos sugerir que as produções psicológicas estãomais propriamente situadas na área interna desse triângulo,em diferentes pontos, às vezes mais aproximadas de um ououtro vértice, mas sempre vinculadas a sistemas conceituaisou reflexivos sobre o homem, a evidências empíricas (experi-mentais, clínicas, ou de outra ordem) e à perspectiva de solu-ção de problemas, sempre reguladas por conteúdos que guar-dam relação com cada vértice.

Essa nova imagem também nos sugere que há muitaspossibilidades de um saber psicológico. No contexto de umamesma abordagem, pode-se falar de diferentes pontos na áreainterna do triângulo. A rigor, indagar se um estudo é de um ououtro tipo é um equívoco; pretender encaixá-lo em um dos

vértices, ou em um ponto intermediário específico entre doisvértices, é uma forma de ignorar sua originalidade e uma ten-tativa de forçar uma conformação a lugares já bem estabeleci-dos. Melhor pensar que a pluralidade de possibilidades re-presentada por essas diferentes articulações torna ainda maisdesafiadora e interessante a dedicação à produção de conhe-cimento nesta disciplina.

A interpretação apresentada possibilita algumas ca-racterizações para: a) as Psicologias academicamente reco-nhecidas; b) as Psicologias alternativas; c) os fazeres psico-lógicos baseados nas Psicologias academicamente reconhe-cidas; e d) o desenvolvimento da pesquisa científica na área.

a) as Psicologias academicamente reconhecidas.Ainda que a conformação do campo e do(s) objeto(s)

da Psicologia possibilite a emergência de discursos muitodiversos, não se pode dizer que todos têm alcançado ummesmo status ou reconhecimento social. É evidente que ape-nas algumas “Psicologias” são tidas como consistentes, oubem fundamentadas, pelo menos por aqueles que têm acessoa informação qualificada sobre a validação acadêmica dossaberes psicológicos. De acordo com a presente análise, es-sas Psicologias são as que de modo mais eficiente, ou comalgum equilíbrio, atendem as três áreas do campo psicológi-co; isto é, são aquelas que em alguma medida (a) produzemou se apropriam de reflexões ou elaborações conceituaisabrangentes e amplamente assentidas sobre o homem mo-derno, seus problemas contemporâneos e suas possibilida-des existenciais; (b) buscam a produção sistemática de umsaber que atenda os requisitos de uma lógica empírico-racio-nal, aderindo aos métodos da ciência moderna, ou desenvol-vendo recursos metodológicos originais de validade corres-pondente e (c) cultivam um compromisso com a solução deproblemas humanos e a isso articulam a produção nas outrasáreas. Algumas vezes, essas Psicologias são referidas comoPsicologias científicas, em razão de veicularem um conteúdoderivado da investigação empírica sistemática, ausente emoutros discursos que se pretendem psicológicos. Mas falarem Psicologias academicamente reconhecidas pode ser maisadequado, pois assim enfatizamos que o conteúdo científicodessas Psicologias é apenas parte do que as torna aceitáveisenquanto legítimas representantes do campo psicológico, umaparte que não é suficiente, como se observa em projetos dePsicologia científica que não equacionaram satisfatoriamen-te a demanda nas duas outras áreas e não se mostraram bemsucedidos. De outro lado, há Psicologias academicamentereconhecidas que dedicam menor investimento à investiga-ção empírica, mas o articulam a um esforço conceitual e apli-cado mais sistemático.

Discursos não reconhecidos academicamente comoprojetos consistentes de Psicologia são aqueles que se limi-tam a uma das três áreas. São, por exemplo, meras técnicas deajuda, desvinculadas da pesquisa empírica e de qualquer sis-tema explicativo abrangente e consistente sobre o homem;ou programas de investigação empírica que acumulam dadossobre um problema específico, mas sem articulação com a

A psicologia como campo de conhecimento

Page 6: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

22

intervenção frente aos problemas humanos; ou, ainda, merasespeculações filosóficas, desvinculadas dos problemas con-cretos a demandar soluções e inconsistentes com uma pro-dução empírica bem estabelecida. Psicologias não reconheci-das podem também aparecer sob a forma de projetos quearticulam conteúdos nos três campos, mas que não obede-cem a um rigor intelectual, tornando obscuras as relaçõespostuladas.

Observe-se que essa apreciação é válida apenas parafalar de Psicologias que são admitidas ou reconhecidas noambiente acadêmico. Na sociedade em geral, muitas vezes oatendimento parcial às demandas representadas pelas áreasque compõem o campo psicológico são suficientes para queum discurso seja acolhido e consumido como Psicologia. AsPsicologias alternativas podem ser abordadas como exem-plos disso.

b) as Psicologias alternativas.Há vários modos de definirmos as chamadas Psicologias

alternativas, ou práticas alternativas em Psicologia. Uma pos-sibilidade é afirmar que:

O alternativo não se define... pela atividade prescrita em si,nem pelo fato de se constituir como uma experiência nova nocampo da intervenção psicológica, mas pelo tipo de conheci-mento veiculado e pelas concepções de homem e de mundo aele subjacentes. Cabem, aqui, tanto a astrologia quanto o tarot,a quiromancia, e tantas outras práticas sustentadas por apelosesotéricos... As chamadas terapias corporais justificariam umadiscussão à parte tanto quanto se remetem às condições desaúde/doença do organismo humano. Mas elas podem ser igual-mente interpretadas como práticas alternativas na medida emque tratam aquelas condições como expressão de uma realidadehumana transcorporal, e apelam, por exemplo, a temas comoharmonia energética na explicação de problemas “psi”(Tourinho & Carvalho Neto, 1995, p. 85).

O consumo de serviços psicológicos do tipo alterna-tivo poderia ser parcialmente explicado pela existência (e di-mensão) de demandas culturais com vistas à solução de pro-blemas humanos, tanto mais em um contexto no qual a ofertanesse domínio é restrita. Isto é, o impacto de tais “Psicologi-as” na sociedade permanece porque há uma demanda porparte da população que, ou não tem acesso aos serviçosvinculados às Psicologias academicamente reconhecidas, outem acesso a esses serviços, mas neles não encontra (nempoderia) as respostas para todos os seus problemas. Enquantodiscursos sobre o homem, as Psicologias alternativas possi-velmente se nutrem, também, como já sinalizado, de uma pro-dução conceitual restrita, insuficiente frente à investigaçãoempírica sistemática. Isso é, na ausência de princípios e siste-mas explicativos capazes de subsumir uma parcela maior daprodução empírica dispersa em um sem número de temáticase programas de pesquisa, há solo fértil para discursostotalizantes sedutores.

Por essa ótica, consumidores de serviços alternativosnão precisam ser encarados necessariamente como adeptosde concepções irracionalistas sobre o homem, mesmo por-

que, quando podem, utilizam o serviço alternativo apenassubsidiariamente aos serviços bem conceituados à luz da ci-ência. Por outro lado, Psicologias alternativas não passamdisso mesmo, não deixam de ser práticas ou produções mar-ginais ao desenvolvimento da disciplina, pois se limitam àpromessa de solução dos problemas humanos, sem a issovincular uma visão coerente e convincente sobre o homem eum suporte empírico que sugira tratar-se mais do que umsurto especulativo sobre a vida humana. Nunca chegam a servistas por longos períodos como algo que merece mais doque uma visita eventual (como diria William James - cf. James1907/1996, 1897/1967, para arriscar a verdade).

c) os fazeres psicológicos baseados nasPsicologias academicamente reconhecidas.

Se a Psicologia academicamente reconhecida é aquelaque oferece respostas nas áreas conceitual, empírica e aplica-da, mas com diferentes alcances em cada uma, e articulaçõesapenas razoáveis entre elas, convém observar que há limitesnos fazeres psicológicos nelas amparados.

Nenhuma prática psicológica é inteiramente ampara-da no desenvolvimento empírico e conceitual de uma aborda-gem psicológica. Consideradas a diversidade de problemas,contextos de intervenção e procedimentos disponíveis, nãose pode afirmar que qualquer ação permanece, a cada mo-mento, estritamente regulada por um conjunto qualquer depreceitos bem estabelecidos. Se juntarmos a isso o fato deque em qualquer abordagem psicológica ainda vivemos umestágio de insuficiente desenvolvimento conceitual, comoapontaram Machado et al. (2000), e que a produção empíricasó repercute de modo sistemático nas práticas de interven-ção com a mediação do desenvolvimento conceitual, temosboas indicações de que mesmo no âmbito das Psicologiasmais sólidas a intervenção permanece em alguma medida in-tuitiva.

Há motivos adicionais para assinalarmos que as práti-cas psicológicas não podem reger-se exclusivamente ampa-radas por produções conceituais e empíricas. Como qualqueratividade prática, nossas intervenções envolvem um tipo deconhecimento (implícito, prático, ou modelado por contin-gências) que não se presta a uma total formalização conceitual.Não é sem motivos, portanto, que cada vez mais discutimos anecessidade de contemplar mais sistematicamente a experi-ência prática ao aluno em treinamento, único meio de possibi-litar a aquisição daquele conhecimento.

Apesar dessa apreciação, as intervenções desenvol-vidas no âmbito das Psicologias academicamente reconheci-das diferenciam-se substancialmente daquelas que se desen-volvem à margem desse ambiente. Primeiro, porque são ori-entadas, pelo menos em uma medida razoável, por supostosque já foram objeto de uma apreciação rigorosa e sistemática.Segundo, porque apenas essas intervenções submetem-se auma interlocução crítica e a processos científicos de aferiçãode sua validade (ou eficácia, ou efetividade). Essas duas con-dições promovem não apenas uma maior probabilidade desolução dos problemas, mas, também, um compromisso éticoque falta a outras Psicologias.

E. Z. Tourinho et al.

Page 7: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

23

d) o desenvolvimento da pesquisa científica naárea.

Como os projetos de Psicologia filiam-se com maiorintensidade a uma das três áreas que definem o campo psico-lógico, convivemos com discursos por vezes equivocadossobre a produção de conhecimento psicológico. Há autores,ou abordagens, que elegem a pesquisa empírica como a gran-de fiadora do desenvolvimento da Psicologia, como se a in-vestigação e produção de dados empíricos ocorressedesvinculada de supostos, preocupações e interesses soci-ais. É provavelmente essa crença, associada a uma intensafragmentação da disciplina, que está na base do desequilíbrioapontado por Machado et al. (2000). Mas o desequilíbrio tal-vez exista também em favor de produções mais reflexivas outécnicas.

Psicologias menos afeitas aos métodos das ciências,por exemplo, por vezes ignoram, equivocadamente, o requisi-to de evidências empíricas que possam corrigir ou alavancarseu desenvolvimento conceitual. Como resultado, o impactode seus modelos explicativos na cultura vai sendo reduzido,e também a expectativa de que delas será possível derivaruma tecnologia psicológica ampla e consistente.

Dentre as Psicologias academicamente reconhecidas,aquelas cujo viés técnico sobressai (por exemplo, modelosde psicoterapia cujos laços com programas de investigaçãoempírica não são tão estreitos) parecem experimentar menorpressão para que se desenvolvam fortemente em outras dire-ções. Em parte, isso talvez decorra da sustentação encontra-da por essas Psicologias fora do meio acadêmico, mas elasmesmas serão beneficiadas se agregarem maior investimentoem produções conceituais e empíricas.

O desenvolvimento da Psicologia como campo deconhecimento requer a associação da pesquisa empírica e dosaber técnico à investigação conceitual sistemática. Comoilustrado pela referência às contribuições dos estudos socio-lógicos de Elias (e.g., Elias, 1987/1994), é preciso não consi-derar rígidas e definitivas as fronteiras com outras ciências,especialmente com as ciências históricas, como já salientavaWundt, buscando nessa interlocução não apenas uma des-crição mais integrada dos fenômenos humanos, mas o pró-prio desenvolvimento dos modelos interpretativos psicoló-gicos. Essa interpretação sugere que programas de pesquisaem Psicologia terão maior alcance se buscarem aquelaintegração, como de fato acontece com os programas dispo-níveis.

Considerações FinaisEm 1949, o filósofo Gilbert Ryle publicou em seu livro

The Concept of Mind (Ryle, 1949/1984) uma análise crítica dalinguagem mentalista na Psicologia e sugeriu que os objetosde estudo desta disciplina não se diferenciavam, quanto ànatureza, daqueles de muitas outras ciências humanas. Ryletambém postulava que uma vez afastada do projeto que lhefoi reservado pela filosofia cartesiana, de edificar-se comociência da mente, complementarmente à física como ciência

da matéria, a Psicologia caminharia para um desenvolvimentomenos unitário. Segundo Ryle:

o abandono do sonho da Psicologia como contrapartida daciência newtoniana... envolve o abandono da noção de que“Psicologia” é o nome de uma investigação ou conjunto deinvestigações unitário. Assim como “medicina” é o nome deuma associação bastante arbitrária de investigações e técnicasmais ou menos vagamente conectadas, uma associação quenão possui, nem precisa de uma declaração de programalogicamente boa, assim “Psicologia” pode ser conveniente-mente usado para denotar um aliança de investigações e técni-cas parcialmente fortuita. Afinal, não apenas o sonho de umaciência para-newtoniana era derivado de um mito, como, ain-da, tratava-se de um mito vazio achar que havia ou haveriauma ciência unitária... do “mundo externo” (p. 323).

Embora a comparação com a medicina possa ser vistacomo problemática, a observação de Ryle (1949/1984) coloca-nos novamente em contato com determinantes históricos paraa conformação contemporânea da Psicologia, incluindo suafalta de unidade teórica ou metodológica. Por outro lado, noslembra que a Psicologia não é original quanto a isso e, ainda,que seu desenvolvimento em muitas direções pode ser ex-pressão da superação de concepções equivocadas sobre ohomem estabelecidas na sua origem. Além disso, os discur-sos e fazeres dos psicólogos repercutem crenças, desconfi-anças, interesses, projetos, necessidades e expectativas so-cialmente enraizadas. O caráter multifacetado da disciplinadaí se origina. Reconhecê-lo permite-nos compreender me-lhor nosso lugar no quadro dos saberes modernos, identifi-car contradições e desafios e vislumbrar as inúmeras possibi-lidades reservadas à Psicologia.

ReferênciasComte, A. (1978). Curso de filosofia positiva (J. A. Giannotti, Trad.). In J. A.

Giannotti (Org.), Comte: textos selecionados (pp. 1-39) São Paulo: AbrilCultural. Coleção Os Pensadores. (Texto original publicado em 1830-1842)

Elias, N. (1994). A sociedade de indivíduos (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro:Jorge Zahar. (Texto original publicado em 1987)

Figueiredo, L. C. M. (1986). W. Wundt e alguns impasses da Psicologia: umaproposta de interpretação. História da Psicologia - Série Cadernos PUC-SP, 23, 25-49.

Figueiredo, L. C. M. (1991). Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis:Vozes.

James, W. (1996). Pragmatism: A new name for some old ways of thinking. In W.James (Org.), Pragmatism and the meaning of truth (pp. 1-166). Cambridge:Harvard University Press. (Texto original publicado em 1907)

James, W. (1967). Desejo de acreditar (J. C. Silva, Trad.). In W. James (Org.),Pragmatismo e outros ensaios (pp. 223-274). Rio de Janeiro: Lidador.(Texto original publicado em 1897)

Machado, A., Lourenço, O., & Silva, F. J. (2000). Facts, concepts, and theories:the shape of psychology’s epistemic triangle. Behavior and Philosophy, 28,1-40.

Penna, A. G. (1990). Filosofia da mente: introdução ao estudo crítico daPsicologia. Rio de Janeiro: Imago.

Ryle, G. (1984). The concept of mind. Chicago: The University of ChicagoPress. (Texto original publicado em 1949)

A psicologia como campo de conhecimento

Page 8: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

24

Thomae, H. (1998). Abordagem social: o surgimento da Psicologia científicacomo disciplina independente. In J. Brozek & M. Massimi (Orgs.),Historiografia da Psicologia moderna – versão brasileira (pp. 375-387) (J.A. Ceschin & P. J. Carvalho da Silva, Trad.). São Paulo: Unimarco/EdiçõesLoyola.

Tourinho, E. Z. (1993). Individualismo, behaviorismo e história. Temas emPsicologia, 2, 1-9.

Tourinho, E. Z. (1999). Estudos conceituais na análise do comportamento.Temas em Psicologia da SBP, 7(3), 213-222.

Tourinho, E. Z. (2001, abril). A produção de conhecimento em Psicologia: aanálise do comportamento. Trabalho apresentado no I Simpósio O Homem

Emmanuel Zagury Tourinho, doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo, é professoradjunto na Universidade Federal do Pará. Endereço para correspondência: Rua Aristides Lobo, 884, ap. 100,Reduto; Belém, Pará; CEP 66.053-020. Fone: (91) 222-6486. Fax: (91) 249-2737. Email:[email protected] Bentes de Carvalho Neto, doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo, éprofessor adjunto na Universidade Federal do Pará.Simone Neno é doutoranda em Psicologia/Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade do Pará.

e o Método e II Encontro das Escolas de Psicologia de Belo Horizonte, BeloHorizonte, Minas Gerais.

Tourinho, E. Z. (2002, maio). Dialogando com a sociologia de Norbert Elias.Trabalho apresentado na V Semana Científica do Laboratório de PsicologiaExperimental, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará.

Tourinho, E. Z. & Carvalho Neto, M. B. (1995). As fronteiras entre a Psicologiae as práticas alternativas: algumas considerações. In R. F. Moretzsohn (Org.),Psicologia no Brasil: direções epistemológicas (pp. 81-110). Brasília: Con-selho Federal de Psicologia.

Wundt, W. (1973). An introduction to psychology. Nova York: Arno Press.(Texto original publicado em 1911)

1 Trabalho parcialmente financiado pelo CNPq. Uma versão anterior foi apresentada pelo primeiro autor na ISemana Científica da Universidade da Amazônia, em agosto de 2002.

2 Segundo Comte (1830-1842/1978), “a única unidade indispensável é a unidade do método, que pode e deveevidentemente existir e já se encontra, na maior parte, estabelecida” (p. 20).

3 Segundo Penna (1990), Comte chegava a vislumbrar uma Psicologia científica, mas “para tanto teríamos queoperar com um método capaz de nos informar com precisão acerca das condições orgânicas dos fenômenosmentais e, por igual, com um método que nos permitisse a observação direta dos produtos da atividadeintelectual e moral” (p. 19).

4 Aparentemente, Machado et al. (2000) descrevem em especial o cenário norte-americano. Seria o caso deavaliar o quanto a produção latino-americana e particularmente a brasileira sofreriam dos mesmos males deênfase desproporcional nos estudos empíricos. Do ponto de vista da presente discussão, desequilíbrios emoutras direções são também prováveis, embora contem com menor reconhecimento acadêmico (e, portanto,alcancem em menor escala os periódicos reconhecidos na área).

Recebido em 12.mar.03Revisado em 23.jul.03

Aceito em 19.out.03

Notas

E. Z. Tourinho et al.

Page 9: A Psicologia Como Campo de Conhecimento e

O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 9 Número 3 da revista.