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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO FACE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA OFENSIVIDADE FRANCISLAINE ROSA CHAGAS FRANCISCO DECLARAÇÃO “DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”. ITAJAÍ (SC), 08 de novembro de 2010. ___________________________________________ Professor Orientador: MSc. Rogério Ristow UNIVALI – Campus Itajaí-SC

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO FACE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA

OFENSIVIDADE

FRANCISLAINE ROSA CHAGAS FRANCISCO

DECLARAÇÃO

“DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”.

ITAJAÍ (SC), 08 de novembro de 2010.

___________________________________________ Professor Orientador: MSc. Rogério Ristow

UNIVALI – Campus Itajaí-SC

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO FACE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA

OFENSIVIDADE

FRANCISLAINE ROSA CHAGAS FRANCISCO

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel

em Direito. Orientador: Professor MSc. Rogério Ristow

Itajaí (SC), novembro de 2010

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AGRADECIMENTO

A Deus, pelo meu primeiro suspiro, e por todo o decorrer que seguirá a minha vida. Ao mestre e orientador que dispôs toda a atenção, cuidado e perfeição na correção da presente pesquisa. Àqueles que concederam infinita compreensão neste momento tão importante da minha ascensão profissional. Dispenso todo o meu agradecimento, consideração e carinho. Obrigada.

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DEDICATÓRIA

Dedico esta pesquisa ao Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Deus forte e fiel. Ao meu professor orientador que muito me ensinou. Aos professores que, com um profissionalismo incomparável, ampliaram a visão de seus acadêmicos, neles incorporando atitude responsável e solidária, comprometida com o meio social. À minha família que me ofertou a base para uma educação irrepreensível. Ao meu namorado que tem me acompanhado em todos os momentos. Aos meus amigos que caminharam comigo e fazem parte da minha história. Àqueles que porventura serão alcançados com o conteúdo desta produção científica, com os quais espero contribuir de algum modo.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador, de

toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí (SC), novembro de 2010

Francislaine Rosa Chagas Francisco Graduanda

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do

Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Francislaine Rosa Chagas Francisco,

sob o título A Presunção nos Crimes de Perigo Abstrato Face ao Princípio

Constitucional da Ofensividade, foi submetida em 23 de novembro de 2010, à banca

examinadora composta pelos seguintes professores: MSc. Rogério Ristow,

Orientador e Presidente da Banca, e MSc. Pollyanna Maria da Silva, Examinadora

da Banca, e aprovada com a nota ___ (__________).

Itajaí (SC), novembro de 2010

Professor MSc. Rogério Ristow

Orientador e Presidente da Banca

Professor MSc. Antônio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

Bem Jurídico

“[...] valores ético sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz

social, e coloca sob sua proteção para que não seja expostos a perigo de ataque ou

a lesões efetivas [...].”1

Constituição

“[...] lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à

estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e

aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e

deveres dos cidadãos.”2

Crime

“[...] ação ou omissão humana, consciente e voluntária, ilícita e que se amolda

perfeitamente aos elementos constantes do modelo previsto na lei penal.”3

Crime de Dano

“Há dano ou lesão quando a relação de disponibilidade entre o sujeito e o ente foi

realmente afetada, isto é, quando, efetivamente, impediu-se a disposição, seja de

forma permanente [...] ou transitória.”4

Crime de Perigo

“[...] é a probabilidade de dano. É o dano em potencial [...].”5

1 TOLEDO, Francisco de Assis apud SILVA, Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da. O genocídio

como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 185. 2 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 36. 3 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 108. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito penal brasileiro: parte geral. 6.

ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 1 v. p. 481/482. 5 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. 4. ed. Rio de

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Crime de Perigo Abstrato

“[...] o perigo não é elemento do tipo, mas motivo para que o legislador proíba a

conduta presumidamente perigosa [...].”6

Crime de Perigo Concreto

“[...] o resultado naturalístico caracteriza-se com a real situação de aumento das

chances de lesão ao bem jurídico [...].”7

Direito Penal

“[...] pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de

bens jurídicos [...].”8

Estado

"[…] organização político jurídica de uma sociedade para realizar o bem público,

com governo próprio e território determinado."9

Estado Democrático de Direito

“[...] exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas

e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas a os direitos e garantias

fundamentais.”10

Perigo

“[...] aumento das chances da ocorrência de dano. [...] Não se trata de mera

possibilidade, mas da maior probabilidade da ocorrência do resultado lesivo.”11

Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 22.

6 COSTA, José Francisco de Faria apud ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito penal: curso completo: parte geral. p. 212.

7 JAKOBS, Günther apud ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito penal: curso completo: parte geral. p. 212.

8 GOMES, Luiz Flávio apud CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. 1 v. p. 25.

9 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Globo, 2008. p. 22.

10 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 51. 11 HUNGRIA, Nelson apud ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito penal: curso completo: parte

geral. 2. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 677.

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Princípio da Ofensividade

Princípio segundo o qual o Direito Penal “[...] só deve exercer sua função de controle

social quando ocorrer lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos efetivos. Não se

deve acionar o instrumento estatal se a conduta do indivíduo não possuir qualquer

resquício de lesividade [...].”12

Princípios

“[...] verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever

ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e

obrigatoriedade.”13

12 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Introdução ao estudo do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p.

117. 13 PICAZO, Luís Diez apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo:

Malheiros, 2004. p. 256.

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SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................... XI

INTRODUÇÃO .................................................................................. 12

CAPÍTULO 1 ..................................................................................... 15

ASPECTOS DO DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO PENAL ........................................................................... 15

1.1 O ESTADO ..................................................................................................... 15

1.1.1 Considerações gerais ............................................................................... 15 1.1.2 O Estado Democrático de Direito ............................................................ 18

1.2 A CONSTITUIÇÃO ........................................................................................ 20

1.2.1 Conceito de Constituição ......................................................................... 20 1.2.2 Histórico da Constituição ......................................................................... 20 1.2.3 Constituição de 1988 ................................................................................. 21

1.3 SUPREMACIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS .................................... 22

1.4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ................................................................ 24

1.4.1 Considerações sobre princípios .............................................................. 24 1.4.2 Princípios Constitucionais Penais ........................................................... 25 1.4.2.1 Considerações iniciais ......................................................................................25 1.4.2.2 O Princípio da Ofensividade e o Bem Jurídico Tutelado ................................26 1.4.2.2.1 O Bem jurídico tutelado ......................................................................... 26 1.4.2.2.2 O Princípio da Ofensividade .................................................................. 28

CAPÍTULO 2 ..................................................................................... 33

AS CLASSIFICAÇÕES DOS CRIMES NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO .................................................................................... 33

2.1 DO CRIME ..................................................................................................... 33

2.1.1 Do conceito ................................................................................................ 33 2.1.2 Da Imputação Objetiva .............................................................................. 34 2.1.2.1 Do Risco Permitido e Do Risco Não Permitido ................................................35

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2.1.3 Elementos Subjetivos do Crime ............................................................... 37

2.2 DA CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES ............................................................ 39

2.2.1 Do Crime Material ...................................................................................... 40 2.2.2 Do Crime Formal ....................................................................................... 40 2.2.3 Do Crime de Mera Conduta ...................................................................... 42 2.2.4 Do Crime de Dano ..................................................................................... 43 2.2.5 Do Crime de Perigo ................................................................................... 44 2.2.5.1 Do Crime de Perigo Concreto ...........................................................................46 2.2.5.2 Do Crime de Perigo Abstrato ............................................................................47

CAPÍTULO 3 ..................................................................................... 50

A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO FACE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA OFENSIVIDADE ...................... 50

3.1 O ARBÍTRIO DO LEGISLADOR ................................................................... 50

3.2 O DIREITO PENAL DA PREVENÇÃO .......................................................... 52

3.3 O DIREITO PENAL DO INIMIGO .................................................................. 55

3.4 A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO NOS CASOS CONCRETOS ...................................................................................................... 58

3.5 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO ......................................................................................................... 60

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 66

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 71

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objeto a investigação da

constitucionalidade da presunção nos crimes de perigo abstrato face ao princípio

constitucional da ofensividade. Referido tema não é de muita decorrência no cenário

do judiciário, mas as doutrinas já questionam a constitucionalidade dos crimes de

perigo abstrato quando confrontados com alguns princípios constitucionais, como o

princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da presunção da inocência, da

culpabilidade, da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade, e

inclusive, o princípio da ofensividade, além de outros. O objetivo geral é entender a

origem do princípio da ofensividade, explanando-se a origem do Estado e do Estado

Democrático de Direito, a relação entre o Direito Penal e o Direito Constitucional,

cercada numa análise do conceito de crime e suas classificações e subdivisões, a

chegar-se ao crime de perigo abstrato, para então confrontá-lo com o citado

princípio. Os objetivos específicos são buscar a fundamentação doutrinária para a

(in)constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, limitando-se tão somente no

âmbito do princípio da ofensividade, não em atitude de exclusão de outros

princípios, mas por entender que àquele possui ligação iminente aos referidos

crimes, por aludir diretamente à lesão do bem jurídico. Isto porque, para os crimes

de perigo abstrato é desnecessário o dano efetivo, contentando-se com a mera

probabilidade. Quanto à metodologia empregada, registra-se que nas Fases de

Investigação, e do Relatório dos Resultados foi utilizado o Método Indutivo e

acionadas as técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da

Pesquisa Bibliográfica. Observou-se que a fundamentação calcada na necessidade

de um direito penal preventivo, acata a possibilidade da penalização a sujeitos ativos

de crimes de perigo abstrato, enquanto que a sustentação da inconstitucionalidade

dos referidos crimes, refuta a prevenção, bem como qualquer ação estatal que tem

por alicerce a supressão de garantias fundamentais.

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INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto investigar a

constitucionalidade da presunção nos crimes de perigo abstrato face ao princípio

constitucional da ofensividade.

O seu objetivo é contribuir com todo o ordenamento jurídico,

com os operadores do direito e com a sociedade, ao buscar fundamentações

doutrinárias, e inclusive jurisprudenciais sobre o tema proposto.

A escolha do tema se deu em virtude de que, observando a

aplicação da pena decorrente da prática de crimes de perigo abstrato, verifica-se

que existem dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Trata-se, em verdade, de

tema polêmico, diante da existência de controvérsias sobre a previsão e

aplicabilidade de referidos crimes. É um tema atual por levar à investigação um dos

institutos previstos hodiernamente no Direito Penal Brasileiro. É um estudo de

relevância social, pois se a aplicação da pena aos sujeitos ativos de tais crimes fere

um dos preceitos constitucionais, significa que o sistema brasileiro de aplicação de

pena pode ser inconstitucional.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, buscando a origem do

Estado, bem como do Estado Democrático de Direito, traçando aspectos das

constituições brasileiras até a Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Em ato contínuo, verificar-se-á a supremacia das normas constitucionais, para

que se constate o status que foram erigidos aos princípios no nosso ordenamento

jurídico. Assim, estudar-se-á os princípios constitucionais e os princípios

constitucionais penais para então identificar se o princípio da ofensividade é um

princípio constitucional. Ao analisar o princípio da ofensidade, para entender sua

relação com o tema proposto, apurar-se-á o entendimento de bem jurídico.

No Capítulo 2, abordar-se-á o conceito de crime, com seus

elementos, classificações e subdivisões, para que melhor se identifique a essência

dos crimes de perigo abstrato.

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13

No Capítulo 3, por seu turno, debater-se-á a presunção nos

crimes de perigo abstrato face ao princípio constitucional da ofensividade, traçando

exposições acerca da atividade inicial do legislador no âmbito penal, a

fundamentação da constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato alicerçada na

necessidade da prevenção e a sustentação da inconstitucionalidade dos mesmos

crimes baseada na supressão de garantias fundamentais.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos sobre a

constitucionalidade da presunção nos crimes de perigo abstrato.

Para impulsionar a pesquisa formulou-se o seguinte problema:

a presunção nos crimes de perigo viola o princípio da ofensividade?

Como hipótese inicial tem-se que a presunção de perigo viola o

princípio da ofensividade, e sendo este um princípio constitucional, a previsão de

crimes de perigo abstrato apresenta-se como inconstitucional.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de

Investigação14 foi utilizado o Método Indutivo15, na Fase de Tratamento de Dados o

Método Cartesiano16, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente

Monografia é composto na base lógica Indutiva.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas

do Referente17, da Categoria18, do Conceito Operacional19 e da Pesquisa

Bibliográfica20.

14 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente

estabelecido [...]. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11 ed. Florianópolis: Conceito Editorial; Millennium Editora, 2008. p. 83.

15 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 86.

16 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22/26.

17 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.”

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14

Todas as fontes citadas no Relatório de Pesquisa serão

arroladas ao final do trabalho, obedecendo à forma metodológica.

PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 54.

18 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 25.

19 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 37.

20 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 209.

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CAPÍTULO 1

ASPECTOS DO DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO PENAL

Neste capítulo tratar-se-á da origem do Estado, bem como do

Estado Democrático de Direito, traçando aspectos das constituições brasileiras até a

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a fim de verificar a relação

dos preceitos do Direito Penal ao Direito Constitucional, para que então se possa

identificar a importância do princípio da ofensividade ao tema proposto.

Ao tratar do princípio da ofensividade, buscar-se-á a

conceituação de bem jurídico tutelado, pois só assim ter-se-á uma melhor

compreensão sobre a finalidade do referido princípio.

1.1 O ESTADO

1.1.1 Considerações gerais

Impossível falar em qualquer instituto do direito, sem antes

compreender a origem do Estado, e o que vem a ser o Estado.

Hodiernamente, o Estado se põe de modo diverso que em

tempos remotos.

Conforme explica PAULO BONAVIDES21, num primeiro

momento, a idéia de Estado expressava-se pelo conceito que se tinha da polis dos

gregos, ou a civitas ou a respublica dos romanos. Posteriormente, no Império

Romano, o Estado se exprime pela idéia de disposição de domínio e de poder. Já na

Idade Média, o conceito de Estado expressa o juízo de território.

21 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 73.

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16

Seguindo ainda os ensinamentos de PAULO BONAVIDES22, o

conceito de Estado pode caracterizar-se pelas acepções filosófica, jurídica e

sociológica. Contudo, de maior relevância à presente pesquisa, é o conceito de

Estado na acepção jurídica. Neste âmbito, é possível verificar uma aglutinação entre

o entendimento de Del Vechio e Bordeau, em que o Estado não deve ser visto como

sinônimo de Sociedade, pois aquele é a espécie do gênero desta. O Estado também

não é um homem, mas uma instituição. Deve ser um poder independente da pessoa

dos governantes.

Para PAULO MÁRCIO CRUZ23, o conceito jurídico de Estado

torna-se genérico pelo fato de ser definido em diversas situações históricas

diferentes, em ordenamentos jurídicos variados. Contudo, considera que pode ser

definido como aquele composto por um elemento físico e fixo (território), bem como

de pessoas, na acepção jurídica, dotado de um poder soberano e de um

ordenamento jurídico próprio.

FRIEDERICH ENGELS24 apresenta, na sua concepção, as três

formas principais de como foi construído o Estado sobre as ruínas da gens.

Considera que em Atenas, o Estado nasceu da forma mais pura e clássica, pois

nasceu e se fundou a partir das incompatibilidades de classes que surgiam na

sociedade gentílica.

Em Roma, por sua vez, o Estado nasce dos escombros da

antiga gens, destruída pela vitória da plebe, após a conversão da sociedade

gentílica em aristocracia fechada, fato que impediu o discernimento entre a

aristocracia gentílica e a plebe.25

Entre os germanos, o Estado emerge através da conquista de

territórios estrangeiros que o regime gentílico não conseguia dominar, porém, ainda

que de forma modificada, a gens manteve-se por muitos séculos, pois não houve

22 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. p. 74. 23 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 42. 24 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Tradutor: Ciro

Mioranza. 2. ed. São Paulo: Escala, 2005. p. 121/132. 25 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. p. 133/143.

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17

uma divisão de trabalho concentrada, nem tampouco grande diferença no

desenvolvimento econômico entre os vencidos e os vencedores.26

FRIEDERICH ENGELS27 traz seu conceito próprio de Estado,

conforme segue:

O Estado não é, portanto, de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é "a realidade da idéia ética", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, é o Estado.

Neste sentido, o Estado, que surge da própria sociedade vem a

ser o equilíbrio das suas relações. O Estado é parte da sociedade, mas se põe numa

situação superior a esta para mantê-la organizada.

Para FRIEDERICH ENGELS28, o Estado antigo se resumiu

num Estado dos senhores de escravos para manter os escravos dominados; o

Estado feudal se consubstanciou no poder da nobreza que manteve submissos os

servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo deriva-se do

capitalismo, havendo exploração do trabalho assalariado.

Quanto à república democrática, FRIEDERICH ENGELS29

considera que é a mais elevada das formas de Estado, sendo a única que não mais

reconhece de forma manifesta as diferenças de posses e de classes econômicas.

26 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. p. 160/171. 27 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. p. 184. 28 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. p. 186. 29 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. p. 187.

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18

1.1.2 O Estado Democrático de Direito

Para chegar-se a uma compreensão sobre o Estado

Democrático de Direito, é importante conhecer o que vem a ser o Estado de Direito.

HABERMAS JURGEN30 traz que:

[...] A idéia do Estado de direito exige em contrapartida uma organização do poder público que obriga o poder político, constituído conforme o direito, a se legitimar, por seu turno, pelo direito legitimamente instituído. [...].

O Estado de Direito deveria se apresentar como um Estado em

que a lei se presta como expressão da vontade geral, com divisão dos poderes

legislativo, executivo e judiciário. Ainda, deveria haver legalidade da administração,

em que a atuação se realizasse de acordo com a lei, apresentando controle judicial,

bem como efetiva realização material das garantias dos direitos e liberdades

fundamentais. É um Estado que surge após a Revolução Gloriosa Inglesa de 1688,

a Revolução de Independência Norte-Americana de 1776, e a Revolução Francesa

de 1789.31

As constituições norte americana de 1787 e a francesa de 1791

marcaram o início do Estado Constitucional de Direito, que é a essência do próprio

Estado de Direito e vem a ser um Estado limitado pela Constituição. Assim, o poder

soberano deve se ater ao Direito, aos preceitos expressos na Constituição.32

Em relação à democracia, ARISTÓTELES33 afirma haver várias

espécies de democracia, as quais são adequadas a determinadas cidades.

30 JURGEN, Habermas. Direito e democracia, entre a facticidade e validade. Tradutor: Flávio

Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1. p. 212. 31 CONCEIÇÃO JUNIOR, Hermes Siedler da A jurisdição constitucional, a liberdade de conformação

do legislador e a questão da legitimidade. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br. Acesso em: 02/02/2010.

32 CONCEIÇÃO JUNIOR, Hermes Siedler da. A jurisdição constitucional, a liberdade de conformação do legislador e a questão da legitimidade. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br. Acesso em: 02/02/2010.

33 ARISTÓTELES. Política. Tradutor: Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 216.

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HANS KELSEN34 assevera que na realidade política não há

nenhum Estado completamente democrático, mas, para que um Estado seja

democrático, deve prevalecer o princípio democrático na sua organização.

LUÍS ROBERTO BARROSO35 considera que a idéia de Estado

Democrático de Direito é síntese da composição dos conceitos de constitucionalismo

e de democracia, diferentes entre si. Deste modo, compreende a limitação do poder

e supremacia da lei, bem como soberania popular e governo da maioria.

A definição de ALEXANDRE DE MORAIS36 é de que:

O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas a os direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo, adotou, igualmente, no seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Disto, depreende-se que a democracia é um regime político

fundado na soberania popular.

É possível identificar várias espécies de democracia, contudo,

conforme ensina NORBERTO BOBBIO37, a democracia moderna, constitui-se como

representativa, que é a única forma de democracia existente e em funcionamento.

Deste modo, as deliberações referentes à coletividade são exercidas pelo

representante, o qual foi eleito pelo povo para atender tal fim.

34 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradutor: Luís Carlos Borges. São Paulo:

Martins Fontes, 2000. p. 407. 35 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, os conceitos

fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 87/88. 36 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 51. 37 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia, uma defesa das regras do jogo. Tradutor: Marco

Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 26/44.

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1.2 A CONSTITUIÇÃO

1.2.1 Conceito de Constituição

Inicialmente, é de grande importância abordar o conceito de

constituição.

Para o presente estudo, a relevância encontra-se tão somente

na acepção jurídica de constituição.

ALEXANDRE DE MORAIS38 traz o entendimento jurídico de

constituição, que, conforme ensina:

[...] deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos.

Desta forma, a constituição é a lei máxima de um Estado,

configurando um conjunto de normas de organização política que, inclusive, dispõe

os direitos e deveres dos cidadãos.

1.2.2 Histórico da Constituição

Conforme já exposto, a primeira constituição escrita foi a

constituição norte americana de 1787.

No Brasil, a primeira constituição surgiu após a declaração da

independência. Foi outorgada a Constituição Política do Império do Brasil no ano de

1824. A Forma de Estado era Unitária e o de Governo era a Monarquia, pois vigia o

Poder Moderador39

Na fase republicana, após a eleição da Assembléia

Constituinte, foi promulgada a primeira Constituição da República do Brasil em 1891,

38 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 36. 39 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 51.

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que vigorou até 1930. Adotou como forma de governo a República Federativa, fase

em que o Poder Moderador deixa de existir.40

Com o advento da Revolução de 1930, surge o Governo

Provisório da República, por Getúlio Vargas, que se prolongou até a promulgação da

Constituição de 1934. Após o “golpe ditatorial”, Getúlio Vargas outorga a

Constituição de 1937. Uma de suas características era a ditadura civil.41

Antes da Constituição de 1988, após a Segunda Guerra

Mundial, o Brasil ainda contou com a Constituição de 1946, a qual foi promulgada

num processo de redemocratização do país. Neste período instalou-se a Assembléia

Constituinte. Após, adveio a Constituição de 1967, depois do golpe militar de 1964.

Esta, promulgada em 24/01/67, quando assumia a presidência o Marechal Arthur da

Costa e Silva, sofreu grande influência da Carta Política de 1937.42

1.2.3 Constituição de 1988

No dia 05 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição

da República Federativa do Brasil, noutro processo de redemocratização. Esta,

contudo, democrática e liberal.43

Segundo PAULO BONAVIDES44, embora existam

controvérsias, a Constituição de 1988, “[...] foi a melhor das Constituições brasileiras

de todas as nossas épocas constitucionais.” Foi através dela que houve o retorno da

democracia.

Diante de todo o já exposto, percebe-se que foi através da

Constituição de 1988 que houve o retorno da autonomia dos entes federados e que

houve ampliação e fortalecimento dos direitos fundamentais individuais.

40 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros, 2006. p. 78/80. 41 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. p. 61/64. 42 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 86/87. 43 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. p. 79. 44 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito

constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 204.

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Sobre os direitos fundamentais, HABERMAS JURGEN45 afirma

que estes “[...] são constitutivos para toda associação de membros jurídicos livres e

iguais; nesses direitos reflete-se a socialização horizontal dos civis, quase in statu

nascendi.”

ROBERT ALEXY46 considera que:

Há duas construções principais dos direitos fundamentais: uma é estreita e estrita (narrow and strict), a outra ampla e extensa (broad and comprehensive). A primeira pode ser denominada construção de regra, a segunda construção de princípio. Essas duas construções não se realizam em nenhum lugar de forma pura, mas elas representam distintas tendências, e a questão de qual delas é melhor é uma questão central da interpretação de qualquer Constituição que preveja controle de constitucionalidade.

Dessas construções, se faz importante destacar as tendências

principiológicas, sobre as quais se fundam a nossa pesquisa.

1.3 SUPREMACIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

Sabe-se que a Constituição é a lei máxima do país. Todas as

leis devem estar em consonância com a Constituição sob pena de

inconstitucionalidade.

PAULO BONAVIDES47 ensina que da ciência das constituições

desenvolvida nos Estados Unidos ecoou a consideração de que não se presume a

inconstitucionalidade, mas sim, a constitucionalidade. Assim, para que uma lei

formal seja considerada inaplicável, necessário é que se faça prova inequívoca da

inconstitucionalidade insanável.

Não muito distante deste ensinamento, ALEXANDRE DE

MORAIS48 apregoa que:

45 JURGEN, Habermas. Direito e democracia, entre a facticidade e validade. p. 169. 46 ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. Tradutora: Menelick de

Carvalho Netto. Ratio júris. n. 2. Junho de 2003. 16 v. p. 131-140. 47 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa, por um direito

constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. p. 247/248.

48 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 45.

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A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico.

De tal modo, a interpretação das leis devem se alocar aos

preceitos constitucionais de forma a ser aplicada sem indícios de

inconstitucionalidade.

ALEXANDRE DE MORAIS49 ainda ressalta que:

[...] o estabelecimento de constituições escritas está diretamente ligado à edição de declarações de direitos do homem. Com a finalidade de estabelecimento de limites ao poder político, ocorrendo a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário.

Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal50 manifestou-se

no sentido de que:

Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

49 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 58. 50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto.

Relator: Ministro Celso de Mello. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília, RTJ 173/805-810. MS 23.452. DJ 12/05/2000. Disponível em: http://www.stf.gov.br. Acesso em: 02/02/2010.

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Decorrente da democracia, o poder que é conferido ao

representante do povo sofre limitações. Essas limitações decorrem, inclusive, da

previsão dos direitos e garantias individuais e coletivas. Há uma limitação do

cidadão com relação aos demais cidadãos, e do poder estatal com os cidadãos.51

Mesmo que os direitos e garantias individuais não tenham

caráter absoluto, fato é que qualquer questão jurídica deve respeitar os termos da

Constituição.

Assim, também, o Estado se vê limitado referente ao seu poder

estatal de punir, pois a Constituição oferece garantias e traz princípios que

subordinam todo o ordenamento jurídico. Portanto, inclusive o Direito Penal vincula-

se ao Direito Constitucional.

De tal forma, fica a lei penal subordinada à Constituição, bem

como aos seus princípios, os quais servem de equilíbrio e limite às ações do Estado.

1.4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

1.4.1 Considerações sobre princípios

JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO52 ensina que princípios

e regras não são sinônimos, mas ambas decorrem de normas. Estas são aptas a

vincularem juridicamente as decisões. Neste sentido, regras são normas. Princípios

também são normas.

LUÍS DIEZ PICAZO53 traz uma importante consideração sobre

os princípios, afirmando que “[...] os princípios são verdades objetivas, nem sempre

pertencentes ao mundo do ser, senão do dever ser, na qualidade de normas

jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade.”

51 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 58. 52 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed.

Coimbra: Almedina, 2003. p. 1160. 53 PICAZO, Luís Diez apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 256.

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A Constituição estabelece valores expressos e implícitos,

implicando ao dever de que tais valores sejam observados.

Esses valores são os princípios, os quais abrangem todo o

ordenamento jurídico, submetendo, portanto, ao Direito Penal.

1.4.2 Princípios Constitucionais Penais

1.4.2.1 Considerações iniciais

Os princípios de direito penal estão fundamentados na

Constituição Federal, podendo tanto estar expressos na Carta Magna, quanto

estarem implícitos, carecendo de uma maior dedicação interpretativa.

FRANCESCO C. PALAZZO54 divide os princípios e traz as

divergências entre os princípios constitucionais de direito penal constitucional e

princípios pertinentes à matéria penal.

Segundo CLÁUDIO DO PRADO AMARAL55, os princípios

constitucionais de direito penal trazem em sua essência elementos próprios do

sistema penal, enquanto que os princípios pertinentes à matéria penal não são

próprios do sistema penal, mas a todo o ordenamento jurídico, porém, sendo

aplicáveis, inclusive, no Direito Penal.

Partindo deste ponto, existem vários princípios constitucionais

gerais e penais que poderiam orientar a presente pesquisa, a iniciar-se pelo princípio

da dignidade da pessoa humana, até aos princípios da presunção da inocência, da

culpabilidade, da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade, da

ofensividade, e outros.

Diz-se do princípio da dignidade da pessoa humana porque,

tratando-se de um princípio geral do direito, encontra fundamento no Estado

54 PALAZZO, Francesco C. apud AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais - da legalidade à

culpabilidade. São Paulo: IBCCRIM, 2003. p. 77. 55 AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais - da legalidade à culpabilidade. p. 33.

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Democrático de Direito, e é dele que decorrem os demais princípios específicos do

Direito Penal.56

Insta salientar o princípio da presunção de inocência, pois que,

não só no âmbito processual penal, tal princípio também se projeta no direito penal,

de forma que impede a responsabilização do acusado com base em fatos

presumidos. Limita a norma penal de forma que ninguém seja punido por

presunções, mas por fatos reais.57

Assim, as atividades estatais, principalmente no que tange à

repressão criminal, são limitadas pelas garantias fundamentais, levando-se em conta

a máxima da dignidade da pessoa humana.

Pelo fato de que o acusado é constitucionalmente presumido

inocente, presumir o contrário é retornar ao total arbítrio estatal, ignorando as suas

limitações.58

Assim, a essência do princípio da presunção de inocência

advém dos preceitos do Estado Democrático de Direito, que reconhece a liberdade

como um dos bens juridicamente tutelados.

Toda a fundamentação exposta deixa transparecer que as

atividades estatais possuem limite. Principalmente as atividades que estão

diretamente relacionadas aos bens considerados juridicamente tutelados.

Por questão de delimitação de pesquisa, tratar-se-á

destacadamente do princípio da ofensividade, ao se referir à limitação estatal.

1.4.2.2 O Princípio da Ofensividade e o Bem Jurídico Tutelado

1.4.2.2.1 O Bem jurídico tutelado

Impossível trazer as principais considerações sobre o princípio

da ofensividade, sem antes entender o que vem a ser bem jurídico tutelado.

56 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 12. 57 TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral. Arts. 1º ao 120. São Paulo: Atlas, 2004. v.1 p. 91. 58 MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. p. 132.

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LUIZ FLÁVIO GOMES59 considera que “o direito penal [...]

pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de

bens jurídicos [...]”.

Neste mesmo sentido, ROGÉRIO GRECO FILHO60 explica que

a pena vem a ser o instrumento utilizado pelo Estado, na forma de coerção, com o

fim de proteger os bens jurídicos. Não se pode criar qualquer tipo incriminador, pois

deve haver precisão com relação ao bem jurídico que se quer proteger através da

tipificação da conduta.

LUIS GRECO61, ao comentar sobre o conceito dogmático de

bem jurídico, afirma que este é o interesse protegido por determinada norma.

Explicitando, porém, o conceito político-criminal de bem jurídico, o qual interessa à

nossa pesquisa, o mesmo autor define como: “dado necessário para realização

pessoal e para a subsistência de um sistema social”.

Exemplificando, é possível constatar diversos bens jurídicos

tutelados no Código Penal. Entre os mais comuns, é possível citar a vida, na

tipificação do homicídio, a liberdade, na tipificação do cárcere privado, o patrimônio,

na tipificação do roubo, entre outros.

WINFRIED HASSEMER62 considera terrorismo estatal a

incriminação de condutas que não protegem bens jurídicos.

Assim, o bem jurídico é o que torna legítima a incriminação, e

limita a intervenção penal. O Direito Penal fica limitado a somente incriminar uma

conduta para proteger bens jurídicos.

59 GOMES, Luiz Flávio apud CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 25. 60 GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Impetrus, 2006. v.1. p. 1. 61 GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – uma introdução ao

debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Julho – agosto de 2004. Ano 12. Obra n. 960. p. 93.

62 HASSEMER, Winfried apud GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. p. 107.

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1.4.2.2.2 O Princípio da Ofensividade

É possível encontrar na doutrina as seguintes nomenclaturas:

“princípio da ofensividade”, “princípio da lesividade” e “princípio do fato e da

exclusiva proteção do bem jurídico”. Alguns doutrinadores consideram que citadas

nomenclaturas se referem ao mesmo princípio, outros apontam determinadas

divergências.

Não obstante existam controvérsias, a pesquisa se posicionará

às aludidas terminologias como um só princípio, pois a essência é a mesma.

O princípio da ofensividade não se encontra de maneira

expressa na nossa Constituição, contudo, LUIZ FLÁVIO GOMES63 aduz que este

preceito pode ser extraído, implicitamente, do seu artigo 98, inciso I, que prevê a

competência dos juizados especiais criminais para os crimes de menor potencial

ofensivo. Para ele, aludido dispositivo deixa às claras a necessidade de ofensividade

da conduta.

Relacionando o princípio da ofensividade com o tema proposto,

verifica-se que crime não é somente o que o legislador afirma ser, pois, se uma

determinada conduta não coloca em perigo valores fundamentais da sociedade, não

pode ser considerada criminosa.64

Neste âmbito, a conduta deve oferecer um perigo real, efetivo,

concreto, ou seja, uma efetiva lesão ao bem juridicamente tutelado. Isto limita o

poder punitivo do Estado, pois restringe a proibição penal sem uma ofensa aos bens

juridicamente tutelados.65

Conforme a lição de CLAUS ROXIN66 “só pode ser castigado

aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é

simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral [...]”

63 GOMES, Luiz Flávio. A constituição federal e os crimes de perigo abstrato. Disponível em:

http://www.lfg.com.br. Acesso em: 08/10/2010. 64 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 13/14. 65 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 25/26. 66 ROXIN, Claus apud BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de

Janeiro: Revan, 2007. p. 91.

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FERNANDO CAPEZ67, ao lecionar sobre o princípio da

ofensividade, traz a seguinte consideração: “Delineando-se em termos precisos, a

noção de bem jurídico poderá exercer papel fundamental como mecanismo

garantidor e limitador dos abusos repressivos do Poder Público.”

Assim, considera que só se justifica a intervenção do Direito

Penal quando a conduta coloque em concreto e efetivo perigo um bem jurídico

tutelado68.

A doutrina traz o fundamento constitucional do princípio da

ofensividade nos preceitos do Estado Democrático de Direito.

Segundo FÁBIO ROBERTO D’AVILA69 o ordenamento jurídico

tem como objeto a tutela dos bens jurídicos a fim de organizar e pacificar a

sociedade, com base no princípio do Estado de Direito. Deste decorre o princípio

constitucional da garantia, o qual impõe que a norma incriminadora deve representar

ofensa ao bem jurídico, que se põe como carente de tutela estatal. Da mesma

forma, deriva o princípio constitucional impositivo, o qual representa a intervenção

penal necessária, que se funda na tutela de bens reconhecidos pelo Direito Penal.

No mesmo sentido, LUIZ FLÁVIO GOMES70 instrui:

Em um Estado Constitucional que se define, com efeito, como democrático e de Direito, e que tem nos direitos fundamentais seu eixo principal, não resta dúvida que só resulta legitimada a tarefa de criminalização primária se recai sobre condutas ou ataques concretamente ofensivos a um bem jurídico, e mesmo assim não todos os ataques, senão unicamente os mais graves (fragmentariedade).

CÉSAR ROBERTO BITENCOURT71 ao comentar sobre o

crime tipificado no Art. 359-D do Código Penal (ordenação de despesa não

67 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 26. 68 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 26. 69 D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios - contributo à compreensão

do crime como ofensa ao bem jurídico. Boletim da Faculdade de Direito Stvdia Ivridica 85. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 65/66.

70 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal - série as ciências criminais no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 6 v. p. 89.

71 BITENCOURT, César Roberto. Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 713.

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autorizada), explica que enquanto não há cumprimento da ordem, não existe

lesividade ao patrimônio público, que é o bem jurídico tutelado, e em não havendo

lesividade, não há que se falar em crime.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina72, defendendo o

entendimento de que se a conduta tipificada não oferece qualquer lesão, ou ao

menos perigo concreto ao bem jurídico tutelado, se impõe a desconsideração da

conduta como criminosa, decidiu pela absolvição do réu, acusado de prática de

delito ambiental, conforme segue:

APELAÇÃO CRIMINAL - DELITO AMBIENTAL - PESCA EM LOCAL PROIBIDO - LEI N. 9.605/98, ART. 34. RÉU QUE NÃO LOGROU ÊXITO NO APANHO DE PEIXES - ATIVIDADE AMADORA, MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE "LINHAS DE MÃO" - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INVIABILIDADE - BEM JURÍDICO RELEVANTE - AUSÊNCIA DE LESIVIDADE AO REFERIDO BEM - PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE - APLICABILIDADE - ABSOLVIÇÃO EX OFFICIO. Nos delitos de perigo abstrato, como o é a pesca em local interditado, e, em regra, os demais crimes ambientais, o objetivo da norma é impedir condutas que possam futuramente produzir efetivo dano ao mesmo bem jurídico abstratamente tutelado ou a outro de intensidade maior, e seria desarrazoado reconhecê-los como insignificantes, pois a violação penal encontra-se na mera intenção de prejudicar o ambiente, situação que enfraquece a sociedade no seu ideal de prevenção. Diferentemente do princípio da insignificância, que tem seu foco direcionado precipuamente ao bem jurídico, reputando-se insignificante a conduta que lesiona objeto de somenos relevância, o princípio da ofensividade incide na própria conduta, que, malgrado a existência de bem jurídico destacado, não lhe é capaz de causar agressão expressiva. Cuida-se de princípio cujo objetivo assemelha-se ao encontrado no postulado da insignificância: limitar a coerção estatal àqueles delitos que efetivamente merecem tal repressão, priorizando o direito de liberdade e as formas administrativas de prevenção do ilícito. Assim, de acordo com esse princípio, não se pode considerar crime a prática de conduta que não ofereça qualquer lesão, ou ao menos perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Desse modo, a realização de pesca em local proibido, de forma totalmente armadora, com "linhas de mão", dissociada de pretensão danosa, e sem lograr êxito na retirada de qualquer ser vivo integrante da fauna aquática, caracteriza conduta desprovida de lesão ao meio ambiente, bem jurídico tutelado nesta espécie de delito, e enseja a absolvição do réu por observância ao princípio da ofensividade.

72 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Criminal n. 2007.048591-7, de Itá. Relator:

Salete Silva Sommariva. Órgão Julgador: Segunda Câmara Criminal. Data: 04/08/2008. Disponível em: http://www.tj.sc.gov.br. Acesso em: 02/02/2010.

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É possível colher da jurisprudência supra que, o Tribunal

decidiu pela absolvição do réu ante o fato de que este não executou a conduta

conforme descreve o Art. 34 da Lei 9.605/98, ou seja, não concluiu a pesca proibida,

não lesionando, nem mesmo causando risco de lesão ao meio ambiente.

NILO BATISTA73, ao tratar do princípio da lesividade enumera

quatro funções para o princípio, como sendo: 1) proibir a incriminação de uma

atitude interna, ou seja, o Direito Penal não deve se ater apenas às vontades, pois

estas devem estar acompanhadas de uma ação; 2) proibir a incriminação de uma

conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, entendendo-se como tal, que o

Direito Penal não deve ocupar-se da auto lesão, e se os atos preparatórios por si só

não constituir um crime, se não iniciada a execução, não deve haver punição; 3)

proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais, logo, o Direito

Penal não está para punir o acusado pelo o que ele é, ou pelo seu estado ou

condição, mas está para punir a conduta do acusado, aquela considerada típica,

antijurídica, e penalmente culpável; 4) proibir a incriminação de condutas desviadas

que não afetem qualquer bem jurídico.

Esta quarta função nos parece ser mais precisa à presente

pesquisa. Isto porque oferece uma limitação legal da intervenção penal, de modo a

compreender que se não há lesividade efetiva ou perigo concreto de lesão ao bem

jurídico tutelado, não deveria haver punição para a conduta.

De tal forma, segundo ROGÉRIO GRECO74, tais funções

explicitam quais condutas não podem ser incriminadas.

FRANCISCO MUNOZ CONDE75, ao tratar do Projeto de

Código Penal espanhol de 1994, em relação à criminalização, entende que para

criar algum novo tipo penal, é necessário identificar um bem jurídico determinado e a

tipificação clara do comportamento que afete o bem jurídico, de forma que “[...]

permita a incriminação penal somente de comportamento doloso ou,

73 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. p. 92/93. 74 GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. p. 14. 75 CONDE, Francisco Munoz apud BITENCOURT, César Roberto. Código penal comentado. p. 14.

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excepcionalmente, modalidade culposa que lesione efetivamente ou, pelo menos,

coloque em perigo concreto o bem jurídico previamente identificado.”

Destarte, infere-se do presente capítulo que, a atuação estatal

é limitada, principalmente, pelas garantias fundamentais constitucionais. A atividade

estatal deve operar nos moldes da Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988.

O princípio aqui apresentado, considerado constitucional, limita

de certa forma, tanto a tipificação de condutas, quanto a penalização praticada pelo

Estado.

Igualmente, dessas considerações é possível extrair que se

não há efetiva lesão ou um risco concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, não

deveria haver conduta incriminadora. Em não havendo conduta incriminadora, o

agente é inocente, até que se prove o contrário.

Feitas essas ponderações, passar-se-á ao segundo capítulo,

no qual se estudará vários aspectos do crime, a fim de abranger os crimes de perigo

abstrato, que se põe essencial à presente pesquisa. Por fim, abordar-se-á no

terceiro capítulo o instituto da presunção de perigo nos crimes de perigo abstrato

face ao princípio da ofensividade.

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CAPÍTULO 2

AS CLASSIFICAÇÕES DOS CRIMES NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

Neste capítulo tratar-se-á desde o conceito de crime até as

suas classificações e subdivisões, a fim de conhecer a categorização dos crimes

quanto ao resultado, salientando a relação deste com os bens jurídicos penalmente

tutelados, para então apreciar a diferenciação entre os crimes de perigo concreto e

os crimes de perigo abstrato.

2.1 DO CRIME

2.1.1 Do conceito

Para melhor compreensão da nossa pesquisa, traz-se à tona o

conceito analítico de crime utilizado pela doutrina brasileira. Assim,

[...] crime é todo fato típico e ilícito. [...] em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é lícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito.76

Registra-se que alguns autores, a exemplo de JÚLIO

FABBRINI MIRABETE77, incluem no conceito de crime, a culpabilidade. Neste

sentido, a culpabilidade tem nexo com a reprovabilidade da conduta humana, diante

76 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 106. 77 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral – arts. 1º ao 120 do Código Penal.

17. ed. rev. e atual. até outubro de 2000. São Paulo: Atlas, 2001. 1 v. p. 98.

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do ordenamento jurídico. Torna-se uma condição para a imposição de pena, e esta,

por sua vez, é uma consequência jurídica da conduta criminosa.

Entende-se, portanto, que para a ocorrência de crime, a

conduta deve expressar exatamente o tipo descrito na legislação penal.

Logo, é possível concluir que, quando da ocorrência de um

crime, houve uma conduta humana positiva ou negativa, mas não qualquer conduta,

mas sim aquela considerada típica, antijurídica e penalmente culpável.78

Nas palavras de FERNANDO CAPEZ79, “[...] crime é aquela

ação ou omissão humana, consciente e voluntária, ilícita e que se amolda

perfeitamente aos elementos constantes do modelo previsto na lei penal”.

Feitas essas considerações, cabe conhecer a influência da

chamada imputação objetiva para a pesquisa.

2.1.2 Da Imputação Objetiva

Conforme leciona DAMÁSIO DE JESUS80, o termo imputação

objetiva quer significar o ato de imputar a um indivíduo a realização de uma conduta

a qual causou um risco proeminente, antijurídico, e produziu um resultado jurídico.

Damásio considera que a imputação objetiva é um dos problemas mais remotos do

Direito Penal, pois não é tarefa simples estabelecer quando uma lesão de um bem

jurídico foi causada pela conduta de uma pessoa, conduta esta capaz de gerar um

resultado penalmente relevante, já que o perigo de um dano é intrínseco de qualquer

atividade humana.

No que tange à existência do fato típico, de acordo com os

critérios da imputação objetiva,

[...] é necessário que haja nexo físico, naturalístico, entre a conduta e o resultado, ou seja, o resultado deve ser conseqüência da conduta

78 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. 19. ed. rev. atual e ampl. de acordo com a reforma

do Código de Processo Penal (Leis n. 11.689, 11.690 e 11.719/2008). São Paulo: Saraiva, 2009. p. 33.

79 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 108. 80 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 42/43.

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como causa determinante; a conduta deve criar um risco proibido para a ocorrência do resultado, ou seja, deve expor a risco o bem jurídico; e o resultado deve ter sido causado pelo risco que trouxe a conduta.81

Seguindo o entendimento supracitado, FERNANDO CAPEZ82

explica que a imputação objetiva está adstrita aos crimes materiais e comissivos,

pois foi criada para ampliar os critérios da consignação do nexo causal. Continua

esclarecendo que não há nexo causal nos crimes omissivos e nos crimes de mera

conduta, sendo irrelevante para os crimes formais, muito embora explicite a

existência do entendimento de uma segunda corrente, para a qual a imputação

objetiva não é um problema relacionado ao nexo causal. Segundo esta linha de

pensamento, para existência do fato típico, independentemente se a conduta seja

comissiva, omissiva, material, formal ou de mera conduta, além do dolo ou da culpa,

é imperativa a imputação objetiva de forma que tal conduta tenha um conteúdo

material de crime e não apenas formal.

2.1.2.1 Do Risco Permitido e Do Risco Não Permitido

Independentemente de qual seja a conduta, a teoria da

imputação objetiva está diretamente relacionada ao risco, pois que para que seja

atribuído o resultado ao sujeito, sua conduta deve necessariamente ter criado um

risco juridicamente não permitido e relevante ao bem jurídico, concretizando-se o

perigo na conduta, ou aumentado o risco permitido com infringência ao dever de

cuidado.83

DAMÁSIO DE JESUS84 instrui que muitas ações ou omissões

humanas, até mesmo aquelas não tipificadas, podem gerar um risco aos bens

jurídicos. Cita vários riscos considerados permitidos, como domar animais, viajar de

avião, ou submeter-se a uma cirurgia.

81 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 167/168. 82 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 171/172. 83 JESCHECK; PRADO, Luiz Régis; BITENCOURT, Cézar Roberto apud JESUS, Damásio de.

Código penal anotado. p. 43. 84 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 43.

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Ocorre que, conforme ensina, dentro da esfera dos riscos

permitidos é possível que o agente venha causar um resultado lesivo a um bem

jurídico que agregue a descrição de um crime. Em continuidade à lição de DAMÁSIO

DE JESUS85, colhe-se o exemplo do sujeito que, dirigindo normalmente no trânsito,

envolve-se num acidente automobilístico com vítima pessoal. Salienta que,

[...] o comportamento deve ser considerado atípico. Falta a imputação objetiva da conduta, ainda que o evento jurídico seja relevante. Quem dirige um automóvel, de acordo com as normas legais, oferece a si próprio e a terceiros um risco tolerado, permitido. Se, contudo, desobedecendo às regras, faz manobra irregular, realizando o que a doutrina denomina “infração de dever objetivo de cuidado”, como a ultrapassagem perigosa, o emprego de velocidade incompatível nas proximidades de uma escola, o desrespeito a sinal vermelho de cruzamento, o “racha”, a direção em estado de embriaguez etc., produz um risco proibido (desvalor da ação). Esse perigo desaprovado conduz, em linha de princípio, à tipicidade da conduta, seja a hipótese, em tese, de crime doloso ou culposo. Significa que não há um risco proibido para os crimes dolosos e outro para os culposos. O perigo é o mesmo para todas as espécies de infrações penais. Assim, se o autor, no trânsito, realizando uma conduta produtora de um risco desaprovado, causa um acidente com morte de terceiro, há imputação objetiva da conduta e do resultado jurídico.

Destarte, é possível concluir que é imperativa a imputação

objetiva da conduta quando o agente poderia e deveria evitar o resultado danoso,

mas diferente disso, anseia à conduta não permitida, sabendo da possibilidade de

causar tal resultado, pois houve um desvalor da ação, que causou um risco

desaprovado. Já quando o agente causa um evento de repercussão jurídica e penal,

mas na ausência dos elementos da culpabilidade, sua conduta será atípica.

O liame necessário entre a imputação objetiva e a presente

pesquisa gira em torno do resultado. Está no fato de que, em não havendo um risco

não permitido que cause resultado relevante capaz de lesionar um bem jurídico

também relevante, não há imputação objetiva, e em não havendo imputação

objetiva, não há que se falar em tipicidade.

85 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 43.

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2.1.3 Elementos Subjetivos do Crime

Para que seja imputada ao agente a tipificação de uma

conduta, necessária se faz a existência de um elemento subjetivo do crime.

Os elementos subjetivos do crime se deduzem no dolo e na

culpa.

Sobre o assunto, JÚLIO FABBRINI MIRABETE86 aduz que é a

vontade humana que sobrepuja a conduta dolosa e a conduta culposa, contudo, na

conduta dolosa, a espontaneidade alcança o resultado, enquanto na conduta

culposa a voluntariedade só alcança a causa do resultado. Cita, em continuidade à

sua lição, as palavras de Francisco de Assis Toledo, expressando que a conduta, ou

ação em sentido amplo, é “o comportamento humano, dominado ou dominável pela

vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de lesão de um bem

jurídico, ou, ainda, para a causação de uma possível lesão a um bem jurídico.”

Assim, “não constituem conduta os atos em que não intervém

da vontade”.87

Para que haja imputação à tipificação da conduta humana, é

preciso que essa conduta repercuta externamente a vontade do agente. O desejo

por si só não constitui ação enquanto não se tenha iniciado a manifestação exterior

dessa vontade. De tal modo, o pensar, o cogitar, ou planejar intelectualmente a

prática de um crime, por si só não constituem conduta.88

Dolo, portanto, é a

[...] vontade consciente de realizar a conduta típica [...] Quando o agente atua, basta que objetive o preenchimento do tipo penal incriminador, pouco importando se ele sabe ou não que realiza algo

86 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral – arts. 1º ao 120 do Código Penal.

23. ed. rev. e atual. até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 91/92. 87 PIERANGELI, José Henrique apud MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte

geral – arts. 1º ao 120 do Código Penal. p. 92. 88 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral – arts. 1º ao 120 do Código Penal.

p.91.

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proibido. Portanto, aquele que mata alguém age com dolo, independentemente de acreditar estar agindo corretamente [...].89

Enquanto no dolo, o agente quer tanto a conduta quanto o

resultado, ou assume o risco de produzi-lo, na culpa, o agente dá causa ao

resultado, por imprudência, imperícia ou negligência.90

GUILHERME DE SOUZA NUCCI91 considera que a culpa “é o

comportamento voluntário desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou

ilícito, embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que podia ter

sido evitado.”

Para EUGENIO RAUL ZAFFARONI92,

[...] toda pessoa que conduz um veículo sabe que introduz um certo perigo para os bens jurídicos alheios, a ponto de contratar seguros ‘por danos a terceiros’. Sem embargo, isto é absolutamente insuficiente para caracterizar a culpa. O entendimento correto do fenômeno da culpa é recente na doutrina, surgindo a partir da focalização da atenção científica sobre a violação do dever de cuidado, que é o ponto de partida para a construção dogmática do conceito.

Nesse sentido, a essência da caracterização da culpa excede o

âmbito do risco permitido.

Segundo GUILHERME DE SOUZA NUCCI93, o dolo é a regra e

a culpa, exceção. Por força do parágrafo único do artigo 18 do Código Penal, exige-

se que para se punir alguém por delito culposo, deve haver previsão no tipo penal da

forma culposa, pois que alude “[...] na ligação do resultado lesivo ao querer interno

do agente através da previsibilidade.”

Prossegue aduzindo que a natureza jurídica da culpa é

psicológica normativa:

89 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 3. ed. rev.

atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 215. 90 Art. 18, incisos I e II do Código Penal. 91 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. p. 223. 92 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito penal brasileiro: parte geral. p.

445. 93 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. p. 225.

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Psicológico, porque é elemento subjetivo do delito, implicando na ligação do resultado lesivo ao querer interno do agente através da previsibilidade. Normativo, porque é formulado um juízo de valor acerca da relação estabelecida entre o querer do agente e o resultado produzido, verificando o magistrado se houve uma norma a cumprir, que deixou de ser seguida. Note-se o conceito de culpa extraído do Código Penal Militar, bem mais completo do que o previsto no Código Penal comum: “Diz-se o crime: II – culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo” (art. 33).

Não obstante ainda far-se-á a diferenciação entre crime de

dano e crime de perigo, é importante ressaltar, no que tange ao dolo, conforme

magistério de DAMÁSIO DE JESUS94 que no dolo de dano o agente quer o dano ou

assume o risco de produzi-lo. Desta forma, no crime de homicídio doloso, o agente

quer o resultado morte, ou assume o risco de produzi-la. No dolo de perigo, o agente

não quer o dano, mas anseia um resultado de perigo. Considera-se que o agente

quer ou assume o risco de expor o bem jurídico a perigo de dano.

Disto, depreende-se que haverá dolo de perigo quando o

agente tem a intenção de pôr em perigo determinado bem jurídico tutelado

penalmente, ou assume o risco da produção deste perigo. Já quanto ao dolo de

dano, este ocorrerá quando o autor anseiar um resultado danoso ao bem jurídico

tutelado e agir de modo a causar tal dano, ou assumir o risco da produção do

resultado danoso.

2.2 DA CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES

O crime, conforme demonstra a doutrina, possui muitas

divisões na sua classificação. Porém, por motivos de restrição da pesquisa, abordar-

se-á tão somente os conceitos dos chamados crime material, crime formal, crime de

mera conduta, crime de dano, e crime de perigo, para então se adentrar na

diferenciação dos crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato.

94 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 75/76.

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2.2.1 Do Crime Material

O crime material é aquele pelo qual a consumação ocorre com

a produção do resultado, como por exemplo, consuma-se o homicídio com a morte

da vítima, ou consuma-se o estelionato com a obtenção de vantagem ilícita em

prejuízo alheio.95

Tem-se, portanto, que os crimes materiais,

[...] são aqueles em que o legislador distingue, na sua configuração objetiva, além da conduta, um resultado dela dependente. É insuficiente a atividade (ou inatividade) do agente (ou omitente). Faz parte também da facti species (espécie do fato) legal um evento (naturalístico), que integra o tipo como elemento necessário e indispensável.96

É possível notar que, quanto ao resultado, crime material é

aquele em que só se consuma com a produção de um resultado naturalístico,

conforme descreve o tipo penal.97

Não havendo resultado, e não sendo possível a tipificação na

forma tentada, não haverá crime.

2.2.2 Do Crime Formal

Quanto à classificação como crime formal, PAULO JOSÉ DA

COSTA JUNIOR98 considera que crimes formais e de mera conduta são sinônimos.

Ensina que são dependentes apenas a conduta do agente, independendo o

resultado que venha a produzir, ou seja, basta a mera execução da conduta,

abstraem qualquer resultado.

Encontra-se, contudo, na doutrina, diferenciação entre crimes

formais e crimes de mera conduta. Considera-se, logo, como crimes formais,

aqueles em que a consumação

95 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 52. 96 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 19. 97 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 245. 98 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 19.

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[...] ocorre com a conduta típica imediatamente anterior à fase do evento, independentemente da produção do resultado descrito no tipo. No delito do art. 154 (violação de segredo profissional), atinge-se o momento consumativo com a simples revelação do segredo, independentemente da efetiva produção de dano a outrem. Na concussão (CP, art. 316), a consumação ocorre com a exigência e não com o recebimento do objeto material (RT, 483:287).99

No mesmo sentido é o entendimento de Manoel Pedro

Pimentel, citado por JÚLIO FABBRINI MIRABETE100, para o qual:

[…] não há necessidade de realização daquilo que é pretendido pelo agente, e o resultado jurídico previsto no tipo ocorre ao mesmo tempo em que se desenrola a conduta, “havendo separação lógica e não cronológica entre a conduta e o resultado”.

JÚLIO FABBRINI MIRABETE101 continua iniciando a

exemplificação no crime de ameaça em que:

[...] a consumação dá-se com a prática do fato, não se exigindo que a vítima realmente fique intimidada; no de injúria (art. 140) é suficiente que ela exista, independentemente da reação psicológica do ofendido etc. A lei antecipa o resultado no tipo; por isso, são chamados crimes de consumação antecipada.

Nesta classificação, o tipo penal não se preocupa com a

produção do resultado para a consumação do crime. O resultado pode ocorrer ou

não, mas antes que ocorra, a própria conduta já faz com que o crime se consuma.

Na ameaça, por exemplo, a intimidação da vítima é irrelevante para a consumação

do crime. Na extorsão mediante seqüestro, independe se houve ou não recebimento

do resgate exigido para a realização do tipo.102

Passa-se à análise dos crimes de mera conduta.

99 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 52. 100 PIMENTEL, Manoel Pedro apud MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral.

p. 123. 101 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral p. 123. 102 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 245.

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2.2.3 Do Crime de Mera Conduta

Os crimes de mera conduta são aqueles em que a

consumação ocorre com a simples ação, não repercutindo nenhum resultado

relevante do mundo jurídico. No crime de violação de domicílio, por exemplo, a

simples entrada clandestina basta para a consumação do tipo.103

FERNANDO CAPEZ104 afirma que nesta classificação de

crime, “o resultado naturalístico não é apenas irrelevante, mas impossível. É o caso

do crime de desobediência ou da violação de domicílio, em que não existe

absolutamente nenhum resultado que provoque modificação no mundo concreto”.

Há uma ofensa presumida pela lei, da prática da conduta.

Para PAULO QUEIROZ105 a classificação do crime advém de

conveniência político-criminal, pois é possível que o legislador transforme um crime

material em formal ou um de mera conduta em formal ou material com a simples

alteração da redação do tipo penal, conforme explica:

[...] a concussão tornar-se-ia um crime material se, em vez de se declarar que constitui crime “exigir vantagem indevida, com o fim de obter...”, se dissesse: “obter, mediante exigência, vantagem indevida...”; igualmente, a violação de domicílio, se se acrescentasse a expressão “perturbando a paz de seus moradores” etc. Por conseguinte, é a redação de cada tipo penal, notadamente o verbo usado na oração, que dirá se estamos diante de um crime material, formal, ou de mera conduta.

Destarte, é crime de mera conduta aquele em que o tipo penal

só descreve a ação sem mencionar qualquer resultado, pois o resultado não provoca

nenhuma modificação no mundo jurídico.

Conforme lição de JÚLIO FABBRINI MIRABETE106,

[...] a lei não exige qualquer resultado naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente. Não sendo relevante o resultado

103 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 52. 104 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 245. 105 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

p.164. 106 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. p. 124.

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material, há uma ofensa (de dano ou de perigo) presumida pela lei diante da prática da conduta. Exemplos são a violação de domicílio (art. 150), o ato obsceno (art. 233), a omissão de notificação de doença (art. 269), a condescendência criminosa (art. 320) e a maioria das contravenções.

De tal maneira, enquanto no crime formal a redação do tipo

menciona a conduta e o resultado, embora o resultado independa para a

consumação, no crime de mera conduta, a redação do tipo só menciona a conduta,

pois esta não causa qualquer efeito no mundo jurídico.

2.2.4 Do Crime de Dano

Diante da lição até aqui exposta, verificamos que quanto ao

resultado, os crimes podem classificar-se em crimes materiais, formais ou de mera

conduta. Ainda quanto ao resultado, os crimes podem classificar-se em crimes de

dano ou crimes de perigo.

Diretamente relacionados à integridade do bem jurídico,

constata-se que este pode ser afetado tanto nos crimes de dano, quanto nos crimes

de perigo. “Há dano ou lesão quando a relação de disponibilidade entre o sujeito e o

ente foi realmente afetada, isto é, quando, efetivamente, impediu-se a disposição,

seja de forma permanente (como ocorre no homicídio) ou transitória”.107

Ao ensinar sobre os crimes de dano, JÚLIO FABBRINI

MIRABETE108 afirma que estes “só se consumam com a efetiva lesão do bem

jurídico visado, por exemplo, lesão à vida, no homicídio; ao patrimônio, no furto; à

honra, na injúria etc”.

PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR109 explica o crime de dano,

relacionando-o ao objeto jurídico da tutela normativo penal, já que as noções de

objeto jurídico e de dano ou perigo são atingidas pelas noções de bem e interesse,

pois o

107 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito penal brasileiro: parte geral. p.

481/482. 108 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. p. 124. 109 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 21.

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[...] objeto jurídico da tutela normativo-penal é o bem (ou interesse) ofendido (ou posto em perigo). Dano é a perda (privação, subtração, sacrifício) ou a diminuição (limitação, restrição) de um bem ou interesse. Dano é a mesma perda ou limitação de um bem-interesse garantido pela norma.

Em continuidade, ensina que dano “[...] é tudo aquilo que

impede, total ou parcialmente, a satisfação das necessidades humanas. Como estas

são mitigadas pelos bens, dano é tudo aquilo que implique a destruição ou

diminuição de um bem”.110

Absorve-se, porém, dos ensinamentos doutrinários

supracitados que os crimes de dano são aqueles que causam efetiva e

imediatamente uma lesão a um bem jurídico tutelado pela norma penal.

2.2.5 Do Crime de Perigo

Segundo PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR111 existem duas

correntes as quais trazem conceituação de perigo, uma de natureza subjetiva e

outra de natureza objetiva.

A corrente que traz a conceituação de natureza subjetiva

defende que o perigo é um instituto abstrato, representação da mente humana, ou

seja, da imaginação. Não passa de uma suposição, desprovida de existência real, é

mera possibilidade.112

A corrente defensora da teoria objetivista relata que o perigo é

oriundo da realidade baseado na experiência habitual. Se não ocorrer um resultado

considerado possível, é porque nasceram circunstâncias exteriores que impediram

que fosse gerado tal resultado.113

Hodiernamente, o perigo tende a se constituir tanto de

subjetividade quanto de objetividade, pois é formado tanto por circunstâncias aptas a

110 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 21. 111 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 21. 112 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 21. 113 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 21.

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provocarem o dano, quanto de possibilidade de ocorrência de dano, alicerçado nas

situações de costume.114

De tal maneira, perigo é uma possibilidade de dano, pois, “[...]

É o dano em potencial. Mas o perigo, embora de certa forma ancorado na realidade

objetiva, deve ser avaliado subjetivamente, através de um juízo probabilístico.

Completa-se, assim, a noção de perigo por um momento subjetivo.”115

Nesta esfera, expõe-se o perigo em caráter subjetivo. Em

caráter objetivo, porém, há

[...] um grau mais intenso de possibilidade. Esta abrange o provável e o improvável. Um fenômeno é possível quando não é impossível: quando sua realização não contraria nenhuma lei da natureza. Mesmo o resultado raro e o raríssimo são possíveis. O provável, entretanto, não é apenas o possível, mas aquilo que costuma acontecer, com base na experiência. Donde se conclui que o perigo deve exigir uma relevante possibilidade de efetivação do dano.116

Pelo exposto, é clarividente que necessário se faz um juízo de

probabilidade, este, em análise ao momento posterior à conduta, para que haja um

juízo de valor sobre a periculosidade do comportamento. Assim, “pouco importa se

o perigo não tenha desencadeado um dano efetivo. O que interessa é que, o tempo

da conduta, o fato reunisse probabilidade de efetivação”.117

Depreende-se que haverá afetação do bem jurídico por perigo

quando a tipicidade requer apenas que o bem jurídico tenha sido colocado em

perigo.118

A consumação ocorre quando o sujeito passivo, em face da

conduta do agente, é exposto a perigo de dano.119 Já se viu que perigo é uma

probabilidade. Probabilidade de que?

114 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 21/22. 115 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 22. 116 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 22. 117 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 22. 118 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito penal brasileiro: parte geral. p.

481/482. 119 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. p. 52.

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[...] de um evento temido. Conceito normativo, de fundo emocional, assenta-se num cálculo probabilístico, suscitando um temor, pela acentuada possibilidade de realização do dano que não se deseja, comprometendo a situação de gozo de determinado bem. O perigo de perigo não gera tal angústia, o que leva à conclusão de que o perigo haverá de ser concreto, real, objetivo, e não eventual, futuro, abstrato, indeterminado.120

O perigo que já passou, não é mais um perigo e o perigo que

pode vir, não é ainda um perigo. Motivo pelo qual o perigo passado e o perigo futuro

não deveriam ser considerados perigos, uma vez que o legítimo perigo é o presente,

que pode ser iminente, ou seja, que está para acontecer, ou atual.121

FERNANDO CAPEZ122 traz na sua lição vários exemplos de

crimes de perigo e demonstra sua subdivisão em: crime de perigo concreto, crime de

perigo abstrato, crime de perigo individual, crime de perigo comum ou coletivo, crime

de perigo atual, crime de perigo iminente e crime de perigo futuro ou imediato. O que

interessa, contudo, por delimitação da pesquisa, se refere tão somente à subdivisão

concernente a crime de perigo concreto e crime de perigo abstrato, pois estes ainda

podem ser individual ou coletivo, atual ou iminente, futuro ou imediato.

2.2.5.1 Do Crime de Perigo Concreto

No crime de perigo concreto, o tipo exige a existência de uma

situação de um efetivo perigo, ou seja, deve ser comprovada a situação de risco que

o bem jurídico vem a sofrer.123 A probabilidade de ocorrência de dano requer

investigação e comprovação, e como exemplo de tais crimes, cita-se o art. 132 do

Código Penal, expor a vida ou saúde de alguém a perigo.124

120 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 23 121 COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Direito penal objetivo: comentários atualizados. p. 23. 122 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 245. 123 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 245. 124 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. p. 172.

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2.2.5.2 Do Crime de Perigo Abstrato

Conforme argumenta CÉZAR ROBERTO BITENCOURT125, no

que tange aos crimes de perigo abstrato, “[...] a lei contenta-se com a simples prática

da ação que pressupõe perigosa”.

Não há risco efetivo nos crimes de perigo abstrato, “[...] o

legislador tipifica a conduta por julgá-la perigosa em si, independentemente de

qualquer risco efetivo, isto é, a lei o presume jure et de jure.126

Destarte, para a imputação de crime de perigo abstrato, não se

faz necessária a prova, uma vez que a probabilidade de ocorrência de dano está

presumida no tipo penal. Um exemplo é o porte ilegal de substância entorpecente

(artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2006) em que se presume o perigo para a saúde

pública127, ou até mesmo o crime de quadrilha ou bando em que o agente é

penalizado ainda que não tenha cometido nenhum outro crime. É necessária a

finalidade de cometer crimes na associação, mas a própria associação já é crime,

não necessitando que após a associação, os agentes cometam crimes.128

Sobre os crimes de perigo concreto e de perigo abstrato,

EUGENIO RAÚL ZAFFARONI129 traz uma importante consideração:

[...] o perigo concreto foi entendido como um verdadeiro perigo e o abstrato como uma simples possibilidade. Semelhante interpretação é insustentável, porque com ela o chamado perigo abstrato seria um “perigo de perigo”, o que, em caso de tentativa, acarretaria a conseqüência de requerer um “perigo de perigo de perigo”. Na realidade, não há tipos de perigo concreto e de perigo abstrato – ao menos em sentido estrito -, mas apenas tipos em que se exige a prova efetiva do perigo submetido ao bem jurídico, enquanto noutros há uma inversão do ônus da prova, pois o perigo é presumido com a realização da conduta, até que o contrário não seja provado, circunstância cuja prova cabe ao acusado. Trata-se de uma

125 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2003. 1 v. p. 148. 126 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. p. 166. 127 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. p. 172. 128 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 245. 129 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito penal brasileiro: parte geral. p.

482.

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classificação com maior relevância processual do que penal “de fundo”.

Entende-se, portanto, que o perigo concreto está mais próximo

da realidade que o perigo abstrato, como o seu próprio nome diz, porém, a

diferenciação leva ao instituto da prova, porque no perigo concreto, exige-se a prova

efetiva do perigo causado ao bem jurídico, enquanto no perigo abstrato presume-se

o perigo, dispensando-se a prova. A não ser que o contrário seja provado, ou seja,

que não houve nenhum risco de perigo.

Nos crimes de perigo abstrato, a punição se dá pelo mero

descumprimento da lei formal. O perigo não é elementar do tipo, pelo que havendo a

probabilidade de dano ou não, restará configurado o crime.

Absorve-se, portanto, deste capítulo, o conceito de crime como

sendo aquela conduta prevista na legislação penal, contrária ao ordenamento

jurídico, sobre a qual se aplica pena privativa de liberdade.

De acordo com a imputação objetiva, se imputa a um indivíduo

a realização de uma conduta a qual causou um risco não permitido, ou seja,

antijurídico, e que produziu um resultado jurídico relevante. Risco não permitido,

porque, todas as ações e relações humanas estão sujeitas a causar aos bens

jurídicos, riscos, porém, existem riscos que são permitidos. Se um resultado jurídico,

contudo, decorre de um risco permitido, a conduta é atípica, pois que falta a

imputação objetiva.

Dentro da classificação dos crimes quanto ao resultado,

verifica-se que para que haja imputação a um agente, de uma conduta tipificada e

classificada como de perigo concreto, exige-se que seja realizada prova do perigo.

Já em relação ao crime de perigo abstrato, não se faz

necessária a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado. Através da mera realização da

conduta se pressupõe que há a possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado,

havendo a incriminação.

Conhecidas as classificações dos crimes, passar-se-á ao

terceiro capítulo, de modo a confrontar o conteúdo do primeiro capítulo com o

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conteúdo do segundo capítulo, a fim de verificar se a penalização aos agentes ativos

dos crimes de perigo abstrato fere aos preceitos constitucionais, no que tange,

especificamente, ao princípio da ofensividade.

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CAPÍTULO 3

A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO FACE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA OFENSIVIDADE

Neste capítulo trataremos da presunção nos crimes de perigo

abstrato face à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, traçando

aspectos da função do legislador quando ao inserir referidos crimes na legislação

penal, da fundamentação para a sustentação de um direito penal preventivo, a

posição da doutrina sobre um direito penal considerado como para o “inimigo”, a

penalização de sujeitos ativos dos crimes em análise nos casos concretos, para que

então possamos identificar a constitucionalidade que fora proposta à presente

pesquisa.

Investigar-se-á a constitucionalidade, principalmente, no âmbito

do princípio da ofensividade. Porém, para uma melhor compreensão, poderão ser

citados outros princípios, contudo, decorrentes da dignidade da pessoa humana, e,

portanto, do Estado Democrático de Direito.

3.1 O ARBÍTRIO DO LEGISLADOR

Para verificar a possível existência de inconstitucionalidade dos

crimes de perigo abstrato, é importante recorrer à análise da criação dos tipos

penais, especificamente, no que tange à tarefa do legislador.

Isto porque, segundo se abstrai da lição de FERNANDO

CAPEZ130:

O legislador deve se abster de formular descrições incapazes de lesar, ou pelo menos, colocar em real perigo o interesse tutelado pela norma. Caso isto ocorra, o tipo deverá ser excluído do ordenamento jurídico por incompatibilidade vertical com o Texto Constitucional.

130 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 26.

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Para a criação de tipos penais, quando isto se fizer necessário,

deve se identificar o bem a ser tutelado, tipificar o comportamento que possa

lesioná-lo de forma efetiva, ou no mínimo lhe cause um perigo concreto.131

Referido cuidado evita a tipificação de condutas insignificantes,

pois que “toda norma penal em cujo teor não se vislumbrar um bem jurídico

claramente definido e dotado de um mínimo de relevância social, será considerada

nula e materialmente inconstitucional.”132

ALICE BIANCHINI133 ensina que:

Na tarefa legislativa de criminalização há que se levar em conta dois fatores que se excluem, mas são elementares para a produção legislativa: o direito penal atua na restrição de direitos, liberdades e garantias do indivíduo, no intento de colocar a salvo, também, direitos, liberdades e garantias individuais e coletivas. 'Ele é a arma mais terrível nas mãos do Estado, não só por conter as sanções que, em princípio, mais interferem com valores fundamentais da pessoa, como pelos efeitos sociais que inevitavelmente desencadeia, e precisa, assim, de ser legitimado e limitado na sua atuação; legitimado e limitado não só quanto à forma de atuação, oferecendo garantias de imparcialidade e certeza jurídica, mas também quanto ao próprio conteúdo.

Neste sentido, o Estado tem um poder dever de privar direitos,

liberdades e garantias do indivíduo em favor da coletividade. Porém, para que essa

privação não configure abuso estatal, tampouco supressão da dignidade humana, é

mister a certeza da ofensa ao bem jurídico a ser tutelado.

Uma situação problema que pode se apresentar em relação às

atribuições do legislador é a dúvida de que este identifica de maneira precisa as

condutas que devem ser tuteladas, diante dos preceitos constitucionais. Se não há

precisão na identificação dessas condutas, como harmonizar a tipificação diante da

Constituição vigente? Se houver perfeição, por que existem normas já criadas e

aplicadas, das quais se questionam a constitucionalidade? É fato que:

131 BITENCOURT, César Roberto. Código penal comentado. p. 14. 132 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 26. 133 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2002. p. 89.

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A existência de valores com relevo constitucional não faz pressupor a imposição de tutelá-los penalmente. Esta escolha fica a cargo do legislador penal, significando dizer que não está obrigado a proteger, penalmente, todos estes bens ou valores constitucionais [...].134

O legislador, orientado constitucionalmente, portanto,

observando aos princípios da tolerância e da racionalidade, aprecia a necessidade

de criminalização de dada conduta.135

Embora tenha se levantado a questão referente à avaliação do

legislador, quando da tipificação de condutas, diante da estrutura do Estado, e dos

princípios basilares do Estado Democrático de Direito, não há porque cotejar seu

arbítrio.

Ao se apossar da função legislativa, pela vontade da

coletividade, há presunção, ainda que relativa, de que o legislador, em

representação, age de forma a atender ao interesse público, possuindo poderes

bastantes para conhecer as necessidades sociais e legislar em consonância com a

Constituição.

Cabe, entretanto, investigar a possível existência de

inconstitucionalidade das leis penais em vigor, que tipificam condutas consideradas

como crime de perigo abstrato, objeto principal da presente pesquisa.

3.2 O DIREITO PENAL DA PREVENÇÃO

Após a explanação sobre a atividade do legislador, é de bom

grado tomar por conhecimento o entendimento de parte da doutrina sobre a intenção

do Direito Penal ao prever os crimes de perigo abstrato.

Para WALTER COELHO136, o Direito Penal visa proteger

desde a remota e potencial situação perigosa (contravenção), passando pelo perigo

iminente ou próximo (crime de perigo), até a efetiva lesão do interesse a ser

134 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. p. 48. 135 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos

da tutela penal. p. 59. 136 COELHO, Walter. Teoria geral do crime. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.p. 102

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resguardado. Disso, depreende-se que para o Direito Penal pouco importa se

efetivamente o perigo ocorreu, pois age tanto na repressão, quanto na prevenção.

Em se tratando de prevenção, CÉSAR ROBERTO

BITENCOURT137 afirma que o Direito Penal moderno requer novas formas de

penalização, orientando-se pelo perigo, para que seja possível uma prevenção

efetiva, já que uma vez ocorrido o dano para posterior ação estatal, esta estaria

comprometida. Os princípios orientadores do Direito Penal, diante da sociedade

hodierna já estão superados e a penalização sob o norte do perigo é meio mais ágil

de resposta estatal.

A sugestão de direção auferida do ensinamento de ÂNGELO

ROBERTO ILHA DA SILVA138 para a criação de tipos penais de perigo abstrato, é

observar se os bens os quais se busca a tutela não são colidentes à Constituição.

São coerentes à Constituição, não só bens ali expressos, mas também aqueles que,

embora implícitos, não se conflitam com os seus valores, pelo que devem ser

tutelados.

O mesmo doutrinador ratifica a lição supra ao expressar que a

própria natureza dos bens difusos, tais como a ordem econômica e o meio ambiente,

diante das necessidades coevas, clamam pela incriminação de condutas de perigo

abstrato. A demonstração do resultado, nestes casos, poderia tornar o dano

altamente desastroso e irreversível.139

Diante disso, “[...] dentro de certos limites a criação de crimes

de perigo presumido pode ser oportuna para atingir particular finalidade de política

criminal [...].”140

FERNANDO CAPEZ141 comungou deste entendimento ao

dispor:

137 BITENCOURT, César Roberto. Código penal comentado. p. 12. 138 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da constituição. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 87/88. 139 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da constituição. p.

95/98/144. 140 BETTIOL, Giuseppe apud SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em

face da constituição. p. 98.

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Entendemos que subsiste a possibilidade de tipificação dos crimes de perigo abstrato em nosso ordenamento legal, como legítima estratégia de defesa do bem jurídico contra agressões em seu estágio ainda embrionário, reprimindo-se a conduta, antes que ela venha a produzir um perigo concreto ou um dano efetivo. Trata-se de cautela reveladora de zelo do Estado em proteger adequadamente certos interesses. Eventuais excessos podem, no entanto, ser corrigidos pela aplicação do princípio da proporcionalidade.

De tal maneira, o Estado deve ministrar um direito penal

preventivo, e havendo supressão exacerbada dos direitos individuais em favor dos

interesses coletivos, a correção fica por conta da proporcionalidade e da

razoabilidade.

FERNANDO MANTOVANI142, adepto da adoção do instituto da

prevenção geral pelo direito penal, reconhece a recepção constitucional do princípio

da ofensividade, contudo, de forma relativa, por acreditar na existência de crimes

sem ofensividade, que a política criminal deve primar.

Segundo ÂNGELO ROBERTO ILHA DA SILVA143, pensar num

direito penal que não possa criar tipos de perigo abstrato é retornar à antiguidade,

enquanto necessita-se de um direito penal moderno, em que a única forma de tutelar

novos bens e atender aos anseios da sociedade, é através da tutela antecipada.

Ocorre que, conforme se demonstrará no item a seguir, há o

entendimento de que, nem sempre a prevenção através da tutela penal é a melhor

saída. Principalmente, se para a prevenção se fizer necessário preterir garantias

fundamentais, ou quando houver outros meios fora da órbita penal, que sejam

suficientes para a proteção de bens jurídicos.

141 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. p. 26/27. 142 MANTOVANI, Fernando apud D’AVILA, Fabio Roberto. Limites materiais do direito penal

ambiental. Porto Alegre: Tribunal Regional Federal – 4ª Região, 2008 (Currículo Permanente. Caderno de Direito Penal: módulo 4). p. 21.

143 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da constituição. p. 101.

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3.3 O DIREITO PENAL DO INIMIGO

A doutrina não é unânime na defesa de um direito penal

preventivo. Prova disso é exatamente a verificação da constitucionalidade da

presunção utilizada nos crimes de perigo abstrato.

JORGE FIGUEIREDO DIAS144 é contra a utilização do direito

penal para a prevenção, fundamentando que:

Não há [...] razão bastante para que se advogue (ou resignadamente se suporte) o crescimento exponencial de proteções antecipadas de bens jurídicos – de que os crimes de perigo abstrato são o sinal mais evidente – até a um ponto em que o bem jurídico perde os seus contornos, se esfuma e, com isto, deixa completamente de exercer a sua função crítica como padrão de legitimação do direito condito e do direito condendo. Ainda que o ‘perigo’ ou ‘risco’ deva constituir a noção chave da dialética da ilicitude penal, como síntese entre a tese do desvalor de ação e a antítese do desvalor de resultado, isto em nada contende com a contestação que deve merecer a tentativa de transformar o direito penal dos bens jurídicos num direito penal dos perigos.

Transformar, nesse sentido, o direito penal dos bens jurídicos

em um direito penal dos perigos, não significa que está a proteger, efetivamente,

bens jurídicos antes da ocorrência de uma conduta delituosa. Se estiver a privar-se

do perigo, para que este não se concretize, não se concretizando, não há do que se

proteger. Ou seja, o direito penal, na prevenção, age enquanto não seria necessária

sua intervenção.

GIUSEPPE BETIOL145 melhor repassa este entendimento, ao

dispor que “[...] o perigo é sempre probabilidade de um evento temido, que, caso não

possa ocorrer, não poderia ter sido temido, justificadamente. [...]”.

A penalização fundamentada na simples prevenção revela um

arbítrio estatal que demonstra um direito penal do “inimigo” na visão de GÜINTHER

JAKOBS146.

144 DIAS, Jorge de Figueiredo apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela

penal. p. 65. 145 BETTIOL, Giuseppe apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal.

p. 69. 146 GRECO, Rogério. Direito penal do inimigo. Disponível em:

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ROGÉRIO GRECO147, inclusive, traça considerações a

respeito da obra “Direito Penal do Inimigo”, de Güinter Jakobs, e explica que por

meio da denominação Direito Penal do Cidadão existe um direito garantista que age

em obediência aos princípios fundamentais. Já ao intitulado Direito Penal do Inimigo,

existe um direito que não age em consonância com os princípios fundamentais, já

que os cidadãos são inimigos do Estado. Continua, de acordo com o pensamento de

Jackobs, que nas nossas legislações está implantado o Direito Penal do Inimigo,

citando como exemplo a Lei 9.034, de 03 de maio de 1995.

Nesta proposição, há que se ressaltar que:

[…] o Direito Penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais, são relativizadas ou, inclusive, suprimidas.148

Verifica-se, nos termos expostos que a ação estatal punitiva

preventiva de modo a punir com pena privativa de liberdade, aquelas condutas que

não causam efetivo dano a qualquer bem jurídico, sem nenhuma ou reduzida

obediência às garantias fundamentais, evidencia um direito penal que considera

como inimigos os seus obedientes, ao invés de atingir sua finalidade maior.

No âmbito deste entendimento, existem condutas que o direito

penal não deva se ocupar, seja pelo seu caráter subsidiário, excepcional, seja

porque outros meios são hábeis a prevenir as condutas que se quer obstar, pois

que:

[…] sempre que o direito criminal invade as esferas da moralidade ou do bem estar social, ultrapassa os seus próprios limites em detrimento das suas tarefas primordiais [...]. Pelo menos do ponto de

http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.24050. Acesso em 01/10/2010.

147 GRECO, Rogério. Direito penal do inimigo. Disponível em: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.24050. Acesso em 01/10/2010.

148 MELIÁ, Manuel Cancio apud GRECO, Rogério. Direito penal do inimigo. Disponível em: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.24050. Acesso em: 01/10/2010.

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vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem diretamente [ao alheio].149

Abstrai-se, portanto, das citadas lições que o direito penal não

deveria se ocupar de condutas consideradas de perigo abstrato, uma vez que a

intervenção penal:

[...] não deve ter lugar senão em face de dano ou perigo de dano ocorridos, ou seja, dano ou perigo concretos, pois, do contrário, não se protegerá bem jurídico algum, mas, antes, se penalizará a só desobediência à norma penal. É preciso que se trate, portanto, de um dano ou perigo verificável ou avaliável empiricamente, partindo das características de cada concreto comportamento proibido, repudiando, assim, os chamados delitos de perigo abstrato.150

Se a previsão de punibilidade para condutas consideradas de

perigo abstrato se funda em um direito penal preventivo, a máquina estatal tem

caminhado em sentido inverso. A aplicação do direito penal em lugar de outros

procedimentos mais leves e eficazes acaba por deturpar todo o ordenamento

jurídico e se direciona contra a paz social.151

Tratar o direito penal como um instrumento contra o inimigo,

vulgariza o sistema, e acaba por si próprio a viciar a eficácia da lei penal, de forma

que nem mesmo a prevenção seria capaz de sanar a mácula.

Por derradeiro, aparentemente, em se prever condutas de

perigo abstrato, há afronta à própria base de todo ordenamento jurídico, à Carta

Maior, e uma vez atingindo a base, toda a construção fica comprometida.

Passar-se-á à análise da aplicação da lei penal na ocorrência

de condutas de perigo abstrato nos casos concretos.

149 DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manoel Costa apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos

materiais mínimos da tutela penal. p. 33. 150 QUIEROZ, Paulo de Souza apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela

penal. p. 69/70. 151 ROXIN, Claus apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. p. 78.

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3.4 A PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO NOS CASOS

CONCRETOS

Conforme pôde se constatar das decisões dos tribunais,

especificamente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, do Superior Tribunal de

Justiça e do Supremo Tribunal Federal, a penalização aos sujeitos ativos dos crimes

de perigo abstrato não tem levado em consideração a dúvida quanto à sua

constitucionalidade. As decisões são voltadas ao entendimento de que se o crime é

classificado como de perigo abstrato, não se faz necessária a comprovação da

efetiva lesão ao bem juridicamente tutelado, e que para a penalização ocorrer, basta

a realização da conduta considerada criminosa.

Segundo o posicionamento do Tribunal de Justiça de Santa

Catarina152, in verbis, no nosso ordenamento jurídico não há espaço nem aplicação

para o princípio da ofensividade, o que extirpa a hipótese de inconstitucionalidade da

penalização pela realização dos crimes de perigo abstrato:

PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. SUBSTITUIÇÃO DE FOTOGRAFIA EM DOCUMENTO DE IDENTIDADE. CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO (CP, ART. 297). MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DESCABIDA ABSOLVIÇÃO. O exame de corpo delito direto que constata a existência de falsificação no documento público comprova a materialidade do crime previsto no art. 297 do Código Penal. A autoria admitida na fase indiciária e confirmada pelos demais elementos de prova é apta a ensejar a condenação, inclusive porque não é crível que um desconhecido entregue em depósito documento de identidade na residência do agente ativo do delito. Não constitui elementar do crime de falsificação previsto no art. 297 do Código Penal que sejam encontrados equipamentos ou materiais utilizados na falsificação ou alteração do documento público. O crime de falsificação consuma-se independentemente do uso efetivo do documento, por se tratar de crime de perigo abstrato, o que afasta a alegação que a simples manutenção em depósito do documento falsificado constitui um indiferente penal. O denominado princípio da ofensividade não encontra fundamento na nossa ordem jurídica e, ainda que tivesse previsão, não poderia afastar a tipicidade da conduta de agente que substituiu fotografia no documento de identidade porque há flagrante vulneração da fé pública. O Poder Judiciário, ao exercer o papel de legislador negativo, pode apenas afastar a aplicação de norma inconstitucional, não podendo revogar tipos penais numa atuação de seleção de condutas penalmente relevantes. Parecer da PGJ pelo

152 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Criminal n. 2008.080610-7, de Balneário

Camboriú. Relator: Carlos Alberto Civinski. Órgão Julgador: Primeira Câmara Criminal. Data do Julgamento: 29/10/2009. Disponível em: http://www.tjsc.gov.br. Acesso em: 10/11/2009.

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conhecimento e desprovimento do recurso. Recurso conhecido e desprovido.

O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça153, conforme

segue, é que mesmo sendo presumida a ofensividade da conduta ao bem

juridicamente tutelado, a previsão de crimes de perigo abstrato pelo legislador é uma

forma mediata de proteger o bem juridicamente tutelado imediato:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 14 DA LEI 10.826/03. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. CRIME DE PERIGO.ABSTRATO. TIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO IMPROVIDO.1. A segurança coletiva é o objeto jurídico imediato dos tipos penais compreendidos entre os arts. 12 e 18 da Lei 10.826/03, com os quais visa o legislador, mediatamente, proteger a vida, a integridade física, a saúde, o patrimônio, entre outros bem jurídicos fundamentais. 2. Consoante o firme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, tais crimes são de perigo abstrato, do que se conclui ser presumida a ofensividade da conduta ao bem jurídico tutelado. 3. As condutas do art. 14 da Lei 10.826/03 (porte de arma de fogo de uso permitido) não estão acobertadas pela hipótese de "atipicidade momentânea", razão pela qual o prazo do art. 30 da Lei 10.826/03, com redação dada pela Lei 11.706/08, a elas não se refere. 4. Recurso improvido.

Não diverso desse posicionamento é o entendimento do

Supremo Tribunal Federal154 em que pouco importa o resultado concreto da ação:

PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14 da Lei 10.826/03. TIPICIDADE RECONHECIDA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. RECURSO DESPROVIDO. I. A objetividade jurídica da norma penal transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e do corpo social como um todo, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que a Lei propicia. II. Mostra-se irrelevante, no caso, cogitar-se da eficácia da arma para a configuração do tipo penal em comento, isto é, se ela está ou não municiada ou se a munição está ou não ao alcance das mãos, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para cuja caracterização desimporta o resultado concreto da ação. III - Recurso desprovido.

153 Superior Tribunal de Justiça. RHC 21423/SP. Recurso Ordinário em Habeas Corpus

2007/0130597-4. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Órgão Julgador: Quinta Turma. Data do Julgamento: 18/06/2009. Disponível em: http://www.stj.gov.br. Acesso em: 10/11/2009.

154 Supremo Tribunal Federal. Recurso em Habeas Corpus 90197/DF. Relator(a): Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Primeira Turma. Data Julgamento: 09/06/2009. Disponível em: http://www.stj.gov.br. Acesso em: 10/11/2009.

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Resta claro que, embora se trate de tema de grande

relevância, a investigação sobre a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato

pouco tem sido aprimorada ou discutida na aplicação concreta das penas. A tarefa,

por ora, tem ficado a cargo tão somente da doutrina, pouco importando para os

órgãos da Justiça, o significado maior dos crimes de perigo abstrato. Basta a

realização da conduta, para que se enseje um decreto condenatório,

independentemente de efetiva lesão a qualquer bem jurídico.

3.5 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA PRESUNÇÃO NOS CRIMES DE PERIGO

ABSTRATO

Após verificar a atividade do legislador, os fundamentos para o

direito penal preventivo, a sustentação de um direito penal considerado para o

“inimigo”, na criação de tutelas antecipadas e, inclusive, na supressão de garantias

fundamentais e a penalização a sujeitos ativos de crimes de perigo abstrato nos

casos concretos, cabe-nos verificar a fundamentação sobre a inconstitucionalidade

desses crimes.

Observa-se que, os fundamentos favoráveis à presunção nos

crimes de perigo abstrato se ativeram à sustentação da necessidade de um direito

penal preventivo. Portanto, por motivos de delimitação da pesquisa, trataremos, em

maior decorrência, dos fundamentos desfavoráveis à presunção nos crimes de

perigo abstrato.

PAULO QUEIROZ155 sustenta que a existência de objeção aos

crimes de perigo abstrato se deve ao fato de que não há observação ao princípio da

lesividade, pois que a presunção se põe em uma posição anterior ao próprio crime,

de modo que não exista perigo algum e a penalização se baseia na simples

desobediência à norma. Contudo, assevera que nem sempre a aderência à

presunção de perigo é inconstitucional, dado que:

[...] casos há em que o perigo de lesão é de tal modo grave que a sua criminalização se justifica plenamente, tal como ocorre com a falsificação de moeda, por exemplo, razão pela qual cumpre verificar

155 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. p. 166/167.

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cada caso concretamente, de modo a verificar se sua tipificação é ou não legítima.

Nesta esfera, leva-se em consideração o caso em si, pois em

determinadas situações, não é razoável presumir o perigo, já em outras, o perigo de

lesão é tão grave que merece uma resposta penal.

ROGÉRIO GRECO156, comentando as infrações penais frente

ao 'teste de lesividade', cita Luiz Flávio Gomes, segundo o qual nenhum delito de

perigo abstrato merece guarida pelo ordenamento jurídico. Cita também Mariano

Silvestroni, para o qual, referidos crimes não devem ser aceitos se o sistema admite

o princípio da lesividade. Continua afirmando que, o princípio da lesividade é de

observância obrigatória, e por tal motivo, “[...] o Direito Penal está impedido de

proibir, por exemplo, a automutilação, pois a conduta daquele que se quer mutilar

não ultrapassa a pessoa do agente e não atinge, consequentemente, bens de

terceiros.”

E segue ainda, exemplificando condutas que a afetação ao

bem jurídico não se efetiva realmente no caso concreto, como é o caso das “[...]

contravenções penais de vadiagem, mendicância, embriaguez e, ainda, o que se

tem mais discutido ultimamente, o crime previsto no art. 28 da Lei 11.343/2006, que

prevê o consumo de drogas.”157

Quando o direito penal ocupa-se de crimes como estes,

conforme assegura GUILHERME DE SOUZA NUCCI158, acaba por intervir numa

área que não lhe compete, há de se levar em conta que:

[…] o Estado deve respeitar a esfera íntima do cidadão. Se o fizer, haveria respeito à intervenção mínima e, como consequência, ao princípio da ofensividade. Em outras palavras, não é todo bem jurídico protegido que merece proteção do Direito Penal. Há outros ramos do direito para isso. Portanto, podemos encontrar situações ofensivas a determinados bens, mas inofensivas em matéria penal.

156 GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 4. ed. rev.

ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2009. p. 79. 157 GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. p. 79. 158 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. p. 74.

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Por conseguinte, em primeiro plano, o bem jurídico em que

pese a ofensa, para que haja tutela penal, deve ser relevante, relevante para o

mundo jurídico e para o meio social. Em segundo plano, não há que se ter uma

intervenção excessiva na vida privada de cada um, sob pena de se recorrer a um

Estado Totalitário e Intervencionista.159

PAULO QUEIROZ160 traz o artigo 19 da constituição argentina,

que dispunha no seu texto que: “as ações privadas de homens que de nenhum

modo ofendem à ordem e à moral pública, nem prejudiquem a um terceiro, estão

reservadas a Deus e isentas da autoridade dos magistrados”.

Deste modo, além dos requisitos já explicitados, para que o

direito penal dispense atenção aos bens jurídicos, a ofensa aos mesmos deve

expressar também uma ofensa à ordem e à moral pública, ou prejudicar terceira

pessoa, de alguma forma.

Da mesma forma, em análise a nossa própria Constituição,

PAULO QUEIROZ161 afronta a presunção de perigo, certificando que:

[...] se é o objetivo fundamental da República, como declarado no art. 3º, constituir uma sociedade livre, se são invioláveis a liberdade, a intimidade (art. 5º) e a vida privada, e se é explícita a sua vocação libertária, segue-se que nenhum ato de constrição à liberdade pode ser tolerado, salvo quando em virtude do abuso do seu exercício resultar dano/lesão à liberdade de outrem. Consequentemente, condutas meramente imorais, por mais escandalosas, não autorizam a intervenção penal, nem tampouco podem vingar em caráter absoluto presunções legais de violência ou de perigo, como ainda prevê o Código Penal, sob pena de absolutizar o que é relativo.

MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA162, por sua

vez, corrobora que existe diferença entre casos em que há insuficiente tutela penal e

casos em que não existe tutela penal alguma. Mesmo quando há insuficiente tutela

penal, se o legislador entendeu ser necessária a criminalização, presume-se que

agiu em acordo com as garantias constitucionais. Contudo, se houver divergência

159 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. p. 74. 160 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. p. 58. 161 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. p. 59. 162 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos

da tutela penal. p. 86.

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entre a hierarquia dos bens a serem tutelados na previsão de crimes de perigo e às

ordens constitucionais, é de se questionar a constitucionalidade dessas normas

penais.

Existem casos, em que é possível, portanto, a presunção de

perigo. Ocorre que referida presunção não pode se por de modo absoluto, pois dada

conduta pode ser inócua, e por isso, pode repercutir numa absolvição baseada no

princípio da insignificância, por exemplo. E por assim ser, nem justificaria a

movimentação do direito penal.163

Portanto, frisa-se que:

[…] afastada qualquer possibilidade de perigo, não houve nenhum risco para o bem jurídico, deixando-se de se estabelecer a imprescindível conexão entre a ação e o objeto de tutela penal, e tornando desautorizada a intervenção punitiva.164

Sobre a constitucionalidade, em uma análise mais específica

em relação aos princípios constitucionais, LÊNIO LUIS STRECK165 aduz que

somente a lesão concreta ou a efetiva possibilidade de lesão imediata a algum bem

jurídico autorizaria a intromissão penal do Estado, sob pena de o Estado estabelecer

responsabilidade objetiva no direito penal, punindo condutas in abstracto, violando

os princípios conquistados pelo Estado Democrático de Direito.

Levando em consideração tal assertiva, necessário se faz

trazer o entendimento de LUIZ FLÁVIO GOMES166:

[...] a lei, em suma, não pode presumir fatos ou a culpabilidade. Não pode presumir, em consequência, o perigo, como algo inerente à conduta. A presunção legal de perigo, como sabemos, desobriga o acusador de demonstrar o perigo concretamente. É exatamente isso que conflita flagrantemente com a presunção de inocência, pois esta impõe o dever ao acusador de comprovar legalmente a culpabilidade [...]. Comprovar legalmente a culpabilidade significa demonstrar dentro do processo a existência de um fato lesivo ou perigoso para

163 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. p. 72. 164 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. p. 72. 165 STRECK, Lênio Luis. O crime de porte de arma à luz da principiologia constitucional e do

controle de constitucionalidade: três soluções à luz da hermenêutica. Revista De Estudos Criminais do ITEC, Ano 1 – 2001, n.º 01. p. 52/63.

166 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 78.

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um bem jurídico e, ao mesmo tempo, que ele é atribuível ao seu agente.

Não obstante a presente pesquisa se propõe a verificar

constitucionalidade da presunção nos crimes de perigo abstrato face,

especificamente, ao princípio da ofensividade, e, por conseguinte, dos preceitos

constitucionais, pôde se verificar ao longo desta, e em consonância com

entendimento de Luiz Flávio Gomes, supra, que a presunção em si, também

prejudica a garantia da presunção de inocência.

Como não é demais observar, seja em afronta ao princípio da

presunção de inocência, seja ao princípio da ofensividade, objeto principal da

investigação que aqui se propõe, há de se convir, que ambas as garantias decorrem

da dignidade da pessoa humana, e por derradeiro, dos fundamentos basilares do

Estado Democrático de Direito.

Sobre a dignidade da pessoa humana, acentua JOSÉ

CEREZO MIR167 que:

[…] o respeito à dignidade da pessoa humana é um princípio material de justiça de validade a priori. Isto se o direito não quer ser mera força, mero terror. Se quer obrigar aos cidadãos em sua consciência, há de respeitar a condição do homem como pessoa.

Também não é demasiado lembrar-se da importância que a

nossa constituição elegeu ao princípio da dignidade da pessoa humana, não se

tratando de “[...] mera abstração, que só se concretiza no plano ideal, mas como

princípio que se impõe a todas as ações estatais.”168

Se existe a necessidade de comprovação de um fato lesivo ou

perigoso para um bem jurídico no sistema penal brasileiro e se a aplicação de pena

aos sujeitos ativos dos crimes de perigo abstrato baseia-se em mera presunção,

aparentemente há uma violação aos preceitos maiores da Constituição Federal

Brasileira. Isto porque, mesmo que a jurisdição hodierna não reconheça a aplicação

do princípio da lesividade no nosso ordenamento jurídico, os crimes de perigo

167 MIR, José Cerezo, apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. p.

113. 168 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. p. 113.

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abstrato refletem aversão às demais garantias constitucionais, decorrendo todas da

dignidade da pessoa humana, e logo, do Estado Democrático de Direito.

Ademais, tratando-se de valores constitucionais, a obediência à

norma hierarquicamente superior se põe obrigatória a qualquer consideração jurídica

ou avaliação pessoal sobre a necessidade da consideração destes preceitos.

Uma vez que a Carta Magna erigiu valores, é porque

considerou essenciais e dignos de qualquer ser humano, e como direitos

indisponíveis, não cabe a qualquer homem refutá-los, renunciá-los ou presumir fatos

para que não sejam aplicados.

Contudo, pela existência de fundamentação acerca da

necessidade da prevenção, há que se considerar que somente o caso concreto

demonstrará a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da presunção nos

crimes de perigo abstrato.

Se refutar a aplicação do princípio da ofensividade, ante a

incriminação de condutas de perigo abstrato para a prevenção, a presunção de

perigo é constitucional, visto que os direitos e garantias individuais não são

considerados detentores de caráter absoluto, levando-se em consideração bens de

relevante interesse público.

Havendo casos, no entanto, em que haja a possibilidade de

observação ao princípio da ofensidade, a presunção de perigo põe-se

inconstitucional, uma vez que não existirá fundamentação consistente para legitimar

a ação estatal, quando não pautada na prevenção.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para iniciar a presente pesquisa, no capítulo 1, a fim de melhor

compreender os aspectos do direito constitucional fundamentais para o direito penal,

foi abordado o conceito de Estado, e então se identificou o Estado Democrático de

Direito.

Verificou-se que do Estado Democrático de Direito surgem as

garantias fundamentais, alicerçadas na Dignidade Humana, as quais servem de

limite para as próprias ações do Estado.

Não só pelas garantias fundamentais, mas por razão de lógica,

o Estado, em si, já é um ente delimitado. Ainda que controlasse de forma quase

completa a sociedade, frisa-se, “quase completa”, seu poder acaba onde sua

capacidade o limita. Jamais, por exemplo, o Estado será capaz de policiar

pensamentos e intenções humanas. Tal ação é surreal, está mais para um plano

religioso, que para um plano humano. Diga-se, o Estado advém da sociedade, e a

sociedade, de pessoas.

Mesmo que a sociedade doe parte de sua liberdade à sua

autoridade, ou seja, ao Estado, em vista do contrato social, para que este venha

atender aos interesses e anseios públicos, o poder estatal sempre estará restrito,

inclusive, pelas suas próprias normas.

Ao traçarmos o histórico da Constituição, verificou-se que a

norma máxima brasileira que está para reger a estrutura e as ações do Estado,

hodiernamente, é a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Também chamada de “carta política”, é com observância à Constituição que devem

seguir as ações da sociedade e dos poderes do Estado. Todas as demais normas

constantes do ordenamento jurídico devem estar em consonância com a

Constituição. Aquelas normas que não estão em concordância com a Constituição

são passíveis de inconstitucionalidade.

Na esfera principiológica, verificou-se que os princípios

constitucionais se põem como normas de observância obrigatória. Estas normas são

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aptas a levarem ao julgador à realização de juízos de valor. Submetem, porém, não

somente o julgador, mas o legislador e demais operadores do direito.

No que tange aos princípios de direito penal, estes são

oriundos dos preceitos constitucionais. Muitos desses princípios não seguem

expressos na Constituição, mas é possível deduzi-los da essência constitucional.

Na presente pesquisa, embora se pudesse tratar de uma série

de princípios constitucionais e penais, por razões de adstrição didática, foi abordado

somente o princípio da ofensividade, para melhor compreensão.

Ao explanar-se o princípio da ofensividade, foi necessário

buscar a definição de bem jurídico.

Constatou-se que o bem jurídico é o liame para que se legitime

a incriminação, o que tornou sensata a discussão sobre a constitucionalidade dos

crimes de perigo abstrato. Isto porque, dessa forma, o Direito Penal fica limitado a

somente incriminar uma conduta para proteger bens jurídicos.

Em estudo mais aprofundado em relação ao princípio da

ofensividade, encerrou-se o primeiro capítulo com a consideração de que, se não há

efetiva lesão ou um risco concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, não deveria

haver conduta incriminadora.

No capítulo 2 buscou-se as classificações dos crimes no

sistema penal brasileiro, momento em que se fez preciso o conceito de crime,

propriamente dito.

Nas características do crime, foi imperativo relatar aspectos da

imputação objetiva, bem como dos elementos subjetivos do crime, para após, trazer

a classificação dos crimes.

Na classificação dos crimes examinou-se a diferença entre

crimes materiais, formais, de mera conduta, de dano e de perigo.

Analisou-se, ainda, a divisão do crime de perigo em crime de

perigo concreto e crime de perigo abstrato, pois a pesquisa restou delimitada

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somente no que se refere aos crimes de perigo abstrato.

Apurou-se que os crimes de perigo abstrato não exigem prova

de efetivo perigo, ou de efetiva lesão ao bem jurídico. Isto é, pode não haver real

perigo, mas mera probabilidade. Neste sentido, pune-se pela presunção de que

poderá ocorrer o perigo, independentemente se esse perigo ocorrer ou não.

Ocorre que, os crimes de perigo abstrato são crimes sem

resultado imediato e nem sempre a conduta causará algum perigo.

Contudo, o capítulo 2 foi finalizado com a constatação de que

com relação ao crime de perigo abstrato, através da mera realização da conduta, se

pressupõe que há a possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado, havendo a

incriminação.

No capítulo 3, para verificar a constitucionalidade nos crimes de

perigo abstrato face ao princípio constitucional da ofensividade, apurou-se que

existem duas posições quanto ao tema proposto. A posição pautada na

constitucionalidade está baseada na necessidade da prevenção que a sociedade

atual exige. Já a posição de inconstitucionalidade funda-se na supressão de

garantias constitucionais, em que o direito penal é um direito penal do inimigo, ao

invés de ser um direito penal do cidadão.

Averigou-se o arbítrio do legislador, o que levou a conjeturar

que, ao se apossar da função legislativa, pela vontade da coletividade, há

presunção, ainda que relativa, de que o legislador, em representação, age de forma

a atender ao interesse público, possuindo poderes bastantes para conhecer as

necessidades sociais e legislar em consonância com a Constituição.

Adentrando no âmbito do direito penal da prevenção, extraiu-se

que, por razões de política criminal, e pela própria natureza de determinados bens,

especificamente os difusos, a exemplo da ordem econômica e do meio ambiente, as

necessidades coevas clamam pela incriminação de condutas de perigo abstrato. Se

assim não o for, pode ocorrer que, a repressão, apenas do efetivo dano, gere sua

irreparabilidade, de modo a restar prejudicada toda a sociedade.

Uma vez que a previsão de crimes de perigo abstrato protege

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bens que possam ser lesionados de forma a não haver reparação, a conduta deve

ser considerada crime, se há adequação ao tipo penal.

No que concerne à fundamentação da inconstitucionalidade,

constatou-se que transformar o direito penal dos bens jurídicos em um direito penal

dos perigos, não significa que está a proteger, efetivamente, bens jurídicos antes da

ocorrência de uma conduta delituosa. Se estiver a privar-se do perigo, para que este

não se concretize, não se concretizando, não há do que se proteger. Ou seja, o

direito penal, na prevenção, age enquanto não seria necessária sua intervenção.

Assim, a prevenção através da previsão de crimes de perigo

abstrato é um arbítrio estatal em que se adianta a punibilidade, impõe-se pena, o

que não é proporcional ao agravo, e se relativiza ou se suprime determinadas

garantias processuais, o que revela um direito penal do inimigo.

Se a dignidade da pessoa humana é princípio material de

justiça de validade que se impõe a todas as ações estatais, e se a presunção nos

crimes de perigo abstrato confronta, dentre outros, com o princípio da ofenvidade,

decorrente da dignidade da pessoa humana, a previsão destes tipos penais e suas

aplicações não seriam válidas.

No entanto, nos casos concretos, principalmente no

ordenamento jurídico brasileiro, revelou-se que nem sempre há espaço ou aplicação

para o princípio da ofensividade, o que extirpa a hipótese de inconstitucionalidade da

penalização pela realização dos crimes de perigo abstrato.

O capítulo 3 findou-se com a verificação de que somente o

caso concreto demonstrará a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da

presunção nos crimes de perigo abstrato.

Se refutar a aplicação do princípio da ofensividade, ante a

incriminação de condutas de perigo abstrato para a prevenção, a presunção de

perigo é constitucional, visto que os direitos e garantias individuais não são

considerados detentores de caráter absoluto, levando-se em consideração bens de

relevante interesse público.

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Havendo casos, no entanto, em que haja a possibilidade de

observação ao princípio da ofensidade, a presunção de perigo põe-se

inconstitucional, uma vez que não existirá fundamentação consistente para legitimar

a ação estatal, quando não pautada na prevenção.

Destarte, retornando à hipótese proposta inicialmente, tem-se

que esta não se confirmou, em razão de que, além da fundamentação alicerçada na

inconstitucionalidade da presunção nos crimes de perigo abstrato, face ao princípio

da ofensividade, existe a fundamentação firmada na constitucionalidade, baseada na

necessidade da prevenção que a sociedade atual exige, excluindo, portanto, a

aplicação do princípio da ofensividade, em caráter absoluto.

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