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A PRODUÇÃO TEXTUAL NA ESCOLA PÚBLICA CONTEMPORÂNEA:

UMA QUESTÃO DE CLASSE?

Isa Ferreira Martins

Deixe estar que eu vou botar vocês todos no meu livro.

Carolina Maria de Jesus

Disponível em: <http://opatifundio.com/site/?cat=29> Acesso em: out. 2013.

A falta de legenda na fotografia é proposital. É provável que o leitor reconheça rapidamente

a escritora de óculos, pois mesmo aqueles que não fizeram Faculdade de Letras tiveram contato

com sua obra. Pode ter sido através de livros didáticos, aulas expositivas, belas e grandes

exposições em centros culturais, escolas, peças teatrais, filmes, museus, institutos etc., ou até

mesmo pela grande mídia e seus programas voltados para a literatura ou ainda outros que tiveram

a ficção da autora como inspiração para uso de novas linguagens e releituras.

Estou me referindo à, hoje, renomada escritora Clarice Lispector.

Mas quem é a outra escritora? Sim, trata-se de uma escritora.

A resposta é desconhecida da grande maioria dos leitores contemporâneos, mesmo

daqueles que são provenientes dos cursos superiores de Literaturas. Durante a pesquisa sobre a

autora negra, perguntei a professores, estagiários, alguns amigos que se orgulham de seus bons

conhecimentos literários e alunos sobre o que achavam da obra de Carolina Maria de Jesus e, na

grande maioria das vezes, a resposta era: - Quem? Repetir “Carolina Maria de Jesus” raramente

adiantava.

Na educação básica, muitas provas e materiais didáticos usados pelos professores trazem

os contos de Clarice Lispector. No Ensino Médio, não ter a obra clariceana como conteúdo a ser

trabalhado é mais que um simples lapso, é um atestado de "incompetência" e ou falta de

conhecimentos. Erro inadmissível, sentenciariam alguns. Até hoje, não encontrei um só livro

didático de Literatura Brasileira que não trouxesse para o leitor em formação o contexto,

características e contribuições da escrita de Clarice para a estética e discussões literárias.

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Essa questão nos remete, inevitavelmente, à necessidade de um contraponto de constante

reflexão sobre a noção de “já-dito”, (ORLANDI, 2011). De acordo com Eni Orlandi, o “já-dito” é

para alguns uma forma de “fechamento de mundo” (p. 09), já que, através dele, conceitos e

modelos são cristalizados, muitas vezes sem serem questionados. Nesse sentido, não podemos

deixar de trazer tal discussão também para o contexto social e escolar, pelo fato de termos um

cânone literário (não só) sendo perpetuado, bem como determinados discursos sociais e

pedagógicos “já-ditos”.

Falar de Clarice Lispector é falar de uma literatura e escrita reconhecida, sedimentada. E

sendo Lispector autora de uma obra que dispensa apresentação para muitos, o foco a seguir será

"a outra", ou seja, a escritora que divide com Clarice o momento da fotografia e que tem 6 anos, a

mais, de diferença. Na verdade, as diferenças vão muito além da idade, como veremos.

14 de março de 1914. Nasce, no Brasil, Minas Gerais, na cidade de Sacramento, a menina

Carolina Maria de Jesus. Toda sua vida escolar foi limitada a dois anos, durante a infância. É no

livro de Joel Rufino dos Santos, biografia intitulada Carolina Maria de Jesus: uma escritora

improvável, que encontramos um retrato do curtíssimo período escolar de Carolina quando lemos

o seguinte trecho: "(...) Recordou o colégio Allan Kardec, em Sacramento, o único que

frequentara. Um jornalista lhe disse ter sido o primeiro colégio espírita do Brasil - sempre teve

medo de espiritismo. Cinco bancos de cada lado" (RUFINO, 2009, p. 12). E foi durante a precária

e insuficiente escolarização que a pequena Carolina teve seu desejo de escrever despertado.

Como síntese da história de Carolina, até sua primeira publicação, podemos dizer que se

trata de uma mulher, negra, semianalfabeta, favelada, mãe solteira, três filhos, catadora de lixo,

escritora. Se suprimirmos o adjetivo escritora, que parece improvável, lembrando o título dado por

Rufino, a apresentação de Carolina pode servir para milhões de mulheres que retratam as

estatísticas de uma sociedade tão desigual. Ao pesquisar sobre a escritora, não raro nos

depararmos com críticas como a seguinte:

Uma escritora única, cujo olhar aguçado conduz uma narrativa forte e dolorosaque chama a atenção para a condição humana. Carolina Maria de Jesus escreveu,entre outros livros, Quarto de Despejo, "fenômeno editorial do início da década de1960. O livro, traduzido em 13 idiomas, publicado em mais de 40 países - cujaprimeira edição, de 30 mil exemplares, esgotou em apenas três dias - vendeumais de 1 milhão de cópias. (VERUNSCHK, 2010, s/p). Disponível em:<http://carrancasliterarias.blogspot.com.br/2010/12/quarto-de-despejo-carolina-maria-de.html>. Acesso em: 27 jul. 2013. (Grifos meus)

Os números que revelam o sucesso de sua obra impressionam e despertam a curiosidade.

Assim, a apresentação dela ao presente leitor será feita também através de breves trechos da

escrita da própria. Porém, é preciso esclarecer desde então que a relação entre Clarice e Carolina

no presente trabalho não se dá pela via da temática ou da literatura, mas pelos caminhos que a

sociedade e a crítica literária possibilitaram que trilhassem. O sucesso e reconhecimento de

Clarice, seus diversos livros vertidos para outras línguas e as traduções que fez de obras

estrangeiras é o resultado de um longo, belíssimo e peculiar trabalho com a linguagem.

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Mas como surge, efetivamente, a mais que improvável escritora que assim como

Lispector também foi traduzida e respeitada internacionalmente? Quem nos conta é o repórter

Audálio Dantas, responsável pelo lançamento do livro mais vendido de Carolina. Segundo ele,

quando viu Carolina pela primeira vez foi na favela do Canindé. Ele havia ido lá para fazer uma

reportagem sobre "umas balanças-brinquedo-de-menino que a Prefeitura mandou botar na favela"

(JESUS, 1960, p. 09). Porém, havia lá um conflito. De acordo com alguns moradores, "os

brinquedos dos meninos, os grandes tomaram. Homem feito, de barba na cara, era quem gozava

do balanço" (idem) e um deles ainda batia na criança que chegasse perto do brinquedo.

Nessa tarde, Carolina estava no local protestando: "Aonde já se viu uma coisa dessas,

uns homens grandes tomando brinquedo de criança!" (idem) e os homens a ignoravam. Nesse

momento, ela gritou: "Deixe estar que eu vou botar vocês todos no meu livro" (idem).

Curioso, o repórter virou-se para ela e perguntou: "Que livro?" (idem) Carolina responde: "-

O livro que eu estou escrevendo as coisas da favela". (p.10).

Audálio Dantas pede para ver o livro e Carolina o leva ao seu barraco para mostrar o

material. As primeiras impressões do repórter ao ler o que Carolina havia escrito foram1:

Coisa bem contada, assim como aparece agora em letra de fôrma, sem tirar nempôr. Eu vi, eu senti. Ninguém podia melhor do que a negra Carolina escreverhistórias tão negras. Nem escritor transfigurador poderia arrancar tanta belezatriste daquela miséria tôda. Nem repórter de exatidão poderia retratar tudo aquilono sêco escrever. Foi por isso que eu disse assim para Carolina Maria de Jesus, lámesmo, na horinha que linha trechos de seus diários: - Eu prometo que tudo isso que você escreveu sairá num livro. (DANTAS, texto de apresentação, in JESUS, 1960, p. 10). (Grifos meus)

Tempos depois, o leitor brasileiro depara-se com o intrigante sucesso do livro Quarto de

despejo: o diário de uma favelada, que começa assim:

15 de julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendiacomprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nosimpede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo devida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.(JESUS, 1960, p. 13). (Grifos da autora)

O que segue a partir de agora é a tentativa de apresentar a veia escritora de uma mulher

do povo que registrou uma visão de crítica social misturada à consciência histórica de classe,

apresentada, por exemplo, através do que ela escreveu no dia da Abolição dos Escravos:

13 de maio Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o diada Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...] Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha.Mandei-lhe um bilhete assim: - ‘Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer umasopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude catar papel. Agradeço.Carolina.'... Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. AVera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. [...] Fui

1 Na presente pesquisa, será reproduzida a grafia presente nos originais da obra, tanto nos textos de Carolina Maria de Jesus (registros que provocaram debates sobre o texto como expressão social) quanto nos do repórter Audálio Dantas (registro temporal).

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pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e o arroz. Era 9 horasda noite quando comemos.E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - afome! (JESUS, 1960, p. 32). (Grifos da autora, em negrito). (Grifos meus, emitálico e negrito)

Um ponto relevante para nossa discussão é pautado no fato de que em dezembro de 1977

morre Clarice Lispector, mas a consternação pela morte da referida autora provoca também o

nascimento de mais um cânone literário. No mesmo ano morreu Carolina Maria de Jesus, o que

acelerou ainda mais o processo de "apagamento" (ORLANDI, 2007) da escritora..Hoje, a escrita

de Carolina pouco circula na sociedade ou entra na escola. E quando raramente está presente,

em um livro didático, por exemplo, não aparece dentre os escritores da nossa Literatura Brasileira,

mas como exemplo de “erro gramatical”, sendo usada para o ensino de regras que a autora

desconhecia. Ou seja, é a fuga da norma gramatical e não o destaque como escritora que exerce

o papel de protagonista, mesmo tendo sido ela da classe popular e conquistado um grande

público ao questionar a sociedade e suas profundas desigualdades.

Assim, pensar sobre a escrita é entendê-la também como “textualização”, que Orlandi

(2008) define como “a colocação do discurso em palavras” (p. 129). Até esse ponto pode parecer

simples a relação entre ambas, no entanto, a autora chama a atenção para a relação necessária

dessa “textualização” com o político. Segundo ela:

Em todo dizer há confronto do simbólico com o político: todo dizer tem umadireção significativa determinada pela articulação material dos signos com relaçãoao poder. Essas relações se definem por sua inscrição em diferentes formaçõesdiscursivas que representam diferentes relações com a ideologia, configurando ofuncionamento da língua regida pelo imaginário. Uma espessura semântica quefaz intervir a noção de interpretação. (ORLANDI, 2008, p. 129). (Grifos nossos)

Seguindo essa linha de pensamento, temos a escrita também situada em relação à classe

social na qual seu autor está inserido. Conforme nos aponta Soares (1988), “a expressão classe

social é de difícil conceituação, pois tem sido utilizada de várias maneiras, por diferentes autores;

seu conceito depende dos critérios escolhidos para designar como classe determinado grupo

social” (p. 81). Assim, para as análises e relações que faremos com o objeto da presente

pesquisa, temos como referencial o conceito marxista:

O conceito de classe tem uma importância capital na teoria marxista, conquantonem Marx nem Engels jamais o tenham formulado de maneira sistemática. [...] Amaior parte dos marxistas posteriores seguiram os passos de Marx e Engels aoconcentrarem sua atenção na estrutura de classes de sociedades capitalistas [...].(BOTTOMORE, 1988, p. 61 – 62)

Elegemos então o trecho abaixo, retirado do dicionário marxista consultado na citação

acima:

Em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (parte VII), Marx definiu uma classeplenamente constituída do seguinte modo: Na medida em que milhões de famílias vivem sob condições econômicas deexistência que separam seu modo de vida, seus interesses e a sua culturadaqueles das outras classes e as colocam em oposição hostil a essas outrasclasses, elas formam uma classe. (BOTTOMORE, 1988, p. 62). (Grifos do autor)

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Ao escrever sobre o conceito de classe, Marx nos permite entender não só a relação

econômica, critério fundamental, que diferencia uma da outra, apontando também para a

necessidade de percepção de que as condições econômicas díspares resultam em uma vida,

interesses e cultura diferentes. Entretanto, essa diferença na forma de vida é usada para a

hostilização daqueles que não ocupam a classe economicamente dominante. Vale lembrar que

são diversos os mecanismos de controle concreto e simbólico que as classes dominantes utilizam

para se manterem no comando, com o poder, sendo o uso e ensino da língua e da escrita uma

importante ferramenta dessa diferenciação entre classes. Tal ideia pode ser claramente percebida

na abordagem educacional, que se pauta na supervalorização e perpetuação da língua e culturas

das classes abastadas, dominantes, difundidas ideologicamente como “superiores” ou “cultas”.

Nessa perspectiva, o que se escreve, como se escreve, quem escreve, refletirá o simbólico

confronto político, conforme aponta Orlandi (2008), bem como as diferenças de classe, o tipo de

ideologia presente e o poder vigente.

Assim, embora Carolina Maria de Jesus tenha "conquistado o mundo" através da sua

escrita, a elite brasileira não estava confortável com seu sucesso e circulação dentre os ilustres

letrados da nossa sociedade. Não bastava, para eles, que a escritora tivesse tido seu trabalho

divulgado amplamente e internacionalmente até, por exemplo, na "Time", "Life", "Paris Match" e

"Le Monde".

Dar voz à Carolina (e a outros artistas das classes populares) era ter de efetivamente ouvir

sobre uma realidade que se finge não ver, onde há lugares próprios para ricos e pobres e que, por

tradição, sempre foram narrados de modo romantizado pela elite intelectualizada e artística do

país. Ou seja, Carolina pode ser vista, desse modo, como um fenômeno que desloca o espaço do

discurso sobre o popular ao assumir, ela própria, a condição de enunciadora de uma condição

social tradicionalmente dita pela voz do outro, pelo cânone. Nesse sentido, rompe com a narrativa

hegemônica, afirmação que requer uma definição de hegemonia, para ser melhor explicada, o

que será feito a seguir.

Segundo Oliveira (2011, p. 65), o conceito de hegemonia, na perspectiva marxista, é um

dos mais polêmicos e difíceis de definir. Conforme o autor, tem-se Lênin, Stálin, Bukharin, Mao

Tse-tung, Gramsci, Perry Anderson como nomes que representam uma importante contribuição à

discussão sobre hegemonia, “permitindo interpretá-la como liderança e/ou como domínio” (idem).

Para as reflexões aqui propostas, será a contribuição gramsciana tomada como referencial

teórico, para quem “a hegemonia é concebida como direção e domínio e, portanto, como

conquista, através da persuasão, do consenso, mas também como força para reprimir as classes

adversárias” (GRUPPI, 1978, p. 58 apud CHAMPANGNATTE, 2013, p. 32).

Ou seja, corresponde à liderança ético-moral de uma classe ou fração de classe sobre o

conjunto da sociedade. Nesse sentido, a hegemonia é entendida pelo exercício da direção cultural

e ideológica da classe que a exerce ao adquirir, junto aos demais grupos e classes sociais, o

consenso em torno de sua visão de mundo.

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O entendimento desse conceito nos permite ver com clareza tais práticas na escola

pública, por exemplo, uma vez que é “consenso” que as classes populares devem lá estudar e

adquirir obrigatoriamente o conhecimento e a cultura da classe dominante, subordinando a esta à

identidade de uso da linguagem e de culturas dos demais grupos ou classes sociais. Isso ocorre

porque “a hegemonia não influencia somente as organizações política e econômica da sociedade,

mas também seus posicionamentos ideológicos circulantes, interferindo nos modos de pensar e

agir” (CHAMPANGNATTE, 2013, p. 32), sendo a escola, conforme Gramsci, um dos canais

responsáveis pelo processo de hegemonização, sendo os demais “a igreja (…) e também alguns

meios de comunicação, como o jornal impresso, o rádio e o cinema” (idem).

Outro autor que nos ajuda a entender e a trabalhar a tríade texto

(discurso)/ideologia/hegemonia é Norman Fairclough. Em seu trabalho, o “discurso” é entendido

como prática social (FAIRCLOUGH, 2008), sendo tanto o conceito de ideologia quanto o de

hegemonia inerentemente relacionado à prática discursiva.

Também apoiado nos conceitos gramscianos, Fairclough define hegemonia da seguinte

forma:

Hegemonia é liderança tanto quanto dominação nos domínios econômico, político,cultural e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedadecomo um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentaisem aliança como outras forças sociais, mas nunca atingido senão parcial etemporariamente, como um ‘equilíbrio estável’. Hegemonia é a construção dealianças e a integração muito mais do que simplesmente a dominação de classessubalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seuconsentimento. (FAIRCLOUGH, 2008, p. 122)

A partir dessa perspectiva, é possível explicar a afirmação de que a literatura de Carolina

representava uma ruptura com a narrativa hegemônica. Tal ideia pauta-se na forma como a

miséria, por exemplo, é hegemonicamente ficcionalizada, pois na tradição literária a grande

maioria dos leitores, pautado no conceito de mimesis (representação artística do mundo físico),

volta rapidamente para seu “conforto social”, já que aquela miséria é uma narrativa de ficção, que

muitas das vezes tem um final feliz. Isso não ocorre quando lemos a obra de Carolina. A

finalizarmos a leitura de Quarto de despejo, por exemplo, nos deparamos com palavras que fazem

questão de relembrar ao leitor que a miséria que serviu de inspiração não é uma ficção, foi

sentida, vivida por ela, por seus pequenos filhos, por seus vizinhos, por milhões de brasileiros, de

milhares de outras formas.

A noção de “formação discursiva” dada por Orlandi (2011) nos permite entender a relação

texto/ideologia que resultam na tensão/exclusão do escritor da classe popular do mundo da

escrita. Segundo ela, a “formação discursiva” é constituída pela remissão que se pode fazer de

todo texto a uma formação ideológica, sendo o sentido do texto definido por essa relação (p. 73).

Nessa perspectiva, podemos entender o professor de produção textual como o sujeito que lê os

textos dos alunos sob o ponto de sua própria formação discursiva e que irá praticar tal conceito ao

ensinar, uma vez que:

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[...] a formação discursiva determina o que pode e o que deve ser dito a partir deum certo contexto sócio-histórico. Quer dizer, todo texto tem sua ideologia epodemos determinar a relação do texto com a ideologia através da caracterizaçãoda formação discursiva da qual ele faz parte. (ORLANDI, 2011, p. 73-74)

A noção do professor sujeito e ao mesmo tempo formador discursivo também contribui

para desconstruir a ilusão de que estamos diante de uma turma trabalhando pautados

essencialmente na ciência/conteúdo. Ou seja, a forma como se ensina a disciplina e seus

conteúdos pode ter uma abordagem elitista ou popular e, no caso da produção textual, pautada

essencialmente no que falta ao texto, no “erro” ortográfico etc. deixando de lado a criatividade, o

trabalho com a linguagem ou, ainda, as visões de mundo contidas nos textos dos alunos que

poderiam ser contrapostas, discutidas com eles, com o objetivo de ampliar sua “compreensão”

(ORLANDI, 2011) do mundo.

Porém, não são poucos os estudantes que verbalizam que os únicos apontamentos

recebidos em seus textos são os ortográficos ou de cunho estrutural. O que o aluno escreveu, o

debate sobre as ideias contidas, os “sentidos circulantes” (idem) nos textos deles raramente são

abordados, tal como geralmente acontece com a escrita de Carolina Maria de Jesus em materiais

didáticos, retratando práticas de linguagem essencialmente voltadas para a normatização do uso

da língua, o que consequentemente se estende, mais rigorosamente, para a produção textual.

Redirecionar a discussão para as desigualdades de classes, as “condições de produção”

(ORLANDI, 2011) e as práticas de ensino é um passo necessário, em prol do entendimento de que a

estrutura social é que impõe os limites não só do que o povo come, mas também do que deve

aprender.

Diante das problemáticas apresentadas, pode parecer desanimador trabalhar com o ensino

da produção textual, justamente porque as tensões que envolvem o ensino da língua já são tantas e

são inevitavelmente potencializadas quando a escrita é o desafio.

Entretanto, partimos da hipótese apresentada por Barreto (1994), em sua tese, cujo título é

“Da leitura crítica do ensino para o ensino da leitura crítica”, que norteia nossas análises sobre as

práticas de ensino e produções de texto, além dos pressupostos e referenciais teóricos. Nesse

sentido, assumimos que:

[...] desenvolvido trabalho sistemático dirigido à compreensão das formaspelas quais se produzem os sentidos, os alunos são capazes de assumirdiferentes perspectivas diante de textos significativos, questionar o que é tido comodado, e argumentar redimensionando o objeto da interlocução. Em síntese, rompidaa prática da repetição do já-dito e estabelecidas condições favoráveis, os alunos sãocapazes de articular discursos críticos. (BARRETO, 1994, p. 39). (Grifos meus)

Assim, a partir da perspectiva da capacidade dos alunos de se reconhecerem enquanto

sujeitos produtores de discurso, somada a uma formação voltada para a leitura polissêmica,

diferente (ORLANDI, 2011), esses têm a capacidade de romper com o “já-dito”. Ou seja,

assumirem a condição de sujeitos articuladores de discursos críticos, na linguagem oral e na

escrita.

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Quando nos propomos a debater a escrita com um olhar voltado não só para o contexto

literário, mas também para o social, objetivamos desvelar questões ideológicas que permeiam o

poder, a linguagem e o discurso que muitas vezes chegam às escolas já naturalizadas, tais como

a ideologia das “diferenças sociais”, “culturais” ou do “déficit linguístico” (SOARES, 1988), que

refletem de forma direta na produção textual escolar.

Nesse sentido, entendemos como necessárias análises sobre a prática e o ensino da

produção textual na escola relacionadas também a estudos dos discursos circulantes e questões

de ordem econômica, política e social. Tal ideia pauta-se na percepção de que essas três últimas

temáticas são, na grande maioria das vezes, excluídas das discussões sobre a produção textual,

sendo os debates voltados essencialmente para as problemáticas linguísticas ou pedagógicas.

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