a prevalência da lógica do capital

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A Prevalência da Lógica do Capital RICARDO ANTUNES* N os limites deste pequeno texto vou procurar apontar alguns elementos que determinaram, no plano ontológico, a derrocada da URSS e da equivocadamente chamada "experiência socialista" intentada neste século. Vou fazê-lo recorrendo a duas idéias centrais, deixando de tratar de inúmeras questões relevantes, mas não determinantes, que este espaço não permite tratar: 1) Ao contrário do que apregoa a irrazão hoje dominante, a experiência da URSS não concretizou valores essenciais do pensamento de Marx, mas acabou por efetivar a negação aguda dos elementos fundantes de seu pensamento. 2) As sociedades pós-revolucionárias não conseguiram constituir-se enquanto sociedades socialistas; a ruptura iniciada em 1917 não foi capaz de romper com a lógica histórico-mundial do capital, apesar de contemplar, no âmbito dos recortes nacionais, dimensões anticapitalistas. Comecemos pela primeira. São conhecidas as idéias de Marx a respeito das possibilidades de rupturas anticapitalistas: estas encontrariam solo fértil somente se as revoluções socialistas atingissem uma dimensão e uma processualidade universalizantes, a partir de "um alto grau de desenvolvimento", dado "num plano histórico-mundial". Sem isso, o "comunismo local", impossibilitado de desenvolver-se como "força universal", seria sufocado pelas próprias "forças do intercâmbio" mundial(1). Muito tempo depois, indagado sobre a possibilidade da Revolução na Rússia, Marx acrescentou: pela inserção no "mercado mundial onde predomina a produção capitalista"(2), a Revolução Russa poderá ser "ponto de partida" para o Ocidente, "de modo que ambas se completem"(3). * Professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. 1. K. Marx, A Ideologia Alemã, São Paulo, Ed. Grijalbo, pp. 50-1. 2. K. Marx, "Carta a Vera Zasulitch", in Cara a Cara, n° I. 3. K. Marx e F. Engels, "Prefácio a Ia Edición Rusa de 1982 deI Manijiesto del Partido Comunista", in Obras Escojidas, t. I, Madrid, Ed. Ajuso, 1975, p. 15. 81

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  • A Prevalncia da Lgica do Capital

    RICARDO ANTUNES*

    N os limites deste pequeno texto vou procurar apontar alguns elementos que determinaram, no plano ontolgico, a derrocada da URSS e da equivocadamente chamada "experincia socialista" intentada neste sculo. Vou faz-lo recorrendo a duas idias centrais, deixando de tratar de inmeras questes relevantes, mas no determinantes, que este espao no permite tratar:

    1) Ao contrrio do que apregoa a irrazo hoje dominante, a experincia da URSS no concretizou valores essenciais do pensamento de Marx, mas acabou por efetivar a negao aguda dos elementos fundantes de seu pensamento.

    2) As sociedades ps-revolucionrias no conseguiram constituir-se enquanto sociedades socialistas; a ruptura iniciada em 1917 no foi capaz de romper com a lgica histrico-mundial do capital, apesar de contemplar, no mbito dos recortes nacionais, dimenses anticapitalistas.

    Comecemos pela primeira. So conhecidas as idias de Marx a respeito das possibilidades de rupturas anticapitalistas: estas encontrariam solo frtil somente se as revolues socialistas atingissem uma dimenso e uma processualidade universalizantes, a partir de "um alto grau de desenvolvimento", dado "num plano histrico-mundial". Sem isso, o "comunismo local", impossibilitado de desenvolver-se como "fora universal", seria sufocado pelas prprias "foras do intercmbio" mundial(1). Muito tempo depois, indagado sobre a possibilidade da Revoluo na Rssia, Marx acrescentou: pela insero no "mercado mundial onde predomina a produo capitalista"(2), a Revoluo Russa poder ser "ponto de partida" para o Ocidente, "de modo que ambas se completem"(3).

    * Professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Unicamp. 1. K. Marx, A Ideologia Alem, So Paulo, Ed. Grijalbo, pp. 50-1. 2. K. Marx, "Carta a Vera Zasulitch", in Cara a Cara, n I. 3. K. Marx e F. Engels, "Prefcio a Ia Edicin Rusa de 1982 deI Manijiesto del Partido Comunista", in Obras Escojidas, t. I, Madrid, Ed. Ajuso, 1975, p. 15.

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  • Sabe-se que no foi esta a trajetria russa: uma revoluo singular, ocorrida num pas atrasado, no teve como desdobramento a ocidentalizao da revolu-o. Com as derrotas das revolues no centro, especialmente a alem, a Revoluo Russa comea a vivenciar a tragdia. Se com Lenin, Trotski e Bukharin, dimenses desta tragdia eram visualizadas, com Stalin a Revoluo Russa atingiu a absurda condio de modelo que deveria ser seguido pelas demais revolues. Da para a tambm nefasta tese staliniana do socialismo num s pas, e seus vrios e cada vez mais equivocados desdobramentos, como o do socialismo nos pases coloniais, dependentes, atrasados etc. foi um passo muito rpido. Objetivamente isolada, a Revoluo Russa estava impossibilitada de romper com a lgica do capital; posteriormente, ao ampliar-se (sem revoluo) para o Leste europeu e deste em direo periferia do capitalismo, acentuava a tendncia anterior. A efetivao de uma transio isolada ou subalterna para o socialismo era uma impossibilidade objetiva. Subjetivamente, sob o terror da era Stalin, o mito do "socialismo num s pas" converteu-se em tese taticista com estatuto de cientificidade e de classicidade(4).

    O resultado final disto est estampado em 1989: a derrocada e o desmoronamento final da URSS e dos pases que compunham o falsamente denominado "bloco socialista", que no conseguiram romper com a lgica, o domnio do capital(5). Seus traos internos anticapitalistas (de que foram exemplos a eliminao da propriedade privada, do lucro e da mais-valia acumulada privadamente) foram incapazes de romper com o sistema de comando do capital, que se manteve atravs dos imperativos materiais; da diviso social do trabalho herdada anteriormente e s parcialmente modificada; da estrutura objetiva, atrasada em seu incio e obsoleta em seu desenvolvimento posterior; e da conseqente generalizao do reino da escassez. Seus vnculos com o sistema mundial produtor de mercadorias impediram que sua conformao interna com traos anticapitalistas se tomassem determinantes. Ao contrrio, estes pases curvaram-se lgica da produo e do mercado sob comando do capital. Na sntese de Mszros: a Unio Sovitica no era capitalista, nem mesmo um capitalismo de Estado. Mas o sistema sovitico estava totalmente dominado pelo poder do capital: a diviso do trabalho permanecia intacta, a estrutura de comando do capital (e no do capitalismo, na distino decisiva presente em Marx e reafirmada por Mszros) tambm permanecia. O capital um sistema de comando cujo funcionamento orientado para a acumulao, e essa acumulao pode ser garantida por diferentes caminhos(6). Com um diagnstico que contempla algumas similaridades, MandeI afirma que "a persistncia da produo de mercadorias na URSS e outras formaes sociais similares uma evidncia decisiva de que (...) no h uma economia socialista nem uma sociedade em que os meios de produo estejam plenamente socializados ou mesmo em processo de

    4. Cf. G. Lukcs, Ontologia dell' Essere Sociale, t. I, Roma, Ed. Riuniti, 1976. 5. Cf. I. Mszros, "li Rinnovamento dei Marxismo e l' Attualit Storica dell'Ofensiva Socialista", in Problemi deI Socialismo, n 23, 1982, "Poder Poltico e Dissidncia nas Sociedades Ps-Revolucionrias", in Ensaio, n 14,1985 e "Marxism Today: an Interview with Istvn Mszros" in Radical Philosophy, n 62,1992, ou tambm in Monthly Review, v. 44 (lI), 1992. 6. Cf. I. Mszros, "Marxism Today: an Interview with Istvn Mszros", op. cit., p. 31.

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  • -

    socializao?(7). Outro autor, em recente e polmico ensaio, desenvolveu a tese de que o sis-

    tema sovitico estava na sua interioridade impossibilitado de romper com a lgica do sistema global produtor de mercadorias e do trabalho abstrato. Depois de demonstrar que o "sistema de mercado planejado", seguindo sua prpria lgica imanente, levou ao extremo todas as irracionalidades do sistema produtor de mercadorias, em vez de comear a elimin-las, acrescentou: a produo de mercadorias "do 'socialismo real', ao chegar ao mercado mundial, (teve) que sujeitar-se s leis deste, independente de suas leis prprias... O mercado mundial, em primeiro lugar uma metaesfera da produo de mercadorias das economias nacionais, impe progressivamente em um contexto global a lei da produtividade, descrita por Marx"(8).

    Esses pases, tendo a URSS frente, com insuficiente nvel de desenvolvi-mento das foras produtivas, apesar de configurarem-se como sociedades ps-capitalistas, foram gradativa e crescentemente sufocados pela lgica histrico-mundial do capital; a tentativa de transio socialista intentada neste sculo XX no foi capaz de quebrar o centro hegemnico do capitalismo e a partir da ini-ciar efetivamente a desmontagem da lgica do capital. Em vez da associao li-vre dos trabalhadores, da omnilateralidade e emancipao humanas, de que tanto falou Marx, vivenciou-se a crescente subordinao destes pases aos regramentos prprios do capital e do sistema produtor de mercadorias. Na verdade estas sociedades ps-revolucionrias constituram sociedades hbridas, nem capitalistas e nem socialistas, cujas transitoriedades, embora tivessem um tlos voltado abstratamente para o socialismo foram objetiva (e subjetivamente) regredindo e acomodando-se ao sistema produtor de mercadorias em escala internacional. Penso que h uma certa similaridade, para fazermos um paralelo histrico, com as formaes sociais que, poca da transio do feudalismo para o capitalismo, assumiram tambm uma conformao hbrida, que gerou inclusive um expressivo e controvertido debate no interior do marxismo. A diferena mais evidente que naquele trnsito o capitalismo tomou-se, ao final do processo, vitorioso, diferentemente da transio intentada no sculo XX, que no levou superao do modo de produo capitalista. O caso chins parece exemplar: subsiste por meio de uma falaciosa "economia socialista de mercado", cada vez mais atada (e sintonizada) com o sistema mundial produtor de mercadorias e sustentada at no se sabe quando por uma autocracia partidria.

    Quero concluir com trs sintticas indicaes: Primeiro, os eventos de 1989 sinalizam uma nova era, de crise aguda do capital(9), bem como a possibilida-

    7. E. MandeI, "Marx e Engels: A Produo de Mercadorias e a Burocracia - As Bases Tericas para a Compreenso Marxista da Unio Sovitica", in Ensaio, n 14, p. 57. 8. R. Kurz, O Colapso da Modernizao (Da Derrocada do Socialismo de Caserna Crise da Economia Mundial), Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1982, p. 102 e 131-2. 9. Cf. R. Kurz, op. cit., e I. Mszros. Produo Destrutiva e Estado Capitalista. So Paulo, Ed. Ensaio, 1989.

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  • de real de revivescimento de uma esquerda renovada e radical, de inspirao marxiana, que no poder ser responsabilizada pela barbrie (neo)stalinista vigente naqueles pases at pouco tempo(10). O movimento socialista tambm ver-se- beneficiado pela intensificao das contradies sociais nas formas societrias que esto se configurando na ex-URSS e demais pases do Leste eu-ropeu.

    Segundo: a anlise das experincias revolucionrias do sculo XX nos per-mite concluir que "a revoluo social vitoriosa no poder ser local ou nacional, somente a revoluo poltica poder confinar-se dentro de um quadro limitado, em conformidade com sua prpria parcialidade - (a revoluo social) dever ser global/universal, o que implica a necessria superao do Estado em sua escala global"(11). Do que se depreende que as ocorrncias de revolues polticas nacionais no levam realizao imediata e nacional do socialismo, uma vez que este supe um processo ampliado e de dimenso universalizante.

    Terceiro: as possibilidades reais de superao do capital ainda encontram como subjetividade coletiva capaz de efetiv-Ias a classe-que-vive-do-trabalho. Mais heterognea, mais complexificada e mais fragmentada , entretanto, pela anlise da sociabilidade do capital, o ser social ontologicamente ainda capaz de virar uma nova pgina da histria.

    10. Cf. L. Magri, 'The European Left between Crisis and Refoundation", in New !.e/t Review, n 189,1991, p. 9. 11. I. Mszros, "li Rinnovamento dei Marxismo e I' Attualit Stonica dell'Ofensiva Socialista, op. cit., p. 60.

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  • MARX: ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E HORIZONTES METODOLGICOS NA

    "CRTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO" CELSO FREDERICO*

    BENEDICTO ARTHUR SAMPAIO**

    O ensaio que apresentamos a seguir parte de um estudo mais amplo sobre as relaes de Marx com Hegel e Feuerbach quando de sua crtica Filosofia do Direito de Hegel, nas pginas dos manuscritos redigidas em Kreuznach, em 1843. Este estudo inclui trs ensaios j publicados na Revista Novos Rumos: "Marx, 1843" (nmero 2, 1986); "A Sociedade Civil em Hegel" (nmero 4, 1986); "Feuerbach e as Mediaes" (nmero 8/9, 1988).

    J nas linhas iniciais dos Cadernos de Kreuznach, na anlise do pargrafo61 da Filosofia do Direito de Hegel, Marx introduz o tema dominante desua crtica a essa obra: a dubiedade da mesma em face do Estado Moderno, pois o livro, de um lado, expe a discordncia antinmica entre a sociedade civil e o Estado, e, de outro, pre- tende que ambos sejam essencialmente idnticos.

    Em outras palavras: a viso monista-integradora de Hegel sustenta que entre as duas entidades sociais h apenas uma discordncia exterior, feno-mnica, mas que os fins imanentes de ambas se identificam e, por isso, o conflito aparente resolve-se pelo prprio desenvolvimento do processo so-cial; o movimento dialtico da essncia alcana e realiza a identidade sub-jacente na aparente contradio.

    Marx cita, a propsito, o pargrafo 261 da Filosofia do Direito de Hegel:

    Em face das esferas do direito privado e da prosperidade privada da famlia e da sociedade civil, o Estado por uma parte necessidade exterior, poder superior, ao qual esto subordinadas as leis e os interesses da famlia e da sociedade civil, e do qual dependem. Mas, ao mesmo tempo, ele seu fim imanente (da famlia e da sociedade civil) e sua fora reside na unidade de sua finalidade universal e do inte-

    * Mdico psiquiatra. ** Professor de sociologia da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo e bolsista do CNPq.

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  • resse particular dos indivduos (unidade que se manifesta) no fato de que os indiv-duos no tm deveres para com ele seno medida que eles tm ao mesmo tempo direitos(1).

    Marx, ao comentar esse pargrafo, iniciando o que se conhece dos Manus-critos de Kreuznach, busca demonstrar que a oposio das duas entidades no aparente, mas sim essencial, que se trata de uma diferena em que no h lugar para nenhum movimento de identificao e que, em verdade, os crculos civis e o Estado na sociedade moderna opem-se em seus fins imanentes. A contradio entre eles, portanto, seria de carter essencial e no apenas aparente:

    Mas Hegel no fala aqui de colises empricas; fala da relao das "esferas do direito privado e do bem privado, da farm1ia e da sociedade civil" com o Estado; trata-se da relao que essas esferas mantm com o Estado conforme sua essncia (...). Suas "leis", suas determinaes essenciais so dependentes do Estado, so-lhe subordinadas (...). Sua relao com o Estado a de necessidade "exterior", necessidade que violenta a essncia ntima da coisa.(2)

    Para Marx, os deveres individuais e particulares no se integram no interesse geral supostamente representado pelo Estado; pelo contrrio, so dependentes, subordinados a ele, e, em conseqncia, tais deveres no configuram a face reversa de direitos correspondentes, como assegura Hegel. Portanto, a pretendida "unidade da finalidade universal" e do interesse particular no se efetua e nem se comprova. O Estado, assim, no integra os que seriam seus membros e se defronta com cada um na posio de um estranho, um outro imposto e distinto que a todos subordina, um universal defeituoso, particularizado, um todo diferente de todos, que se acrescenta como mais um.

    Essas observaes iniciais perpassam toda a argumentao do livro de Marx, e querem desmascarar a "malcia" de Hegel que procura, montado em sua lgica, disfarar o que sem o querer revela: a irracionalidade polticn-social moderna o Estado, como universal-abstrato particularizado e adverso esfera dos interesses privados da sociedade civil, em vez de constitu-Ios numa unidade integrada.

    A denncia da contradio no plano conceitual entre particular e universal-existente, entre o segundo e o terceiro momento da dialtica, aplicada ao processo social (sociedade civil versus Estado) como conflito insupervel insinua-se jno comentrio da primeira pgina conhecida do Manuscrito de Kreuznach e desenvolve-se at a ltima.

    AS TEORIAS DA ALIENAO NA ELABORAO DAS TEORIAS DO ESTADO

    fcil reconhecer at mesmo nessas primeiras observaes o alinhamento do jovem Marx de 1843 ao ponto de vista feuerbachiano: ele aplica teoria hegeliana do Estado a refutao global filosofia e lgica de Hegel contida

    1. Karl Marx, Critique de l' tat Hglien (Paris, Union Gnral d 'ditions, 1976), p. 53. 2. Id., ibid., p. 55.

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    na ento revolucionria "teoria da alienao" de Feuerbach. Podemos, pois, presumir que se Regel, como dizia Marx, fazia nascer da lgica toda a teoria do Estado, como Minerva da cabea de Jpiter, Marx retirava do combativo pensamento geral de Feuerbach toda a crtica que brandia contra aquela mesma teoria do Estado contida na Filosofia do Direito.

    Por essa razo, acreditamos que, em 1843, ao contrrio do que se costuma com freqncia sustentar, a reflexo marxiana obedece a uma linha predominantemente filosfica; e tambm, que s por ser o pensamento feuerbachiano alm de antiidealista, impregnado de um empirismo naturalista c1assificatrio, que o texto de Marx se reveste de um estilo aparentemente cientfico e antifilosfico.

    A nova teoria da alienao de Feuerbach refutava a teoria correspondente de Hegel, que via no particular, no finito, um momento alienado do Ser e, no uni-versal autodeterminado, no infinito, a efetivao absoluta dele. Ao revs, para o autor de A Essncia do Cristianismo, o pretendido universal-existente que era o Ser abstrato, indeterminado, criao fantstica de telogos e de filsofos idealistas, enquanto o ser particular, finito, a existncia emprica, constitua a nica realidade existente, onde toda a idia verdadeira tinha de enraizar-se. Separados os seres de seus predicados essenciais, de suas idias, pela abstrao enganadora, que depois rene tais predicados numa nica mtica figura ideal superior - a Idia -, teramos Ser e Idia posicionados, tal qual no nvel teolgico cristo est a criatura que perdeu o dom da graa divina diante de Deus: um sujeito alienado e um falso objeto universal afastados um do outro, numa oposio absoluta, j que no h nenhuma identidade, nenhuma essncia subsistente entre eles. E, como no se pode pretender que o sim concorde com o no, ou que o usurpado conceda sorrindo ao usurpador, o conflito instaura-se at o anulamento do universal-abstrato para que o sujeito recupere finalmente as suas qualidades universais como prprias. Para tanto, Feuerbach conta com a "arma da crtica", j que se trata unicamente de desmascarar uma falcia entificada.

    Ora, e apenas para ficarmos ainda nas palavras citadas da Filosofia do Direito, estudadas nos primeiros comentrios dos Manuscritos de Kreuznach, se o Estado de fato a finalidade universal existente da sociedade, ele fatalmente ser para o jovem Marx, que teima em levar a srio as definies de Regel e em desenvolver as concepes de Feuerbach at suas ltimas conseqncias, somente uma idia abstrata ilusoriamente cultuada como se fosse um sujeito/concreto e deve, por isso, ser combatido. A unidade da finalidade universal e do interesse particular dos indivduos, que constituem, segundo Regel naquela primeira passagem citada, a "fora" do Estado, o que equivaleria dizer o ser concreto do Estado, assim como seu modo dialtico de concretizar-se, de unir-se, devem ser desmentidos terica e praticamente. A contestao do Estado e do movimento de superao dialtica da sociedade civil por ele, tanto quanto a inevitabilidade do conflito, prope-se, ao "discpulo" Marx, como uma conseqncia poltica irrecusvel da teoria feuerbachiana da alienao.

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  • A INADEQUAO HISTRICA DO ESTADO TEORIA FEUERBACHIANA DA ALIENAO

    Mas, como aquele outro discpulo de Herclito, de que fala Kierkegaard, que, querendo prolongar o caminho do mestre para alm dele, acabou por negar sua dialtica, o jovem Marx, ao extrapolar as idias de Feuerbach para o terreno do Estado, sem o perceber, inclinou-se perigosamente para o campo das idias dialticas do inimigo comum a ambos: Hegel!

    Primeiro, porque ir at as ltimas conseqncias j trair um pouco o pensamento de Feuerbach. Este havia renunciado por princpio a elaborar uma teoria que concatenasse at o fim o conjunto de suas idias ( impossvel resumi-Io numa sntese, como, de acordo com Ernst Bloch, pode-se fazer com os grandes pensamentos seguros do que querem, especialmente o de Hegel),3 e nisto foi paradoxalmente coerente com o seu anti-hegelianismo, que eriava as diferenas e combatia os "Sistemas". desse modo que explicamos seu potico estilo aforismtico, que deixa sempre uma sedutora margem de sombras entre proposies luminosas e tambm um ressaibo de paradoxo, apreciado por tantos, no fundo de suas belas sentenas, assim como o sentido escorregadio de seus textos tomados em conjunto.4 A influncia marcante da literatura romntica em seu tempo inegvel no desenvolvimento dessas caractersticas do estilo e do pensamento de Feuerbach: afinal, da essncia do romantismo literrio uma certa obscuridade que excite a imaginao e, hoje sabemos, atravs da literatura moderna, convide o leitor a colaborar com interpretaes, a entrar em cena e participar ativamente dela. Wagner deve ter sido tocado por esse lado romntico do Feuerbach que admirou. Todavia, se essa postura tolerante do autor admirvel do ponto de vista artstico, no muito rigorosa do ponto de vista tcnico, pois a mistura de papis permite ao ator no se identificar completamente com o personagem e ao autor no se responsabilizar pelo drama. Marx, por essa poca, no atinou bem com esses traos da personalidade e da obra de Feuerbach, tanto que o convidou a descer at as

    3. Cf. Emest Bloch, El Pensamiento de Hegel (Mxico, Ed. Fondo de Cultura Economica, 1949), p.29. 4. Se o estilo o homem, essas duas personalidades - Marx e Feuerbach - certamente eram bem distintas. Em seus livros e artigos, Marx, numa linguagem incisiva, sempre desenvolve os seus argumentos numa linha discursiva e encadeada. H uma nica exceo: justamente as Teses sobre Feuerbach. claro que essas teses parecem ser anotaes para um futuro desenvolvimento, contudo, assemelham-se propositalmente ao estilo de Feuerbach. Giannotti traduziu para a Coleo "Os Pensadores" da Editora Abril essas anotaes revolucionrias para o portugus sob o ttulo de Teses contra Feuerbach e, de fato, tem razo ao adotar esse ttulo, se tomou como referncia o contedo delas, que polemiza sem concesso com as idias essenciais de Feuerbach (que tanto influenciaram o prprio Marx de 1843). Mas quanto forma, que primeira vista parece uma concesso ao estilo aforismtico, bem provvel que tivesse o sentido intencionalmente irnico e desafiador, caracterstico da verve polmica de Marx. Combate o antigo mestre, agora adversrio, com suas prprias armas, em sua casa, em seu estilo. A ser assim, talvez pudssemos complementar a sugesto de Giannotti ampliando sua designao para conciliarmos forma e contedo: Teses a e contra Feuerbach.

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  • conseqncias prticas de sua doutrina, a participar da atividade poltica colaborando nos Anais Franco-Alemes, sem ver que Feuerbach no se dispunha a tirar concluses definitivas de suas idias e, menos ainda, conseqncias prticas. Cinco anos mais tarde, entretanto, ao definir com Engels, no Mani festo do Partido Comunista, o chamado "socialismo alemo", Marx reconheceu essa postura feuerbachiana, embora sem nome-la expressamente, atribuindo-a condio de classe pequeno-burguesa comum a todos os jovens-hegelianos. Contudo, cremos, havia razes inerentes ao estilo e doutrina do autor das Teses Provisrias (note-se: "provisrias", no definitivas, no conclusivas), que seduzia os "jovens-hegelianos", aquela vacilante intelectualidade pequeno-burguesa.

    Mas o principal motivo, de responsabilidade do prprio Marx, que o levou a cometer uma traio involuntria ao pensamento de Feuerbach, na Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, foi a escolha do tema de sua tese. O Estado era demasiadamente objetivo e terreno para adaptar-se teoria feuerbachiana da alienao. A "realidade" de Deus enfrentada por Feuerbach em sua teoria pertencia crena ou reflexo teolgica; podia ser refutada pela crtica do saber imediato: no uma coisa, uma realidade sensvel. Mas o Estado, com seus aparelhos, com seu poder que nos toca a todos, dificilmente seria assimilado a uma Idia abstrata elaborada pela especulao, ou, mesmo pela histria, como queria Marx, a ponto de tom-la vulnervel "arma da crtica" feuerbachiana. Como bem viu Agnes Heller:

    "Feuerbach analisava o processo de alienao religiosa porque essa - ao menos ele assim acreditava - pode ser superada quando se toma conscincia dela. Mas exclua e considerava inexistente qualquer outra relao humana que estivesse alienada e cuja alienao no fosse susceptvel de superao atravs do simples reconhecimento (...) Num sonho no h objetos, s objetos imaginrios, no sonho nada impossvel, o mundo no "duro", no sonho no preciso enfrent-lo. Feuerbach no toma em considerao o trabalho, as instituies e a economia, porque possudo pelo radicalismo da vontade mergulha no mundo dos sonhos"(5).

    Propunha, portanto, Marx, numa deciso de exagerada coerncia, uma nova forma de alienao que, certamente, devia afigurar-se temerria a Feuerbach, porque o objeto alienador, o Ser-Abstrato, o Estado, parecia possuir uma certa corporeidade e aparentava ocupar lugar no espao e no tempo, e detinha uma fora sensvel e uma histria objetiva.

    Apoiava-se essa tese proposta por Marx numa explicao histrica colhida do prprio Hegel na Filosofia do Direito, segundo a qual os interesses particulares dos grupos sociais (at ento embutidos nas corporaes medievais) reuniram-se, nos tempos modernos, no Estado poltico, como interesse universal humano, consubstanciando uma clara diferena entre

    5. Agnes Heller, Crtica de Ia llustracin (Barcelona, Ed. Pennsula, 1984), p. 112.

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  • organizao poltica e sociedade civil. Adivinha-se, sem grande esforo, que Marx nessa histria havia de contestar a transio na forma de superao-conservao (Aujhebung) defendida por Hegel e procurar explic-la a partir da noo de "relao de separao", de ciso entre particular real e universal hipostasiado, conforme a teoria da alienao de Feuerbach. No primeiro caso, o de Hegel, o Estado absorve em sua generalidade as diferenas da sociedade civil, no se separando delas em seu crescimento, o que o toma um universal-concreto, uma unidade dos fins gerais e dos interesses particulares individuais; no segundo, o do jovem Marx, ao contrrio, o Estado uma entidade sem qualquer apoio legtimo da sociedade e que, ao crescer, desliga-se dela. Marx responsabiliza sobretudo a Revoluo Francesa como o momento da crise moderna em que o Estado poltico recm-criado usurpa definitivamente a vontade geral dos membros da sociedade civil:

    "A abstrao do Estado enquanto tal no pertence seno aos Tempos Mo-dernos porque a abstrao da vida privada no aparece seno com os Tempos Modernos. A abstrao do Estado poltico um produto da modernidade".

    " a Revoluo Francesa que concluiu a transformao dos Estados polticos em classes sociais e transformou as diferenas de estados da sociedade civil em simples diferenas sociais decorrentes da vida privada, sem importncia na vida poltica. A separao entre a vida poltica e a vida civil foi desse modo concluda"(6).

    Ficam, a partir de ento, historicamente determinados, de um lado a burgue-sia, os civis alienados do "esprito cvico", fixados em seus interesses privados e, de outro, o "esprito cvico" desentranhado da sociedade, mas, apesar de tudo, "levitando" sobre e a despeito de todas as pessoas, como monoplio dos interes-ses comunitrios, como Estado poltico.

    Percebe-se que nesse novo caso de alienao, a "arma da crtica", da filoso-fia gentico-crtica de Feuerbach, deveria reconhecer-se impotente para exorci-zar o Leviat que se impunha como um momento da histria e no apenas uma figura imaginria nascida da reflexo subjetiva de crentes e filsofos. Tratava-se de uma criatura, ou antes, de um Deus, ou melhor, de um demnio oriundo do curso annimo da histria, determinado e datado por ela, no parecendo depender da aceitao subjetiva dos homens para sobreviver, e, menos ainda, para comear a viver. Se todos os crentes deixassem de crer por obra e graa da "iluminao crtica", Deus se desvaneceria como o sonho de quem acaba de despertar. Mas o Estado no dependia tanto do consentimento fiel dos seus sditos e por isso, se como Idia (e enquanto universal era Idia para Feuerbach) fosse includo na teoria feuerbachiana da alienao, talvez a fizesse pender no sentido de confirmar a hiptese hegeliana do terceiro momento dialtico, ou seja, de uma idia de existncia objetiva, ou melhor, do Esprito

    6. Karl Marx, op. cit., pp.lll e 207-8.

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  • Absoluto a quem queria combater. Ficava assim subentendida na tese do jovem Marx a suspeita da possibilidade paradoxal de um universal-abstrato dotado de vida. Desse modo, ao definir o Estado como um Esprito desencarnado, ao retir-lo da dependncia individual (onde o mantivera prudentemente Feuerbach como se fosse uma manifestao de conscincias pessoais), Marx, sem querer, deslocava-se para um plano ontolgico, aproximando-se da posio de Regel. De fato, se Regel admitia a existncia independente de uma Idia, Marx aqui admitia que um ente independente, de fisionomia sensvel e de origem histrica, era uma Idia. Via, portanto, como hipostasiado, no uma simples relao lgica ou uma forma imaginria, mas algo pelo menos de aparncia positiva, o que era "duro" demais para Feuerbach, como bem disse Agnes Heller. Enquanto, porm, considerava o Estado como de natureza abstrata, continuava a sustentar a teoria da alienao de Feuerbach, que repelia a de Regel. Resumidamente, raciocinava assim: o Estado um universal, logo uma Idia; parece ter existncia autnoma, logo uma idia abstrata. No lhe ocorria a hi- ptese contrria, que defendeu mais tarde, de que o Estado podia no ser uma idia universal e ter de fato uma existncia real (e isso sem precisar romper com a teoria feuerbachiana da alienao) como instrumento de interesses particulares situados na sociedade civil.

    A HIPTESE COMUM DA UNIVERSALIDADE DO ESTADO

    Temos, portanto, trs autores entrelaados, trs posies a respeito do Estado divergindo de um ponto comum: a universalidade do Estado. Primeiro temos Regel, para quem o Estado a totalidade existente e consci- ente da sociedade humana, um universal-concreto, um sujeito-objeto existente.

    Em segundo lugar temos Feuerbach, para quem o Estado a "conscincia articuladora" da sociedade civil, o universal que harmoniza os diferentes interesses particulares reais, objetivado somente no interior das mentes dos sujeitos individuais, preferentemente na dos estadistas. Foi o que inferimos do sexagsimo stimo aforismo da Filosofia do Futuro, o nico desse livro que trata expressamente do Estado, ao apontarmos, pginas atrs, a viso poltica e social de Feuerbach, mostrando que ele no tivera a ousadia marxiana de aplicar sua teoria da alienao s questes polticas, limitando-se a reserv-la ao plano religioso e filosfico ( esfera celeste, como diria mais tarde Marx). Terceiro, e finalmente, Marx que, apoiado na doutrina do segundo e aplicando-a a um ente terrestre, denunciando o Estado como o Fim Universal da sociedade civil, fora do controle dos seus membros, agindo como um falso sujeito autnomo oposto sociedade civil.

    Em Regel, portanto, o Estado o fim da alienao; no Marx de 43 o princpio da alienao; no Marx maduro a sociedade sem classes inicia o processo de desalienao.

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  • curioso notar que dos trs pensadores, os dois ltimos refutam o primeiro sem sair, entretanto, de sua proposta: o Estado como um universal.

    ESTADO ABSTRATO: SOCIEDADE CIVIL ATOMIZADA

    Com o jovem Marx surge assim a hiptese radical de uma separao absoluta, sem nenhuma mediao possvel, sem nenhuma essncia comum subjacente, entre a vida civil (que ele toma como vida exclusivamente privada), e a vida poltica (que permanece confinada ao Estado). Embora o Estado continue a ser enfocado na ptica da universalidade dos interesses sociais, ele, enquanto sujeito mtico, j no congrega tais interesses particulares num plano harmnico, nem os integra numa unidade em si mesma racional.

    Da teoria da alienao de Feuerbach aplicada teoria sociopoltica da filosofia hegeliana do direito, o jovem Marx deduz, portanto, uma teoria revolucionria prpria, incipiente, em que o Estado-abstrato representa o grande inimigo. J se pode por a presumir a interpretao de Marx, nessa poca, sobre o sentido que dava s revolues futuras: a luta contra um "tigre de papel", contra o todo hipostasiado da sociedade (o Estado). patente a influncia iluminista, reabilitada aqui no processo de contestao a Hegel e confronto com a monarquia prussiana. Nela, a luta poltica fica sendo uma luta contra a obscuridade de uma superstio histrica (o Estado), ou ainda, um processo poltico de desalienao filosfica(7).

    bvio que essa concepo poltica de Marx derivava diretamente da crtica geral de Feuerbach lgica de Hegel, sobretudo da formao do universal-concreto, ou seja, do terceiro momento da dialtica objetiva (a negao da negao), equiparado ao Estado. Marx, acompanhando Feuerbach, entende tambm esse "hipottico" terceiro momento da dialtica como pura negao abstrata da realidade emprica, do ser determinado existente, vale dizer, como pura irreal idade. Portanto, como negao direta do real, do positivo, e no de alguma outra negao intermediria, como postulava Hegel, quando a designava de negao-da-negao. Marx, como j o fizera Feuerbach, denuncia a inexistncia, no mbito social, de um particular mediador colocado entre as diferenas individuais positivas reais e a universalidade abstrata concebida pela filosofia da especulao, o que significa denunciar no s o momento final da lgica hegeliana como tambm seu momento dialtico propriamente dito, da intermediao processual. Contesta, por conseguinte, todo o silogismo sistemtico implcito na doutrina de Hegel.

    Como Feuerbach, ele detm-se no crculo da finitude positiva como nica realidade, e nega a sntese final e os elos intermedirios negativos que resolvem, na dialtica, as diferenas individuais numa s unidade racional. O infinito, a conjuno, objetivao do sujeito finito, elaborao da conscincia pessoal, forma ideal que no pertence ontologia.

    7. Curiosamente, um pensador contemporneo, Adorno, defende com sua "dialtica negativa" uma posio comparvel: o Estado, entendido como totalidade alienada o seu grande inimigo, e, sua arma, recuando de Marx para Feuerbach, tambm a crtica (talvez pvr tambm temer a "crtica das armas").

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  • Ora, dessa viso geral decorre, no mbito da teoria social, a crena de que os diferentes grupos porventura organizados no interior da moderna sociedade civil tm uma significao exclusivamente privada, no concernente comunidade, e que, do ponto de vista poltico do interesse comum, a sociedade civil agita-se num movimento atomstico catico, num bellum omnibus contra omnes. Nem Feuerbach, que negara primeiro do que Marx a existncia objetiva dos universais, chegara a isto, pois via no Estado uma instncia moderadora e modernizadora dos variados interesses da sociedade civil. Para Feuerbach o Estado uma instncia subjetiva, um conceito sim, porm no alienado e, por isso, no se identifica com o terceiro momento da lgica hegeliana (este sim considerado abstrato), mantendo-se, enquanto segundo termo da unidade social, como pensamento da sociedade civil. Como se sabe, a expresso ideal, a conscincia do universal em suas diversas formas, o que pretende salvar seu empirismo da acusao de atomstico.

    Marx extrapola Feuerbach ao admitir tal analogia, isto , ao ver tanto no Estado como na sntese final hegeliana o termo ideal abstrato da realidade humana. levado, por isso, a admitir a sociedade moderna como totalmente atomizada pela presena alienadora do Estado, usurpador da ordem geral.

    A teoria da alienao feuerbachiana aplicada teoria social, revelia de seu autor, produzia, portanto, duas conseqncias inevitveis: uma sobre o prprio Estado e outra sobre a sociedade civil. Quando, por exemplo, na Filosofia do Direito Hegel critica como absurda a concepo que defende o acesso dos cidados, enquanto puros cidados, s Assemblias e, portanto, ao Estado, sua argumentao d lugar a que Marx desenvolva uma viva controvrsia, muito elucidativa de sua prpria opinio naquela poca a respeito da sociedade e da natureza abstrata do Estado moderno. Vejamos o contraponto entre as duas posies:

    Hegel: "Esta concepo atomstica, abstrata, se desvanece desde que se aborde a famlia ou a sociedade civil, pois j nessas esferas o indivduo se manifesta como membro de uma universalidade".

    Marx: "Abstrata essa concepo o absolutamente, mas essa 'abstrao' apenas abstrao do Estado poltico tal qual o prprio Hegel o apresentou. 'Atomstica', tambm o , mas esse 'atomismo' aquele da prpria sociedade. Uma concepo no pode ser concreta quando o seu objeto abstrato"(8).

    Verifica-se, nessa ltima passagem, que Marx compreende a sociedade civil como atomizada, e seu movimento como catico, sem nenhum plo de referncia comum, sem nenhuma ligao com o Estado.

    Hegel: "Uma concepo como a concepo atomstica que decompe essas comunidades em uma multido de indivduos, e isto no exato momento em que

    8. Karl Marx, op. cit., p. 205.

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  • acedem ao poltico, isto , ao lugar da universalidade concreta suprema, uma concepo que perpetua a separao entre a vida civil e a vida poltica, e condena essa ltima a planar de algum modo no ar, j que no teria por base nenhuma coisa finne e legtima em si e por si, mas a individualidade abstrata do arbtrio e da opinio: o acaso"(9).

    Depreende-se dessas palavras que a separao absoluta das duas esferas, mesmo por um breve momento, parecia absurda a Hegel (aqui tambm, insinua-se uma crtica ao sufrgio universal). Sem o auxlio de estruturas intennedirias ele no via onde sustentar o Estado e nem queria consider-lo um Esprito subjetivo desencarnado de seu contedo particular. Afinal, o Estado era o estgio resolutivo do momento precedente (sociedade civil), este sim, em seu entender, alienado, uma conscincia separada da existncia social.

    Marx: "Esta concepo no perpetua a separao entre vida cvica e vida privada, ela s faz conceber essa separao tal qual realmente existe. Essa concepo no condena a vida poltica a 'planar no ar'; a prpria vida poltica que a vida area (Luftleben), o ter da sociedade civil"(10). Portanto, a reduo ao absurdo do raciocnio de Hegel desafiadoramente

    assumida por Marx como expresso da nova realidade social, com o propsito de negar ao Estado qualquer fundamento que lhe garanta um certo contedo e, sociedade civil vigente, qualquer perspectiva que lhe proporcione uma organizao, por mnima que seja.

    At a diviso da sociedade em classes sociais, mais tarde colocada por ele no centro do processo histrico, era desmenti da: " uma diviso em massas que se formam de uma maneira fluida e cuja formao ela prpria arbitrria e no constitui de nenhum modo uma organizao estvel"(11).

    Marx estava ainda longe de conhecer o que mais tarde chamaria de "anato-mia da sociedade civil" e encarava, rigorosamente coerente com os princpios da doutrina nominalista que ento defendia, o conjunto dos interesses privados do mundo moderno como totalmente inorgnico. Alis, em obedincia a Feuerbach, a prpria noo de organismo parecia-lhe nominal; entendia-a como objetivao ideal da plural idade dos rgos, tal como o Estado seria a objetivao ideal, mas fantstica, dos mltiplos interesses da sociedade civil(12)

    DO SILOGISMO SOCIAL SOCIEDADE DESUMANA

    No difcil perceber que se tratava ainda da crtica intransigente do terceiro momento da dialtica objetiva, juntamente com a de seu processo de formao, isto , da crtica interpretao do Estado como realizao da unidade concreta das diferenas sociais, como um sujeito poltico-social

    9. Id., ibid., pp. 206-7. 10. Id., ibid., p. 207. 11. Id., ibid., p. 208. 12. A palavra anatomia, usada por Marx no prefcio da Contribuio Crtica da Economia Pol. tica, mostra como ele inverteu essa opinio da juventude e passou a conceber a sociedade, nas obras maduras, como um organismo de existncia objetiva.

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  • - ---

    unificado num procedimento lgico-histrico. Em sua crtica, Marx procurava barrar j no meio do caminho, na prpria sociedade civil, qualquer arremedo de integrao.

    No plano lgico-social mais abstrato, diramos que Marx experimentava a substituio da hiptese hegeliana de que o conjunto da realidade humana configura o movimento constante de um silogismo dinmico, pela hiptese de Feuerbach segundo a qual tal realidade, tomada objetivamente, deveria compor uma pluralidade de proposies estticas e justapostas (e no a figura de uma unidade racional, de um silogismo). E, levando ao extremo a hiptese de Feuerbach: a realidade social seria uma pluralidade de proposies lgico-sociais justapostas, elas mesmas cindidas e invertidas em seus termos; constituda, portanto, de sujeitos alienados tomados como objetos, e de um objeto abstrato (o Estado) travestido de sujeito; de um lado haveria uma realidade inconsciente, a sociedade civil, e, de outro, uma conscincia irreal, o Estado.

    Mas uma proposio de cpula rompida apenas uma plural idade de con-ceitos mudos, de termos que deixaram de exprimir uma proposta comum, que no compem mais um juzo. No s a sociedade acusada de estar dilacerada em elementos apenas justapostos, como tambm esses elementos so vistos (en-quanto alienados) como dilacerados, mudos, embrutecidos, interiormente rompidos. Por isso, Marx dizia que na Idade Mdia os homens, vinculados s ordens feudais, particulares, no atingiam a universalidade humana, no saam da animalidade e, nos tempos modernos, destacados pela criao do Estado, no se reconheciam mais como humanos:

    "A Idade Mdia a histria animal da humanidade, sua zoologia. A mo- dernidade, a civilizao, comete a falta inversa. O ser objetivo do homem, ela o separa dele como um ser puramente exterior, material. No toma o contedo do homem por sua verdadeira realidade" (13).

    Em lugar, portanto, do resultado de um processo permanente de snteses criadoras, do movimento de evoluo gentico-histrico, como via Hegel, passamos agora viso da sociedade moderna e de seus membros como seqela de uma frustrao histrica ou como as runas "da vida que poderia ter sido e no foi" (14).

    A sucesso ternria do desenvolvimento lgico unificador hegeliano cede lugar, nessa nova e fugaz filosofia da histria, possibilidade perdida (mas re-cupervel, veremos) de uma permanente convivncia entre os diferentes sujeitos, ou melhor, entre os homens-genricos sujeitos sociais diversos na

    13. Id., ibid., p. 211. 14. O verso de Bandeira, em seu poema pessimista em que a nica sada "tocar um tango argentino", serve tambm para exprimir a viso histrica de Benjamin que, como contraponto ao desespero, s encontra uma sada messinica. Trata-se de uma dialtica do "deixar de ser" em substituio di ai tica do vir-a-ser de Hegel e de Marx. A propsito, vale a pena lembrar o conselho de Nietzsche quando dizia que devemos nos preparar para ser e no para deixar de ser...

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  • posse de seus predicados universais e, portanto, no gozo da plenitude material e espiritual convivendo lado a lado; uma repblica de deuses que ele designava democracia(15).

    Como se v, no preciso muito esforo para concluir que quando Marx, em sua nona tese sobre Feuerbach, dizia que o resultado mais alto do materialismo sensualista a intuio dos indivduos isolados e da sociedade burguesa, ele no s renegava o liberalismo nominalista de Feuerbach como tambm sua prpria concepo inicial de democracia.

    FILOSOFIA E REALIDADE IDEALISTAS

    Assim, a teoria social, abandonando a "lgica", ingressava na decisiva dis-cusso gnosiolgica daquela poca. Engels, muitos anos mais tarde em seu Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clssica Alem, diria que a questo fundamental da filosofia moderna, o divisor de guas entre materialismo e idealismo, era a relao entre a Natureza e o Esprito, entre Ser e Pensamento.

    De fato, por trs do texto marxiano de 1843 vislumbra-se a sentena funda-mental de Feuerbach: "a verdadeira relao do pensamento ao ser reduz-se a isto: o ser sujeito, o pensamento predicado. O pensamento provm do ser e no o ser do pensamento"(16).

    Entendendo por ser, por natureza, a manifestao emprica da sociedade ci-vil na forma dos seus membros naturais (os indivduos), e por pensamento o Es-tado como "objetivao" deles, como Esprito social, assevera Marx que tanto Hegel como a prpria sociedade moderna interpretada por ele no s separam, mas tambm invertem os termos da verdadeira relao social derivando do Esta

    15. Na "Introduo Crtica da Filosofia do Direito de Hegel", redigida em Paris no comeo de 1844, Marx, mantendo a hiptese de que o interesse geral estava alienado das classes sociais, acreditava por isso que estas s poderiam rebelar-se a partir de seus interesses particulares. Como, por exemplo, o interesse da burguesia era o dinheiro, s em funo deste ela poderia levantar-se contra o Estado. Neste caso, pensava, s uma classe sem interesses, e por isso sem contedo, abstrata, seria capaz de empenhar-se por todos. Por no ter interesses particulares, ela seria capaz de interessar-e pelos fins gerais e, portanto, pela recuperao dos fins polticos universais da sociedade. O proletariado alemo, destitudo de contedo essencial, tinha, como nenhum outro, a oportunidade de adquirir o pensamento filosfico alemo e, com ele, libertar o mundo... Nesse texto, o proletariado aparece pela primeira vez como heri revolucionrio, porm, ainda na perspectiva da teoria da aliellao feuerbachiana, que nada tem a ver com a futura luta de classes. Muito semelhante foi tambm o projeto do Anurio Frallco-Alemo, em que o "franco" correspondia ao sujeito material sensvel, e o "alemo" ao predicado universal ideal. A designao "Franco-Alem" configuraria uma unidade concreta de ser e pensamento, um projeto binacional destinado a humanizar ou democratizar a Europa... Na mesma perspectiva da teoria feuerbachiana da alienao coloca-se, mais de um sculo depois, o heri marginal de Marcuse, constitudo pelo lumpellproletariat, minorias, estudantes etc. (Cf. o livro Olle-Dimellsiollal Mall, traduzido no Brasil com o ttulo A Ideologia da Sociedade IlIdustrial, Zahar, 1967). 16. Ludwig Feuerbach, Mallifestes Philosophiques (Paris, Presses Universitaires de France, 1973), p.120.

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    do (Esprito) a sociedade civil (Natureza). Conseqentemente, Marx estaria num debate, ou melhor, num combati: materialista (que se denominava ento "humanista") contra no s uma filosofia idealista, mas tambm contra uma realidade poltico-social idealista. isso que se entende da frase transcrita pginas atrs: "uma concepo no pode ser concreta quando o seu objeto abstrato" (e, sobretudo, quando tal objeto abstrato domina seu sujeito alienado).

    No , pois, pretenso supor que o jovem crtico, levado pelo entusiasmo da disputa terica reinante em seu pas, tomara quixotescamente a nuvem por Juno, arremessando-se contra uma teoria do Estado ( a da Filosofia do Direito), como se ela fosse o prprio objeto que pretendia interpretar: a sociedade moderna. E em sua precipitao caiu na armadilha de quem mais combatia, tomando o fato pela interpretao proposta por seu adversrio.

    Um ano depois, na correo de seu plano de trabalho apresentado no pref-cio dos Manuscritos de Paris, Marx resolve separar (a fim de "desembaraar" o entendimento) a crtica da Filosofia do Direito do estudo das prprias matrias abordadas naquele livro e, assim, acreditamos, safar-se da armadilha em que se havia metido:

    "Anunciei nos Anais Franco-Alemes a crtica da cincia do direito e da cincia poltica sob a forma de uma crtica da Filosofia do Direito. Enquanto elaborava o manuscrito para a impresso, pareceu que era completamente inoportuno misturar a crtica, que s tinha por objeto a filosofia especulativa, com aquela de suas correspondentes matrias, e que essa mistura entravava a exposio e embaraava a sua compreenso"(17).

    Mais do que a exposio e a compreenso do texto, o que a mistura entrava-va era, em nossa opinio, o prprio discernimento da matria social perquirida pelo jovem crtico, e no s o de suas disciplinas correspondentes. Foi, acreditamos, em razo do mtodo de pesquisa adotado, e no apenas da exposio didtica, que Marx decidiu-se, como diz, pelo abandono do manuscrito de 1843. Como sempre, a deciso foi mais clara que a confisso relutante: permitiu-lhe o estudo direto de autores em matrias sobretudo econmicas, que at ento conhecia somente de segunda mo, por intermdio da interpretao filosfica hegeliana. este o passo adiante que ele deu nos Manuscritos de 1844.

    Muitos anos depois, ao desenvolver suas teorias econmicas, Marx volta ao tema da viso invertida do mundo. No mbito da circulao de mercadorias, as relaes humanas parecem absolutamente justas, inversamente s verdadeiras relaes de explorao existentes na esfera da produo. Trata-se, evidentemente, de uma iluso de ptica: a verdade da sociedade capitalista no o que ela aparenta ser. Em 1843, contudo, a realidade tomada como se estivesse realmente invertida. E isso se d porque ele, como Hegel, considerava o Estado como uma Idia e no como um instrumento de interesses

    17. Karl Marx, Malluscrits de 1844 (Paris, Ed. Sociales, 1968), p. I.

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  • particulares. no conceito de universalidade do Estado que o jovem Marx tropea.

    Convm, nesse ponto, abrir um parntese para observar que, no furor de sua crtica ao idealismo de Hegel, Marx acaba distorcendo o entendimento do texto de seu adversrio ao confundir os conceitos hegelianos de Idia e Estado. No pargrafo 262 da Filosofia do Direito Hegel diz: "a Idia real, o Esprito, divide-se ele prprio nas duas etapas ideais de seu conceito, a famlia e a sociedade civil, enquanto expresses de sua finitude; e isso para se afirmar a partir de sua idealidade como esprito ideal real infinito e para si". O que Marx interpreta: "A famlia e a sociedade civil so as pressuposies do Estado", elas "aparecem como o sombrio fundo natural onde se acende a luz do Estado". Ou ainda: "a realidade [famlia e sociedade civil] no apresentada como tal, mas como alegoria de uma outra realidade [o Estado]".

    Kostas Papaioannou chega a romper sua iseno de tradutor para, a propsi-to dessa passagem, protestar em nota: "Hegel fala da Idia: toda essa crtica re-pousa sobre um mal-entendido"(18). No indaga, entretanto, a respeito da razo desse mal-entendido que, evidentemente, no se deve ignorncia. palmar que o pensamento hegeliano jamais procuraria explicar as fases de um processo em curso a partir de um resultado no atingido. Isso seria admitir o que repugna a Hegel: a perspectiva de um observador colocado fora de tudo ou depois de tudo (e, portanto, tambm dele mesmo).

    Ainda que para Hegel o finito carea do infinito, ele no pode ser tomado, como quer entender Marx, como um simples sinal do outro, uma alegoria desti-tuda de contedo prprio. O que se transforma na dialtica hegeliana, o que est portanto em constante mudana , obviamente, a Idia configurada ou desfigurada (quando alienada). E justamente a figura refeita da Idia que se projeta na "ideal idade" das realidades particulares "saudosas" da universalidade constituinte de seus contedos.

    Marx, entretanto, no encontra lugar para esse entendimento dialtico da Idia como essncia dos contrrios, porque nessa poca ele concebia a realidade maneira binria de Feuerbach (como ser e conscincia) e, conseqentemente, concebia o mundo social como sociedade civil e Estado, Em seu sistema bipolar Marx situa a Idia totalmente no Estado, que ele v como conscincia alienada do ser social e, assim, acaba concluindo que Hegel funda o antecessor no suces-sor. Como que para confirmar nossa interpretao ele afirma a propsito, no pa-rgrafo 266: " da mesma maneira que se efetua a passagem da esfera do Ser esfera do Conceito na Cincia da Lgica ..."(19). Nesta obra de Hegel, porm, o Ser no d lugar diretamente ao Conceito: sua passagem intermediada pela Essncia. O jovem Marx elimina, sem mais, essa intermediao por repudiar a tese de um trnsito real para o Conceito, o Estado. Marx, assim, concebe a realidade a partir de uma crtica a Hegel e, uma vez mais, interpreta criticamen-

    -

    18. Cf. Critique de /'tat Hgliell, cit., p. 311. 19. Id., ibid., pp. 64-5.

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  • te Hegel a partir dessa realidade contrafeita por ele. Curiosamente, Umberto Cerroni vai se basear exatamente nessa argumenta-

    o equivocada do jovem Marx para sustentar a crtica deste ao problema do antagonismo entre particular e universal, isto , para a questo da racionalidade do sistema sociopoltico hegeliano enformado pela integrao dessas duas esferas(20). Privilegiando o particular, o autor italiano acaba por reinterpretar o mtodo dialtico de costas para o legado hegeliano.

    A METODOLOGIA MARXIANA EM 1943

    Se no plano lgico-ontolgico o jovem Marx introduz a diversidade das pro-posies feuerbachianas, no de estranhar que no plano metodolgico encontre a categoria da particularidade na base do processo de conhecimento e refute, uma vez mais, a dialtica hegeliana. Marx critica Hegel por este pretender dedu-zir a natureza inteira de uma Idia geral, e as diferenas concretas (as realidades particulares) de seus predicados abstratos; por Hegel partir, portanto, do predica-do para chegar ao sujeito do juzo, ao "ser real" como quer Marx:

    "No seu pensamento que se desenvolve a partir do objeto, o objeto que se desenvolve a partir de um pensamento que existe inteiramente pronto e acabado em si mesmo na esfera abstrata da Lgica. No se trata de desenvolver a idia determinada da Constituio poltica, mas de colocar a Constituio poltica em relao com a Idia abstrata, de apresent-Ia como uma etapa da biografia da Idia, o que uma mistificao evidente"(21).

    Ao partir da significao geral para produzir a diversidade dos seres emp-ricos reais como um resultado necessrio, o mtodo hegeliano faria crer misticamente que o real j se realizara. A inteno conservadora, apologtica do status quo desmascarava-se mais uma vez: ela, como afirmavam os jovens-hegelianos, idealizava o real existente, fazendo-o parecer racional, para no objetivar o ideal de alcanar uma realidade poltica racional, diferente da prussiana(22):

    "Hegel autonomiza os predicados, os objetos (Objekte), mas auto-nomiza-os separando-os de seus sujeitos, da sua verdadeira autonomia. O sujeito real aparece como seu resultado, quando mister partir do sujeito real e estudar sua objetivao"(23).

    20. Umberto Cerroni, Marx e il Diritto Moderno (Roma, Ed. Riuniti, 1972), p. 118. 21. Karl Marx, op. cit., p. 73. 22. Para Marx, entretanto, o objeto "idealizado" na Filosofia do Direito no era propriamente o sofrvel Estado prussiano, mas sim o Estado moderno. 23. Karl Marx, op. cit., p. 94.

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  • Partir do sujeito real e estudar sua objetivao , como incisivamente assegura Kostas Papaioannou, o princpio fundamental da metodologia do jovem Marx, enunciado pela primeira vez em 1843. Esse princpio surge como contrapartida polmica metodologia da dialtica idealista que queria, segundo Marx, partir do predicado, do objeto, para s ento chegar ao sujeito.

    Mas convm esclarecer: o sujeito real aqui, tal como em Peuerbach, a coi-sa finita, o ser particular determinado; e a objetivao a manifestao da determinao predicativa suposta no ser determinado. Conhecer algo , portanto, expor sua determinao prpria, a significao especfica encerrada, inscrita, no limite da coisa estudada. Ou, como diz a passagem citada anteriormente: "desenvolver a idia determinada da Constituio poltica". Nada disso parecido com o que Hegel fazia ao diferenciar a coisa a partir de uma categoria adrede separada dela (um crculo vicioso), como se a coisa fosse um momento do conceito geral:

    "Mas esta compreenso no consiste, tal como Hegel a pensa, em redescobrir por toda parte as determinaes do Conceito lgico, mas em apreender a lgica especfica do objeto em sua especificidade"(24).

    Podemos agora ampliar a concisa sentena de nosso tradutor; o princpio fundamental da metodologia do jovem Marx consiste em partir da coisa finita para revelar nela a sua lgica especfica, ou, como gostava de dizer Marx, a l-gica de sua differentia specifica. Conhecer revelar a diferena conceitual do sujeito particular real e no a identidade pressuposta nas diferenas deduzidas do conceito geral. O conceito, o objeto, o significado dos sujeitos concretos, no aquilo que os aproxima, mas o que os diferencia; tal qual no Iluminismo precedente identificar diferenar, iluminar para distinguir.

    evidente que Marx pretende assim contrapor a "lgica especfica" do cha-mado "entendimento" lgica geral da "razo especulativa". No colher o con-tedo pronto nos arcanos da lgica, mas a lgica do e no contedo do fato determinado. Colher um saber exclusivamente existente naquele objeto depois de estud-lo particularmente.

    Trata-se portanto: 1) da proposta de um conhecimento ex post factum, procurado no fundo do acontecimento poltico-social determinado, e 2) de uma acusao de apriorismo ao mtodo da teoria hegeliana do Estado: uma tese e uma crtica num nico preceito.

    Nesse rumo, todavia, a "nova" metodologia aparentemente no se afastava ainda, salvo em sua incisiva coragem e em sua decidida aplicao poltica, dos princpios defendidos por Peuerbach, o qual, como vimos, em sua precursora opo pelo "entendimento" (que Hegel quisera superar pela "reflexo abstrata"), j havia ensinado: "o ser to diverso como as coisas. O ser uno com a coisa que "25 [o ser aqui o contedo significativo de cada coisa]. O ser , portanto, especfico da coisa e, para o conhecer, no possvel deduzi-lo de uma idia geral prvia, nem de um sistema anterior: cada planeta tem seu prprio sol (...),

    24. Id., ibid., p. 230. 25. Ludwig Feuerbach, op. cit., p. 32.

    100

  • espelho de sua prpria essncia"(26). Bem observado, todavia, talvez j se possa detectar no princpio da nova

    metodologia do jovem Marx algo de subliminar que o ultrapassa, de verdadeiramente novo, mas paradoxalmente decorrente de uma certa contaminao doutrinria, de que Feuerbach, mais cuidadoso, soube preservar-se e... privar-se. Cremos at que nessa impreciso conceitual, to caracterstica das novas teorias potencialmente criadoras, se possa encontrar, para gudio de alguns exegetas desse livro, a promessa metodolgica da obra madura.

    Supomos que Marx, para estudar o que chamara de "objetivao do sujeito" (a explicitao da lgica especfica do objeto), admita, por mais que se proteste contra, uma afinidade entre a natureza de seu "objeto especfico" e a do Conceito hegeliano. A lgica suposta no objeto, assim como as determinaes do Conceito lgico, sugerem que haver um encadeamento de significaes sucessivas na objetivao do sujeito, semelhante ao descrito na diferenciao dialtica do Conceito segundo as "detestveis" mediaes autodesenvolvidas de Hegel. Assim, a busca do objeto pelo desenvolvimento de sua "lgica especfica" contraria sobretudo a regra da "apreenso imediata" do sujeito-objeto dado. Nesse ponto, o procedimento racionalista insinua-se na nova metodologia jurada empirista, denotando em Marx a influncia simultnea de dois pontos de vista divergentes; o que toma patente sua dificuldade de restringir-se intuio sensorial direta. Era difcil para ele admitir, como propunha Feuerbach, que "no somente o exterior, mas tambm o interior" objeto dos sentidos. Difcil prescindir, para investigar o "interior", a "essncia da coisa" do uso da reflexo racional abstrata, das mediaes lgicas dialticas. Por a, na colheita da lgica especfica do objeto, a "inferncia mediata" insinua-se por artes subliminares do jovem Marx, na inocente contemplao sensual de Feuerbach, tal qual a serpente razo no Jardim do den, da feliz comparao de Ernst Bloch.

    De fato, a differentia specifica. ao conter uma lgica especfica intrnseca, parece possuir em si a autodeterminao, caracterstica das universalidades conceituais opostas s realidades particulares determinadas de fora, por outras, ou mesmo pelo prprio observador emprico, que recorta o objeto, e, por isso, determina-o segundo o seu ponto de vista exterior.

    Verifica-se assim que a inovao metodolgica de 1843 decorre, de um lado, da confiante aplicao dos conceitos feuerbachianos poltica e, de outro, se houver, de uma inconfidncia doutrinria involuntria, de um racionalismo hegeliano latente, prenhe, entretanto, de surpreendentes desdobramentos futuros que iro se manifestar pela primeira vez, com deciso, nas Teses sobre Feuerbach de 1845.

    26. Id., ibid., pp. 61-2.

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