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Título: O Livro das EmoçõesAutora: Filipa SáraggaRevisão: Rui Augusto/Editorial PresençaPaginação: Gráfica 99, Lda.Capa: Sofia Ramos/Editorial PresençaIlustrações: © Filipa SáraggaImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal n.º 443 192/18
1.ª edição, Lisboa, agosto, 2018
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prefácio
A Propósito das Emoções
Todos precisamos de emoções, até daquelas que podería-
mos dispensar, como a tristeza. Seria muito mau vermo-
-nos livres da tristeza, porque ela é essencial ao amor e
para nos ligarmos às outras pessoas. Se assim não fosse, com
que coração veríamos a imagem de uma criança de três anos,
imóvel numa praia, atirada para a borda da areia por um mar
sem remorso? Sem a raiva nunca levantaríamos a voz contra a
injustiça ou a mentira. Sem a saudade não seríamos capazes de
manter dentro de nós a imagem vívida daqueles que partiram.
Há algum tempo, tive um reencontro em Nova Iorque com a
enfermeira que me acompanhou no hospital oncológico. Vivemos
juntos o desespero de ver partir tantas crianças, e também a ale-
gria de poder festejar, com muitas outras, os seus aniversários.
Estava mais velha, tal como eu. Sempre achei que lhe habitava
o corpo uma alma de anjo. Este anjo estava com rugas, o seu corpo
perdera a silhueta de mulher nova, a sua cintura já tinha sido mais
fina. Não é suposto os anjos envelhecerem, mas aos anjos sempre
jovens faltaria sabedoria, que é aquilo que se acumula pelo caminho.
Ao vê-la, vieram-me imagens de roldão, como quem perde o pé
em tempo de marés vivas. Lágrimas e soluços aos borbotões, e eu
abraçado a ela repetia, como uma criança que fez asneira e pede
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FILIPA SÁRAGGA
perdão: «Desculpa, desculpa…» Não queria que as minhas lágrimas
a incomodassem, se metessem de permeio, nos separassem.
Pegou-me nos braços e afastou-me um pouco. Apenas o
necessário para ter a certeza de que eu compreendia o que ela
tinha para me dizer. Os seus olhos azuis vieram fazer companhia
aos meus, enquanto afirmava, muito séria, como quem ensina
uma lição: «Nunca te envergonhes dos teus sentimentos.»
As suas palavras aquietaram-me, permitiram-me viver aquele
momento sem reservas, como se o meu choro fosse igual ao de
um recém-nascido para quem o grito inicial é essencial à vida.
Muitas pessoas julgam que empatia é dizer: «Não fiques
triste, amanhã sentes-te melhor.» Não é assim. Empatia é dizer
que compreendemos o sentimento do outro, e com ele sofremos
ou nos alegramos. Compreendemos as suas razões e tomamos
como nossas as suas dores. Partilhamos o mesmo sentimento.
Não é possível alguém compreender o amor se nunca amou.
Nesse sentido, explicar as emoções é o mesmo que tentar dizer
a um cego o que é o encarnado, embora se diga que a paixão é
vermelha, a esperança verde e a tristeza cinzenta. É também
por isso que devemos viver plenamente, porque são múltiplas
as cores que pintam a nossa vida emocional.
Estes livros não pretendem explicar a tristeza, a vergonha,
a raiva ou tantas outras emoções. O que eles nos dizem é que
há uma paisagem diversa e surpreendente dentro de nós. Que
é um privilégio estar vivo e podermos partilhar com os outros
o que sentimos, sem pudor, sem vergonha.
NuNo Lobo ANtuNes
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Livro da Saudade
Era uma vez, uma princesa de cor azul que vivia num palá-
cio virado para a floresta. Era um palácio tão grande que
a princesa nem sabia quantos quartos lá havia. Nos pátios
interiores viviam toupeiras e ouriços e, nas varandas, habita-
vam pombas, andorinhas e pássaros de mil e uma cores.
Em janeiro chegou o frio. Vieram as ventanias, os tempo-
rais, as chuvadas e o nevoeiro. As tempestades varriam as
varandas e as tocas, e os ouriços, as toupeiras e todos os pás-
saros eram obrigados a esconder -se até à primavera. As por-
tadas das janelas batiam e a princesa fugia dos gemidos do
vento. O chão de pedra gelava os calcanhares e nem as lareiras
carregadas de lenha eram capazes de trazer calor.
Foi num desses dias gelados de inverno que a princesa
Clara descobriu o sótão que ficava na ala norte do palácio. Pelo
menos lá, o chão era de madeira e, apesar de estalar e isso por
vezes a assustar, sempre era mais quente que as pedras gela-
das das salas, da cozinha, da biblioteca e da copa onde habita-
vam mais de cinco famílias de criados.
A princesa passava os dias a brincar no sótão. Estava num
ponto tão elevado que dali avistava toda a floresta e grande
parte do Reino Distante. Era um sótão maravilhoso onde havia
Saud
ade
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O LIVRO DAS EMOÇÕES
baús que escondiam tesouros de reis e rainhas seus antepas-
sados. Os tesouros estavam cobertos de mantas com os bra-
sões da família real. Havia molduras antigas com retratos de
senhoras ainda mais antigas. Aranhas que corriam por todo o
lado, furiosas, porque bastava virarem as costas para um mor-
cego lhes destruir as teias. Às vezes passava por lá um rato,
mas era tão pequeno que mal se via.
Ali pairava o abandono. Mas era onde a Clara se sentia pro-
tegida. Por isso, sempre que conseguia, fugia até lá.
Certa manhã, ouviu -se um grande alvoroço no palácio. Os
criados apressavam -se e vinham de todas as direções, as car-
roças estavam alinhadas e a sala de jantar mais fazia lembrar o
Natal, tal era o banquete. As fachadas cobertas de musgo esta-
vam iluminadas, os azulejos brilhavam e as camélias
sorriam entre elas.
Só pode ser o bispo!, pensou a princesa.
Era o convidado mais ilustre da Rainha Luz e,
todos os anos, era recebido pelos reis neste almoço
habitual com toda a pompa e circunstância.
Do rio que atravessava a várzea verde, os laranjais e os
pomares, surgiu finalmente o bispo.
E assim se confirmaram as suspeitas da princesa...
Este ano, o bispo não vinha sozinho; estava acompanhado
por dois abades e um seminarista.
A Clara sabia que a conversa iria ser dominada pelos
adultos e, com a sua meiguice habitual, convenceu os reis a
deixá -la almoçar na copa para, mal terminasse de comer, ir
brincar.
Saud
ade
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FILIPA SÁRAGGA
Depois do almoço, a princesa correu até ao seu esconderijo
preferido. Nunca vira o sótão tão luminoso como naquele dia;
talvez fosse por causa de uns rubis perdidos no chão. Cum-
primentou as aranhas, pediu por favor e com toda a gentileza
aos morcegos para não lhe agarrarem os cabelos e começou
a cantar uma canção de embalar enquanto tentava descobrir
de onde haviam surgido aqueles lindos rubis que emanavam
cores rosa e violeta.
Deliciada com a sua canção, surgiu de súbito por trás de um
espelho dourado uma melga que a Clara nunca vira por lá.
– Tens uma linda voz, princesinha! – exclamou a melga velha
e cansada.
– Quem és tu? – perguntou a princesa.
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O LIVRO DAS EMOÇÕES
Saud
ade
– Sou a Melga Bia. Há três séculos que moro neste sótão. Aliás,
vivi cá toda a minha vida. Conheci muitos reis e muitas rainhas,
mas nenhum deles tinha uma voz tão bonita quanto a tua.
A Clara sorriu e, naquele momento, tornou -se para sempre
amiga da Melga Bia.
A melga contou -lhe o quanto fora vaidosa e que habitava no
espelho por ter passado toda uma vida a olhar para ele. Mas
agora, depois de velha, percebia finalmente que a vaidade de
nada lhe valera e que os momentos mais felizes da sua vida
haviam sido aqueles que partilhara com outras pessoas, e não
os anos passados a observar a sua imagem refletida no espelho.
Agora, a melga sentia -se na obrigação de se redimir perante
tamanha vaidade e de ajudar a princesa que tantas vezes cho-
rava por viver naquele palácio gigantesco sem crianças com
quem brincar.
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