a problemática da constituição dirigente: algumas considerações

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Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 35 1. Considerações iniciais Ao debruçarmo-nos sobre a problemática da Constituição dirigente, ou seja, a consti- tuição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade, precisamos fixar-nos ao texto de uma determinada constituição. Isso porque o texto constitucional é o texto que regula uma ordem histórica concreta, e a definição da Constituição só pode ser obtida a partir de sua inserção e função na realidade histórica 1 . Esse é, nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho, o “conceito de constituição constitucionalmente ade- quado” 2 . Dessa maneira, ater-nos-emos à Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma comunidade num dado período histórico, pois estabelece os pressupostos de criação, vigência e execução do resto do ordenamento jurídico, além de conformar e determinar amplamente o seu conteúdo. É a Constituição que fixa os A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro Gilberto Bercovici Gilberto Bercovici é doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Univer- sidade de São Paulo. Advogado em São Paulo. Sumário 1. Considerações Iniciais. 2. Do Estado Liberal ao Estado Social. 3. Constituição garantia e constituição dirigente. 4. Eficácia e efetividade do programa constitucional. 5. Constituição dirigente e decisão política. 6. A nova análise de Canotilho e a “Responsabilidade Social”. 7. Crise de governabilidade e retorno ao Estado Liberal. 8. Eficácia vinculante das normas constitucionais programáticas. 9. Concretização da Constituição. 10. Conclusões.

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Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 35

1. Considerações iniciais

Ao debruçarmo-nos sobre a problemáticada Constituição dirigente, ou seja, a consti-tuição que define fins e objetivos para oEstado e a sociedade, precisamos fixar-nosao texto de uma determinada constituição.Isso porque o texto constitucional é o textoque regula uma ordem histórica concreta, ea definição da Constituição só pode serobtida a partir de sua inserção e função narealidade histórica1. Esse é, nas palavras deJosé Joaquim Gomes Canotilho, o “conceitode constituição constitucionalmente ade-quado”2. Dessa maneira, ater-nos-emos àConstituição da República Federativa doBrasil, de 5 de outubro de 1988.

A Constituição é a ordem jurídicafundamental de uma comunidade numdado período histórico, pois estabelece ospressupostos de criação, vigência e execuçãodo resto do ordenamento jurídico, além deconformar e determinar amplamente o seuconteúdo. É a Constituição que fixa os

A problemática da constituição dirigente:algumas considerações sobre o casobrasileiro

Gilberto Bercovici

Gilberto Bercovici é doutorando em Direitodo Estado pela Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo. Advogado em São Paulo.

Sumário1. Considerações Iniciais. 2. Do Estado

Liberal ao Estado Social. 3. Constituição garantiae constituição dirigente. 4. Eficácia e efetividadedo programa constitucional. 5. Constituiçãodirigente e decisão política. 6. A nova análisede Canotilho e a “Responsabilidade Social”.7. Crise de governabilidade e retorno ao EstadoLiberal. 8. Eficácia vinculante das normasconstitucionais programáticas. 9. Concretizaçãoda Constituição. 10. Conclusões.

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princípios e diretrizes sob os quais devemformar-se a unidade política e as tarefas doEstado, mas não se limita a ordenar apenasa vida estatal, regulando também as basesda vida não-estatal3.

A Constituição de 1988 é uma constitui-ção dirigente, pois define, por meio daschamadas normas constitucionais progra-máticas4, fins e programas de ação futurano sentido de melhoria das condiçõessociais e econômicas da população5. Namesma linha das Constituições anterioresde 1934 e 1946, a Constituição de 1988construiu um Estado Social, ao englobarentre as suas disposições as que garantem afunção social da propriedade (artigos 5º,XXIII, e 170, III), os direitos trabalhistas(artigos 6º a 11) e previdenciários (artigos194, 195 e 201 a 204), além de uma ordemeconômica fundada na valorização dotrabalho humano e na livre iniciativa, tendopor objetivo “assegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiçasocial” (art. 170). Conforme assinalou PauloBonavides6, a partir da Constituição de1988, o Estado passou não apenas a conce-der, mas a fornecer os meios de garantir eefetivar os direitos sociais (entre outros,mandado de segurança coletivo, mandadode injunção e inconstitucionalidade poromissão).

2. Do Estado Liberal ao Estado SocialO Estado Liberal, segundo, entre outros,

o Professor Fábio Comparato, é estático,conservador, cuja única tarefa é a degovernment by law, isto é, produzir direito,por meio da edição de leis7. Os mecanismosde freios e contrapesos, além de impediremo Estado de fazer o mal, isto é, ameaçar asliberdades e garantias individuais, tambémo impedem de empreender políticas ouprogramas de ação a longo prazo, revelando,assim, a inadequação estrutural dos poderespúblicos nesse tipo de Estado8.

A grande mudança ocorreu com asuperação do Estado de Direito formal peloEstado Social de Direito. A suposta anti-

nomia entre Estado de Direito e EstadoSocial tem um caráter ideológico de que areestruturação democrático-social não podeser feita por meio do Estado de Direito,refletindo a idéia de que a Constituiçãorepresenta uma limitação do poder estru-tural, devendo os fins político-sociais seremrelegados para a administração, sendo oEstado Social, conseqüentemente, contrárioàs liberdades individuais.

Nesse sentido, destaca-se a posição dojurista conservador alemão Ernst Forsthoff,que diz serem incompatíveis o Estado deDireito e o Estado Social no plano de umamesma constituição9 e destaca que o EstadoSocial deve limitar-se ao âmbito administra-tivo, não podendo alçar-se à categoriaconstitucional, pois a Constituição não é leisocial, devendo, além de tudo, ser breve10. OEstado Social de Direito não é, para Forsthoff,um conceito jurídico, no sentido em que delenão podem ser deduzidos direitos e deveresconcretos, nem instituições jurídicas11. Essesargumentos se assemelham em muito aosdaqueles que defendem a desconstituciona-lização de inúmeras matérias da nossaConstituição, pois, além de ser “detalhistaem excesso”, é muito extensa, com muitosartigos. Ao que parece, para eles, os nossosproblemas resumem-se ao fato de a Consti-tuição possuir 200 ou 20 artigos...

Para Luís Roberto Barroso, não háqualquer justificativa a esse tipo de argu-mento. O grande exemplo invocado nadefesa de um texto mais enxuto, a Consti-tuição norte-americana, foi fruto de condi-ções conjunturais e históricas únicas. Alémdisso, embora o texto da Constituição tenhapermanecido praticamente inalterado (comexceção das Emendas), ocorreram material-mente inúmeras mudanças constitucionaismediante a jurisprudência. Para ele, os quedefendem a adoção do modelo constitucio-nal americano como solução à “prolixi-dade” dos nossos textos constitucionaissão, na melhor das hipóteses, ingênuos12.Na realidade, segundo Paulo Bonavides, aConstituição tornou-se mais volumosagraças à preocupação de dotar certos

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institutos de proteção mais eficaz, ao anseiode conferir maior estabilidade a determina-das matérias e à conveniência de atribuir aoEstado, por meio do texto constitucional,encargos considerados pelo constituintecomo indispensáveis à manutenção da pazsocial13.

No Estado de Direito, as regras jurídicasestabelecem padrões de conduta ou compor-tamento e garantem também uma distan-ciação e diferenciação do indivíduo, pormeio do Direito, perante os órgãos públicos,assegurando-lhe um estatuto subjetivoessencialmente caracterizado pelos direitose garantias individuais. Isso não significahoje oposição entre o Direito e o Estado. Afunção do Direito num Estado de Direitomoderno não é apenas negativa ou defen-siva, mas positiva: deve assegurar, positi-vamente, o desenvolvimento da personali-dade, intervindo na vida social, econômicae cultural. O Estado de Direito atual não seconcebe mais como anti-estatal.

Com as novas tarefas do Estado, o livredesenvolvimento da personalidade nãomais se baseia no apego à propriedadecontra a intervenção estatal, excludente deboa parcela da população, mas se funda naspróprias prestações estatais. O arbítrio dospoderes públicos é evitado mediante areserva da lei e do princípio democrático,característicos do Estado de Direito. A buscade melhorias sociais e econômicas dá-se semo sacrifício das garantias jurídico-formaisdo Estado de Direito. Afinal, a liberdade éinconcebível sem a solidariedade, e aigualdade e progresso sócio-econômicosdevem fundar-se no respeito à legalidadedemocrática14.

Governar, no entanto, passou a não sermais a gerência de fatos conjunturais, mastambém, e sobretudo, o planejamento dofuturo, com o estabelecimento de políticas amédio e longo prazo. Com o Estado Social, ogovernment by policies substitui o governmentby law do liberalismo. A execução depolíticas públicas15, tarefa primordial doEstado Social, com a conseqüente exigênciade racionalização técnica para a consecução

dessas mesmas políticas, acaba por se revelarincompatível com as instituições clássicasdo Estado Liberal16.

A base do Estado Social é a igualdadena liberdade e a garantia do exercício dessaliberdade. O Estado não se limita mais apromover a igualdade formal, a igualdadejurídica. A igualdade procurada é a igual-dade material, não mais perante a lei, maspor meio da lei17. A igualdade não limita aliberdade. O que o Estado garante é aigualdade de oportunidades, o que implicaa liberdade, justificando a intervençãoestatal18.

3. Constituição garantia e constituiçãodirigente

O grande debate constitucional trava-seentre aqueles que consideram a Constituiçãoum simples instrumento de governo,definidor de competências e regulador deprocedimentos, e os que acreditam que aConstituição deve aspirar a transformar-senum plano global que determina tarefas,estabelece programas e define fins para oEstado e para a sociedade. No primeiro caso,a lei fundamental deve ser entendidaapenas como uma norma jurídica superior,abstraindo-se dos problemas de legitimaçãoe domínio da sociedade. A Constituiçãocomo instrumento formal de garantia nãopossui qualquer conteúdo social ou econô-mico, sob a justificativa de perda de juridi-cidade do texto. As leis constitucionais sóservem, então, para garantir o status quo. AConstituição estabelece competências,preocupando-se com o procedimento, nãocom o conteúdo das decisões, com o objetivode criar uma ordem estável. Subjacente àessa tese da Constituição como mero“instrumento de governo” está o liberalismoe sua concepção equivocada de separaçãoabsoluta entre o Estado e a sociedade, com adefesa do Estado-mínimo, competenteapenas para organizar o procedimento detomada de decisões políticas. Deve-se deixarclaro que o Estado não é o único opressor19,assim como nem sempre o Estado-mínimo e

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sua Constituição são os melhores guardiãesda liberdade. A Constituição não poderestringir-se ao Estado, deve ser a leifundamental também da sociedade20.

As teorias redutoras da Constituição amero instrumento de governo são insufi-cientes, pois hoje se constata que organizare racionalizar os poderes pressupõe algumamedida material para o exercício dessespoderes. Passa-se a se exigir a fundamen-tação substantiva para os atos dos poderespúblicos. Tradicionalmente, essa funda-mentação material é dada essencialmentepelos direitos fundamentais. A fundamen-tação pode limitar-se a princípios, denomi-nados por Canotilho princípios materiaisestruturantes (Estado de Direito, Demo-cracia, República), ou estender-se à impo-sição de tarefas e programas que os poderespúblicos devem concretizar. A constitu-cionalização de tarefas torna mais impor-tante a legitimação material, embora nãosubstitua (e nem deveria) a luta política.Esse problema de legitimação gera o fenô-meno da dinamização da Constituição,expresso na consagração de linhas dedireção, na tendência para sujeitar os órgãosde direção política à execução de imposiçõesconstitucionais e na constitucionalizaçãodos direitos econômicos e sociais. A Cons-tituição deixa de ser instrumento de gover-no, definidor de formas e competências parao exercício do poder, insistindo-se na pro-gramática (tarefas e fins do Estado)21.

As tarefas e fins do Estado inseridos notexto constitucional e os princípios consti-tucionais são propostas de legitimaçãomaterial da Constituição de um país. Acompreensão material da Constituiçãopassa pela materialização dos fins e tarefasconstitucionais. Se o Estado constitucionaldemocrático não se identifica apenas com oEstado de Direito formal e quer legitimar-secomo Estado Social, surge o problema daConstituição dirigente, que passa pelaquestão da legitimação além dos limitesformais do Estado de Direito, baseando-setambém na transformação social, na distri-buição de renda e na direção pública do

processo econômico22. A Constituição deixade ser apenas do Estado, para ser tambémda sociedade.

A dualidade marca as discussões emtorno da Constituição, contrapondo a idéiade sociedade civil e liberdade (mercado) àidéia de sociedade e igualdade (Estado). Aoinvés de considerarmos esses pontos comoabsolutos, devemos ter em mente que oproblema da Constituição dirigente é umproblema de transformação da realidade.Quando se questiona a Constituição diri-gente e sua matriz programática, opõe-sesempre a Constituição-garantia, instrumen-to de governo. O problema está em comodeve ser conformada a realidade: se essaadequação deve estar explícita ou não notexto constitucional. Não podemos deixarde destacar que todas as constituiçõespretendem, implícita ou explicitamente,conformar globalmente o domínio políticomediante a sua atuação. Hoje abandona-seo ordenamento majoritariamente repressivoe afirmam-se novas funções do Direito, decondução e incentivo do processo social23.

4. Eficácia e efetividade do programaconstitucional

Os problemas da Constituição não sãoapenas os derivados da ordenação doslimites e competências, mas também os defundamentação da ordem jurídica. Indepen-dentemente da função de dar forma eprocedimento à atuação estatal (a Consti-tuição jurídica também é uma Constituiçãopolítica), a fixação adquire sentido materialquando relacionada a determinados fins. Éóbvio que uma constituição apenas defini-dora de competências e garantidora deliberdades formais atinge mais facilmente oideal de efetividade imediata. Uma consti-tuição programática, por sua vez, torna maistransparente a vinculação dos órgãos dedireção política ao fornecer linhas deatuação e direção. A Constituição enquantolei fundamental tende a refletir a interdepen-dência do Estado e da sociedade (ela éestatal e social). De acordo com Canotilho, o

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sentido normativo de uma constituiçãoconcebe-se como prospectivamente orien-tado, sem fechar o sistema, pois não éapenas o garantidor do existente, mas deveser o esboço do porvir24.

O caráter programático suscita proble-mas específicos que põem em jogo a forçanormativa da Constituição, pois implica quese confie a concretização a instânciaspolíticas, dependendo da vontade dosdetentores do poder político25. A amplitudee a indeterminação do texto constitucionalnão supõe, segundo Konrad Hesse, aincapacidade da Constituição para regulara vida do Estado e da sociedade. Segundoele, a Constituição não se limita a deixarmatérias abertas, mas a estabelecer, comcaráter vinculante, o que não pode ficaraberto e indeterminado, além de estabeleceros procedimentos por meio dos quaispodem ser decididas as questões abertas26.

O pensamento constitucional tradicio-nal, de acordo com Konrad Hesse, estámarcado pelo isolamento entre norma erealidade, dando-se ênfase em uma ou outradireção. Assim, chega-se a uma normadespida de elementos de realidade ou a umarealidade sem elementos normativos. Anorma constitucional não tem existênciaautônoma em face da realidade. Sua essên-cia reside na vigência e na pretensão deeficácia (a situação regulada pretende serconcretizada na realidade), que não podemser separadas das condições históricas. Égraças a essa pretensão de eficácia que aConstituição vai procurar ordenar e confor-mar a realidade. A Constituição adquireforça normativa na medida em que lograrealizar essa pretensão de eficácia27.

A eficácia pode ser compreendida tantono sentido jurídico quanto no social. Noprimeiro caso, diz respeito à possibilidadejurídica de aplicação da norma, ou seja, é aqualidade de produzir, mais ou menos,efeitos jurídicos ao regular situações oucomportamentos. No segundo, trata-se daconformidade das condutas à norma, isto é,se ela foi realmente observada28. A eficáciada lei, para Marcelo Neves, abrange situa-

ções das mais variadas (observância29,execução30, aplicação e uso do direito),podendo ser compreendida genericamentecomo concretização normativa. Para ele, esseprocesso sofre bloqueios sempre que oconteúdo do texto legal positivado forrejeitado, desconsiderado ou desconhecidonas diversas interações da sociedade31.Detentoras de eficácia jurídica, as normasprogramáticas têm, assim, possibilidade deter alcançados os seus objetivos, ou seja,possuem perspectiva de efetividade32, ou naspalavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha:

“Os efeitos da norma constitucio-nal, contudo, são sempre plenos, valedizer, o que nela se contém e se consti-tuiu é efetivável”33.

Já a efetividade, ou eficácia social, refere-se à implementação do programa finalísticoque orientou a atividade legislativa. A normasó será efetiva quando seu objetivo foralcançado por força de sua eficácia (obser-vância, aplicação, execução, uso), ou seja,quando ocorrer a concretização do comandonormativo no mundo real34.

5. Constituição dirigente e decisãopolítica

As constituições dirigentes, como anossa de 1988, vêm sendo duramentecriticadas nos últimos tempos. O grandedebate travado diz respeito à continuidadeou não de um modelo de desenvolvimentocentrado no Estado intervencionista. Emtermos jurídicos, surgem os grandes defen-sores da “desconstitucionalização” e da“desregulamentação”. Em 1982, Canotilhojá tratava do tema:

“A ‘desconstitucionalização’ dematérias em nome de uma ‘desesta-dualização’ e ‘desregulamentação’mostra as conseqüências a que umaapressada crítica contra a juridiciza-ção conduz: aquela – a desestaduali-zação – propõe a substituição danormatividade constitucional pela‘economicização da política’ e davinculação jurídica do sistema político

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pelas ‘leis económicas’; esta – a des-regulamentação – pede a minimiza-ção da vinculação jurídica dos finspolíticos para tornar mais claudicanteo estatuto político-social já alcançado(direitos dos trabalhadores, medidassociais, garantias de qualidade devida)”35.

Uma das críticas mais comuns feitas àconcepção de constituição dirigente é a de otexto constitucional promover de tamanhaforma o dirigismo estatal que estaria preten-dendo substituir o processo de decisãopolítica. Nesse sentido, afirma Diogo deFigueiredo Moreira Neto:

“O caminho do desenvolvimentoinstitucional só estará aberto quandoas fórmulas impositivas de políticaspúblicas forem varridas da Constitui-ção, abrindo espaço para que se pos-sa praticar uma autêntica democraciade escolhas de como queremos ser go-vernados e não apenas de escolha dequem queremos que nos governe”36.

A Constituição dirigente não estabeleceuma linha única de atuação para a política,reduzindo a direção política à execução dospreceitos constitucionais, ou seja, substituia política. Pelo contrário, ela procura, antesde mais nada, estabelecer um fundamentoconstitucional para a política, que devemover-se no âmbito do programa constitu-cional. Dessa forma, a Constituição dirigen-te não substitui a política, mas se torna asua premissa material. O poder estatal é umpoder com fundamento na Constituição, eseus atos devem ser considerados constitu-cionalmente determinados. Inclusive, aonão regular inúmeras questões (afinal,nenhuma constituição pode-se pretendercompleta ou perfeita), cabe à discussãopolítica solucioná-las. A função da Consti-tuição dirigente é a de fornecer uma direçãopermanente e consagrar uma exigência deatuação estatal37.

A definição dos fins do Estado não podenem deve derivar da vontade políticaconjuntural dos governos38. Os fins políticossupremos e as tarefas do Estado encontram-

se normatizados na Constituição. Afinal, aConstituição legitima o poder político doEstado. O programa constitucional não tolhea liberdade do legislador ou a discriciona-riedade do governo, nem impede a reno-vação da direção política e a confrontaçãopartidária. Essa atividade de definição delinhas de direção política tornou-se ocumprimento dos fins que uma repúblicademocrática constitucional fixou em simesma. Cabe ao governo selecionar e especi-ficar sua atuação a partir dos fins constitu-cionais, indicando os meios ou instrumentosadequados para a sua realização39.

Segundo Cristina M. M. Queiroz:“Não obstante, o direito constitu-

cional não abrange o ‘todo’. O legisla-dor constitucional encontra-se, defacto, na impossibilidade de preverqual o tratamento das relações consti-tucionais futuras no quadro de umasociedade cambiante e mutável emmatéria de valores. Mas tal não oimpede de conformar e sancionar(:legitimar), nomologicamente, atotalidade da relação de vida política.A política encontra-se submetida a umcomplexo sistema de imposições elimitações constitucionais. Da sua con-formidade ou desconformidade com aparametricidade da norma constitu-cional depende em larga medida a ques-tão da sua constitucionalidade”40.

6. A nova análise de Canotilho e a“Responsabilidade Social”

José Joaquim Gomes Canotilho, em suaúltima obra, Direito Constitucional e Teoria daConstituição, afirma que o problema funda-mental da constituição na atualidade é o desaber ponderar as medidas liberais e estataisque devem informar o texto constitucionalpara que a Constituição continue sendo odocumento fundamental da res publica semse converter em instrumento totalizador comconcepções unidimensionais do Estado e dasociedade41.

Revendo posições anteriores, Canotilhodefende que a Constituição deve evitar

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converter-se em lei da totalidade social, paranão perder sua força normativa42. Afirmaque os textos constitucionais de cunhodirigente (como a Constituição portuguesade 1976 e a brasileira de 1988) perderam acapacidade de absorver as mudanças einovações da sociedade, não podendo maisintegrar o todo social, tendendo a exerceruma função meramente supervisora dasociedade, não mais diretiva. As constitui-ções dirigentes padeceriam de uma “crisede reflexividade”, ou seja, não mais conse-guiriam gerar um conjunto unitário derespostas, dotado de racionalidade ecoerência, às cada vez mais complexasdemandas e exigências da sociedade. Aeficácia das constituições é cada vez maiscontestada43, podendo fazer com que pas-sem a ser consideradas meramente como“constituições simbólicas”44.

A Constituição, para Canotilho, não temmais capacidade para ser dirigente. Deve,assim, limitar-se a fixar a estrutura eparâmetros do Estado e estabelecer osprincípios relevantes para a sociedade45. Ossistemas jurídico e político, assim, nãopodem mais ter a pretensão de supremaciae universalidade sobre os outros sistemassociais (como o econômico)46, ou seja, nãopodem mais pretender regulá-los de maneiraeficaz.

Grande parte das críticas ao modelo deEstado e de constituição existentes hoje éproveniente de teorias como a teoria dodireito reflexivo. Grosso modo, essa teoria tempor fundamento o postulado de que oEstado e seus instrumentos jurídico-norma-tivos não mais têm capacidade de regular acomplexidade da sociedade contemporânea.Diante dessa incapacidade do Estado, aprópria sociedade busca reduzir a suacomplexidade por meio da diferenciaçãointerna em vários sistemas, cada um delesatuando em áreas determinadas e auto-organizando suas estruturas, ordenamento,identidade, etc. Essa diferenciação dasociedade em vários sistemas faz com quenão haja mais necessidade das normasgerais e padronizadoras do Estado. Além

disso, nenhum sistema pode pretenderdirigir a sociedade como um todo, o queinvalida as pretensões do Direito, do Estadoe da Política de promoverem a integraçãosocial. O ordenamento jurídico passaria aser um ordenamento de coordenação,viabilizando a autonomia dos sistemas paramaximizar sua racionalidade interna.Embora não possa impor soluções para ossistemas, o ordenamento jurídico levariaesses sistemas, com base nos princípios da“responsabilidade social” e da “consciênciaglobal”, a uma reflexão sobre os efeitos sociaisde suas decisões e atuação, induzindo-os anão ultrapassar situações limite em quetodos perderiam47.

Esse modelo do direito reflexivo não estálivre de críticas. Destacaremos apenasuma48, que diz respeito ao fato de que, parafuncionar sem grandes traumas, a sociedadedepende do acatamento pelos vários siste-mas dos princípios da “responsabilidadesocial” e “consciência global”. Ou seja,critica-se a “utópica” pretensão do Estado eda Constituição de quererem regular a vidasocial mediante um programa de tarefas eobjetivos a serem concretizados de acordocom as determinações constitucionais e, emseu lugar, propõe-se, não menos utopica-mente, na nossa opinião, que os váriossistemas agirão coordenados pela idéia de“responsabilidade social”.

Utilizemos, para demonstrar a fragilidadedesse tipo de argumentação, as afirmaçõesde Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“Nesse sentido, e recuando elegan-temente de posições anteriores, comoconvém a um sábio de seu porte,Gomes Canotilho considerou ‘pertur-bador da identidade reflexiva – capa-cidade de prestação de uma Consti-tuição e impeditivo de um desenvol-vimento constitucional – ... fazeracompanhar a positivação de direitosde um complexo de imposições cons-titucionais tendencialmente confor-madoras de políticas públicas dedireitos econômicos, sociais e cultu-rais’. Parece claro que a reflexividade,

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assim pretendida, poderá contribuirimensamente para reforçar os demaisemergentes acima referidos, abrindoespaços para a participação, substi-tuindo o dirigismo estatal pela consen-sualidade, avivando o sentido de identi-dade e de responsabilidade da sociedadecivil e, sobretudo, a sua sensibilidademoral, indispensável à sólida funda-mentação de uma duradoura teoria dajustiça, sem a qual o direito não é maisque uma coleção anódina de regras”49.

Não basta alegar que devemos substituira determinação e realização exclusiva daspolíticas públicas e sociais por parte doEstado pela supremacia do chamado“princípio da responsabilidade”, baseadoapenas na atuação da sociedade civil, comoo fizeram Diogo de Figueiredo Moreira Netoe José Joaquim Gomes Canotilho. Ao invésde propor a concretização constitucional,Canotilho limitou-se a substituir a inefetivi-dade das políticas estatais previstas naschamadas constituições dirigentes pelaresponsabilização da sociedade civil pelaimplementação dessas mesmas políticas50.

7. Crise de governabilidade e retorno aoEstado Liberal

Outras críticas feitas à Constituição de1988, enquanto constituição dirigente,dizem respeito à questão da governabili-dade. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho,a Constituição de 1988 agravou a governa-bilidade brasileira ao sobrecarregar o Estadode tarefas, sem providenciar os recursospara as mesmas, ou seja, preocupou-se coma distribuição de riquezas, não com aprodução delas51. Na sua opinião, a crise degovernabilidade brasileira seria solucio-nada com uma nova constituição:

“A superação da crise de ingover-nabilidade não prescinde, ao invés,reclama, uma nova Constituição. A de1988 nasceu fora de época, aindainspirada por um marxismo vulgarintitulado de socialismo ‘real’, quelogo se esboroou. É necessário jogar

no arquivo essa obra do copismo deesquerda”52.

Para ele, o Estado deve ser mínimo,baseado no princípio da subsidiariedade.No entanto, mesmo o princípio de subsidia-riedade deve ter suas prioridades hierarqui-zadas, dependendo da importância damatéria para o bem comum e os recursosdisponíveis pelo Estado53. O Estado, assim,deve limitar-se a ser o fiscalizador e incenti-vador da iniciativa privada, nunca agentede políticas públicas.

Na realidade, o que pretendem os atuaiscríticos da Constituição é a volta ao Estadomínimo do liberalismo do século XIX.Pretendem eles relegar o poder do Estado asimples garantidor, nas palavras de Diogode Figueiredo Moreira Neto, do funciona-mento das três instituições fundamentais doDireito Privado e da economia de mercado:a propriedade, o contrato e a responsabili-dade civil54.

Essa concepção, hoje em voga, pretendeignorar as mais atuais concepções do Direi-to Privado. A evolução do Direito Privadomoderno, a partir de 1918, evidencia umasérie de traços comuns. O principal dizrespeito à relativização dos direitos privadospela sua função social. O bem-estar coletivodeixa de ser responsabilidade exclusiva doEstado e da sociedade, para conformartambém o indivíduo55. Os direitos indivi-duais não são mais entendidos comopertencentes ao indivíduo em seu exclusivointeresse, mas como instrumentos para aconstrução de algo coletivo. Hoje não é maispossível a individualização de um interesseparticular completamente autônomo, iso-lado ou independente do interesse público56.A norma constitucional tornou-se a razãoprimária e justificadora da relevânciajurídica, incidindo diretamente sobre oconteúdo das relações entre situaçõessubjetivas, funcionalizando-as conforme osvalores constitucionalmente consagrados57.Isso ocorre tanto na esfera da propriedade,quanto na do contrato, da responsabilidadecivil58 e até do Direito de Família.

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A autonomia privada deixou de ser umvalor em si59. Os atos de autonomia privada,possuidores de fundamentos diversos,devem encontrar seu denominador comumna necessidade de serem dirigidos à reali-zação de interesses e funções socialmenteúteis60.

Na questão da propriedade privada, afunção social é mais do que uma meralimitação. Trata-se de uma concepção queconsubstancia-se no fundamento, razão ejustificação da propriedade. A função socialda propriedade não tem inspiração socia-lista, antes é um conceito próprio do regimecapitalista, que legitima o lucro e a proprie-dade privada dos bens de produção, aoconfigurar a execução da atividade doprodutor de riquezas, dentro de certosparâmetros constitucionais, como exercidadentro do interesse geral. A função socialpassou a integrar o conceito de propriedade,justificando-a e legitimando-a61. A proprie-dade dotada de função social legitima-sepela sua função. A que não cumprir funçãosocial não será mais objeto de proteçãojurídica, conforme salienta Perlingieri:

“A ausência de atuação da funçãosocial, portanto, faz com que falte arazão da garantia e do reconheci-mento do direito de propriedade”62.

De acordo com a doutrina tradicional, apropriedade privada, o contrato e a respon-sabilidade civil são regulados pelo CódigoCivil e a Constituição serviria apenas comolimite ao legislador ordinário, ao traçar osprincípios e programas a serem seguidos.No entanto, essa visão hoje não procede63.A perda de espaço pelo Código Civil decorreda chamada publicização ou despatrimo-nialização64 do direito privado, invadidopela ótica publicista. A Constituição sucedeuo Código Civil enquanto centro do sistemade direito privado, conforme acentuouPerlingieri:

“O Código Civil certamente per-deu a centralidade de outrora. O papelunificador do sistema, tanto nos seusaspectos mais tradicionalmente civi-lísticos quanto naqueles de relevância

publicista, é desempenhado de manei-ra cada vez mais incisiva pelo TextoConstitucional”65.

8. Eficácia vinculante das normasconstitucionais programáticas

Sendo patente a impossibilidade deretorno ao Estado Liberal, devemos ater-nosà questão das normas programáticas. Aconcepção simplista que considera inexis-tentes ou de irrelevância social os textoslegais carentes de eficácia normativa deveser rejeitada. Todas as normas constitu-cionais, inclusive as normas programáticas,são dotadas de eficácia vinculante66. Deacordo com José Afonso da Silva:

“Temos que partir, aqui, daquelapremissa já tantas vezes enunciada:não há norma alguma destituída deeficácia. Todas elas irradiam efeitosjurídicos, importando sempre umainovação da ordem jurídica preexis-tente à entrada em vigor da Constitui-ção a que aderem e a nova ordenaçãoinstaurada. O que se pode admitir éque a eficácia de certas normas cons-titucionais não se manifesta na pleni-tude dos efeitos jurídicos pretendidospelo constituinte enquanto não seemitir uma normação jurídica ordiná-ria ou complementar executória,prevista ou requerida”67.

Equivocam-se, assim, aqueles que afir-mam que as normas programáticas de umaconstituição como a de 1988 não são jurídi-cas. Elas possuem juridicidade, carátervinculativo e são uma imposição constitu-cional aos órgãos públicos68. Os instru-mentos fornecidos pela própria ordemjurídica, consagrados na Constituição,visando a consecução da justiça social, nãopodem ser, sob hipótese alguma, despreza-dos69. A justiça social é determinanteessencial que conforma todas as normas daordem econômica, de modo que só possamser entendidas e operadas tendo em vistaesse princípio constitucional, além de seruma exigência constitucional para todo

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exercício de atividade econômica70. OEstado brasileiro possui o dever jurídico-constitucional de realização da justiçasocial, mesmo que seus dispositivos estejamem normas programáticas. Segundo CelsoAntônio Bandeira de Mello:

“Uma vez que a nota típica doDireito é a imposição de condutas,compreende-se que o regramento cons-titucional é, acima de tudo, um con-junto de dispositivos que estabelecemcomportamentos obrigatórios para oEstado e para os indivíduos. Assim,quando dispõe sobre a realização daJustiça Social – mesmo nas regraschamadas programáticas –, está, naverdade, imperativamente, constituin-do o Estado brasileiro no indeclináveldever jurídico de realizá-la”71.

No mesmo sentido, denuncia PauloBonavides:

“Vemos com freqüência os publi-cistas invocarem tais disposições paraconfigurar a natureza política eideológica do regime, o que aliás écorreto, enquanto naturalmente talinvocação não abrigar uma segundaintenção, por vezes reiterada, delegitimar a inobservância de algumasdeterminações constitucionais. Talacontece com enunciações diretivasformuladas em termos genéricos eabstratos, às quais comodamente seatribui a escusa evasiva da programa-ticidade como expediente fácil parajustificar o descumprimento da von-tade constitucional”72.

Podemos destacar, seguindo a lição deLuís Roberto Barroso, os seguintes efeitosdas normas constitucionais programáticas:

“Objetivamente, desde o início desua vigência, geram as normas pro-gramáticas os seguintes efeitos ime-diatos: (A) revogam os atos normati-vos anteriores que disponham emsentido colidente com o princípio quesubstanciam; (B) carreiam um juízo deinconstitucionalidade para os atosnormativos editados posteriormente,

se com elas incompatíveis73. Ao ângulosubjetivo, as regras em apreço confe-rem ao administrado, de imediato,direito a: (A) opor-se judicialmente aocumprimento de regras ou à sujeiçãoa atos que o atinjam, se forem contrá-rios ao sentido do preceptivo consti-tucional; (B) obter, nas prestaçõesjurisdicionais, interpretação e decisãoorientadas no mesmo sentido e direçãoapontados por estas normas, sempreque estejam em pauta os interessesconstitucionais por elas protegidos”74.

9. Concretização da ConstituiçãoA força normativa da Constituição, para

Konrad Hesse, não se limita somente à suaadaptação à realidade concreta. A Consti-tuição impõe tarefas que devem ser efetiva-mente realizadas. No entanto, isso se darásomente se existir a, por ele denominada,“vontade de constituição” (Wille zur Ver-fassung). Essa “vontade de constituição”possui três vertentes: a compreensão danecessidade de uma ordem normativacontra o arbítrio, a constatação de que essaordem não é eficaz sem o concurso davontade humana e de que a ordem norma-tiva adquire e mantém sua vigência sempremediante atos de vontade75. O que Hesseafirma é que a força normativa da Consti-tuição não depende apenas de seu conteúdo,mas também de sua prática. Se não foremrespeitados os princípios constitucionais,desperdiça-se um capital que nunca maisserá recuperado. As freqüentes revisõesexpressam a idéia de que as exigências con-junturais têm mais valor que a ordemconstitucional vigente76. Hesse concluiafirmando que a intensidade da forçanormativa deriva diretamente da “vontadede constituição”77. Entre nós, infelizmente,essa “vontade de constituição” praticamenteinexiste nos altos escalões da República,quer sejam do Executivo, do Legislativo oudo Judiciário.

Muitos afirmam que um dos problemasda concretização constitucional é o da

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ausência de sanção pelo não-cumprimentodas suas normas. Esclarece, no entanto, LuísRoberto Barroso que uma das sançõesexistentes no Direito Constitucional é aresponsabilidade política78. O governanteque descumprir ou violar dispositivos daConstituição estará cometendo crime deresponsabilidade (como os previstos noartigo 85 da Constituição, no caso doPresidente da República), estando sujeito,portanto, às penalidades previstas, inclu-sive a perda do mandato ou cargo público79.

Ainda há a questão das omissõeslegislativas. De acordo com Crisafulli, asomissões legislativas configuram um com-portamento inconstitucional do PoderLegislativo. Na sua opinião, o mecanismoconstitucional é organizado de maneira anão compreender a inércia legislativa. Asanção, para ele, é a responsabilidadepolítica dos legisladores e dos agentespúblicos que não cumpriram com seu deverconstitucional80. A Constituição de 1988instituiu como garantia contra as omissõeslegislativas a ação direta de inconstitucio-nalidade por omissão e o mandado deinjunção81.

A Constituição pode ainda ser concreti-zada por meio da interpretação constitucio-nal. O conteúdo de uma norma constitu-cional não pode realizar-se com base apenasnas pretensões contidas na norma, masnecessita de concretização. Esta só serápossível, para Konrad Hesse, se levarmosem consideração, junto ao contexto norma-tivo, as circunstâncias da realidade que essanorma pretende regular82.

A interpretação constitucional é domi-nada pelos princípios, que dão coerênciageral ao sistema83, ou, nas palavras de VezioCrisafulli, “l’adozione di un principio generalesignificando sempre l’adozione di una determi-nata linea di sviluppo dell’ordinamentogiuridico”84. As normas constitucionaisprogramáticas contêm princípios geraisinformadores de toda a ordem jurídica85.

De acordo com Vezio Crisafulli:“In ogni altri casi, le norme costitu-

zionali programmatiche avranno pur-

tuttavia una efficacia indiretta, in quantiprincipi generali d’interpretazione dellenorme legislative, il significato delle qualidovrà essere stabilito, nel dubbio e finchèciò si a consentito dalla loro formulazionetestuale, nel modo più conforme allanorma programmatica”86.

Os princípios, assim, são ordenações quese irradiam e coordenam os sistemas denormas. Apesar de serem base das normasjurídicas, os princípios podem estar positi-vados em um texto normativo, consubstan-ciando as chamadas normas-princípio,constituindo, assim, elementos básicos daorganização constitucional. A constitucio-nalização dos princípios tem um importantesignificado jurídico. Os princípios assumemforça normativo-constitucional, superandodefinitivamente a idéia de constituiçãocomo mero “instrumento de governo”(Constituição-garantia), prevalecendo aadoção da Constituição dirigente. Noentanto, os princípios possuem grau deabstração relativamente elevado, carecendode mediações concretizadoras87.

Os princípios político-constitucionaisintegram o Direito Constitucional positivo,explicitando as valorações políticas funda-mentais do legislador constituinte. Con-substanciam a ideologia inspiradora daConstituição. Esses princípios são normasconformadoras do sistema constitucionalpositivo. Traduzem, como afirmamos acima,as opções políticas fundamentais conforma-doras da Constituição. Os princípios fun-damentais são diretamente aplicáveis, fun-cionando como critério fundamental de in-terpretação e de integração, dando unidadee coerência a todo o sistema constitucional88.No caso da Constituição de 1988, osprincípios fundamentais são os estabele-cidos nos seus artigos 1º e 3º:

“Artigo 1º: A República Federativado Brasil, formada pela união indisso-lúvel dos Estados e Municípios e doDistrito Federal, constitui-se emEstado democrático de direito e temcomo fundamentos: I – a soberania; II– a cidadania; III – a dignidade da

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pessoa humana; IV – os valores sociaisdo trabalho e da livre iniciativa; V – opluralismo político. Parágrafo Único.Todo o poder emana do povo, que oexerce por meio de representanteseleitos ou diretamente, nos termosdesta Constituição.”

“Artigo 3º: Constituem objetivosfundamentais da República Federativado Brasil: I – construir uma sociedadelivre, justa e solidária; II – garantir odesenvolvimento nacional; III – erra-dicar a pobreza e a marginalização ereduzir as desigualdades sociais eregionais; IV – promover o bem detodos, sem preconceitos de origem,raça, sexo, cor, idade e quaisqueroutras formas de discriminação”.

Os princípios político-constitucionaisvisam essencialmente definir e caracterizaro Estado e enumerar suas principais opçõese objetivos político-constitucionais. Osartigos que fazem parte dessa divisão podemser considerados como matriz dos restantesdispositivos constitucionais, formando, nosdizeres de José Joaquim Gomes Canotilho eVital Moreira, “o cerne da Constituição”89.

Dessa maneira, os princípios constitu-cionais configuram o núcleo irredutível daConstituição, que não pode ter suas normasinterpretadas isoladamente, como se fossemartigos meramente justapostos. Afinal,conforme vimos acima, o texto constitu-cional é fundado em determinadas idéiaspositivadas em princípios que lhe garantemharmonia e coerência90. A Constituição é otexto jurídico que estabelece a estrutura e aconformação do Estado e da sociedade. Nãopode, portanto, ter suas normas compreen-didas pontualmente, a partir de um pro-blema isolado91. Uma norma constitucionalisolada não pode expressar significadonormativo se está destacada do sistema.Dessa forma, não há interpretação de textosisolados, e sim de todo o ordenamentoconstitucional92.

Cabe ao intérprete analisar a Consti-tuição de forma a evitar contradições entreas normas constitucionais93. As normas

constitucionais em tensão têm de serharmonizadas, equilibradas. A busca doequilíbrio dentro do sistema constitucionaltem por objetivo primordial que todos osseus preceitos obtenham efetividade94. Abusca por esse equilíbrio é denominadaotimização por Konrad Hesse. Para esseautor, a otimização (que deve ser estabe-lecida de forma que todas as normasconstitucionais alcancem a efetividade) éobtida ao conciliarmos o princípio daunidade da Constituição com o princípioda proporcionalidade95. Na medida em quea otimização produz um equilíbrio, aomesmo tempo impõe limites a determinadanorma constitucional, sem negar por com-pleto sua eficácia. Esse equilíbrio dá-se pormeio da ponderação de valores pelo intér-prete, realizada caso a caso, sem que nuncapossa ser realizada em uma única direçãopré-determinada96.

10. ConclusõesAs soluções dadas pelo intérprete e pelo

aplicador da Constituição devem estaradequadas e ser coerentes com a ideologiaconstitucionalmente adotada, que os vin-cula97. A Constituição de 1988 é voltada àtransformação da realidade. São os prin-cípios fundamentais da Constituição, comovimos, os consagrados nos seus artigos 1º e3º. São esses os princípios constitucionaisque constituem o “cerne da Constituição” eque devem servir de diretriz, por meio doprincípio da unidade da Constituição, paraa interpretação coerente das normas daConstituição de 1988 sem isolá-las do seusistema e contexto. A perspectiva jurídicada Constituição precisa ser completada porconsiderações de política constitucionaldirigidas para manter, possibilitar ou criaros pressupostos de uma realização legítimada Constituição98.

O grande problema da Constituição de1988 é o de como aplicá-la, como realizá-la,ou seja, trata-se da concretização constitu-cional. E, como vimos acima, não faltammeios jurídicos para tanto. Não se reclamam

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mais direitos, mas garantias de sua imple-mentação. Na realidade, na opinião dePaulo Bonavides, a crise vivenciada sob avigência da Constituição de 1988 não é umacrise da Constituição, mas da sociedade, dogoverno e do Estado99.

A prática política e o contexto social têmfavorecido uma concretização restrita eexcludente dos dispositivos constitucionais.Não havendo concretização da Consti-tuição enquanto mecanismo de orientaçãoda sociedade, ela deixa de funcionarenquanto documento legitimador do Estado.Na medida em que se amplia a falta deconcretização constitucional, com as res-ponsabilidades e respostas sempre transfe-ridas para o futuro, intensifica-se o grau dedesconfiança e descrédito no Estado100, sejaenquanto poder político, seja enquantoimplementador de políticas públicas. Nessesentido, as constatações de Sergio Buarquede Holanda, infelizmente, continuamatuais:

“As constituições feitas para nãoserem cumpridas, as leis existentespara serem violadas, tudo em proveitode indivíduos e oligarquias, sãofenômeno corrente em toda a históriada América do Sul”101.

Notas1 Cf. Konrad HESSE, Escritos de Derecho

Constitucional, 2ª ed, Madrid, Centro de EstudiosConstitucionales, 1992, pp. 3-4 e 7-8.

2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributopara a Compreensão das Normas ConstitucionaisProgramáticas, reimpr., Coimbra, Coimbra Ed., 1994,pp. 154-158 e Direito Constitucional, 6ª ed, Coimbra,Livraria Almedina, 1993, pp. 75-76.

3 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 15-17.4 Normas constitucionais programáticas são,

nas palavras de José Afonso da Silva, “normasconstitucionais através das quais o constituinte, emvez de regular, direta e imediatamente, determi-nados interesses, limitou-se a traçar-lhes osprincípios para serem cumpridos pelos seus órgões(legislativos, executivos, jurisdicionais e adminis-trativos), como programas das respectivasatividades, visando à realização dos fins sociais do

Estado” in SILVA, José Afonso da, Aplicabilidadedas Normas Constitucionais, 3ª ed, São Paulo,Malheiros, 1998, p. 138. Vide também CRISA-FULLI, Vezio, “Efficacia delle Norme Costituzionali‘Programmatiche’” in Rivista Trimestrale di DirittoPubblico, nº 1, Milão, Giuffrè, janeiro/março de 1951,pp. 360-361. As normas programáticas constituemum compromisso entre as forças liberais etradicionais e as reivindicações sociais e populares,cf. José Afonso da SILVA, Aplicabilidade cit., pp.135-137 e 145-146 e Paulo BONAVIDES, Curso deDireito Constitucional, 6ª ed, São Paulo, Malheiros,1996, p. 210. Nas palavras de Luís Roberto Barroso:“Os agrupamentos conservadores sofrem aparentederrota quando da elaboração legislativa, masimpedem, na prática, no jogo político do podereconômico e da influência, a consecução dosavanços sociais” in BARROSO, Luís Roberto, ODireito Constitucional e a Efetividade de suas Normas:Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira, 3ªed, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p. 62.

5 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., p.136.

6 BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 332-338. Nomesmo sentido de que a Constituição de 1988projeta a instalação de uma sociedade estruturadasegundo o modelo do bem-estar social, vide GRAU,Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de1988 (Interpretação e Crítica), 2ª ed, São Paulo, RT,1991, pp. 286-289 e 321-322.

7 COMPARATO, Fábio Konder, “Um QuadroInstitucional para o Desenvolvimento Democrático”in JAGUARIBE, Hélio; IGLÉSIAS, Francisco;SANTOS, Wanderley Guilherme dos ; CHACON,Vamiré & COMPARATO, Fábio, Brasil, SociedadeDemocrática, 2ª ed, Rio de Janeiro, José Olympio,1986, pp. 400 e 407; COMPARATO, Fábio Konder,“Planejar o Desenvolvimento: A PerspectivaInstitucional” in COMPARATO, Fábio Konder, ParaViver a Democracia, São Paulo, Brasiliense, 1989,pp. 93-95 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 74-77.

8 COMPARATO, Fábio Konder, “Planejar oDesenvolvimento...” cit., pp. 97-98 e 104-105.

9 FORSTHOFF, Ernst, “Problemas Constitucio-nales del Estado Social” in ABENDROTH, Wolfgang,FORSTHOFF, Ernst & DOEHRING, Karl, El EstadoSocial, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales,1986, p. 45.

10 FORSTHOFF, Ernst Forsthoff, “Concepto yEsencia del Estado Social de Derecho” in ABEN-DROTH, Wolfgang, FORSTHOFF, Ernst & DOEH-RING, Karl, El Estado Social, Madrid, Centro deEstudios Constitucionales, 1986, pp. 78-81 e 88.

11 Idem, p. 97.12 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-

cional cit., pp. 50-53.13 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 74.14 HELLER, Hermann, Teoría del Estado, México,

Fondo de Cultura Económica, 1992, pp. 229-234;

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SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitu-cional Positivo, 9ª ed, São Paulo, Malheiros, 1993,pp. 102-111 e CANOTILHO, José Joaquim Gomes,Direito Constitucional cit., pp. 358-359, 369 e 390-395.

15 Vide GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 13-14,19-20 e 31-34.

16 COMPARATO, Fábio Konder, “Um QuadroInstitucional...” cit., pp. 397-399. Conforme oProfessor Comparato: “A inadequação resulta dofato de que o Estado social não se legitimasimplesmente pela produção do direito, mas antesde tudo pela realização de políticas (policies), istoé, programas de ação” in idem, pp. 407-408.

17 BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 340-344.18 DOEHRING, Karl, “Estado Social, Estado de

Derecho y Orden Democratico” in ABENDROTH,Wolfgang, FORSTHOFF, Ernst & DOEHRING, Karl,El Estado Social, Madrid, Centro de Estudios Cons-titucionales, 1986, pp. 161-168.

19 Karl Doehring, ao contrário dos liberaisconservadores, acredita ter sido o Estado criadopelos homens para garantir a liberdade, sendo estaa origem e o sentido da soberania do povo e dafórmula de que todo o poder emana do povo. Opapel do Estado é o de proteger a liberdade, pois éo único que pode garanti-la: “Por lo tanto, el Estadoes la expresión misma de la libertad, se identifica comella, ya que sin un Estado fuerte, la libertad no existiría”.Idem, pp. 148-150.

20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, DireitoConstitucional cit., pp. 79-82.

21 Idem, pp. 73-79 e 84-86 e CANOTILHO, JoséJoaquim Gomes; Constituição Dirigente cit., pp. 12,14 e 18-21. Sobre os fins e a legitimação do Estado,vide especialmente HELLER, Hermann, op. cit., pp.217-221 e 234-246.

22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 21-24 e ROCHA, CármenLúcia Antunes, Constituição e Constitucionalidade,Belo Horizonte, Ed. Lê, 1991, pp. 34-36.

23 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 27-30 e 69-71.

24 Idem, pp. 150-154 e 169-170; CANOTILHO,José Joaquim Gomes, Direito Constitucional cit., pp.75-79 e ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit.,pp. 35-36 e 46.

25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 154-158 e 176-180.

26 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 18-20.27 HESSE, Konrad, A Força Normativa da

Constituição, Porto Alegre, Sergio Antonio FabrisEditor, 1991, pp. 13-16. Nas palavras de Canotilho:“’Realizar a Constituição’ significa tornar juridica-mente eficazes as normas constitucionais. Qualquerconstituição só é juridicamente eficaz (pretensãode eficácia) através da sua realização. Estarealização é uma tarefa de todos os órgãos

constitucionais que, na actividade legiferante,administrativa e judicial, aplicam as normas daconstituição. Nesta ‘tarefa realizadora’ participamainda todos os cidadãos que fundamentam naconstituição, de forma direta e imediata, os seusdireitos e deveres” in CANOTILHO, José JoaquimGomes, Direito Constitucional cit., pp. 201-202.

28 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., p.66; BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitucionalcit., pp. 81-83 e 231; ROCHA, Cármen LúciaAntunes, op. cit., pp. 39-41 e NEVES, Marcelo, AConstitucionalização Simbólica, São Paulo, Ed.Acadêmica, 1994, p. 42.

29 Observância é, para Marcelo Neves, o fato dese agir conforme a norma sem que essa condutaesteja vinculada a uma atitude sancionatória. Cf.Marcelo NEVES, idem, p. 43.

30 Execução, ou imposição, é a reação concretaa comportamentos que contrariam os preceitoslegais, destinando-se à manutenção do direito ourecuperação da ordem violada. Cf. Marcelo NEVES,idem, ibidem.

31 NEVES, Marcelo, op. cit., p. 45. Vide tambémGRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 294-299.

32 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-cional cit., pp. 114-116.

33 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit., p.41.

34 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.65-66; BARROSO, Luís Roberto, O Direito Consti-tucional cit., pp. 82-83 e 231; ROCHA, Cármen LúciaAntunes, op. cit., pp. 40-41 e NEVES, Marcelo, op.cit., pp. 46-47.

35 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., p. 471.

36 MOREIRA Neto, Diogo de Figueiredo “Desa-fios Institucionais Brasileiros” in MARTINS, IvesGandra (org.), Desafios do Século XXI, São Paulo,Pioneira/Academia Internacional de Direito eEconomia, 1997, p. 195.

37 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., pp. 370-374;HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 17-18 e 20;CANOTILHO, José Joaquim Gomes, ConstituiçãoDirigente cit., pp. 193-196 e 462-471; GRAU, ErosRoberto, op. cit., pp. 287-289 e QUEIROZ, CristinaM. M., Os Actos Políticos no Estado de Direito: OProblema do Controle Jurídico do Poder, Coimbra,Livraria Almedina, 1990, pp. 16-18 e 111-113.Crisafulli afirma que as normas constitucionaisprogramáticas vinculam o legislador na medida emque este deve conformar suas decisões às suasdeterminações, eliminando, assim, a discriciona-riedade absoluta do legislador. Cf. Vezio CRISA-FULLI, idem, pp. 367-369.

38 De acordo com o Professor Eros Grau, a ordemeconômica constitucional não pode ser visualizadacomo um produto de imposições circunstanciaisou do capricho dos constituintes, mas como o

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resultado do confronto de posturas e texturasideológicas e de interesses que foram compostospara serem abrigados no texto constitucional demaneira peculiar, pois a Constituição é um sistemadotado de coerência, não havendo contradição entresuas normas. Cf. Eros Roberto GRAU, op. cit., pp.213-214 e 309. Para Crisafulli, a Constituição é quegarante o funcionamento correto e legítimo dosistema político, portanto, pode limitar a atuaçãodo governo ao estabelecer diretrizes e programasde atuação política. Afinal, a discricionariedade dogoverno não pode ser absoluta. Cf. Vezio CRISA-FULLI, op. cit., pp. 374-378.

39 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 462-471 e QUEIROZ,Cristina M. M.M., op. cit., pp. 139-147.

40 QUEIROZ, Cristina M. M., op. cit., p. 147.41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito

Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,Livraria Almedina, 1998, pp. 1191-1192.

42 Idem, pp. 1192-1193.43 Entre outras críticas às constituições

dirigentes, Canotilho destaca a da “sociologiacrítica”, que aponta para o fato de as normasconstitucionais não conseguirem obter eficácia real,havendo uma relação inversamente proporcionalentre o caráter ideológico das normas constitucionaise sua eficácia. Vide CANOTILHO, José JoaquimGomes, idem, p. 1204 e FARIA, José Eduardo,Direito e Economia na Democratização Brasileira, SãoPaulo, Malheiros, 1993, pp. 91-92, 99-102 e 152-155.

44 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, DireitoConstitucional e Teoria da Constituição cit., pp. 1199-1205 e 1208-1209. Sobre a chamada constituciona-lização simbólica, esclarece Marcelo Neves que, ondea ineficácia e a inefetividade atingirem graus muitoelevados, ocorrerá a falta de vigência social da lei,ou seja, a carência de normatividade do texto legal.Deve-se, no entanto, levar em consideração que asnormas produzem efeitos indiretos ou latentes quepoderão estar ou não vinculados à sua eficácia eefetividade. Um exemplo é o do significadoeconômico das normas jurídicas (Cf. MarceloNEVES, op. cit., pp. 47-49). A legislação simbólicaé caracterizada por ser normativamente ineficaz.Se for eficaz, mas inefetiva, não cabe falarmos emlegislação simbólica. A legislação simbólica pode-se apresentar de três maneiras: como confirmaçãode valores sociais, como álibi e como compromisso-dilatório (Idem, pp. 33-42 e 49). Em qualquer dessastrês maneiras, a legislação simbólica produz efeitosrelevantes para o sistema político, efeitos nãonecessariamente jurídicos. A legislação simbólicadescarrega o sistema político de pressões sociaisconcretas, constituindo respaldo político-eleitoralpara os legisladores ou servindo para demonstrarque as instituições são merecedoras da confiança

do povo (Idem, pp. 51-52).45 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito

Constitucional e Teoria da Constituição cit., pp. 1272-1273.

46 Idem, pp. 1205 e 1289-1290.47 Essa breve, portanto não isenta de erros e

simplificações de nossa parte, descrição da teoriado direito reflexivo foi baseada na análise dessateoria feita por José Eduardo FARIA, em sua obraO Direito na Economia Globalizada, São Paulo, mimeo,tese de titularidade, 1997, pp. 203-220.

48 Para outras críticas a essas teorias do direitoreflexivo, vide FARIA, José Eduardo, idem, pp. 321-328.

49 MOREIRA Neto, Diogo de Figueiredo, op. cit.,p. 195, grifos nossos.

50 Cf. José Joaquim Gomes CANOTILHO,“Rever ou Romper com a Constituição Dirigente?Defesa de um Constitucionalismo MoralmenteReflexivo” in Revista dos Tribunais: Cadernos de DireitoConstitucional e Ciência Política, nº 15, São Paulo, RT,abril/junho de 1996, pp. 7-17.

51 FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves, Consti-tuição e Governabilidade: Ensaio sobre a (In)governa-bilidade Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1995, pp.21-23 e 34-38.

52 Idem, p. 142.53 Idem, pp. 127-130.54 MOREIRA Neto, Diogo de Figueiredo, op. cit.,

pp. 197-198.55 WIEACKER, Franz, História do Direito Privado

Moderno, 2ª ed, Lisboa, Fundação CalousteGulbenkian, 1993, pp. 623-627.

56 PERLINGIERI, Pietro, Perfis do Direito Civil:Introdução ao Direito Civil Constitucional, 3ª ed, Riode Janeiro, Renovar, 1997, pp. 38-39 e 53-56.

57 Idem, pp. 11-12.58 Para uma excelente análise sobre os contornos

atuais da responsabilidade civil, o seu tratamentodoutrinário e jurisprudencial mais avançado e oseu entendimento de acordo com a Constituição,vide MATOS, Enéas de Oliveira, “ResponsabilidadeCivil do Transportador por Ato de Terceiro” inRevista dos Tribunais nº 742, São Paulo, RT, agostode 1997, especialmente pp. 146-152.

59 De acordo com Perlingieri: “A autonomia nãoé livre arbítrio”. Vide op. cit., p. 228.

60 Idem, pp. 18-19 e 277.61 Idem, p. 226; GOMES, Orlando, “A Função

Social da Propriedade” in Boletim da Faculdade deDireito: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. A. Ferrer-Correia, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1989,pp. 428-429 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 251e 317.

62 PERLINGIERI, Pietro, op. cit., p. 229.63 Vide, especialmente, PERLINGIERI, Pietro,

op. cit., p. 10 e TEPEDINO, Gustavo, “A NovaPropriedade” in Revista Forense, nº 306, pp. 77-78.

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64 Para Perlingieri, a despatrimonialização é atentativa de reconstrução do direito civil, não comotutela das situações patrimoniais, mas como umdos instrumentos e garantidores do desenvolvi-mento livre e digno da pessoa humana. VidePERLINGIERI, Pietro, op. cit., pp. 33-34.

65 Idem, p. 6.66 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., pp. 358-359;

SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp. 71,75-76; BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 211-212 e219-223; BASTOS, Celso Ribeiro & BRITTO, CarlosAyres, Interpretação e Aplicação das Normas Constitu-cionais, São Paulo, Saraiva, 1982, pp. 35-36 e 82;QUEIROZ, Cristina M. M., op. cit., pp. 141-142;BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitucionalcit., pp. 82 e 87; ROCHA, Cármen Lúcia Antunes,op. cit., pp. 39 e 41 e NEVES, Marcelo, op. cit., p. 42.

67 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.81-82.

68 Idem, pp. 138-139 e 152-155.69 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, “Eficácia

das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”in Revista de Direito Público, nº 57-58, São Paulo,RT, janeiro/junho de 1981, p. 235 e GRAU, ErosRoberto, op. cit., pp. 292-294.

70 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.141-142 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 240-241.

71 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit.,p. 237.

72 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 218. Nomesmo sentido, vide CRISAFULLI, Vezio, op. cit.,pp. 357-358 e ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op.cit., pp. 46-48. José Afonso da Silva afirma queaqueles que negam juridicidade às normasconstitucionais programáticas têm por hábitocaracterizar como programática toda normaconstitucional incômoda. Cf. José Afonso da SILVA,Aplicabilidade cit., p. 153.

73 Escreveu Crisafulli: “In tutti questi casi, non viha dubbio che la inosservanza delle norme costituzionaleprogrammatiche da parte degli organi legislative saràmotivo di invalidità, totale o parziale, dell’ato di eserciziodel loro potere, ossia della legge deliberata in modocontrario o diverso da quanto disposto nella costituzione”in CRISAFULLI, Vezio, op. cit., p. 369. Vide tambémIdem, pp. 378-380 e SILVA, José Afonso da,Aplicabilidade cit., pp. 158-160. Para uma posiçãodiversa, vide BASTOS, Celso Ribeiro & BRITTO,Carlos Ayres, op. cit., pp. 86-88.

74 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-cional cit., pp. 117-118. Vide também MELLO, CelsoAntonio Bandeira de, op. cit., pp. 254-256.

75 HESSE, Konrad, A Força Normativa cit., pp.19-20.

76 Idem, pp. 21-23.77 Idem, pp. 24-25.78 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-

cional cit., pp. 85-86.

79 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit.,pp. 247-249.

80 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., pp. 369-370.81 Não adentraremos na análise desses institutos

por fugir ao escopo deste trabalho. Vide BARROSO,Luís Roberto, O Direito Constitucional cit., pp. 159-177; ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit., pp.202-213; CLÈVE, Clèmerson Merlin, A FiscalizaçãoAbstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro,São Paulo, RT, 1995, pp. 218-261 e CANOTILHO,José Joaquim Gomes, “Tomemos a Sério o Silênciodos Poderes Públicos – O Direito à Emanação deNormas Jurídicas e a Potecção Judicial contra asOmissões Normativas” in TEIXEIRA, Sálvio deFigueiredo, As Garantias do Cidadão na Justiça, SãoPaulo, Saraiva, 1993, pp. 351-367. Sobre asgarantias para a efetividade das normas constitu-cionais, vide SILVA, José Afonso da, Aplicabilidadecit. , pp. 164-166 e BARROSO, Luís Roberto, ODireito Constitucional cit., pp. 119-125.

82 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 25-28.83 GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 185-187.84 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., p. 360.85 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.

156-158.86 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., p. 378. No

mesmo sentido, afirma José Afonso da Silva: “Acaracterização das normas programáticas comoprincípios gerais informadores do regime político ede sua ordem jurídica dá-lhes importânciafundamental, como orientação axiológica para acompreensão do sistema jurídico nacional. Osignificado disso consubstancia-se no reconheci-mento de que têm elas uma eficácia interpretativaque ultrapassa, nesse ponto, a outras do sistemaconstitucional ou legal, porquanto apontam os finssociais e as exigências do bem comum, queconstituem vetores da aplicação da lei” in SILVA,José Afonso da, Aplicabilidade cit., p. 157.

87 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 277-279 e Direito Constitu-cional cit., pp. 166-168; CANOTILHO, José JoaquimGomes & MOREIRA, Vital, Fundamentos da Consti-tuição, Coimbra, Coimbra Ed., 1991, pp. 71-73 eSILVA, José Afonso da, Curso cit., pp. 84-85.

88 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 283-284 e Direito Constitu-cional cit., pp. 172-173; SILVA, José Afonso da, Cursocit., pp. 85-88 e BARROSO, Luís Roberto, Interpre-tação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de umaDogmática Constitucional Transformadora, São Paulo,Saraiva, 1996, pp. 141-150.

89 CANOTILHO, José Joaquim Gomes &MOREIRA, Vital, op. cit., p. 71. Vide tambémBONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 257-259.

90 BARROSO, Luís Roberto, Interpretação. cit.,pp. 181-2 e BASTOS, Celso Ribeiro & BRITTO,Carlos Ayres, op. cit., p. 22.

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91 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 49-50.92 GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 180-182 e

216 e ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit., pp.36-37 e 87.

93 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 45.94 BARROSO, Luís Roberto, Interpretação cit.,

pp. 185-186.95 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 46 e CANO-

TILHO, José Joaquim Gomes, Constituição Dirigentecit., pp. 197-202. Não analisaremos aqui, por fugirdo escopo deste trabalho, o princípio da proporcio-nalidade e suas implicações na hermenêuticaconstitucional. Recomendamos a leitura de KonradHESSE, Escritos cit., pp. 45-46 e de PauloBONAVIDES, op. cit., pp. 356-397.

96 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 46; STERN,Klaus, Derecho del Estado de la Republica FederalAlemana, Madrid, Centro de Estudios Constitucio-nales, 1987, pp. 293-295; CANOTILHO, José

Joaquim Gomes, Direito Constitucional cit., pp. 190-191 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 110-116.Klaus Stern é enfático ao dizer que a ponderação devalores nunca pode ser realizada em uma únicadireção pré-determinada. Para tanto, ele derruba apretensão de alguns teóricos alemães e americanosde tornar o princípio in dubio pro libertate comodiretriz primordial nas ponderações de valores.Stern ressalta a necessidade da ponderação serdecidida da forma mais conveniente caso a caso.Cf. Klaus STERN, op. cit., pp. 294-295.

97 GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 194-195.98 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 29.99 BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 345-348.

Vide também ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op.cit., p. 95.

100 NEVES, Marcelo, op. cit., pp. 158-162.101 HOLANDA, Sergio Buarque de, Raízes do Bra-

sil, 2ª ed, Rio de Janeiro, José Olympio, 1948, p. 273.

Referências bibliográficas conforme original.

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