a práxis do trabalho associado

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  • 7/24/2019 A Prxis Do Trabalho Associado

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    A prxis do trabalho associado:

    A PRXISDO TRABALHOASSOCIADO: DA ECONOMIA SOLIDRIA PARAAPERSPECTIVADASOLIDARIEDADEORGNICAEAUTOGESTOSOCIETALTHE PRAXIS OFASSOCIATED LABOR: FROM SOLIDARITY ECONOMY TO THE

    PERSPECTIVEOFORGANICSOLIDARITYANDSOCIETALSELF-MANAGEMENT

    di Augusto BENINI1

    Gabriel Gualhanone NEMIROVSKY2

    Elcio Gustavo BENINI3

    RESUMO:Ao se centralizar o escopo multifacetado das diversas prticas organizativas da economia solidria na perspectiva do trabalhoassociado, percebe-se que no h ainda mesmo aps duas dcadas de vasta produo terica sobre o tema uma profunda discusso, deteor estruturante e, ao mesmo tempo, prtico, capaz de colocar em debate as mediaes e elementos-chave necessrios a uma tentativa realde consolidao de uma alternativa produo social dominada pelo capital, viabilizada pela organizao autogestionria da sociedade.Nesse sentido, o objetivo do presente estudo dar incio a essa discusso, promovendo uma proposta para a construo das possveis basesmateriais que sustentariam as mediaes de um intercmbio social inovador centrado no trabalho associado. Desse modo, conclui-seque a tentativa de se superar a real subsuno da economia solidria ao plano de mediaes alienadas do capital implica em se construiruma proposta para a formao de relaes econmicas profundas entre as experincias do trabalho associado, sob a gide de um SistemaOrgnico do Trabalho.

    PALAVRASCHAVE: economia solidria; autogesto; sistema orgnico do trabalho.

    INTRODUO

    Observando-se em retrospectiva a profuso terica acerca da economia solidria,desenvolvida ao longo da dcada de 1990 e, principalmente, na primeira dcada do sculoXXI, depreende-se que h clara ingenuidade ou precipitao contida na ideia de que algumaforma de convergncia terica sobre o tema finalmente pde ser alcanada. De fato, o quadroterico da economia solidria assemelha-se a um emaranhado de descries e prescriesaparentemente catico e ainda distante de uma tese consensual em seus aspectos principais.

    Em meio a esse escopo difuso de anlises, as manifestaes concretas da economiasolidria, tais como as cooperativas populares, as fbricas recuperadas, os grupos de troca,etc. foram submetidas a interpretaes diversas, provenientes de teses sobre: economiado trabalho; socioeconomia; socialismo autogestionrio; economia plural; economia daddiva, etc. At mesmo possvel identificar, a partir de Barbosa (2007), um dualismo

    1 Professor Assistente da Universidade Federal de Tocantins (UFT), Campus de Palmas. Palmas, Tocantins, Brasil. E-mail:[email protected]

    Professor Substituto do Centro de Cincias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] Professor Assistente do Centro de Cincias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). CampoGrande, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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    interpretativo que coloca a economia solidria em plos distintos de anlise, ora comomovimento espontneo da sociedade em sua luta por trabalho e renda, ora como polticapblica responsvel por induzir a sociedade civil a esse movimento.

    No entanto, em que pese o fluxo de concatenaes subjetivas orbitando o tema, ostrabalhos de Mance (2003), Singer (2002) e Novaes (2007) permitem apontar a necessidadeobjetiva de coordenao sistmica e, por conseguinte, de generalizao da economia solidria, emseus caracteres polticos e econmicos, como nica fonte estruturalmente vivel consolidaodas novas relaes sociais de produo, contidas ainda em estado nascente nas experinciasisoladas das organizaes pertencentes ao diversificado universo da produo associada.

    Contraditoriamente, os dados fornecidos pela Associao Nacional de Trabalhadorese Empresas de Autogesto (ANTEAG, 2009) sobre a articulao entre Empreendimentos

    Econmicos Solidrios (EES), evidenciam o amplo direcionamento dos mesmos aos debatese trocas de experincia favorecidos pela formao de mbitos regionais e nacionais, como osfruns de economia solidria sem mencionar o forte estreitamento das relaes polticasentre EES e movimentos urbanos e rurais de reivindicao social enquanto a formaoconcreta de enlaces econmicos entre esses empreendimentos, que possibilitariam o fluxocontnuo de insumos, bens finais, servios e finanas dentro de redes de colaborao solidriase esboa de forma ainda distorcida na presena ou integrando cadeias produtivas de cartermercantil e capitalista.

    Vrios fatores concorrem para explicar o descompasso que se assevera entre a articulaopoltica e a incipiente rede de relaes econmicas entre os EES: o desgaste da plataformademocrtica interna a esses empreendimentos que os corri tambm economicamente; aconcorrncia com empresas convencionais; o isolamento territorial das prticas solidrias,etc. Sem menosprezar o peso desses elementos, levantamos como hiptese, no entanto, quea falta de perspectivas prticas para a ao econmica integrada dos EES a condio centralnesse problemtico contexto.

    Pressupomos, portanto, que o desenvolvimento material da economia solidria tem

    sofrido os efeitos da ausncia de elementos estruturantes capazes de manifestar o contedoprtico da organizao em rede dos produtores associados. Nesse sentido, o presentetrabalho pretende incitar uma primeira abordagem dessa temtica, situando a necessidadede construo das mediaes dialticas essenciais para o desenvolvimento da produoassociada enquanto base de um sistema orgnico contestador da ordem metablica vigente,baseada no domnio totalitrio do capital.

    Dessa forma, a economia solidria deve ser apreendida como um movimento que sesitua no contexto do trabalho associado, e tambm um movimento que promove, sobretudo,

    mltiplas combinaes e possibilidades. Porm, importante tambm considerar que taldiversidade no fortuita, mas sim resultado de reiteradas tentativas de desmercantilizao

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    A prxis do trabalho associado:

    do trabalho, por meio e dentro de novas relaes de produo, eis, portanto, a essncia de sebuscar um tipo de organizao econmica solidria baseada na autogesto.

    Logo, conforme j argumentamos em Benini e Benini (2008, 2010), em que pesea necessria priorizao de insero monetria nos fluxos de riqueza societal dominantes,condio para a sobrevivncia de um sem nmero de seres humanos, possvel tambmidentificar importantes elementos estruturantes, alm daquela realidade imediata, emebulio nesse processo.

    verdade que nada garante, a priori, que tais elementos ou componentes, de cunhomais estrutural e, dessa forma, portadores efetivos de novas relaes sociais de produo,venham a se constituir plenamente e com a necessria densidade ontolgica. Entretanto, igualmente possvel identificar, numa perspectiva dialtica, pontos de ruptura ou

    inovao societal importantes na prxis da economia solidria, e que se bem percebidos ecompreendidos, podem, perfeitamente, dentro de um determinado projeto poltico, ser re-combinados e potencializados.

    justamente para evidenciar esse aspecto crucial para o trabalho associado, vindo ouadvindo das variadas prxis do movimento de economia solidria, o propsito do presenteestudo. Inferindo dessa prxis, que observamos esse componente estruturante - fruto danecessidade de se viabilizar ou sustentar os empreendimentos de cunho solidrio, nas relaessociais - e autogestionrio, na sua perspectiva poltica, que justamente a busca por meios

    de integrao econmica do trabalho. Tal componente estruturante tambm abre, comopossibilidade ontolgica, no contexto do trabalho associado, a perspectiva de um sistemaorgnico do trabalho.

    A ECONOMIASOLIDRIACOMOPRXISORGANIZACIONAL

    Um fato importante a se considerar que no desenvolvimento moderno do setorprodutivo, considerando como ponto inicial a primeira revoluo industrial, os trabalhadorestiverem pouco ou praticamente nenhum espao para sua auto-organizao.

    Desse modo, as teorias organizacionais, e as tcnicas de gesto correspondentes,desenvolveram-se sob a gide do trabalho assalariado, conforme os estudos organizacionaisde Motta (1980, 1981 e 1981a) j demonstraram exaustivamente.

    Isso significa que a alienao do trabalho no diz respeito apenas ao seu fruto material,como tambm est relacionada com as condies organizacionais, sociais e, em ultima anlise,condies polticas, de autodeterminao dos seres humanos enquanto trabalhadores, ouseja, na sua mediao com a natureza para obter valores de uso.

    Sendo o trabalho reduzido a um mero fator de produo, remunerado conforme oseu dispndio ou gasto no tempo - o trabalho assalariado - h tambm uma inverso no

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    propsito organizacional, que passa a estar centrada na produo de valores de troca para aacumulao, e no na produo de valores de uso para os seres humanos.

    Nessa estrutura, o fator de produo trabalho um meio de eficincia produtiva parase atingir aquela eficcia organizacional, j descrita, de acumulao. Logo, desenvolvidotodo um conjunto de padres organizacionais e tcnicas gerenciais no do ponto de vistado trabalho, ou tendo este como sujeito, mas sim para o propsito de acumular capital. nesse sentido que a administrao, enquanto objeto de estudo, entendida tambm comoideologia, pois est determinada pelos pressupostos dominantes das organizaes.

    Naturalmente que tendo o trabalho como fator de produo, praticamente como umobjeto, esse ser visto e gerenciado na perspectiva do aumento de sua produtividade. Mesmoas modernas tcnicas participativas, entre outros modismos que vez ou outra esto em pauta,

    em ultima anlise so mecanismos para melhorar aspectos motivacionais ou o envolvimentodo pessoal nos objetivos da organizao, buscando gerar um tipo de comportamentoorganizacional mais adequado produtividade e ao desempenho dos fluxos de acumulao.

    Muito diferente, ou at mesmo ontologicamente oposto a isso, seria considerar otrabalhador coletivo mais que um item de produo, mas, sobretudo, sujeito por excelnciade todo o processo produtivo.

    Na medida em que o trabalho posto como objeto tem-se tambm a heterogestocomo base das organizaes modernas, da mesma forma que ao se re-situar o trabalho como

    sujeito teramos a autogesto como base estruturante das organizaes.Entretanto, a heterogesto foi, por mais de dois sculos, amplamente desenvolvida

    e sofisticada, por meio de ostensivos estudos e pesquisas acadmicas (direcionados paraeste objeto e fim particular), sem falar de todo o apoio e aporte financeiro e institucional,que lhe garante ampla sustentao e blindagem, criando todo um sistema ontologicamenteintegrado, ou seja, orgnico ao capital.

    J a autogesto se coloca, inicialmente, apenas como alternativa e resistncia frentequela situao j dada, no encontrando, portanto, espao sequer para iniciar seus primeirospassos, tanto na perspectiva prtica quanto terica, ou seja, iniciar de fato a sua efetiva prxispara, com isso, criar seus prprios meios organizacionais e institucionais de sustentao.

    Nesse contexto histrico, a autogesto se coloca como opo dialtica e ontolgica aotrabalho assalariado de cunho heterogestionrio, ou seja, sua anttese imediata. Logo, no uma opo aberta entre dois caminhos possveis, mas, sobretudo, uma opo dialtica queprecisa construir sua sustentao ontolgica frente a um fato j consumado a instituiode uma sociedade capitalista. Trata-se ento de um movimento que primeiro se situa comoresistncia e conflito, frente ao sistema orgnico do capital, para em seguida constituir suaprpria matriz organizacional e institucional.

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    A prxis do trabalho associado:

    Enquanto possibilidade dialtica, a autogesto experimentou sua primeira formaoe tentativa concreta em alguns momentos histricos de ruptura, como o caso notrio daComuna de Paris, e formas organizacionais especficas de trabalho associado no movimentocooperativista, porm como tentativa de auto-organizao de grupos, com interesses comuns

    e em conflito com o sistema orgnico do capital.Com a emergncia do desemprego de tipoestrutural no final do sculo passado e, nesse mesmo contexto, a reafirmao do trabalhocomo mercadoria, ou seja, o recrudescimento da sua explorao e precarizao, novamenteo trabalho, que antes havia conquistado mecanismos estatais de proteo e relativadesmercantilizao, por meio dos direitos sociais (cuja amplitude e qualidade diferem deum pas para outro), passa novamente para uma posio de vulnerabilidade, de necessriaresistncia e conflito.

    Nesse novo ciclo de resistncia do trabalho, frente aos inmeros artifcios de

    espoliao, que a perspectiva da autogesto ganha renovado espao como proposta deorganizao do trabalho, isso no movimento da chamada economia solidria.

    Devido justamente ao no desenvolvimento pleno do que seria, a rigor, uma formade organizao do trabalho de matriz autogestionria que a sua primeira tentativa oumanifestao a cooperativa tradicional tambm recuperada e inserida como formaprincipal de organizar os trabalhadores na proposta de economia solidria.

    Porm, h limitaes na forma organizacional das cooperativas, uma vez que estas,

    grosso modo, so estruturadas, simultaneamente, por um sistema patrimonial privadode cotas, um sistema produtivo fragmentado, um sistema distributivo de mercado e umsistema de gesto com alguns mecanismos decisrios de participao. Levando em conta osaspectos de propriedade, distribuio e organizao, a rigor as cooperativas se inserem comoempresas capitalistas da mesma forma que as demais, ainda que com algumas diferenciaes.As cooperativas esto baseadas na propriedade privada, embora amenizada pelo sistema decotas de grupos, vinculada ao trabalho; na fragmentao produtiva, pois cada cooperativa ouunidade de produo isolada, ou seja, elas competem entre si, no constituindo um sistemaorgnico ou algum tipo de coordenao integrada; e a sua distribuio realizada dentro da

    lgica do capital, o determinante o valor de troca das mercadorias.

    Por sua vez, o movimento da economia solidria, na nossa leitura, ao mesmo tempoem que se apia na forma organizacional de cooperativas, tambm evidencia essa mesmatenso e subordinao estrutural e sistmica.

    No por acaso que vrios movimentos e iniciativas, no contexto da proposta deeconomia solidria, buscam reiteradamente inventar novos elementos de sustentao, indoalm do processo imediato de trabalho e produo, com destaque para a criao de moedas

    sociais, cooperativas de crdito, novas tecnologias sociais, mecanismos para se constituir umaespcie de redes inter-organizacionais ou redes solidrias, entre outras iniciativas.

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    Isso pode se explicado pela prpria natureza de se constituir um tipo especfico derelaes de trabalho, que no se esgotam na sua organizao produtiva mais imediata, masse consolidam apenas em mediaes sistmicas que lhes sustentam. exatamente nesseponto que a economia solidria tambm pode ser vista como prxis organizacional, pois

    o seu movimento dialtico, de uma forma ou de outra, absorve a insuficincia ou mesmoimpossibilidade, do desenvolvimento da autogesto dentro do modo de produo capitalista,um relao antagnica e contraditaria por excelncia.

    Logo, tal movimento contraditrio da proposta de economia solidria se, porum lado, indica pontos de acomodao, colocando os empreendimentos ditos solidriosna condio de funcionalidade ao sistema orgnico do capital, por outro lado, tambmforam outros formas/meios de resistncia e inovaes sociais. justamente nesse ponto quepretendemos evidenciar que: os movimentos contraditrios de se buscar relaes de trabalho

    de base autogestionria no capitalismo, movimentos de contestao do sistema orgnico docapital, podem, numa lgica e estratgia dialtica de enfrentamento direto, se converter econvergir num movimento de constituio de um sistema instituies baseadas na perspectiva daautogesto societal e solidariedade orgnica.

    FUNDAMENTOSEMEDIAESESTRUTURANTES

    Elegemos o conceito de autogesto societal para diferenciar, e com isto ressaltar, o

    necessrio processo histrico de ampliao e escopo da autogesto dos trabalhadores, hojecomo realidade restrita a poucos grupos de auto-ajuda, sendo tal prxis concreta severamentesubordinada ao sistema socioeconmico dominante.

    Porm, para isso, as prticas de auto-ajuda dos trabalhadores precisam ir alm doimediato da sobrevivncia, para uma perspectiva de enfrentamento das causas profundasda sua espoliao. Neste processo, uma possvel (e talvez necessria) prxis diz respeito acriar formas de solidariedade orgnica. Esta solidariedade orgnica se materializaria pormeio de um sistema de instituies, que possam adensar trabalho, trabalhadores e processos

    produtivos num mesmo sistema orgnico (BENINI, 2012), baseado na integraopatrimonial e econmica do trabalho associado.

    Dessa forma, reforamos aqui vrios apontamentos de crtica social que evidenciaser necessria, como condio para se reverter o estabelecido, uma perspectiva sistmicatotalizante. O termo totalizante aqui diz respeito a um sistema de organizao da produoque no seja fragmentado e individualizado, mas sim orgnico e progressivamente global ouna perspectiva de um sistema comunal, e no no sentido totalitrio de dominao, ou deoutras formas de controle hierrquico, de um ou de mais indivduos sobre os demais.

    Entretanto, ainda que um sistema orgnico de se organizar a produo, e suascorrespondentes relaes sociais, tenha dialeticamente um horizonte global, importante

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    A prxis do trabalho associado:

    frisar e ponderar quais os seus fundamentos estruturantes elementares, que determinam oconjunto de formas organizacionais e institucionais.

    Se o trabalho a mediao fundamental da relao homem e natureza, mediaode primeiro grau, h uma primeira determinao estruturante, que possibilita ao homemevoluir como ser social e histrico, e no apenas como ser biolgico em adaptao ao seumeio.

    Mas dado o carter social e histrico da evoluo humana, abre-se novamente umnovo horizonte de opes ontolgicas, conforme as relaes sociais de trabalho e produoso estabelecidas. Uma dessas opes, que justamente a dominante, diz respeito a um tipode relao social baseado no capital.

    Segundo Mszros (2006), o capital estruturado por meio de trs mediaes de

    segunda ordem, a saber: A propriedade privada dos meios de produo;

    Intercmbio mercantil;

    A diviso social e hierrquica do trabalho;

    Dessa forma, para ampliar o escopo e contedo da autogesto, numa perspectivasocietal e, ao mesmo tempo, constituir uma efetiva solidariedade orgnica, seria necessriocriar as mediaes fundamentais correspondentes.

    Nessa perspectiva, para cada uma das mediaes do capital possvel a sua inversodialtica para uma qualidade ontologicamente oposta. Dessa forma, na seqncia, essasnovas mediaes poderiam assumir as seguintes formaes sociais e histricas:

    Propriedade Orgnica, anulando a propriedade privada;

    Renda Sistmica, anulando o intercmbio mercantil;

    Autogesto e auto-organizao, anulando a diviso social e hierrquica.

    Tais mediaes de novo tipo, no podem ser simplesmente idealizadas ou sugeridascomo uma opo individualizada de pessoas ou grupos. Tratam-se de eixos estruturantespara uma outra sociabilidade, logo, no de simples remendos ou melhorias inseridos dentroe subordinadas pelo sistema orgnico do capital, mas de um outro sistema social que rivalizacom este, no sentido de sua superao.

    Nessa perspectiva, talvez no seja possvel, a rigor, um ponto de inflexo a partir deuma clula de pessoas, ou alguns ncleos produtivos, ou mesmo de um movimento social oupoltico, mas sim a inflexo inicial, para aquelas novas mediaes, somente seria vivel j tendoa existncia de um novo sistema socioeconmico de outro tipo e lgica, ou seja, com estruturas,instituies e fluxos aglutinados suficientemente para promover um movimento de expansointerno que se auto-sustente, dentro daquelas novas mediaes de segunda ordem.

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    Para isso, seria necessrio aglutinar, num novo arranjo dialtico, um conjuntoestruturante de instituies e/ou organizaes de sustentao dessa nova sustentabilidade,bem como os eixos produtivos bsicos para as necessidades materiais desse novo sistema.

    Enfim, para criar um ponto de ruptura, com densidade suficiente para impor taldinmica auto-sustentvel, as novas mediaes colocadas simultaneamente criam, e socriadas, por aquele arranjo dialtico institucional e organizacional.

    Nesse horizonte de possibilidades importante ponderar que, para que seja possvelsustentar tais mediaes estruturantes para a autogesto societal e solidariedade orgnica, necessrio recombinar e re-significar, a partir de novos propsitos e lgicas, algumasformas organizacionais j criados na luta concreta dos movimentos e demandas sociais,aproveitando o arcabouo jurdico resultantes de tais embates e inovaes, porm sob uma

    lgica estruturante de outro tipo: integrada e ps capital.Para se viabilizar a mediao propriedade orgnica, a proposta criar um novo tipo

    histrico de fundao, isto porque, considerando que essa figura organizacional fundaoabriga a definio jurdica de ser um patrimnio vinculado a um propsito ou finalidade,pode-se ento utilizar tal instituio para anular a propriedade privada dos meios deproduo (mediao de segundo grau do capital), abrigando o conjunto ou base patrimonialdo Sistema Orgnico do Trabalho (SOT), edificaes, mquinas e equipamentos e outrosmeios de produo, base fundiria ou territorial, entre outros, em uma nova fundao que

    aqui denominamos de Fundao Estruturante Anti-Propriedade.A partir deste mecanismo de integrao patrimonial do trabalho associado, dentro

    outros efeitos possveis, tem-se a superao da lgica de acumulao privada para a de estoqueorgnico de riqueza social.Assim, passa a ser desejvel ou mesmo necessrio todo o ganho emtermos de utilidade, qualidade, manuteno, pois no h outro meio de se conseguir riqueza,seno pela produo do prprio conjunto, no havendo nenhum motivo para destruir umestoque, pois esta ao em nada acrescentaria em valores, como seria normal na lgica dovalor de troca, mas, ao contrrio, empobreceria o conjunto.

    Porm, alm dessa integrao material, necessrio tambm um mecanismo deintegrao econmica do trabalho: a mediao da renda sistmica. Para isso, o estatuto daFundao Estruturante Anti-propriedade deve determinar, de forma constitutiva, que o fluxofinanceiro doado ou pertence Caixa de Mediao Financeira, criando e estruturandoum elo ontolgico de sustentao para o propsito de um sistema orgnico do trabalho, eviabilizando assim a mediao da renda sistmica.

    A forma jurdica assumida pela Caixa de Mediao Financeira seria a de umacooperativa de crdito. Sua funo primordial diz respeito a organizar todos os fluxos

    econmico-financeiros do Sistema Orgnico do Trabalho, sustentando uma lgica desinergia, distribuio da riqueza tanto de forma coletiva - um estoque de riqueza que traga

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    A prxis do trabalho associado:

    benefcios para todos os integrantes da comuna-, como tambm na perspectiva do indivduo,que precisa de alguma liberdade para escolher seus estilos e modos de vida, por meio deuma renda prpria e no subordinada, que na lgica de um sistema orgnico passa a serqualificada e sustentada como renda sistmica, anulando outra mediao de segundo grau

    do capital.

    A renda sistmicasignifica a exata integrao entre o consumo individualizado e osfluxos de riqueza coletivos. A cada item que o produtor associado, agora na condio deconsumidor associado individualizado, opta, ele tambm ter o entendimento, junto como fato concreto, que a sua escolha interfere diretamente na sua renda, uma vez que esta agora sistmica.

    Naturalmente que, de incio, haver a necessidade de um considervel intercmbio

    com o sistema de mercadorias. Tal necessidade precisa ser cuidadosamente planejada epactuada, por meio talvez de percentuais decrescentes de intercmbio no tempo, aumentandoprogressivamente a autonomia econmica e produtiva da comuna, e potencializando a suariqueza, simultaneamente coletiva e individualizada.

    tambm por meio desta cooperativa de crdito, que aqui adquire a funoestruturante de Caixa de Mediao Financeira, que se estabelece o vnculo formal dostrabalhadores com a Comuna, porm agora na condio de produtores livremente associados,na mesma perspectiva que defende Mszros (2011).

    Por sua vez, no contexto de novo arranjo dialtico, as unidades de produo (empresasde autogesto, fbricas dos trabalhadores, cooperativas, empreendimentos econmicossolidrios) passariam a condio de Eixos Produtivos.

    Os eixos produtivos seriam unidades de produo, organizadas em forma decadeias produtivas horizontais e verticais. Com isso se buscaria uma integrao logsticaque potencializasse o trabalho e a qualidade da produo, bem como possibilitasse umplanejamento integrado, inclusive no longo prazo, numa perspectiva global de todo oconjunto produtivo.

    Essa integrao sistmica teria como propsito bsico superar a realidade fragmentadae desconexa das mltiplas cooperativas de trabalho e de produo, ou seja, uma autnticasolidariedade orgnica do trabalho associado. Para isso, seriam necessrios tantouma autogesto imediata, nos conselhos tcnicos, como tambm espaos de autogestocoordenativos, indo de uma escala local, regional, at um horizonte global, na forma, porexemplo, de conselhos de produo integrados a cadeias produtivas e ao consumo, ou atodo o conjunto produtivo, conselhos de inovao e investimento (uma ponte entre aproduo e a Universidade Libertria, na perspectiva de adequao scio-tcnica), ou seja,

    uma autogesto progressiva e ampliada para as vrias conexes necessrias para a produo

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    da riqueza social, sendo inclusive o prprio formato tcnico (por exemplo, uma ergonomiaadequada) de realizar a produo, tambm elemento dessa riqueza.

    Um ponto importante a se destacar que os eixos produtivos no se caracterizariampor uma propriedade, ou seja, formalmente o estoque direto de riqueza, meios de produo,mas seriam patrimnio da Fundao Estruturante Anti-Propriedade, os fluxos de riquezaseriam organizados pela Caixa de Mediao Financeira e os investimentos e inovaestecnolgicos, ponderados e deliberados no conselho das inovaes e do conhecimento,vinculado a um tipo de Universidade, que aqui qualificada de Libertria, no sentido de seruma construo dos trabalhadores associados, para o trabalho associado no alienado.

    Enfim, tendo como suporte ontolgico a propriedade orgnica e a renda sistmica,mais do que autogesto, pode-se constituir/materializar, historicamente falando, uma

    autogesto societal.Tal autogesto societal abrangeria diferentes e articulados espaos ou nveis de

    autogesto, indo desde o lcusimediato da produo (nos eixos produtivos) at um horizontede autogesto territorial, viabilizando um verdadeiro sistema comunal (MSZROS, 2011):expresso mais avanada da solidariedade orgnica dos trabalhadores.

    CONSIDERAESFINAIS: PARAUMASOLIDARIEDADEORGNICADOTRABALHOASSOCIADO

    Entendemos que a proposta e o movimento da chamada Economia Solidria possuiampla diversidade de experincias e propostas ideolgicas, bem como tambm cria e recriacontinuamente vrias contradies.

    No podemos negar a gama de problemas que tal contexto implica: indo desde novasformas de dependncia e assistencialismo, disputa por projetos, recursos, logo, disputapor poder, manipulao das pessoas em posio de vulnerabilidade social, consolidao daprecarizao do trabalho, enfim, funcionalidades lgica de dominao do capital.

    Porm, tambm se deve levar em conta a gama de inovaes, discusses, experimentose pessoas envolvidas no desafio de se superar as relaes de trabalho subordinadas ao capital,de negar a mercantilizao de todos os aspectos da reproduo social, e de se ter como opoe horizonte relaes de produo e sociais de cunho autogestionrio uma nova e efetivaforma de trabalho associado.

    Como, em ultima instncia, no possvel uma autogesto plena ou efetiva dentrodo modo de produo capitalista, tais tentativas de autogesto e experincias de economiasolidria, de forma reativa, ou refletida, discutida e planejada, vm buscando criar outrosaspectos sistmicos, transbordando alm das unidades de produo, na forma de cooperativasou empresas solidrias e, com isso, incluindo/inovando em aspectos importantes dareproduo social.

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    A prxis do trabalho associado:

    Advogamos que tal movimento contraditrio de enfretamento, em que pese sreiteradas dificuldades ou dilemas, cria tambm novas possibilidades histricas, e ao observaratentamente esses elementos, podemos identificar um espao crtico para um novo horizontede eventos.

    Esse horizonte de eventos no diz respeito a nenhum tipo de proposta salvacionista,ou de um pacote de ideais emancipatrias, mas to somente enxergar e compreender que, aomesmo tempo em que o capital se estruturou num sistema orgnico, o trabalho, enquantoclasse e categoria social, igualmente pode se situar no mesmo horizonte, no mesmo carterontolgico de integrao orgnica, sendo que somente a sua alienao o impede destarealizao da sua substncia ou essncia.

    Dito de outra forma, o limite da economia solidria no est centrado nas dificuldades

    de se praticar a autogesto no capitalismo, mas sim em no entender que autogesto implicaem superar as mediaes do capital, o que significa contrapor as instituies de dominaocapitalista, logo, implica em se constituir uma organicidade, no fragmentada, dos elementose mediao prprios do trabalho enquanto ontologia latente.

    Superar a fragmentao, das inmeras formas de economia solidria, significariasimultaneamente desmontar as mediaes alienadoras de segundo grau do capital.Compreender essa relao dialtica crucial para percebermos que as opes e oportunidadej esto dadas. Como nos ensina Motta (1986), preciso apenas que a classe trabalhadora

    encontre os instrumentos adequados para reverter o estabelecido e superarem, plenamente,a sua alienao.

    Desse modo, a tentativa de se estabelecer nesse primeiro momento os elementos emediaes estruturantes necessrios para a integrao orgnica das experincias do trabalhoassociado longe de ser uma proposta final ou acabada apenas um primeiro olhar, umaproposta inicial de discusso, voltada reflexo de uma prxis emancipatria contida naformao do Sistema Orgnico do Trabalho.

    Nesse sentido e tomando-se, portanto, a autogesto como fim e no simplesmente

    mero meio de desenvolvimento, o que resulta da proposta inicial, de fato, um debate aindaem seu incio sobre a necessriaprxis da transio de uma economia solidria ainda sombrado capital para uma forma de produo associada livre dos imperativos da produo socialalienada.

  • 7/24/2019 A Prxis Do Trabalho Associado

    12/12

    20 ORG & DEMO, Marlia, v. 13, n. 2, p. 9-20, Jul./Dez., 2012

    BENINI, . A.; NEMIROVSKY, G. G.; BENINI, E. G.

    BENINI , di Augusto; NEMIROVSKY, Gabriel Gualhanone; BENINI, Elcio Gustavo. e praxisof associated labor: from solidarity economy to the perspective of organic solidarity and societal self-management. ORG & DEMO (Marlia), v. 13, n.2, p. 9-20, Jul./Dez., 2012.

    ABSTRACT: By centralizing the multifaceted scope of the various organizational practices within solidarity economy in the perspectiveof the associated labor, one realizes that there isnt still - even after two decades of extensive theoretical work on the subject - a deepdiscussion of structuring and practical content able to put in a debate the mediations and the key elements needed for a real attempt toconsolidate an alternative to the social production dominated by capital, only made possible by the organization of a self-managed society.Accordingly, the objective of this study is to start this discussion, promoting a proposal for the construction of the possible material basesthat would sustain the mediations of a social exchange centered in associated labor. us, we conclude that the attempt to overcome thereal submission of the solidarity economy to the alienated mediations of capital involves constructing a proposal for the formation of deepeconomic relations between the experiences of associated labor, under the aegis of an Organic System of Labor.

    KEYWORDS: solidarity economy, self-management, organic system of labor

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    Encaminhado em: 10/10/2012

    Aprovado em: 12/11/1012