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A PRODUÇÃO DA ESCALA METROPOLITANA E DO SEU PESQUISADOR: ELEMENTOS DE RITMANÁLISE Flávia Elaine da Silva Martins* RESUMO: Este artigo busca compreender a produção do espaço metropolitano a partir da ampliação das relações de crédito e de endividamento na composição dos negócios imobiliários urbanos. São enfocados neste contexto a abertura de capital nas incorporadoras imobiliárias e a presença dos leilões de imóveis como agentes imobiliários. A produção em escala dos imóveis a serem comercializados pelas incorporadoras e a abrangência da escala metropolitana como localização destes lançamentos colocam a produção social da escala urbana como aspecto a ser pesquisado na geografia, a partir do pesquisador que inclui seu cotidiano como fonte de pesquisa. PALAVRAS – CHAVE: metropolitano, crédito, endividamento, escala, cotidiano. ABSTRACT: This article seeks to understand the production of the metropolitan area from the extension of credit agreements and debt in the composition of urban real estate. Are approaches in this context the opening of capital in real estate development and the presence of auction properties and real estate agents. The production scale of the property being marketed by developers and scope of the metropolitan scale and location of these launches put the social production of urban scale as feature to search for in geography from the researcher that includes your daily source of research. KEY WORDS: metropolitan, credit, debt, scale, everyday life. Introdução Este artigo procura abordar algumas transformações pelas quais o modo de vida urbano vem passando nas metrópoles, por meio do estudo dos conteúdos destas e a partir da transformação do próprio pesquisador, neste caso, geógrafos implicados nas pesquisas dos espaços em que vivem. O positivo distanciamento entre sujeito e objeto não é mais possível nas nossas pesquisas, e quando isso se dá em uma pesquisa atual, ocorre à custa de um conhecimento que perde sua força. Ao mesmo tempo, quando os pesquisadores decidem se aprofundar, por exemplo, no estudo dos negócios urbanos, encontram barreiras gigantes. Negócios são feitos a portas fechadas, como a nossa experiência vem nos mostrando. O cotidiano passa assim a se apresentar ao pesquisador como a sua maior fonte de informação. A insistência em elucidar as estreitas ligações de um pesquisador com o seu “objeto” de pesquisa, sem confundi-los, reside no fato de que a vida cotidiana é um plano de pesquisa que nos une de forma totalizante, nos limites e na potência que isso pode significar. A ambiguidade da percepção e do vivido, entretanto, não torna esse caminho de desvendamento muito tranquilo. Temos como proposta neste artigo apresentar uma relação sujeito-objeto da pesquisa que parta do estudo do cotidiano e exige o cotidiano do próprio pesquisador como fonte de pesquisa e análise crítica, seguindo para a GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, pp. 29 - 39, 2009 *Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Geografia Humana pelo Depto. de Geografia da FFLCH/USP. Orientanda de: Profª Amelia Luisa Damiani. Email para contato: [email protected].

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A PRODUÇÃO DA ESCALA METROPOLITANA E DO SEUPESQUISADOR: ELEMENTOS DE RITMANÁLISE

Flávia Elaine da Silva Martins*

RESUMO:Este artigo busca compreender a produção do espaço metropolitano a partir da ampliação das relaçõesde crédito e de endividamento na composição dos negócios imobiliários urbanos. São enfocados nestecontexto a abertura de capital nas incorporadoras imobiliárias e a presença dos leilões de imóveiscomo agentes imobiliários. A produção em escala dos imóveis a serem comercializados pelasincorporadoras e a abrangência da escala metropolitana como localização destes lançamentos colocama produção social da escala urbana como aspecto a ser pesquisado na geografia, a partir do pesquisadorque inclui seu cotidiano como fonte de pesquisa.PALAVRAS – CHAVE: metropolitano, crédito, endividamento, escala, cotidiano.

ABSTRACT:This article seeks to understand the production of the metropolitan area from the extension of creditagreements and debt in the composition of urban real estate. Are approaches in this context theopening of capital in real estate development and the presence of auction properties and real estateagents. The production scale of the property being marketed by developers and scope of the metropolitanscale and location of these launches put the social production of urban scale as feature to search for ingeography from the researcher that includes your daily source of research.KEY WORDS: metropolitan, credit, debt, scale, everyday life.

Introdução

Este artigo procura abordar algumastransformações pelas quais o modo de vidaurbano vem passando nas metrópoles, por meiodo estudo dos conteúdos destas e a partir datransformação do próprio pesquisador, nestecaso, geógrafos implicados nas pesquisas dosespaços em que v ivem. O posit ivodistanciamento entre sujeito e objeto não é maispossível nas nossas pesquisas, e quando issose dá em uma pesquisa atual, ocorre à custade um conhecimento que perde sua força. Aomesmo tempo, quando os pesquisadoresdecidem se aprofundar, por exemplo, no estudodos negócios urbanos, encontram barreirasgigantes. Negócios são feitos a portas fechadas,como a nossa experiência vem nos mostrando.

O cotidiano passa assim a se apresentar aopesquisador como a sua maior fonte deinformação.

A insistência em elucidar as estreitasligações de um pesquisador com o seu “objeto”de pesquisa, sem confundi-los, reside no fato deque a vida cotidiana é um plano de pesquisa quenos une de forma totalizante, nos limites e napotência que isso pode significar. A ambiguidadeda percepção e do vivido, entretanto, não tornaesse caminho de desvendamento muito tranquilo.

Temos como proposta neste art igoapresentar uma relação sujeito-objeto dapesquisa que parta do estudo do cotidiano e exigeo cotidiano do próprio pesquisador como fontede pesquisa e análise crítica, seguindo para a

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, pp. 29 - 39, 2009

*Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Geografia Humana pelo Depto. de Geografia da FFLCH/USP.Orientanda de: Profª Amelia Luisa Damiani. Email para contato: [email protected].

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proposição de uma sociedade urbana comoportadora de uma prática espacial que podeconter respostas desviantes das práticas sociaise espaciais cotidianas.

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Tentaremos um caminho pela ritmanálise.O que nos provoca a seguir por esse caminho é ojá apresentado quest ionamento dodistanciamento entre pesquisado e pesquisadore mais do que isso, é a impossibilidade deseparação dos ritmos que envolvem ambos nanossa sociedade urbana atual. Os elementos daritmanálise irão compor esta pesquisa, ou melhor,já estão nela desde a sua conformação.

De forma central ao texto apresento umtrecho que Henri Lefebvre nos traz em seu livroElementos de Ritmanálise, Introdução aosconhecimentos dos ritmos. “O ritmanalista (...)não terá estas obrigações metodológicas: setorna passivo, esquece o seu saber para o re-apresentar por inteiro na interpretação. Eleescuta, antes o seu corpo. Ele apreende os seusritmos, para em seguida apreciar os ritmosexternos. Seu corpo lhe serve de metronome”.(LEFEBVRE, 1992, p. 39)

A proposta deste artigo é apresentaralguns dos elementos de ritmanálise utilizadosna pesquisa de doutorado que dá origem a esteartigo, todos eles destacados a partir do cotidianoda pesquisadora que aqui escreve. É necessáriolembrar que esta pesquisa também é fruto dedebates de um grupo1, que deram origem aomovimento feito a seguir, de tensão entre oritmanalista e o analista (institucional).

Para isso, retornando brevemente ao livrocitado acima, podemos captar um bom diálogoentre a análise institucional e a ritmanálisepresente no prefácio de René Lourau paraElementos de Ritmanálise. Lourau aponta que areabilitação do sensível, para Lefebvre, é areabilitação da sensibilidade do observador, dopesquisador, em ocorrência da ritmanálise. Oritmanalista toma por referência os seus própriosritmos. Ele trabalha com seu corpo que trabalha.René nos lembra ainda que a ritmanálise deveseguir do abstrato ao concreto.

O “diálogo” entre autores pode nos sugerirum debate e vamos dar início a ele por meio daconstituição do sujeito e do objeto. Ambos autoreslidam estrategicamente com noção de sujeito, eportanto, de forma consciente, com a separaçãoe a união oportunas entre sujeito e objeto, assimcomo com a inversão de papéis. O analista seenvolve com a análise, dela faz parte, atua e seinstitui. O ritmanalista se abandona por algummomento, estuda o contato entre os seus ritmose os ritmos alheios aos seus, discernindo-os,entretanto. O analista tem mais forte aconsciência de sua atuação para transformaçãode determinada relação, para a sua instituição, oritmanalista usaria de sua sensibilidade paraapreender a transformação de um ritmo alheioque pode estar a se tornar muito íntimo, nelepróprio.

Agora vamos discutir sobre as escalasurbanas e o cotidiano, então sobre as mediações.Podemos compreender que o urbano se apresentacomo uma massa disforme de instituições,indistintas muitas vezes. Esta escala urbana,produzida a part ir da indeterminação dasinstituições, seria melhor apreendida pelos ritmos.Entretanto, assim como as escalas seinterpenetram, podemos observar melhor e verque essa massa disforme, o cotidiano urbano, érepleta de instituições sem limites conhecidos àsquais cada pessoa se apresenta destituída ou ase instituir. Instituir-se em uma escala, podesignificar destituição em uma escalaimediatamente inferior ou superior.

“Es raro que um individuo, por aislado queparezca, no sea menbro de um retículo o umfilamento, a menudo sin saberlo. La mayorparte de la gente participa em vários de estegrupo “informales”. Detengamos aqui estebreve inventario de la cotidianidad. Paracompreenderla, hemos recurrido a uma nocióncelebre y obscura, de alienacion. Toda actividadviva e consciente que se pierde, se extravia,se deja arrancar de si mesma, y porconseguinte se aparta de su plenitud, estáalienada. El estudo de la vida cotidiana obrigalos filósofos a flexibilizar e concretizar estanoción. Al ienación y desalienación se

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entremezclan, lejos de excluirse. Lo que liberae “desaliena”en relación a una actividad yaalienada puede resultar alienante, y, emconsequência, exigir otras desalienações. Y asísucesivamente, en um movimiento dialéctico,es decir, hecho de contradiciones siempreresueltas y siempre renascientes.” (LEFEBVRE,1978, p. 85).

O movimento apresentado acima é osubstrato da prática cotidiana. A prática espacialnos remete a um cotidiano constituído a partir defragmentos. Para uma possível noção detotalidade, para essa, a ritmanálise poderia nosdar pistas. Esta é a tensão de um conceito nooutro.

Elementos de ritmanálise

Anuncio o contexto geral da pesquisa daqual este enfoque faz parte, que é o ritmo deprodução do espaço em escala, imposto ao urbanopor meio das incorporadoras de capital aberto esobre a presença das dívidas no modo de vidaurbano. A partir do corpo geral das pesquisas,anuncio algumas constatações: a pressão sobreos terrenos urbanos, na formação dos bancos deterras, aumentou os seus preços; os bancos deterras são formados em terras periféricasdisponíveis, provocando a formação de novoscentros, implicando em “expulsões” eintensificando as grandes distâncias urbanas. Estapressão se dá de forma simultânea em muitasmetrópoles brasileiras, apresentando o processode forma generalizada às diferentes realidadesurbanas; a dívida de longo prazo se torna, cadavez mais, um dos únicos acessos possíveis àmoradia, cada vez mais encarecida e difundidanos diversos segmentos de renda; o pagamentodestas dívidas está internamente conectado àremuneração do capital financeiro internacionale o não pagamento apresentará um agenciamentoespacial e cotidiano - mudanças, expulsões - aser realizado pelos endividados.

Abertura de Capitais nas incorporadorasO ano de 2006 pode ser considerado um

marco no processo de abertura de capitais pelas

incorporadoras brasileiras, nas chamadas IPO´s,initial public offering, quase como em decorrênciade um processo longo de mundialização doscapitais - que envolveu a desregulamentação daspraças financeiras e internacionalização doscapitais - e uma ampla política de crédito apoiadae favorecida pelo Estado.

As empresas que abriram seus capitaisadotaram novas agendas, novos ritmos delançamentos, se reestruturaram internamente,assim como se reestruturou o seu raio de atuação,passando a englobar as regiões metropolitanasde todo o país. Este conjunto de alterações visoua programar a remuneração esperada e adequadaao capital que passou a fazer parte dasincorporadoras com as chamadas IPO´s. Um fatoimportante diante deste quadro de expansão foia criação dos bancos de terras pelasincorporadoras em muitas áreas urbanas do país,elevando os preços da terra e implicando umaescala de produção urbana necessária paraassegurar os rendimentos e ritmos financeiros.

Este é um caminho para abordar o meiopelo qual os ritmos financeiros mundiais sãoapresentados, nível por nível, redefinindo o modode vida metropolitano, e o estudo da abertura decapitais, a comercialização dos lançamentosimobiliários e as dívidas geradas a partir daí, criaa oportunidade de investigar o longo prazo nosprocessos de endividamento urbano. Ritmo fictícioa redefinir outros ritmos. Passamos a lidar, dessaforma, não só com a produção do espaço, mascom a produção do espaço nas determinaçõesdo capital que ingressa financeiramente nasincorporadoras, provocando a produção da escalae do ritmo inerente a ela. Não se trata de umaescala de atuação dada, mas uma escala a serproduzida e socialmente reproduzida.

A abertura de capitais nas incorporadorasresponde a uma política de incremento do crédito,fazendo com que cresçam os pedidos definanciamentos para a compra dos “produtos”fabricados pelas incorporadoras, casas,apartamentos e lotes, apoiados em uma políticaacordada entre o Estado e as inst ituiçõesbancárias, de oferecimento de crédito aosconsumidores. Às dívidas de médio e curto prazos,

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atualmente tão difundidas na administração dascontas domésticas, inclusive das famílias maispobres, se somam os financiamentos de longoprazo para a moradia. Esta política de crédito visaatender todas as faixas de rendimento, e podemosencontrar desde os fundos para habitação popularaté a elevação do montante a ser financiado,atingindo imóveis da classe média. Visivelmente,o leque se abre e o objetivo é a ampliação docrédito em todos os níveis de renda.

As recentes conexões entre o financeiro eo imobiliário - e a produção do urbano - sedesdobram em inúmeras formas e denominações.A geografia vem realizando uma série de estudosque buscam compreender o processo pelo qual ourbano foi absorvido pela lógica do dinheiro,tornada lógica do capital, e este momento definanceirização do capital – capital que desde oinício porta a lógica financeira, mas agora estalógica assume forma predominante - provoca onecessário desvendamento de continuidades erupturas da forma e conteúdo urbanos, derelações sociais urbanas a reproduziremcriticamente uma determinada escala financeirade produção. Os esforços têm se distribuído, porexemplo, na compreensão da abstração dost ítulos de propriedade urbana e da suamobilidade, da sua circulação financeira, dosfundos de investimento presentes no mercadoimobiliário, dentre outros.

Este artigo se insere neste movimentomaior e se aproveita dele, assim como esperacolaborar com ele ao final. Tem foco específicona abertura de capitais que as incorporadoraspromoveram entre os anos de 2006 e 2007 ebuscará, em um nível mais profundo, sondar aconexão deste “evento” com outros estudos,apresentando um ponto de vista sobre a formada inserção da produção do urbano em quevivemos em uma escala financeira de abrangênciamundial, e a contradição desta produção, desteespaço produzido em escala dinâmica e pré-implicada.

É necessário fazer uma ressalva de que aabertura de capitais, de uma forma geral, paraempresas de diversos setores, é uma forma decaptação de recursos presente na bolsa de valores

já há algumas décadas, e que conheceu outrosmomentos de ápice, como no ano de 1998, porexemplo. O que se pretende aqui é estudar estaforma de captação de recursos a partir do sistemafinanceiro, com implicações diretas sobre a escalade produção do espaço urbano, e um novo “pico”de crescimento de empresas abrindo o seu capital,nos anos de 2006, 2007, fortemente marcado pelapresença das incorporadoras. A abertura decapitais está presente nos diversos setores,assim, a análise dos ritmos apresentados aquipara a construção civil guarda paralelos com omesmo processo nestes outros setores, como porexemplo o “setor da educação privada”, com aforte presença de capitais internacionais, assimcomo constatamos na construção civi l. Aprodução desta escala, de remuneração, envolvea sociedade de maneira totalizante.

Este olhar para as Ipo´s na construçãocivil acabou por ter delimitações bem definidas.Temos os anos de 2006 e 2007 como o momentode corr ida das incorporadoras à bolsa,amplamente divulgado e já com algumarepercussão nos estudos econômicos. SegundoTAVARES, “houve um importante movimento deacesso (das incorporadoras) ao mercado de açõescomo forma de captação de recursos, a partir dosegundo semestre de 2005. (...)” (TAVARES,2008, p. 47).

Da mesma maneira, podemos tomar acrise norte-americana de financiamento dosSubprime, no último trimestre de 2008, como umponto crítico de estudo desta forma, por anunciar,em um mercado e uma sociedade diferente dosnossos, os termos potencialmente críticos dosfinanciamentos apresentados aqui. Comoestudamos as relações de crédito, em longo prazo,não podemos acomodar o tempo da pesquisa numtempo linear e sucessivo de crédito e dívida. Seráum recurso de análise desta pesquisa queassociemos, em um mesmo tempo, dívidas ecréditos de períodos e locais diferentes.

O foco fecha ainda na abertura de capitais,em especial para o setor da construção civil epara as incorporadoras. Existem diferenças entrea abertura de capitais promovida pelasincorporadoras e a abertura de capitais em outros

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setores. As incorporadoras necessitam de prazosmais longos para a realização dos ciclos deprodução e consumo que participam do conjuntode sua produção, possuem diferenças na rotaçãodo capital dentro da produção e na composiçãoorgânica das empresas.

Segundo TAVARES, “de uma forma geral,existe uma característica especial da construçãocivil, a presença do longo prazo, de uma linha deprodução atípica e com muitas variáveis e dotamanho relat ivamente pequeno2 destasempresas. (TAVARES, 2008, p. 79)”.

A abertura de capitais pelasincorporadoras teria sido uma resposta àampliação de crédito feita em níveis abrangentespelo mercado e pelo Estado, como já vimos acima.Em uma situação de crescimento, baseada naslinhas de crédito, a oportunidade de acompanharo crescimento foi a abertura de capitais, e não ocrescimento por endividamento. A captação derecursos com a abertura de capitais serviria paraa compra de terrenos, a formação de Land Banks,e para as aplicações financeiras. (TAVARES, R.2008).

Ainda segundo a autora, alguns marcosjurídicos e elementos de conjuntura econômica,como um maior aporte de recursos para ossistemas nacionais de f inanciamentos,favoreceram o aumento do volume de atividadedas incorporadoras. Temos então que a aberturade capitais das incorporadoras se encontra emum conjunto maior de transformações e ações,possuindo características especiais.

Sabemos que “onze empresas emitiramações no período de 2005 a março de 2007 –Brascan, Company, Camargo Corrêa, Cyrella,Even, Gafisa, Klabin Segall, PDG Realty,Rodobens, Rossi e Tecnisa, (...)”3, o que nos defineuma amostra exploratória para acompanhar, pormeio dos seus lançamentos, da evolução nasbolsas, dentre outras coisas.

Com a crise americana dos subprime,rapidamente tornada uma crise mundial, temosum quadro de retração completa da abertura decapitais, definindo o “fim” temporário do períododemarcado aqui. Uma empresa de capital aberto

pode fechar seu capital novamente, realizandouma oferta de recompra das ações que estão emcirculação. Deve informar, no caso brasileiro, aCVM – comissão de valores mobiliários-, e emseguida cancelar sua listagem na bolsa de valores.Essa manobra pode ser utilizada de formafraudulenta por empresas.

Securitização

Diante da cr ise, as incorporadorasreadequaram o seu ritmo de lançamentos emudaram as negociações futuras na aquisição dosterrenos, realizando-as por meio de permutas enão de aquisição em dinheiro, mas o processoque importa nesta pesquisa tem continuidade,pois, em parte, a abertura de capitais provocouuma alteração profunda nas escala de produçãodas unidades habitacionais, comercias e no seufinanciamento, e as incorporadoras que nãopuderem responder às demandas do capital novoserão incorporadas por outras, e em um nívelmaior, serão incorporadas pelos bancos. Damesma forma, a securitização das dívidas doscompradores se torna um elemento de “captaçãode recursos” pelas incorporadoras, quetransferem estas das dívidas para as instituiçõesbancárias. Ou por meio da reestruturação dasincorporadoras e construtoras, ou pelatransferência das dívidas, a escala mundialfinanceira se apresenta sobre a produção dourbano, e os tópicos abaixo procurarão de formaresumida trazer alguns elementos que contribuempara o desvendamento de uma escala necessáriade produção urbana a ser reproduzidasocialmente.

A securitização é vista como uma formade receita para as incorporadoras, realizada combase na dívida dos compradores dos lotes, casas,apartamentos, em toda a forma deendividamento. Estas dívidas são “vendidas” parafinanciadores maiores, que passarão a administrá-las. “O mecanismo da securitização amplia aspossibilidades de captação de recursos e deacesso ao financiamento às incorporadoras econstrutoras, por meio do acesso direto aomercado de capitais, e reduz, teoricamente, oscustos e r iscos da captação de recursos

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financeiros, ou seja, de endividamento daspróprias incorporadoras. Assim, “a securitizaçãopossibilitaria uma aceleração do tempo de girodo capital das empresas, através detransformação dos direitos a receber pela vendados imóveis a prazo em títulos vendidos à vista(grifo meu). Dessa forma, a incorporadora nãonecessita esperar pelo vencimento da dívida dosmutuários para recuperar o capital investido”.(BOTELHO, 2005, p. 96)

Esse movimento de transferência dasdívidas implica uma penetração maior do ritmode remuneração financeira mundial nas relaçõeslocais de compra e venda dos imóveis, e tambémaumenta o risco da dívida. A dívida é vendida aosníveis financeiros superiores, criando umaestrutura hierárquica desde o endividado atéinstituições de grande porte. Esse encadeamentopossui um preço, que aumenta conforme a análisedo risco da dívida. Este preço está acomodadono centro da dívida.

Como o objetivo deste trabalho éabordar a produção social da escala, a partirda formação de bancos de terras, da elevaçãodo preço dos imóveis e das dívidas vendidasaos bancos, assim como das execuções destasdívidas, buscaremos as necessárias conexõesao longo da pesquisa. Devemos entretantoincorporar, a partir daqui, que a transferênciada dívida pelos níveis financeiros, implica, nosentido contrário, a programação cotidiana dotrabalhador endividado, empregado ou não, noritmo de pagamento destas dívidas, ritmos queobedecem aos definidos nas esferas do capitalmundializado.

Bancos de terras das incorporadoras

O enorme aporte de capital feito nasincorporadoras, como vimos acima, provocou anecessidade de formação de um banco de terras(land banks) por cada uma das incorporadoras euma disputa entre elas, gerando negociações emextensas áreas metropolitanas, assim como umaverdadeira corrida por terras em áreas urbanasde todo o país. Estas negociações foram feitas dediversas formas, inicialmente por compra, e

quando a crise começou a dar seus sinais, asnegociações passaram a ser por meio depermutas. A repercussão deste capital mundialdisponível para a compra dos terrenos provocoua elevação dos preços das terras negociadas, econsequente elevação do preço de todo equalquer metro quadrado negociado no urbano.O boom imobiliário pode ser traduzido em boomde preços do imobiliário e em um longo prazo,boom nos valores das dívidas e nosendividamentos.

O estudo da formação dos bancos deterras representa nesta pesquisa o atributoespacial pelo qual o atual estágio definanceirização mundial passa a compor o modode vida urbano, e isso deverá ser compreendidonos diferentes níveis de organizaçãoadministrat iva das cidades. Entretanto, oconteúdo maior está em compreendermos oprocesso de valorização do capital (do valor) pormeio do endividamento, por meio da assignaçãodo trabalho futuro, que deve remunerar estavalorização, por meio da precificação, porexemplo, na figura da renda da terra, dos bancosde terras colocados neste circuito. A atualizaçãonecessária é a de que a exploração do trabalhoque deverá pagar a financeirização do capitalexpressa nestes bancos de terras, mas estepagamento tem que ser programado em um longoprazo, na organização do modo de vida, além deque a formação dos bancos de terras é realizadacom base na generalização de todo e qualquerurbano como um urbano portador da metrópole.O banco de terras é o elemento espacial queintensifica estas conexões.

Outros elementos

A penetração de grandes incorporadorasem cidades menores passa pela associação destascom as construtoras e incorporadoras locais. Alógica da formação dos bancos de terras inclui ascidades menores, transfer indo com oslançamentos imobiliários as relações de crédito eendividamento aos compradores.

Além da associação dos incorporadores,a atuação do Estado no sentido de potencializar

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os negócios urbanos já está presente, por meioda elaboração atualizada dos planos diretores,nas formas possíveis de desdobrar a propriedadeda terra, de negociar os potenciais de construção.A partir do que conhecemos em São Paulo, e aforma como o plano diretor de São Pauloapresentou formas diversas de negociação coma terra urbana – outorgas onerosas,transferências de potenciais de construção – jápodemos identificar estes mesmos recursos nosplanos diretores de municípios menores. Assim,atualmente, quando a incorporação chega a ummunicípio, já possui um conjunto de instrumentospara negociar a terra, instrumentos que foramgestados nos ambientes metropolitanos deintensa disputa pela terra urbana.

A escala metropolitana, desta forma, podeser apresentada em cidades pequenas ou médias.Um modo de observar isso é a presença de formasabstratas de regulação e troca dos espaços,apresentados após o Estatuto da Cidade epresente nos planos diretores diversos espalhadospelo Brasil, ou mesmo do processo deperiferização observados em cidades pequenas.Os municípios se tornaram metrópoles empotencial, na forma de negociar e produzir oespaço urbano, independentemente do seutamanho. A realização desta metropolização nomodo de vida urbano é o que se pode pesquisar.Aqui, o olhar está nas relações de crédito e dívida,mas certamente existem outras formas deentender a alteração destes ritmos.

Generalização da dívida: umaabordagem dos leilões

O estudo dos leilões tem o seu limite pré-definido. Estamos tratando de um processo deexpulsão – como hipótese – em ritmos mais lentosdo que aqueles apresentados, por exemplo, nademolição de uma favela, uma forma de expulsãoabrupta e violenta, que já pudemos acompanharem diversas pesquisas dentro da geografia urbanae agrária, da arquitetura e do urbanismo. Alémdisso, os leilões só nos apresentarão as pessoasque, em algum momento, est iveram emcondições de se endividar. Esta ressalva énecessária e esta pesquisa só faz sentido se for

pensada de forma associada às outras queoptaram por compreender a violência dasexpulsões tradicionais e também cotidianas dourbano, e por aquelas que ousaram compreendero modo de vida dos que não se enquadram nemcomo pessoas endividáveis.

Ainda assim, um caminho pelos leilões nostraz a possibilidade de abordar a relação críticapresente no crédito, vista aqui na forma doendividamento. Tomemos por início a tomada deempréstimos para a casa própria e reproduçãopossível destes juros no modo de vida dotrabalhador. Sharon Zukin nos apresenta algumasrelações, expondo a compra de um imóvel emseus imbricamentos: “Comprar ou alugar umacasa é provavelmente o momento maissignificativo do consumo, e certamente o gastomais importante na vida das pessoas. Mas ocomprador é cercado por um contraditório aspectode autonomia e dependência ao mesmo tempo.Por um lado, comprar um teto e um pouco deterra ao redor significa libertação do senhorio ousenhoria, e da proximidade com a família. Poroutro lado, o despejo se torna tão próximo quanto,nas mãos do banco ou do proprietário da hipoteca,pois o pagamento em intervalos regulares obrigaao emprego estável, poupança, e o maisimportante, a permanecer no lugar. Comprar umimóvel também indica uma relação entreinvestimento e gasto. Nos últimos quarenta anos,comprar uma casa se tornou um bilhete de loteriana grande subida dos valores das terras, demaneira paralela à tradicional forma de assegurarabrigo. Ademais, comprar uma casa podesignificar um custo elevado (...). A mobilidadesocial que isto implica, pode, em longo prazo,trazer apenas a acumulação da desvalorizaçãode bens. No curto prazo, por outro lado, devidoaos custos de comprar e manter uma casa, acompra implica a colocação do morador nomercado imobiliário e configura a sua entrada nomercado de trabalho” (ZUKIN, 1993, p.11) 4

O que apreendemos é que odesencadeamento da dívida em longo prazoprovoca uma subordinação do trabalhador - e davenda da única mercadoria que historicamentelhe sobrou para vender: seu trabalho, tornado

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força de trabalho - aos ritmos de valorização edesvalorização do imóvel frente à produçãourbana do espaço. Estes r itmos têm sidoestreitamente conectados aos níveis mundiais devalorização financeira. É este o conteúdo maiorque pretendemos abordar por meio da aberturade capitais nas incorporadoras, como um acessopossível ao debate da produção de uma escalanecessária, da impossibilidade de absorver esteritmo compulsório no modo de vida urbano e dapossível contradição apontada nestes termos.

Esta pesquisa tateia o caminho daampliação do crédito e da dívida no modo de vidaurbano. A ampliação do crédito conta com umagenciamento e organização do tempo futuro dostomadores de empréstimos, ou melhor, conta como comprometimento do trabalho futuro dostrabalhadores para a sua realização. Sabemos quea administração da inadimplência pode setransformar na elevação dos preços do crédito,desde o início da dívida, e também na passagemdestas dívidas aos níveis superiores do sistemafinanceiro. A crise do trabalho apresenta oendividamento como inerente ao cotidiano dotrabalhador, e a produção do espaço urbano estáimbricada neste processo. Além disso, o créditoe a dívida são vistos aqui como relações sociais.A crise dos subprime americanos em 2008provocou a lembrança deste conteúdo inseridonas relações financeiras, mas os conteúdos daprodução do urbano estão por desvendar. Temosalguns complicadores, entretanto. O primeiro dizrespeito ao fato de que as dívidas são vividas,muitas vezes, socialmente, de forma dramática.Não existe um caminho fácil para conversar sobreelas, muito menos para entrevistar pessoasendividadas. O segundo diz respeito ao fato dosprocessos atuais de endividamento seremgeneralizados, e, portanto, provocarem umestudo que considere as quantidades e a corretaabordagem destas quantidades.

O papel dos leilões na máquinaprodutiva urbana

A pesquisa sobre os lei lões estáintimamente ligada ao estudo da produção daescala urbana. A partir da observação do aumento

do número de lançamentos residenciais dosúlt imos dois anos, e da ritmação desteslançamentos em escala industrial pararemuneração financeira mundial, chegamos àanálise dos leilões como um momento necessárioao sistema produtivo urbano. Os entraves àprodução do espaço em escala, no seu momentode realização da mercadoria, quando ela écomercializada, foram “resolvidos” pelo crédito.No caso de inadimplência, a partir de um suportejurídico, já apresentado aqui no enfoque sobre alei que traz a instituição da Alienação Fiduciária,novas articulações vão sendo apresentadas paraa pronta retomada da mercadoria. Aí estão osleilões.

A partir de um acompanhamentosistemático nos anúncios dos lei lões deinstituições bancárias e de Leiloeiros, reunimosalgumas observações:

• De forma indistinta, os leilões imóveisobedecem à solução de diversas situaçõesde endividamento. Devemos entretantoter em mente as principais razões de umleilão: podem ser resultado de dívidagerada pela cobrança das taxas decondomínio, ou de imóveis que entraramcomo garantia de compras de outrasmercadorias, e por último, leilões geradosa partir dos contratos inadimplentes dealienação fiduciária do SFI, foco dasnossas pesquisas. Esta última forma temse tornado cada vez mais presente,especialmente a partir do momento emque a alienação fiduciária do imóvelpassou a ser parte da prática de lastrodos financiamentos imobiliários e oslei lões, com muito mais agilidade,passaram a responder ao processo deretomada do imóvel.

• os leilões participam de diversas formas naprodução do espaço urbano, com imóveisarrematados a partir de comprasindividuais ou como prática de um negóciocorporativo, pois algumas empresasescolhem o lei lão como meio decomercialização dos seus lançamentos.Em Portugal, por exemplo, os leilões já

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participam francamente como ummomento em que empresas se utilizamdestes imóveis para reformá-los erevendê-los.

• As tipologias observadas nas listagens deleilões têm apresentado preponderânciade imóveis destinados às baixas rendas,com a identificação, por exemplo, deimóveis em conjuntos habitacionaispopulares. Estas observações iniciais jános trazem o possível impacto da dívidado imóvel urbano nas famílias de baixarenda.

• Devemos considerar dois tipos diferentesde leilões, extrajudiciais e judiciais.Existem muitos processos para revogaçãodos leilões extrajudiciais, fato a serchecado junto às associações demutuários. São momentos distintos dosleilões, provocando bastante conflito entrequem perde o imóvel e quem o compra.Para um leilão ser considerado judicialtambém é necessário que todas as etapasdo processo tenham ocorrido, dentre elaso aviso ao endividado.

• Grande parte dos imóveis leiloados estáocupado, e como deixa claro todo anúnciode leilões, a desocupação do imóvel, seuscustos e negociação ficam por conta dequem arremata o bem. Devemosconsiderar aqui o fato de que o leilão atuasobre a propriedade, abstrata, sendo aposse resolvida de forma independente aoleilão. A compreensão sobre a atualregulamentação e agilidade no processode leilões é de que estas são práticas quevisam maior rapidez de circulação doproduto “parado”.

Precisamos, antes de tudo, absorver asrecentes análises sobre os níveis de abstraçãoaos quais a propriedade deve chegar para darconta dela – a propriedade - ser elemento vivo eatuante nos sistemas de crédito5, e da máquinaprodutiva urbana, de uma forma geral. O uso doimóvel é apenas um dos momentos da realizaçãoda propriedade. Assim, temos diversas etapasneste processo.

O imóvel representa, para quem o compra,a sua inserção possível no urbano, parteintegrante da sua reprodução como trabalhador,como uma possível participação em relaçõessociais derivadas da moradia, e do morar nacidade. A estas escalas do morar, morar nourbano, num urbano desenhado a partir dajornada de trabalho, aportam-se as escalasmundiais de reprodução do capital financeiro,apresentando o ritmo de endividamento oriundodo uso do imóvel como o ritmo de trabalho a sersuportado pelo comprador.

No rompimento desta relação, novosconteúdos aderem à noção de propriedadepresente no início da relação de crédito, poisnotamos que a troca de moradores do imóvel éapenas um resíduo para a circulação do bem, umavez que o leilão não diz respeito às ações dedespejo.

Considerações finais

Nesta pesquisa identificamos que, paraque o financiamento do imóvel se tornasse umpropulsor importante nos níveis de produtividadeda economia urbana, esta relação de créditoprecisou ser expurgada do incômodo que a possepudesse apresentar à propriedade. Assim, temosa forma como o leilão apresenta a capacidade detransferir a propriedade em seus termosabstratos, sem resolver sua condição concreta.Os conflitos sobre a posse são o resíduo donegócio, transferido ao comprador do imóvel quefoi leiloado.

O valor do imóvel leiloado se torna ovalor da dívida do imóvel. O preço inicial doimóvel que, aparentemente, “pagava” osatributos da sua situação geográfica, passa aser o “preço” do endividamento. Assim, osvalores presentes nos leilões não estãovinculados ao valor do imóvel propriamentedito, mas à dívida que o envolve. O valor doimóvel precisou mostrar sua verdadeira face:a despeito de toda a elaboração das teorias dopreço da terra a part ir apenas de sualocalização, quando o crédito vira dívida, o leilãodeve pagar não o preço do imóvel, mas o valor

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da dívida, ou seja, a valor projetado naprogramação e na assignação sobre o trabalhofuturo.

Assim, para elucidarmos melhor ostermos da máquina produtiva urbana se tornounecessário nesta pesquisa percorrer o caminhoda produção da escala, por meio da formaçãodos land banks e da abrangência desta escalano urbano, para a necessária remuneração docapital financeiro. A produção e não acomercialização dos imóveis produzidos é o focoda indústria urbana, em um primeiro momento.Os imóveis produzidos, por sua vez, absorverãoem seus preços a condição do mercado decapital financeiro mundial. Assim, valorizaçõesfictícias do dinheiro podem ser incorporadasao preço da terra e consequentemente do

imóvel. Tratamos então de abordar avalorização do capital fictício, sob um prisma,e o aumento dos preços dos imóveis mediadopelo crédito, sob outro, à luz da renda da terra.O conteúdo do crédito é o trabalho futuro. Asua forma é a dívida, o endividamento e o maiscrédito.

De forma general izante, podemoscompreender o nosso urbano atual na sua formade reproduzir a propriedade abstrata em largaescala, produzir e reproduzir. A escala urbanametropolitana se apresenta ao urbanoindependente de suas dimensões geométricas. Aescala urbana é uma escala social. As cidades deportes diversos vivem a condição abstrata emetropolitana da propriedade. Resta-nos trilharo caminho das contradições, nos seus níveis.

1 Muitos fazem parte deste grupo, cada um a suamaneira. Para este momento, em particular,agradeço as infinitas colaborações de Ricardo Baitz,com sua profunda pesquisa nos analistasinstitucionais, e na generosidade de dividir comtodos o que vem trazendo dali. Alexandre Rocha,Bruno Souza e Márcio Rufino oportunamenteaceitaram sentar conosco no último EncontroNacional de Geógrafos, ocorrido em São Paulo, edebateram as suas implicações nas pesquisas.Seus conhecimentos se tornaram parte dapesquisa de doutorado e portanto deste artigo.

2 Esta percepção da economista provavelmente seriarevista se fossem levadas em conta inúmerascontratações e subcontratações relacionadas àsobras.

3 Listadas em TAVARES, R. (2008). Abyara e JHSF sãoconsideradas pela autora como administradoras debens ou corretoras imobiliárias, por isso não entramna lista acima, mas importam nesta pesquisa, emparte pelo material disponível e em parte, no casoda Abyara, pela sua expansão pelo país, e pela crisejá apresentada e documentada.

4 “Owing or renting a home is probably the mostimportant means of consumption, and certainlythe most important expenditure in most people´s

lives. But homeownership is surrounded by acontradictory aura of both autonomy anddependence. On the one hand, owing the roof overthe one´s head, and a little plot of land around it,means liberation from the landlord or landlady andfrom boarding with relatives. On the other hand,eviction is just as likely at the hands of the bankor mortgage-holder, whose payment at regularintervals compels job stability, saving, and mostimportant, staying in the place. Homeownershipalso indicates a relationship between investmentand consumption. Over the past forty years,buying a home has become a ticket in the greatsweepstakes of rising land values, as well as atraditional means of securing shelter. Yet owninga home may be a costly asset, the authors of ahistorical study of homeownership in the Bostonarea tell us. The social mobility it implies may inthe long run bring only “the accumulation ofdevaluing assets”. In the short run, moreover,because of the costs of buying and maintaining ahome, a person’s place in the housing marketshapes his or her entry into the labor market.”(ZUKIN, Sharon. Landscapes of power, p.11).

5 Este aporte teórico e prático devemos a RicardoBaitz, na sua pesquisa de mestrado, e em especialnos mais recentes artigos.

Notas

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Trabalho enviado em outubro de 2009

Trabalho aceito em dezembro de 2009