a propósito das emoções - presenca.pt · momento sem reservas, como se o meu choro fosse igual...

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[email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora instagram.com/marcador_editora © 2018 Direitos reservados para Marcador Editora, uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal. Título: O Livro das Emoções Autora: Filipa Sáragga Revisão: Rui Augusto/Editorial Presença Paginação: Gráfica 99, Lda. Capa: Sofia Ramos/Editorial Presença Ilustrações: © Filipa Sáragga Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 443 192/18 1.ª edição, Lisboa, agosto, 2018

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© 2018Direitos reservados para Marcador Editora,uma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal.

Título: O Livro das EmoçõesAutora: Filipa SáraggaRevisão: Rui Augusto/Editorial PresençaPaginação: Gráfica 99, Lda.Capa: Sofia Ramos/Editorial PresençaIlustrações: © Filipa SáraggaImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n.º 443 192/18

1.ª edição, Lisboa, agosto, 2018

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prefácio

A Propósito das Emoções

Todos precisamos de emoções, até daquelas que podería-

mos dispensar, como a tristeza. Seria muito mau vermo-

-nos livres da tristeza, porque ela é essencial ao amor e

para nos ligarmos às outras pessoas. Se assim não fosse, com

que coração veríamos a imagem de uma criança de três anos,

imóvel numa praia, atirada para a borda da areia por um mar

sem remorso? Sem a raiva nunca levantaríamos a voz contra a

injustiça ou a mentira. Sem a saudade não seríamos capazes de

manter dentro de nós a imagem vívida daqueles que partiram.

Há algum tempo, tive um reencontro em Nova Iorque com a

enfermeira que me acompanhou no hospital oncológico. Vivemos

juntos o desespero de ver partir tantas crianças, e também a ale-

gria de poder festejar, com muitas outras, os seus aniversários.

Estava mais velha, tal como eu. Sempre achei que lhe habitava

o corpo uma alma de anjo. Este anjo estava com rugas, o seu corpo

perdera a silhueta de mulher nova, a sua cintura já tinha sido mais

fina. Não é suposto os anjos envelhecerem, mas aos anjos sempre

jovens faltaria sabedoria, que é aquilo que se acumula pelo caminho.

Ao vê-la, vieram-me imagens de roldão, como quem perde o pé

em tempo de marés vivas. Lágrimas e soluços aos borbotões, e eu

abraçado a ela repetia, como uma criança que fez asneira e pede

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FILIPA SÁRAGGA

perdão: «Desculpa, desculpa…» Não queria que as minhas lágrimas

a incomodassem, se metessem de permeio, nos separassem.

Pegou-me nos braços e afastou-me um pouco. Apenas o

necessário para ter a certeza de que eu compreendia o que ela

tinha para me dizer. Os seus olhos azuis vieram fazer companhia

aos meus, enquanto afirmava, muito séria, como quem ensina

uma lição: «Nunca te envergonhes dos teus sentimentos.»

As suas palavras aquietaram-me, permitiram-me viver aquele

momento sem reservas, como se o meu choro fosse igual ao de

um recém-nascido para quem o grito inicial é essencial à vida.

Muitas pessoas julgam que empatia é dizer: «Não fiques

triste, amanhã sentes-te melhor.» Não é assim. Empatia é dizer

que compreendemos o sentimento do outro, e com ele sofremos

ou nos alegramos. Compreendemos as suas razões e tomamos

como nossas as suas dores. Partilhamos o mesmo sentimento.

Não é possível alguém compreender o amor se nunca amou.

Nesse sentido, explicar as emoções é o mesmo que tentar dizer

a um cego o que é o encarnado, embora se diga que a paixão é

vermelha, a esperança verde e a tristeza cinzenta. É também

por isso que devemos viver plenamente, porque são múltiplas

as cores que pintam a nossa vida emocional.

Estes livros não pretendem explicar a tristeza, a vergonha,

a raiva ou tantas outras emoções. O que eles nos dizem é que

há uma paisagem diversa e surpreendente dentro de nós. Que

é um privilégio estar vivo e podermos partilhar com os outros

o que sentimos, sem pudor, sem vergonha.

NuNo Lobo ANtuNes

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Livro da Saudade

Era uma vez, uma princesa de cor azul que vivia num palá-

cio virado para a floresta. Era um palácio tão grande que

a princesa nem sabia quantos quartos lá havia. Nos pátios

interiores viviam toupeiras e ouriços e, nas varandas, habita-

vam pombas, andorinhas e pássaros de mil e uma cores.

Em janeiro chegou o frio. Vieram as ventanias, os tempo-

rais, as chuvadas e o nevoeiro. As tempestades varriam as

varandas e as tocas, e os ouriços, as toupeiras e todos os pás-

saros eram obrigados a esconder -se até à primavera. As por-

tadas das janelas batiam e a princesa fugia dos gemidos do

vento. O chão de pedra gelava os calcanhares e nem as lareiras

carregadas de lenha eram capazes de trazer calor.

Foi num desses dias gelados de inverno que a princesa

Clara descobriu o sótão que ficava na ala norte do palácio. Pelo

menos lá, o chão era de madeira e, apesar de estalar e isso por

vezes a assustar, sempre era mais quente que as pedras gela-

das das salas, da cozinha, da biblioteca e da copa onde habita-

vam mais de cinco famílias de criados.

A princesa passava os dias a brincar no sótão. Estava num

ponto tão elevado que dali avistava toda a floresta e grande

parte do Reino Distante. Era um sótão maravilhoso onde havia

Saud

ade

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FILIPA SÁRAGGA

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O LIVRO DAS EMOÇÕES

baús que escondiam tesouros de reis e rainhas seus antepas-

sados. Os tesouros estavam cobertos de mantas com os bra-

sões da família real. Havia molduras antigas com retratos de

senhoras ainda mais antigas. Aranhas que corriam por todo o

lado, furiosas, porque bastava virarem as costas para um mor-

cego lhes destruir as teias. Às vezes passava por lá um rato,

mas era tão pequeno que mal se via.

Ali pairava o abandono. Mas era onde a Clara se sentia pro-

tegida. Por isso, sempre que conseguia, fugia até lá.

Certa manhã, ouviu -se um grande alvoroço no palácio. Os

criados apressavam -se e vinham de todas as direções, as car-

roças estavam alinhadas e a sala de jantar mais fazia lembrar o

Natal, tal era o banquete. As fachadas cobertas de musgo esta-

vam iluminadas, os azulejos brilhavam e as camélias

sorriam entre elas.

Só pode ser o bispo!, pensou a princesa.

Era o convidado mais ilustre da Rainha Luz e,

todos os anos, era recebido pelos reis neste almoço

habitual com toda a pompa e circunstância.

Do rio que atravessava a várzea verde, os laranjais e os

pomares, surgiu finalmente o bispo.

E assim se confirmaram as suspeitas da princesa...

Este ano, o bispo não vinha sozinho; estava acompanhado

por dois abades e um seminarista.

A Clara sabia que a conversa iria ser dominada pelos

adultos e, com a sua meiguice habitual, convenceu os reis a

deixá -la almoçar na copa para, mal terminasse de comer, ir

brincar.

Saud

ade

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FILIPA SÁRAGGA

Depois do almoço, a princesa correu até ao seu esconderijo

preferido. Nunca vira o sótão tão luminoso como naquele dia;

talvez fosse por causa de uns rubis perdidos no chão. Cum-

primentou as aranhas, pediu por favor e com toda a gentileza

aos morcegos para não lhe agarrarem os cabelos e começou

a cantar uma canção de embalar enquanto tentava descobrir

de onde haviam surgido aqueles lindos rubis que emanavam

cores rosa e violeta.

Deliciada com a sua canção, surgiu de súbito por trás de um

espelho dourado uma melga que a Clara nunca vira por lá.

– Tens uma linda voz, princesinha! – exclamou a melga velha

e cansada.

– Quem és tu? – perguntou a princesa.

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O LIVRO DAS EMOÇÕES

Saud

ade

– Sou a Melga Bia. Há três séculos que moro neste sótão. Aliás,

vivi cá toda a minha vida. Conheci muitos reis e muitas rainhas,

mas nenhum deles tinha uma voz tão bonita quanto a tua.

A Clara sorriu e, naquele momento, tornou -se para sempre

amiga da Melga Bia.

A melga contou -lhe o quanto fora vaidosa e que habitava no

espelho por ter passado toda uma vida a olhar para ele. Mas

agora, depois de velha, percebia finalmente que a vaidade de

nada lhe valera e que os momentos mais felizes da sua vida

haviam sido aqueles que partilhara com outras pessoas, e não

os anos passados a observar a sua imagem refletida no espelho.

Agora, a melga sentia -se na obrigação de se redimir perante

tamanha vaidade e de ajudar a princesa que tantas vezes cho-

rava por viver naquele palácio gigantesco sem crianças com

quem brincar.

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