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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E ECONÔMICAS CURSO DE DIREITO Daniele Vasconcelos de Carvalho A POSSIBILIDADE DE PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL EM RAZÃO DO NÃO PAGAMENTO DE DESPESAS CONDOMINIAIS Governador Valadares 2010

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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE

FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E ECONÔMICAS

CURSO DE DIREITO

Daniele Vasconcelos de Carvalho

A POSSIBILIDADE DE PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL EM

RAZÃO DO NÃO PAGAMENTO DE DESPESAS CONDOMINIAIS

Governador Valadares

2010

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DANIELE VASCONCELOS DE CARVALHO

A POSSIBILIDADE DE PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL EM

RAZÃO DO NÃO PAGAMENTO DE DESPESAS CONDOMINIAIS

Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito, Ciências Administrativas

e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce.

Orientadora: Profª. Vanessa Armond Campanha

Governador Valadares

2010

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DANIELE VASCONCELOS DE CARVALHO

A POSSIBILIDADE DE PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL EM

RAZÃO DO NÃO PAGAMENTO DE DESPESAS CONDOMINIAIS

Monografia apresentada como requisito para

obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio

Doce.

Governador Valadares, de de .

Banca Examinadora

_______________________________________ Profª. Vanessa Armond Campanha - Orientadora

Universidade Vale do Rio Doce

_______________________________________

Prof.

Universidade Vale do Rio Doce

_______________________________________

Prof. Universidade Vale do Rio Doce

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Dedico este trabalho a todos aqueles que me

apoiaram no decorrer do curso, em especial

aos amigos Aline da Silva Luiz, Marriette da

Paz, Gabriel Moreira Coura e Tatiane Pereira

do Amaral Oliveira.

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AGRADECIMENTO

Agradeço ao solícito amigo Gabriel Moreira Coura, que, com suas críticas e

sugestões, tanto contribuiu para realização deste trabalho.

A Tarcízzio Diniz Bicalho, que se dispôs a me ajudar no que fosse preciso.

A todos que, de alguma forma contribuíram para que este trabalho fosse possível.

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RESUMO

Instituto de origem norte-americana, o Bem de Família foi introduzido no Brasil pelo Código Civil de 1916, sob a forma voluntária, dependendo da vontade do chefe da família para sua constituição. Ao lado desta modalidade de proteção da moradia

familiar, em 1990, por meio da Lei 8.009/90, criou o legislador o bem de família involuntário ou legal. A partir deste momento, o único imóvel em que residia o devedor e sua família passava a ser, automaticamente, impenhorável em relação às

dívidas por eles contraídas. Foram ressalvadas, contudo, exceções à impenhorabilidade em relação à determinadas obrigações, entre elas o pagamento de impostos, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar. Surge

então o seguinte questionamento: a expressão contribuições se referiria somente a uma espécie tributária ou abarcaria também o valor devido por aquele que reside em condomínio em edifício de apartamentos para cobrir as despesas realizadas para a

manutenção e conservação das áreas comuns? Este trabalho propõe-se a responder a esta indagação. Primeiramente foi realizada uma breve análise do surgimento do instituto, sua aplicação em outros países do Mundo, bem como um

estudo da legislação atinente ao tema no Brasil. Em seguida, foram analisadas as hipóteses de exceção à impenhorabilidade consagradas pela Lei 8.009/90, especialmente daquela constante de seu artigo 3º, IV.

Palavras-chave: Bem de família. Impenhorabilidade. Exceções. Contribuições. Despesas de Condomínio.

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ABSTRACT

Homestead is a concept originated in the United States of America and was introduced in Brazil by the 1916 Civil Code, under a voluntary basis, depending on the wishes of the head of the family. Besides this mode of protection of family

housing in 1990 by Law 8.009/90, the legislature created the homestead involuntary or legal. From this moment, the property where family resides started being automatically excluded from attachment in relation to debts contracted by them.

Were disclaimed, however, exceptions to immunity from seizure in respect of certain obligations, including payment of taxes and contributions related to family property. Then surge the question: the term contributions would refer only to one type of tax or

would it also cover the amount owed by those who reside in condominium apartment building to cover the costs incurred for the maintenance an upkeep of common areas? This paper proposes to answer this question. First there will be a brief

analysis of the rise of the precept, its application to other countries in the world, as well as a study of legislation pertaining to the subject in Brazil. Then will analyze the hypothesis of an exception to unseizability consecrated by Law 8.009/90, especially

that contained in article 3, IV.

key-words: Homestead. Unseizability. Exceptions. Contributions. Condominium Expenses.

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LISTA DE SIGLAS

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

RE Recurso Extraordinário

RESP Recurso Especial

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LISTA DE SÍMBOLOS

Km² Quilômetro quadrado

§ Parágrafo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10

2 ORIGEM DO INSTITUTO DO BEM DE FAMÍLIA 12

3 BEM DE FAMÍLIA NO DIREITO COMPARADO 14

4 BEM DE FAMÍLIA NO BRASIL 15

4.1 BEM DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 15

4.2 BEM DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 19

4.3 BEM DE FAMÍLIA NA LEI 8.009/90 22

5 EXCEÇÕES À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE

FAMÍLIA LEGAL

30

6 POSSIBILIDADE DE PENHORA PARA PAGAMENTO DE DESPESAS CONDOMINIAIS

33

7 CONCLUSÃO 43

REFERÊNCIAS 44

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10

1 INTRODUÇÃO

Instituto de origem norte-americana, o bem de família surgiu no Brasil, sob a

forma voluntária, com a inclusão pela Comissão Especial do Senado dos artigos 70

a 73 no projeto de lei do Código de 1916, sendo que várias de suas disposições

foram mantidas na Lei 10.406/2002.

Em 1990, porém, surgiu, em decorrência da conversão da Medida Provisória

de nº 143 na Lei 8.009, o instituto do bem de família legal. Por meio deste, a família

teria garantida a impenhorabilidade do único bem que lhe servia de residência de

forma automática, independentemente de qualquer ato de sua parte, ou dos móveis

que guarneciam sua residência, no caso de moradia alugada.

Ocorre que, ao instituir a impenhorabilidade do bem de família legal,

consagrou o legislador algumas exceções, de modo a permitir a constrição do imóvel

familiar. Tais hipóteses foram incluídas nos incisos do artigo 3º do referido diploma

legal, dentre as quais figura a possibilidade de penhora do bem de família em razão

do não pagamento de taxas e contribuições devidas em função do imóvel

Resta saber, no entanto, se o vocábulo “contribuições” autoriza a penhora do

bem para a quitação de despesas devidas pelo morador de condomínio em plano

horizontal para a conservação e manutenção das áreas comuns, ou se se refere

somente a uma espécie tributária.

Esclarecer esta indagação é o objetivo do presente trabalho.

Para tanto, a metodologia utilizada no desenvolvimento da monografia será a

teórica, prevalecendo o método histórico-lógico que permitirá percorrer a linha de

abordagens seguidas pelos doutrinadores do Direito, em especial, dos seguintes

ramos: civil, constitucional e tributário.

No capítulo 2 será abordada a origem do instituto do bem família. No capítulo

3 será feita análise acerca da disseminação de tal instituto por outros países do

Mundo. No capítulo 4 se discorrerá sobre a introdução do bem de família no

Brasil,bem como se analisará as disposições acerca deste assunto no Código Civil

de 1916 e 2002 e na Lei 8.009/90. No capítulo 5 será realizado estudo acerca das

exceções à impenhorabilidade do bem de família legal. No capítulo 6 se analisará a

possibilidade de penhora do bem de família para o pagamento de despesas

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condominiais. Por fim, no capítulo 7 será apresentada a conclusão do presente

trabalho.

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2 ORIGEM DO INSTITUTO DO BEM DE FAMÍLIA

O instituto do bem de família, conforme já afirmado, surgiu na América do

Norte, especificamente na República do Texas, em 1839, uma das treze Repúblicas

que futuramente iria integrar os Estados Unidos da América. Logo após a

independência das colônias da Grã-Bretanha na América do Norte, em 1776, foi

implementada pelos colonos uma política de ocupação humana e expansão

territorial. Segundo Couto Filho (2005, p. 6), entre 1778 e 1848 o território dos

Estados Unidos passou de 835.202 Km² para 9.363.292 Km².

Em relação ao local que viria se tornar o Estado do Texas, durante a década

de 1830 ocorreu uma vasta imigração de norte-americanos para a região, que até

então pertencia ao México, fato que culminou com a proclamação de independência

da região pelos seus habitantes.

Logo após a separação do México, em 1836, conforme informa Azevedo

(2000, p.13-14), foi consignada na Constituição do novo Estado, a concessão de

uma faixa de terras àquele chefe de família ou celibatário, com exceção dos negros

africanos e seus descendentes, que dela fizesse sua habitação e nela se dispusesse

a trabalhar. Esta era uma forma de fixar o homem à terra e assim, garantir a

ocupação americana no território recém conquistado.

Em 26.01.1839, houve a edição pelo Governo Texano do Homestead

Exemption Act. Por meio desta lei era assegurada àqueles que possuíam faixas de

terras nos domínios da Província a impenhorabilidade do imóvel em que residia,

bem como de utensílios necessários ao seu uso ou trabalho. O Digest of the Laws of

Texas § 3.798 apud Azevedo (2000, p. 14) assim dispunha:

De e após a passagem desta lei, serão reservados a todo cidadão ou chefe de uma família, nesta República, livre e independente do poder de um mandado fieri facias ou outra execução, emitido por qualquer Corte de jurisdição competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem de família dele ou dela, e melhorias que não excedam a 500 dólares, em valor, todo mobiliário e utensílios domésticos, provendo para que não excedam o valor de 200 dólares, todos os instrumentos (utensílios, ferramentas) de lavoura (providenciando para que não excedam a 50 dólares), todas as ferramentas, aparatos e livros pertencentes ao comércio ou profissão de qualquer cidadão, cinco vacas de leite, uma junta de bois para o trabalho ou um cavalo, vinte porcos e provisões para um ano [...]

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Surgia então, pela primeira vez com contornos definidos1, um instituto jurídico

que, excetuando o princípio consagrado desde a edição da Lex Poetelia em 326 a.C.

de que os bens que compõem o patrimônio do devedor respondem pelas obrigações

por ele contraídas, visava proteger o local em que residia a família, bem como seus

instrumentos de trabalho e meios de subsistência, da penhora para quitação de

dívidas.

A criação do instituto deveu-se, principalmente, a uma grave crise econômica

enfrentada pelos Estados da América do Norte no período de 1837 a 1839. Tal crise

foi provocada pela atividade especulativa de bancos europeus que se instalaram no

território norte-americano. Tais entidades concediam crédito sem lastro à população,

o que acabou ocasionando a desvalorização da moeda local. A depressão

econômica de 1837 a 1839 teve como estopim a quebra de um banco de grande

influência da cidade de Nova Iorque, em 1837. Segundo Azevedo (2000, p. 13), “959

bancos fecharam as portas, somente no ano de 1839, e, durante a crise, entre os

anos de 1837 a 1839, ocorreram 33 mil falências e uma perda de 440 milhões de

dólares [...]”.

Dentro deste contexto, começaram a haver penhoras em massa, sem que

houvesse qualquer possibilidade de obtenção de crédito pela população junto às

instituições financeiras. Com a edição da lei de 1839, visava o governo texano

assegurar que as famílias que habitavam seu território não fossem colocadas ao

desabrigo devido às dívidas por elas contraídas e assim evitar o êxodo da região.

Com edição da referida lei, além de evitar que os habitantes do recém-criado

Estado, em busca de melhores condições de vida, emigrassem para outras partes

do território americano ou mesmo para outros países, foi possível ainda reaquecer a

economia local

O êxito da experiência texana fez com que, logo após a criação do

Homestead, fosse o instituto adotado pela legislação de outros Estados norte-

americanos, iniciando-se por aqueles que compunham o norte do país.

1 Couto Filho (2005, p.5-6) afirma que no Código de Hamurábi, artigo 36, é possível visualizar uma forma primitiva do instituto do bem de família, vez que vedava a alienação de bens pertencentes a um oficial, gregário ou vassalo. Reconhece o autor, no entanto, que não se podia falar propriamente em um instituto que protegesse a família nesta época, já que em algumas hipóteses os seus membros eram vistos como objetos pertencentes ao chefe daquela. Também Gagliano e Pamplona Filho (2009, p. 276), após discorrerem sobre a impossibilidade de venda de imóveis herdados dos antepassados pelos cidadãos de Roma no período da República, afirmam que só se pode falar, verdadeiramente, na criação do instituto do bem de família, na América do Norte.

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3 BEM DE FAMÍLIA NO DIREITO COMPARADO

Como foi dito, o sucesso da experiência texana estimulou a disseminação do

instituto do bem de família por parte dos Estados que, futuramente, iriam integrar a

federação norte-americana.

Referido instituto, no entanto, ultrapassou as fronteiras daquele país.

Sistemas semelhantes de proteção à moradia familiar “foram adotados em países

como Suíça, Espanha, Portugal e Chile, com designações diferentes (...).”

(GONÇALVES, v. 6, 2009, p. 527).

Azevedo (2000, p. 15), ao tratar da difusão do bem de família pelo mundo,

assim dispõe:

No Canadá implantou-se o bem de família com a Lei federal de 1878; na Suíça, o asilo ou abrigo de família institui-se [...] pela vontade unilateral do proprietário do imóvel (art. 350 do CC); na França, editou-se a Lei sobre o bien de famille, de 12.07.1909; na Itália, o instituto do patrimonio familiare, hoje fondo patrimoniale, vem regulado pelo Código Civil de 1942, (arts. 167 a 171); em Portugal, existe o casal de família, instituído pelo Dec. 7.033, de 06.10.1920; no México, o patrimônio da família é regulado pelo Código Civil de 1928 que teve início de vigência em 1932; na Venezuela, el hogar regulou-se, primeiramente, no Código Civil de 1904, depois no de 1916, e, após, no de 1942; na Argentina, o bien de família institui-se pela Lei 14.394, de 14.12.1954.

Na Alemanha o instituto do bem de família recebeu o nome de Hofrechet.

Neste país, a proteção da moradia familiar se expressa “[...] por meio da

indivisibilidade de certo imóvel rural, a fim de transmitir-se íntegro a um dos

sucessores do proprietário”. (MONTEIRO, 2007, v.2, p. 412).

Assim como nestes países, o instituto do bem de família acabou sendo

adotado no Brasil. Assunto que será abordado a seguir.

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4 BEM DE FAMÍLIA NO BRASIL

4.1 BEM DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 1916

No Brasil, como já foi mencionado, a introdução de instrumento de proteção à

moradia familiar só ocorreu com a inclusão pela Comissão Especial do Senado dos

artigos 70 a 73 no projeto do Código Civil de 1916 – Lei 3.071.

Não foi sem resistência, porém, que o instituto do bem de família foi

introduzido no direito pátrio. Conforme informa Ritondo (2008, p.22-23), antes da

previsão do instrumento de proteção na referida codificação, outras tentativas de

implementação haviam restado frustadas: em 1893, com a apresentação pelo

deputado Leovigildo Figueiras do Projeto de Lei nº 10 ao Congresso Nacional; no

projeto de Código Civil elaborado por Coelho Rodrigues, com as disposições

contidas nos artigos 2.079 a 2.090, que denominava a proteção à moradia familiar

como constituição do lar de família; com a apresentação pelo deputado Francisco

Toledo Malta do Projeto de Lei nº 249 à Câmara dos Deputados, no qual era prevista

a impenhorabilidade do pequeno imóvel rural; e com a apresentação do Projeto do

Código Civil para o Distrito Federal, em 1910, por parte de Esmeraldino Bandeira,

que então ocupava o cargo de ministro da justiça.

Na Lei 3.071/16, artigo 70, facultou-se ao chefe de família destinar um prédio

para domicílio desta com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas

posteriormente contraídas, com exceção dos impostos relativos ao imóvel. Surgia,

assim, no Brasil, o bem de família voluntário ou convencional.

Observa-se, portanto, que a legitimidade para instituir bem de família era

exclusiva do chefe daquela. Era vedado a terceiro, na vigência do Código Civil de

1916, destinar bem para servir de domicílio de determinada família. Assim, não se

admitia que avós, tutores ou curadores realizassem a afetação dos bens que

serviriam de moradia à netos que, porventura vivessem em sua companhia,

tutelados ou curatelados, respectivamente.

Excetuou-se da impenhorabilidade do bem de família, como foi dito, os

impostos relativos ao imóvel. Ritondo (2008, p.32), afirma que a exceção à

impenhorabilidade contida no artigo 70 da lei material civil deveria ser mais ampla

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para contemplar as taxas e contribuições de melhoria, já que estas também

constituíam espécies tributárias. Outro ponto também criticado pelo mencionado

autor, era a ausência de previsão da possibilidade de penhora para saldar valores

devidos a título de cotas condominiais ou de dívidas oriundas de reparações,

construções, consertos ou obras realizados no próprio imóvel.

Com a constituição da proteção à moradia familiar, o imóvel em que esta

residia ficava isento de penhora por dívidas contraídas posteriormente à sua

destinação. Todavia, no que dizia respeito às obrigações contraídas em momento

anterior, a instituição do bem de família somente poderia ocorrer se a aposição da

cláusula de impenhorabilidade não pudesse prejudicar-lhes a quitação. Era o que

previa o artigo 71, caput e parágrafo único, do Código Civil de 1916. Conclui-se,

portanto, que a existência de dívidas anteriores à constituição do bem de família não

impedia que o instituidor providenciasse a destinação do imóvel, desde que, no

entanto, não estivesse insolvente ou que a instituição o reduzisse a tanto. Apesar

disto, não se exigia “do instituidor prova antecipada de sua solvência, sendo ela

presumida, a princípio, para a constituição do bem de família.” (RITONDO, 2008,

p.30).

Como a instituição da impenhorabilidade do imóvel familiar dependia da

manifestação do chefe de família, este deveria fazer constar em escritura pública

cláusula de impenhorabilidade do imóvel, a qual, posteriormente, deveria ser

transcrita no registro de imóveis. Era o dispunha o artigo 73: “A instituição deverá

constar de escritura pública transcrita no registro de imóveis e publicada na

imprensa local e, na falta desta, na da Capital do Estado” 2.

Inicialmente, o modo de proceder para destinar determinado imóvel como

bem de família foi prevista no Decreto 4.857/39, que foi sucedido pelo Código de

Processo Civil de 1939, artigos 647 a 651.

Com a edição da Lei de Registros Públicos, em 1973, houve a revogação das

disposições constantes do Código de Processo Civil, passando a lei em comento a

dispor sobre o procedimento para instituição do bem de família. Da leitura dos

artigos 260 a 265 do citado diploma legal extrai-se o seguinte: para proteger o

2 Diante da ausência de previsão legal na lei civil, não se admitia a constituição do bem de família por testamento.

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imóvel que se destinava ao domicílio da família de futura constrição, devia o chefe

daquela se dirigir a um cartório de registro de imóveis portando escritura pública do

imóvel que desejava afetar a bem de família e informar que nele desejava apor

cláusula de impenhorabilidade. Feito isto, o oficial do cartório mandava publicar na

imprensa local, ou, na sua falta, na da capital do Estado, edital com a escritura de

instituição do bem que se destinaria a domicílio da família para que, se porventura,

terceiro tivesse algum tipo de impedimento, no prazo de trinta dias, realizasse a

impugnação da instituição. Findo tal prazo sem nenhuma reclamação, procedia-se à

transcrição da escritura. Se fosse apresentada alguma reclamação, suspendia-se o

registro da instituição, fornecendo o oficial cópia da impugnação ao instituidor. A

este era facultado solicitar ao juiz responsável pela corregedoria dos cartórios que

ordenasse o registro, não obstante a reclamação. Caso este acolhesse o pedido do

instituidor, fazia-se normalmente o registro, assegurando-se, porém, ao reclamante a

possibilidade de recorrer por meio de ação própria3.

É de se esclarecer que a irrecorribilidade a que se refere a Lei 6.015/73 diz

respeito somente ao procedimento que regula, que é administrativo. Aquele que se

sentisse prejudicado pela decisão proferida pelo juiz no momento da instituição,

podendo ser o instituidor, no caso de ser recusado o prosseguimento do processo,

ou o impugnante, poderia acionar o Judiciário por meio de ação própria, vez que, na

“fase administrativa o conhecimento do juiz é incompleto, não há coisa julgada [...]”

(VENOSA, 2007, v. 6, p. 380).

Realizado o procedimento previsto na Lei de Registros Públicos, ficava o

imóvel protegido de futura constrição enquanto vivessem um dos cônjuges ou os

filhos menores do casal, segundo dispunha o parágrafo único do artigo 70 do Código

Civil de 1916.

Com a edição do Decreto-lei 3.200/41, o qual dispunha sobre a organização e

proteção da família, foi prevista, nos artigos 19 a 23, matéria referente ao bem de

família. Além de esclarecer que o instituto se destinava tanto a imóveis urbanos

quanto rurais, ponto em que o Código de 1916 havia sido omisso, o Decreto-lei

ampliou, em relação ao imóvel rural, os bens que poderiam ser objeto de proteção.

O artigo 22, do diploma supracitado assim dispunha: “Quando instituído em bem de

3 É importante ressaltar que este procedimento continua sendo aplicado à instituição voluntária do bem de família, que agora é regulamentado pelos artigos 1711 a 1722 do novo Código Civil.

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família prédio de zona rural, poderão ficar incluídos na instituição a mobília e

utensílios de uso doméstico, gado e instrumentos de trabalho, mencionados

discriminadamente na escritura respectiva.”

No referido Decreto-lei também foi consignada a impossibilidade de o imóvel

constituído em bem de família entrar em inventário, no caso de morte do chefe de

família ou seu cônjuge, bem como enquanto existissem filhos menores (artigo 20).

Embora no Código Civil de 1916 não houvesse previsão do valor do imóvel a

ser protegido pela impenhorabilidade, o Decreto-lei 3.200/41 previa, inicialmente,

que o imóvel destinado a bem de família não poderia ultrapassar o valor de cem

contos de réis (artigo 19). Posteriormente, este limite foi alterado para um milhão de

cruzeiros pela Lei 2.514/55 e, após, para a quantia de quinhentas vezes o valor do

salário mínimo vigente no país pela Lei 5.653/71. Em 1979, porém, a Lei 6.742

alterou novamente a redação do dispositivo, abolindo a previsão de limites de valor

do imóvel para destinação como bem de família, desde que, no entanto, o imóvel

pertencesse aos interessados por mais de dois anos.

No artigo 72 do Código Civil de 1916 constava proibição da alienação do

imóvel, bem como sua destinação a outra finalidade que não fosse servir de

domicílio à família sem o consentimento dos interessados e seus representantes

legais. Como anota Ritondo (2008, p. 33), havendo filhos menores, caso o instituidor

optasse por alienar o bem de família, aqueles deveriam consentir, o que fazia com

que necessariamente a alienação se realizasse após procedimento judicial, haja

vista a necessidade de os menores serem representados por curador especial, em

razão da colisão de interesses entre os interesses daqueles e de seus pais, e da

oitiva do Ministério Público.

A previsão do instituto do bem de família no Código Civil de 1916, todavia,

não alcançou grande prestígio perante a população brasileira. O excesso de

formalismos para a sua constituição; a dificuldade para se desfazer do imóvel em

momentos de necessidade, no caso de existência de filhos menores, já que a

alienação do bem só era possível com procedimento especial; e, sobretudo, o

encargo atribuído ao particular para tomar as providências que tornassem moradia

familiar impenhorável, foram, sem dúvida, as causas que levaram à pouca utilização

do instituto.

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Todos estes fatores acabaram por ocasionar o surgimento do bem de família

legal, instituído pela Lei 8.009/90, assunto que será melhor abordado em momento

oportuno.

4.2 BEM DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a proteção voluntária do

imóvel que serve de domicílio à família foi mantida.

Ocorreram algumas alterações, no entanto. Primeiramente, no que diz

respeito à distribuição espacial da matéria, houve o deslocamento dos dispositivos

que regulamentam o instituto para o Livro IV, que trata do Direito de Família. No

Código anterior a matéria era disposta na parte geral, no Livro II, que dispunha sobre

os bens. Tal fato demonstra uma mudança de posicionamento do legislador, o qual

optou por posicionar a disciplina do instituto tendo em vista seus destinatários e não

seu objeto.

Em relação à legitimação para instituição do bem de família também

ocorreram mudanças. Enquanto no Código de 1916 somente o chefe da família

poderia destinar o imóvel domiciliar que ficaria a salvo de penhora, no Código atual

faculta a qualquer dos cônjuges tal providência.

No Código Civil de 2002 foi também consignada a possibilidade de a entidade

familiar instituir o instrumento de proteção à moradia familiar. Neste ponto entende-

se que para adequar a expressão contida da lei civil ao disposto no artigo 226 da

Constituição Federal, deve-se entender que tanto a família monoparental, composta

por qualquer dos pais e seus descendentes, bem como aqueles que mantêm união

estável podem desfrutar da proteção legal. Como o rol descrito no dispositivo

constitucional é meramente exemplificativo, devem ser admitidos

[...] mais tipos de entidades familiares que aqueles expressos na Constituição, como, por exemplo, a união de irmãos que coabitam sem a presença dos pais, a comunidade afetiva formada por um indivíduo e seu filho de criação (sem vínculo jurídico), bem como a família unipessoal, entre outros. (RITONDO, 2008, p. 48-49)

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Foi consagrada, também, no parágrafo único do artigo 1.711, a possibilidade

de terceiro instituir bem de família, desde que o faça por testamento ou doação e

haja aceitação por parte daquele que é beneficiado pelo ato. Como foi dito, na

vigência do Código Civil anterior, não se admitia que houvesse a destinação de bem

de família por parte de outrem. Agora, se um terceiro desejar instituir bem de família

em favor de outra pessoa ou família poderá fazê-lo, operando-se a transferência do

bem que compõem seu acervo patrimonial para o(s) beneficiado(s) pela medida.

Outro ponto digno de nota é o que se refere ao objeto de proteção. Enquanto

o artigo 70 da Lei 3.071/16 restringia a instituição do bem de família a um único

prédio, a lei atual prevê que os cônjuges ou entidade familiar podem destinar parte

de seu patrimônio, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido

existente ao tempo da instituição, para tal finalidade. Como anota Dalla Vechia

(2004, p. 76) “[...] o objetivo da regra é evitar a má-fé do instituidor, permitindo que

dois terços de seu patrimônio continuem ainda a responder por eventuais dívidas.”

Neste percentual de um terço do patrimônio líquido podem ser incluídos ainda

valores mobiliários que o instituidor, no ato do registro, destine para conservação do

imóvel ou sustento da família. O importe de tais valores, no entanto, não pode

ultrapassar o valor do imóvel, na época da instituição. É o que consta do artigo

1.713, caput. A administração dos valores em comento poderá ficar a cargo de

instituição financeira, de acordo com o que estabelece o §3º do artigo 1713, se

assim desejar o instituidor, cabendo a ele ainda fixar o modo como será realizado o

pagamento da quantia confiada aos beneficiários da destinação.

Venosa (2007,v. 6, p. 382), afirma que:

A lei que ordena os registros públicos deverá também disciplinar essa prova do valor do bem. Apresentada a documentação ao registro (o que é previsto expressamente pelo artigo 1.714 do Código Civil de 2002), havendo dúvida quando ao limite imposto na lei, poderá o cartorário submeter a questão a juízo.

Em caso de liquidação da instituição a quem couber a guarda dos valores,

estes não serão atingidos, ordenando o juiz a transferência da quantia confiada para

outra entidade de fins semelhantes, conforme disposto no artigo 1.718.

Em relação ao valor do bem de família instituído por terceiro, não mencionou

a lei civil qual o percentual que aquele poderá destinar como bem de família. Tudo

leva a crer que o terceiro não obedece à limitação descrita no caput do artigo 1711,

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podendo afetar o valor que bem entender como bem de família, desde que

respeitada a legítima dos herdeiros necessários, se ele os tiver.

Diferentemente do que ocorria no Código anterior, abriu-se a possibilidade de

executar o bem de família não apenas para o pagamento de impostos relativos ao

imóvel, como também para a quitação para despesas de condomínio. É o que se

extrai da leitura do artigo 1.715. Dependendo a modalidade de instituição do bem de

família descrita no Código Civil da vontade do instituidor para sua constituição,

aquele “[...] pode ocultar a intenção de utilizar um instrumento de proteção social

para escapar de obrigações legais ou contratuais.” (COUTO FILHO, 2005, p. 56), o

que justifica a possibilidade de penhora, se verificada a má-fé do instituidor.

Ocorrendo qualquer uma das hipóteses descritas acima, se houver saldo

remanescente, este deve ser aplicado em outro prédio que tenha por finalidade a

moradia familiar, ou em títulos que se destinem ao sustento da família.

Ressalvadas, portanto, as dívidas posteriores que se refiram a impostos e

despesas condominiais, a instituição do bem de família isenta de penhora o

patrimônio para esta finalidade destinado, isenção esta que “durará enquanto viver

um dos cônjuges ou, na falta destes, até que os filhos completem a maioridade”.

(artigo 1.716). Existindo, porém, filhos maiores e incapazes, durará a

impenhorabilidade enquanto estes viverem, segundo disposto no artigo 1.722.

Outra inovação trazida pelo Código Civil de 2002 diz respeito à possibilidade

de extinção da isenção de penhora no caso de término definitivo da sociedade

conjugal no artigo 1.721, inclusive por morte de um dos cônjuges. Azevedo apud

Venosa (2007, v.6, p.381), no entanto, afirma que tal “[...] disposição não é

conveniente, pois poderá prejudicar os filhos menores.”

Poderá, ainda, haver a extinção do bem de família se os interessados

formularem pedido ao juiz, comprovando que não é possível a manutenção da

isenção do modo como ela se deu, bem como a sub-rogação de determinado

percentual do patrimônio anteriormente afetado a bem de família, desde que ouvidos

o Ministério Público e o instituidor (artigo 1719).

Embora muitas inovações tenham sido incluídas pelo legislador no diploma

civil de 2002, é de se considerar, que é muito provável que a instituição voluntária do

bem de família ainda continuará tendo pouca relevância, ainda mais tendo em vista

as disposições da Lei 8.009/90, cuja aplicação foi expressamente assegurada pela

parte final do artigo 1.711.

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4.3 BEM DE FAMÍLIA NA LEI 8.009/90

Embora seja imprescindível analisar as disposições contidas na codificação

civil em relação ao bem de família, o estudo do instituto, como previsto na Lei

8.009/90, dada sua maior aplicabilidade, se revela sobremaneira mais importante.

Os motivos que ocasionaram a instituição do bem de família legal no Brasil

foram bem semelhantes àqueles que deram origem ao instituto em 1839.

Nos anos 90, o país enfrentava uma inflação exorbitante, fato que somado à

edição de diversos planos econômicos mal sucedidos pelo governo federal acabava

por desvalorizar a moeda nacional. Neste contexto é fácil concluir que o poder de

compra da população ficava reduzido e que, em consequência incidissem juros

elevadíssimos nas dívidas por ela contraídas.

Embora houvesse a previsão do instituto do bem de família voluntário no

Código Civil de 1916, como informa Venosa (2007, v.6, p. 365), sua utilização era

diminuta, fato que contribuía para que, sem utilizar-se da burocrática forma de

proteção à excussão do bem de família prevista no diploma civil, pudessem as

famílias, facilmente, serem coladas ao desabrigo para o pagamento das dívidas

contraídas no momento de instabilidade financeira.

Foi neste contexto que foi editada, em 08 de março de 1990, a Medida

Provisória nº 143.

A finalidade da instituição do bem de família legal, no entanto, foi diferente da

existente na então República do Texas: no Brasil, o objetivo da criação do instituto

independentemente da vontade de seus destinatários foi salvaguardar o único

imóvel em que residia o casal ou entidade familiar de dívidas por eles contraídas, e

assim garantir o mínimo necessário para sua subsistência com dignidade em caso

de ajuizamento de processo de execução e não estimular a colonização do território

como ocorreu no Estado norte-americano.

Referida Medida Provisória foi convertida no dia 29 do mesmo mês na Lei

8.009, a qual consagra a impenhorabilidade legal, necessária ou involuntária do bem

de família. Esta modalidade de bem de família não depende de qualquer ato por

parte de seus membros, “[...] basta residir em imóvel próprio para que este seja bem

de família, como os bens móveis que o guarnecem, ou residir em imóvel alheio, para

que os mesmos bens móveis sejam também de família.” (AZEVEDO, 2000, p. 16).

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Logo após a entrada em vigor da Lei em questão surgiu a discussão a

respeito do momento em que ela passaria a produzir seus efeitos – se seria aplicada

às penhoras realizadas anteriormente à sua vigência ou somente poderia ser

utilizada para proteger o imóvel residencial após sua publicação. No STJ prevaleceu

o entendimento que se o bem que garantia a execução fosse o único imóvel

residencial da família, aquela deveria ser cancelada. Neste sentido:

CIVIL E PROCESSUAL - IMOVEL RESIDENCIAL, EQUIPAMENTOS E MOVEIS(BEM DE FAMILIA) - IMPENHORABILIDADE. I - TEM INCIDENCIA IMEDIATA, DESCONSTITUINDO ATE PENHORA JÁ EFETIVADA, TEXTO LEGAL QUE AFASTA DA EXECUÇÃO O IMOVEL RESIDENCIAL PROPRIO DO CASAL, OU DA ENTIDADE FAMILIAR (BEM DE FAMILIA), ASSIM COMO OS EQUIPAMENTOS E MOVEIS QUE A GUARNECEM. II - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (STJ – RESP 11698 - MS – Processo: 1991/0011360-3 – Terceira Turma – Relator: Waldemar Zveiter – DJ 06.04.1992)

A consolidação de tal entendimento no âmbito do referido tribunal, culminou

na edição da Súmula nº 205: “A Lei 8.009, de 29 de março de 1990, aplica-se à

penhora realizada antes da sua vigência.”

Em relação aos destinatários da medida de proteção contida na lei, como esta

previa que ela se dirigia tanto aos cônjuges quanto à entidade familiar, entendeu-se,

a princípio, que a impenhorabilidade restringia somente àqueles que eram casados,

viviam em união estável ou se classificavam como família monoparental, sendo que

viúvos, celibatários e aqueles que não se enquadravam nas categorias acima, como

irmãos que coabitavam no mesmo imóvel, por exemplo, não gozariam da proteção

legal. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), a princípio, proferiu alguns julgamentos

que abrigavam esta tese:

IMPENHORABILIDADE. LEI N. 8.009, DE 29.3.90. EXECUTADO SOLTEIRO,QUE MORA SOZINHO.A LEI N. 8.009/90 DESTINA-SE A PROTEGER, NÃO O DEVEDOR , MAS A SUA FAMILIA. ASSIM, A IMPENHORABILIDADE NELA PREVISTA ABRANGE O IMOVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DA ENTIDADE FAMILIAR, NÃO ALCANÇANDO O DEVEDOR SOLTEIRO, QUE RESIDE SOLITARIO. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (STJ – RESP 67112 – RJ – Processo: 1995/0027046-3 – Quarta Turma – Relator: Ministro Barros Monteiro – DJ 23.10.1995)

PROCESSUAL CIVIL - EXECUÇÃO - BEM DE FAMÍLIA - LEI 8.009/90 - DEVEDOR SOLTEIRO - BENEFÍCIO CONCEDIDO DE OFÍCIO - IMPOSSIBILIDADE.

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I - Não havendo convicção absoluta, por insuficiência de elementos nos autos, de que o devedor, mesmo solteiro, não constitui a denominada "entidade familiar", não pode o benefício da impenhorabilidade ser concedido de ofício. II - Recurso conhecido e provido. (STJ – RESP 212600 - SP – Processo: 1999/0039366-0 – Terceira Turma – Relator: Waldemar Zveiter – DJ 18.09.2000)

No entanto, com o objetivo de adequar a interpretação dada à norma aos

dispositivos constitucionais, especialmente o princípio da dignidade da pessoa

humana, entendeu-se, em momento posterior, que a finalidade da lei não era

proteger somente a família, mas sim resguardar a dignidade de qualquer pessoa.

Confira4:

RESP - CIVIL - IMÓVEL - IMPENHORABILIDADE A Lei nº 8.009/90, o art. 1º precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantido-lhes (sic) o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. "Data venia", a Lei nº 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário - à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, "data venia", põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário,sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal. (STJ – RESP – 182223 – Processo: 1998/0052764-8 – SP – Sexta Turma – Relator: Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro – 19.08.1999 - DJ 10.05.1999)

Tal entendimento atualmente se encontra no enunciado da Súmula de nº 364

daquele Superior Tribunal: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família

abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.”

No artigo 1º da Lei de 1990 foi consignado que os bens objeto de proteção – o

imóvel residencial próprio do casal ou entidade familiar, as plantações, benfeitorias

de qualquer espécie, todos os equipamentos, bem como móveis que guarnecessem

a casa, excluindo-se os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos –

seriam, a partir de sua vigência, automaticamente impenhoráveis.

4 No mesmo sentido: RESP 57606/MG, Quarta Turma, Relator: Ministro Fontes de Alencar, DJ 11.04.1995; RESP 159851/SP, Quarta Turma, Relator Ruy Rosado de Aguiar, DJ 22.06.1998; RESP 205170/SP, Quinta Turma, Relator Gilson Dipp, DJ 07.02.2000.

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Este artigo trouxe duas questões polêmicas: a primeira referente à

possibilidade de penhora de parte do imóvel quando esta não fosse essencial à

habitação da família; a segunda em relação ao que seria considerado adorno de

luxo, ou seja, adorno suntuoso.

No que diz respeito à possibilidade de constrição de parte do imóvel

residencial, entende-se que, se ele destina-se tanto à moradia familiar quanto a

estabelecimento comercial, a penhora pode ser realizada, independentemente de a

parte que não se destina à moradia ter matrícula diferente no registro de imóveis,

desde que o desmembramento não cause prejuízos ao direito de habitação dos

moradores5. Em relação à vaga de garagem, no entanto, a penhora só pode ser

implementada se aquela possuir matrícula própria no registro de imóveis,

unicamente em relação à garagem. É o teor da recente Súmula 449 do STJ,

publicada em 02.06.10: “A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro

de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora.”

No que se refere aos bens móveis que seriam indispensáveis à existência

digna da família, ou seja, não seriam suntuosos, diversas foram as interpretações

dadas ao dispositivo em relação aos objetos que seriam passíveis de penhora.

Confira:

PROCESSO CIVIL - EXECUÇÃO FISCAL - BEM DE FAMILIA -IMPENHORABILIDADE - LEI 8.009/90 (ART. 1. E PARAGRAFO UNICO). 1. A IMPENHORABILIDADE PROCLAMADA PELA LEI 8.009/90 OBJETIVA PROTEGER BENS PATRIMONIAIS FAMILIARES ESSENCIAIS A HABITABILIDADE CONDIGNA. 2. OS BENS VOLUNTARIOS DESTINADOS AO LAZER (TELEVISORES, VIDEOS, APARELHOS DE SOM) NÃO SÃO CONSIDERADOS INDISPENSAVEIS AO GUARNECIMENTO DA CASA, ESCAPANDO DA PROTETORA INSPIRAÇÃO SOCIAL DA IMPENHORABILIDADE, CRIADA PARA EVITAR O SACRIFICIO, PELA SITUAÇÃO DE PENURIA, DA FAMILIA DO DEVEDOR.

3. NO CASO, POR ESSA CONFORMAÇÃO DE IDEIAS, OBSERVADOS OS PRINCIPIOS INFORMATIVOS E FINALISTICOS DA CLAUSULA DE IMPENHORABILIDADE, INCLUI-SE O "JOGO DE JANTAR", NECESSARIO A ACOMODAÇÃO FAMILIAR. 4. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA INCLUIR O TELEVISOR COMO BEM PENHORAVEL. (STJ – RESP – 31930 – Processo:1993/0002716-6 – SP – Primeira Turma – Relator: Ministro Milton Luiz Pereira – 14.12.1994 – DJ 20.02.1995 – grifos nossos)

5 Neste sentido: RESP 968907/RS, Terceira Turma, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, DJe

01.04.2009 e RESP 515122/RS, Quarta Turma, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 29.03.2004.

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MOVEIS – IMPENHORABILIDADE A LEI 8.009/90 FEZ IMPENHORAVEIS, ALEM DO IMOVEL RESIDENCIAL PROPRIO DA ENTIDADE FAMILIAR, OS EQUIPAMENTOS E MOVEIS QUE O GUARNEÇAM, EXCLUINDO VEICULOS DE TRANSPORTE, OBJETOS DE ARTE E ADORNOS SUNTUOSOS. O FAVOR COMPREENDE O QUE USUALMENTE SE MANTEM EM UMA RESIDENCIA E NÃO APENAS O INDISPENSAVEL PARA FAZE-LA HABITAVEL. DEVEM, POIS, EM REGRA, SER REPUTADOS INSUSCEPTIVEIS DE PENHORAAPARELHOS DE TELEVISÃO E DE SOM. (STJ – RESP 57226 – Processo:1994/0036061-4 – RJ – Terceira Turma – Relator: Ministro Eduardo Ribeiro – 17.04.1995 – DJ15.05.1995)

Como afirmam Gagliano e Pamplona Filho (2009, v.1, p. 281) “O norte para

interpretação sobre a qualificação do bem de família não deve se limitar apenas ao

indispensável para a subsistência, mas sim ao necessário para uma vida familiar

digna, sem luxo [...]” Este tem sido, atualmente, o entendimento adotado pelo STJ.

Neste sentido:

RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA. BENS DE FAMÍLIA. MÁQUINA DE LAVAR LOUÇA, MICROONDAS, FREEZER, MICROCOMPUTADOR E IMPRESSORA. LEI N. 8.009/90. IMPENHORABILIDADE. PRECEDENTES. Este Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento segundo o qual "são impenhoráveis todos os móveis guarnecedores de um imóvel de família, recaindo a proteção do parágrafo único, do art. 1º da Lei nº 8.009/90 não só sobre aqueles indispensáveis à habitabilidade de uma residência, mas também sobre os usualmente mantidos em um lar comum. Excluem-se do manto legal apenas os veículos de transporte, objetos de arte e adornos suntuosos" (REsp 439.395/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 14.10.2002). In casu, foram penhorados uma máquina de lavar louça, um forno de microondas, um freezer, um microcomputador com acessórios e uma impressora. Os mencionados bens, consoante jurisprudência consolidada desta Corte Superior de Justiça, são impenhoráveis, uma vez que, apesar de não serem indispensáveis à moradia, são usualmente mantidos em um lar, não sendo considerados objetos de luxo ou adornos suntuosos. Precedentes. Recurso especial provido. (STJ – RESP 691729 – Processo: 2004/0138403-8 – SC – Segunda Turma – Relator: Ministro Franciulli Netto – 14.12.2004 – DJ 25.04.05)

Quanto à necessidade de a família efetivamente habitar o imóvel, para que

este tivesse a garantia da impenhorabilidade, foram proferidas decisões que

entendiam que se aquela nele não habitasse o imóvel poderia ser excutido:

EXECUÇÃO. IMPENHORABILIDADE. LEI Nº 8.009, DE 29.3.1990. IMÓVELLOCADO. ALEGAÇÃO DO DEVEDOR SEGUNDO A QUAL É OBRIGADO A RESIDIR EMOUTRA LOCALIDADE EM VIRTUDE DE EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO. NÃO-PREENCHIMENTO DO REQUISITO ESTABELECIDO EM LEI.

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- Não satisfaz o requisito previsto no art. 1º da Lei nº 8.009, de 29.3.1990, o devedor que, obrigado a morar no Município em que exerce mandato eletivo, aluga o imóvel objeto da constrição, sito em localidade diversa.- Imóvel que, de resto, encontra-se desocupado. Recurso especial não conhecido. (STJ – RESP 185810 – SP – Processo: 1998/00608555-9 – Quarta Turma – Relator: Ministro Barros Monteiro – DJ 26.08.2002)

Imóvel residencial. Impenhorabilidade. Para que o imóvel não se exponha a penhora, necessário que sirva de residência para o executado. Não basta seja o único de que proprietário, se o dá em locação, em lugar de nele residir. (STJ – RESP 197649 – SP – Processo: 1998/0090364-0 – Terceira Turma – Relator: Ministro Eduardo Ribeiro – DJ 28.08.2000)

Contudo, atualmente entende-se que, mesmo não utilizando o único imóvel

como moradia, se a família, de alguma forma, utilizar-se dele para seu sustento, fica

o bem protegido da contrição. Neste sentido:

PROCESSO CIVIL – BEM DE FAMÍLIA: LEI Nº 8.009/1990 – IMPENHORABILIDADE. 1. A Lei 8.009/90 tornou impenhorável o bem de família, o que não impede o seu aluguel para auxiliar na manutenção da família. Imóvel residencial. Impenhorabilidade. 2. Precedentes desta Corte prevalecem sobre a corrente mais ortodoxa. 3. Recurso especial improvido. (STJ – RESP 415765 – MT – Processo: 2002/0018407-0 – Segunda Turma – Relatora: Ministra Eliana Calmon – DJ 05.08.2002)

PROCESSO CIVIL. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. LOCAÇÃO. IRRELEVÂNCIA. 1. Não se constitui em condicionante imperiosa, para que se defina o imóvel como bem de família, que o grupo familiar que o possui como única propriedade nele esteja residindo. Uma interpretação sistêmica, e não literal, da Lei 8.009/1990 leva a concluir que esta é apenas uma das características, dentre um conjunto de outras, que indica a situação de imprescindibilidade do imóvel à própria sobrevivência da unidade familiar, de modo que a sua locação não lhe afasta tal condição, desde que se comprove que tal procedimento seja levado a efeito em benefício da própria sobrevivência da família. Precedentes do STJ. 2. Recurso Especial parcialmente conhecido, e, nesta parte, desprovido. (STJ – RESP 550387 – SE – Processo: 2003/0086006-9 – Primeira Turma – Relator: Ministro Luiz Fux – DJ 03.11.2003)

BEM DE FAMÍLIA – Predomina nesta egrégia Corte Superior de Justiça o entendimento segundo o qual a locação a terceiros do único imóvel de propriedade da família não afasta o benefício legal da impenhorabilidade do bem de família (art.1º da Lei nº 8.009/1990). Com efeito, o escopo da lei é proteger a entidade familiar e, em algumas hipóteses que tais, a renda proveniente do aluguel pode ser utilizada para a subsistência da família ou mesmo para o pagamento de dívidas. (STJ – RESP 445990 – MG – Processo: 2002/0084648-7 – Segunda Turma – Relator: Ministro Franciulli Netto – DJ 11.04.2005)

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A proteção também passaria a ser destinada aos móveis do locatário que

guarnecessem a residência, desde que quitados, conforme o disposto no parágrafo

único do artigo 2º.

Foi garantida, ainda, no caso de imóvel rural, a impenhorabilidade da sede e

bens móveis que pertencessem à família, bem como da área que a Constituição

Federal resguarda da constrição no artigo 5º, XXVI.

Como o principal objetivo da lei é garantir um teto para o devedor ou entidade

familiar, a impenhorabilidade nela prevista se destina somente a um único imóvel.

Caso o devedor ou a família possua mais de um imóvel que lhes sirva de residência,

a impenhorabilidade recairá sob o de menor valor, conforme preceitua o parágrafo

único do artigo 5º. Nesta hipótese, se devedor ou entidade familiar “[...] não desejar

que a impenhorabilidade recaia sobre o de menor valor, deverá instituir o bem de

família convencional através de escritura pública ou testamento [...], escolhendo,

desse modo, um imóvel de maior valor [...]”. (DALLA VECHIA, 2004, p. 75).

Como a impenhorabilidade do imóvel residencial prevista na Lei 8.009/90 é

imperativa, não se concebe a possibilidade de o destinatário da impenhorabilidade

da moradia familiar a ela renunciar. Assim, mesmo se o devedor nomear à penhora

bem de família, pode ele, posteriormente, por meio de embargos à execução,

exceção de pré-executividade ou até mesmo por simples petição nos autos, alegar a

impenhorabilidade do bem. Gonçalves (2009, v.6, p. 545) afirma, inclusive, que a

impenhorabilidade do bem de família, por ser matéria de ordem pública, pode ser

conhecida de ofício pelo juiz, o qual deve declarar insubsistente a penhora, mesmo

se não houver manifestação da parte.

É importante frisar que a lei prevê mecanismo para evitar uma possível fraude

contra credores. Tanto é assim que o artigo 4º e parágrafo 1º autorizam, em caso de

má-fé do devedor, o qual sabendo-se insolvente, adquire imóvel mais valioso para

transferir a moradia familiar com o objetivo de causar prejuízo a terceiros, que o juiz

anule a venda do imóvel de valor mais elevado ou transfira a residência para o

imóvel do domicílio anterior.

Conclui-se, pois, que a principal característica diferenciadora do instituto do

bem de família na Lei 8.009/90 e do Código Civil de 1916/2002 reside na ausência

de necessidade de uma pessoa da família destinar um bem específico para a

incidência da proteção contra a penhora, já que o instituidor da impenhorabilidade é

o próprio Estado. Outro ponto importante a distinguir o bem de família legal do

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voluntário, previsto inicialmente no Código Civil de 1916 e mantido na Lei 10.406/02,

é que não há impedimento à alienação do patrimônio que constitui bem de família na

Lei de 1990, ao passo que, na última modalidade, sua constituição impede, de forma

relativa, a alienação do bem.

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5 EXCEÇÕES À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL

Como analisado no capítulo anterior, com a instituição do bem de família

legal, que passou a ser matéria de ordem pública, buscou-se garantir que

efetivamente, fosse a família garantia do desabrigo em processo de execução

movido para a cobrança de obrigações contraídas por quaisquer de seus membros.

Foram estabelecidas, contudo, no artigo 3º da Lei 8.009/90, exceções à regra

de que o único imóvel residencial do devedor não responde por suas dívidas. Eis o

teor do referido artigo:

Art. 3. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III – pelo credor de pensão alimentícia; IV – para a cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V – para a execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

A primeira hipótese de exceção à impenhorabilidade do bem de família diz

respeito ao pagamento de valores devidos aos trabalhadores da própria residência,

bem como das contribuições sociais que devem ser recolhidas à previdência social.

Enquadram-se na exceção, portanto, os valores devidos à empregadas domésticas

e jardineiros. Segundo Gonçalves (2009, v.6, p. 540) referida exceção “[...] abrange

também os que a ajudaram a edificá-la ou promoveram benfeitorias no mesmo

imóvel, como pedreiros, marceneiro, eletricistas etc.”

Também poderá ocorrer a penhora para que a quitação de dívida de

financiamento contraído para ser empregado na própria construção do imóvel ou sua

aquisição, como ocorre nos contratos de mútuo.

A exceção à penhora contida no inciso III diz respeito ao pagamento de

pensão alimentícia. A penhorabilidade nesta hipótese é assegurada em razão da

prevalência do crédito alimentar sobre a proteção destinada à moradia. A exceção

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abrange tanto a pensão alimentícia propriamente dita, referente ao direito de família,

quanto aquela devida pela prática de ato ilícito.

No inciso V incluiu-se a hipótese de penhora em virtude de hipoteca. Como

afirma Ritondo (2008, p. 83)

Se o titular do bem o pode alienar, com muito mais razão o poderá gravar em hipoteca, uma vez que a Lei 8.009/1990 somente previu que o bem de família seria impenhorável, sem impor-lhe, entretanto, a inalienabilidade.

É também possível realizar a penhora do único imóvel por ter sido adquirido

com produto de crime ou para ressarcimento de dano em sentença penal

condenatória. A constrição do bem de família nesta hipótese poderá ocorrer tanto na

execução de sentença penal condenatória quanto no bojo de ação civil reparatória,

ou seja, actio civilis ex delicto.

A última hipótese de exceção à penhora – do imóvel do fiador em contrato de

locação – não constava do texto original, sendo acrescentado à Lei 8.009/90 pela

Lei 8.245/91. Há doutrinadores que entendem que tal dispositivo é flagrantemente

inconstitucional, já que atinge o direito de moradia do fiador, enquanto não o faz em

relação ao devedor principal. Assim, caso o fiador tenha penhorado o único imóvel

que lhe sirva de residência, não poderá ele, em ação regressiva pleitear a penhora

do bem do afiançado, que é resguardada pela proteção da impenhorabilidade do

bem de família.

Gagliano e Pamplona Filho (2009, v.1, p. 285), alguns dos autores que

entendem que referido dispositivo é inconstitucional, citam, inclusive, exemplo

bastante interessante para endossar o posicionamento por eles adotado:

[...] se o inquilino, fugindo de suas obrigações, viajar para o interior da Bahia, e comprar um único imóvel residencial, este seu bem será impenhorável, ao passo que o fiador continuará respondendo com o seu próprio bem de família perante o locador que não foi pago.

O pensamento que prevalece tanto no Supremo Tribunal Federal (STF)

quanto no STJ, no entanto, é de que o dispositivo é constitucional, sendo possível a

penhora do único bem de família do fiador, ainda que, efetivamente, na mesma

hipótese não seja possível a ele o direito de regresso. Confira:

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EMENTA: FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República. (STF – RE 407688 – AC – Tribunal Pleno – Relator: Ministro Cezar Peluso – DJ 06.10.2006)

LOCAÇÃO. FIANÇA. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO. CLÁUSULA QUE PREVÊ A OBRIGAÇÃO ATÉ A ENTREGA DAS CHAVES. EXONERAÇÃO DO FIADOR. IMPOSSIBILIDADE. ENTENDIMENTO CONSOLIDADO A PARTIR DO JULGAMENTO DO ERESP N.º 566.633/CE. FIADOR. BEM DE FAMÍLIA. PENHORA. POSSIBILIDADE. NOVAÇÃO NÃO CONFIGURADA. 1. O entendimento da Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça encontra-se consolidado no sentido de que, havendo, no contrato locatício, cláusula expressa de responsabilidade do garante até a entrega das chaves, o fiador responde pela prorrogação do contrato, a menos que tenha se exonerado na forma do art. 1.500 do Código Civil de 1916 ou do art. 835 do Código Civil vigente, a depender da época da avença. Precedentes. 2. É válida a penhora do bem destinado à família do fiador em razão da obrigação decorrente de pacto locatício, aplicando-se, também, aos contratos firmados antes da sua vigência. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal.

3. Conforme já decidiu este Superior Tribunal de Justiça, não constitui novação contratual, a ensejar a exoneração do fiador, o simples parcelamento do débito concedido pelo locador ao inquilino. Precedentes. 4. Agravo regimental desprovido. (STJ – AGRG no RESP 876938 – SP – Processo: 2006/0122686-4 – Quinta Turma – Relatora: Ministra Laurita Vaz – Dje 03.11.2008 – grifos nossos)

É importante ficar claro que somente pode haver a penhora do bem de família

legal nas hipóteses descritas, expressamente, na lei, vez que “[...] as exceções à

regra geral da impenhorabilidade do bem de família obrigatório é taxativo,

constituindo numerus clausus. Nenhum outro pode ser nele incluído, mediante

interpretação extensiva.” (GONÇALVES, 2009, v.6, p. 538).

Como o presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de

penhora para a quitação de despesas de condomínio, hipótese que corresponderia à

parte final do inciso IV, acima transcrito, não se tratou de forma exaustiva das

demais hipóteses de exceção, mas apenas se fez um breve comentário sobre as

causas que autorizam a penhora do bem de família legal. O objeto central deste

estudo será melhor abordado no próximo capítulo.

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6 POSSIBILIDADE DE PENHORA PARA PAGAMENTO DE DESPESAS CONDOMINIAIS

Como foi visto, não foram poucas as questões atinentes ao instituto do bem

de família legal que careceram da interpretação do Superior Tribunal de Justiça para

sua aplicação, tribunal ao qual cabe a exegese das leis federais no país, como o é a

Lei 8.009/90.

Um ponto que se encontra pacificado na jurisprudência daquela corte diz

respeito à possibilidade de penhora do bem de família legal em razão do não

pagamento de dívidas condominiais.

Até 1997, não se admitia a penhora do bem de família para fazer frente a

despesas de condomínio. Confira:

BEM DE FAMILIA. O INCISO IV DO ART. 3. DA LEI 8.009/90 NÃO COMPREENDE AS DESPESAS ORDINARIAS DE CONDOMINIO. RECURSO ESPECIAL ATENDIDO EM PARTE. UNANIME. (STJ – RESP 52156 – SP – Processo: 1994/0023836-3 – Quarta Turma – Relator: Ministro Fontes de Alencar – DJ 10.10.1994)

EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMILIA. QUOTAS CONDOMINIAIS. O IMOVEL DESTINADO A FAMILIA DO DEVEDOR NÃO PODE SER PENHORADO NA EXECUÇÃO DA SENTENÇA QUE O CONDENOU A PAGAR CONTRIBUIÇÕES DEVIDAS AO CONDOMINIO. A RESSALVA DO INCISO IV DO ART. 3. DA LEI 8.009/90 PROTEGE O CREDITO FISCAL. PRECEDENTE DESTA TURMA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (STJ – RESP – 82563- RJ – Processo: 1995/006622-7 – Quarta Turma – Relator: Ruy Rosado de Aguiar – DJ 08.04.1996)

Ocorre, porém, que a partir de 24.11.1997, passou-se a considerar que existia

permissivo legal a autorizar a penhora do bem de família em ação de cobrança

ajuizada em razão do inadimplemento pelo condômino de despesas devidas para a

manutenção e conservação daquele, fundada na exceção prevista no final do inciso

IV, do artigo 3º da Lei 8.009/90. Eis o acórdão:

PENHORA. BEM DE FAMILIA. CONTRIBUIÇÕES CONDOMINIAIS. ART. 3., INC. IV, DA LEI N. 8.009, DE 29.03.90. E PASSIVEL DE PENHORA O IMOVEL RESIDENCIAL DA FAMILIA, QUANDO A EXECUÇÃO SE REFERIR A CONTRIBUIÇÕES CONDOMINIAIS SOBRE ELE INCIDENTES. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

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(STJ – RESP – 150379 – MG – Processo: 1997/00070657-5 – Quarta Turma – Relator: Ministro Barros Monteiro – DJ 15.12.1997)

A quarta turma decidiu mudar o entendimento então existente com base no

voto proferido pelo Ministro Barros Monteiro, relator do RESP supracitado, que por

ser extremamente relevante para o entendimento do tema do presente trabalho, se

transcreve o excerto abaixo:

A despeito dos precedentes emanados desta C. Turma acerca da matéria (Resp‟s nºs 52.156/SP e 82.563-RJ), penso que é caso de reformular-se a diretriz então traçada e conferir-se ao dispositivo no art. 3º, inc. IV, da Lei nº 8.009/90, de 20.03.90, uma interpretação compatível com a realidade dos dias atuais; que permita a preservação dos condomínios e obste o enriquecimento indevido de uma das partes envolvidas. Assim, na locução „taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar‟, empregada no referido inc. IV, deve entender-se como abrangidas as despesas condominiais [...] Atribui-se à indigitada expressão um alcance genérico, sem a conotação de caráter fiscal que qualifica, de forma restritiva, as demais ressalvas insertas no mesmo inciso IV. Não se mostra equânime, efetivamente, que o devedor passe a usufruir o condomínio às custas dos demais condôminos, sem quaisquer ônus.

Ao apresentar voto no mesmo recurso, o também Ministro Ruy Rosado de

Aguiar, acompanhando o voto do relator, deixa claro os motivos que levaram a turma

a mudar de posicionamento:

[...] A desobrigação do condômino de contribuir para as despesas comuns levará a duas situações indesejáveis: lançará à conta dos demais a sua quota, o que é injusto; prejudicará a conservação dos prédios, o que é socialmente inconveniente. A liberação do imóvel, em casos tais, significará- para aqueles que não disponham de outros bens penhoráveis – verdadeira imunidade diante das despesas condominiais. Sabendo-se que estas surgem necessariamente todos os meses, - com gastos de água, luz, limpeza, etc., além das despesas que ordinariamente decorrem do próprio uso do prédio, que exige conservação e reformas, - a falta da participação de um ou de algum acarretará apenas um acréscimo na parcela das outras, mas a inadimplência de muitos poderá significar a inviabilidade da manutenção dos serviços básicos, tornando insuportável a vida em comum. Em grandes construções condominiais, com dezenas e às vezes centenas de unidades habitacionais, onde a maioria não tenha outros bens penhoráveis, a falta de eficácia da cobrança das despesas comuns levará à degradação do prédio.

Observa-se, portanto, que foi uma questão de ordem prática – a preservação

dos créditos devidos aos condomínios em edifícios de apartamentos – que orientou

a turma a decidir pela possibilidade de penhora pelo não pagamento das despesas

condominiais.

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A partir da citada decisão, inúmeras interpretações foram dadas ao artigo 3º,

IV, da Lei 8.009/90. Em algumas ocasiões considerou-se que as despesas

condominiais eram uma espécie de taxa, o que autorizaria a penhora do imóvel

familiar. É o que se observa dos seguintes arestos:

Execução. Penhora. Imóvel financiado. Bem de família. Taxas condominiais. Precedentes da Corte.

1. A jurisprudência da Corte admite a penhora de imóvel financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação para pagamento de taxas condominiais,

não obstando o fato de ser considerado bem de família, a teor do art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/90. 2. Recurso especial não conhecido. (STJ – RESP – 172866 – SP – Processo: 1998/0031031-2 – Terceira Turma - Relator Carlos Alberto Menezes Direito – DJ 02.10.2000 – grifos nossos)

COBRANÇA DE QUOTAS CONDOMINIAIS. PENHORA INCIDENTE SOBRE DIREITOS DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA, RELATIVO A IMÓVEL FINANCIADO PELO SFH. EMBARGOS DE TERCEIRO QUE VISAM DESCONSTITUIR O ATO CONSTRITIVO, SOB A ALEGAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL. IMPENHORABILIDADE AFASTADA. PREVALÊNCIA DO DIREITO DO CONDOMÍNIO. OBRIGAÇÃO "PROPTER REM". SE A SUPOSTA AFRONTA A DISPOSITIVO LEGAL OCORRER NO JULGAMENTO DA APELAÇÃO, NECESSÁRIA A INTERPOSIÇÃO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, A FIM DE QUE A MATÉRIA SEJA PREQUESTIONADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM.DISSÍDIO NÃO DEMONSTRADO. (...) 3. Precedentes das duas Turmas que integram a Segunda Seção deste Tribunal, admitem a penhora de imóvel financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação para pagamento de taxas condominiais, não obstando o fato

de ser considerado bem de família, a teor do art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/90. (...) Recurso não conhecido. (STJ – RESP – SP - 187493 – Processo: 1998/0065071-7 – Quarta Turma – Relator: Luis Felipe Salomão – Dje 28.10.2009 – grifos nossos)

A substituição da expressão despesas de condomínio por taxas de

condomínio se afigura totalmente inadequada, já que aquelas, de acordo com o

disposto na Constituição Federal, são espécies tributárias devidas ao Estado apenas

em razão do exercício de seu poder de polícia ou pela prestação, potencial ou

efetiva, de serviço público específico e divisível ao contribuinte. Portanto, não se

assemelha de nenhuma forma às quotas devidas por cada condômino para a

conservação e preservação das áreas comuns da propriedade.

Em outras oportunidades, entendeu-se que a expressão contribuições,

constante da parte final do inciso IV do artigo 3º da Lei 8.009/90, se referia

justamente às cotas condominiais e não ao tributo previsto nos artigo 145, III, da

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Constituição Federal e nos artigos 81 e 82 do Código Tributário Nacional. Neste

sentido:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - CONDÔMINO INADIMPLENTE - EXECUÇÃO - PENHORA - IMÓVEL - UNIDADE RESIDENCIAL INTEGRANTE DE CONDOMÍNIO EM PLANO HORIZONTAL - TEORIA DOS DIREITOS LIMITANTES E LIMITADOS - APLICAÇÃO DA EXCEÇÃO PREVISTA NA LEI N.º 8.009/90, ART. 3.º, IV - INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. I - O condomínio em plano horizontal impõe direitos limitantes e limitados e a obrigação "propter rem" de contribuir "pro rata" para as despesas condominiais se transmuda em indisponibilidade, e inalienabilidade da unidade autônoma, desde o momento em que seu titular se torna inadimplente. II - O vocábulo "contribuição" a que alude o inciso IV, art. 3.º da Lei n.º 8.009/90 não se reveste de qualquer conotação fiscal, mas representa, in casu, a quota parte de cada condômino no rateio das despesas condominiais. Nesta circunstância, a obrigação devida em decorrência da má conservação do imóvel da recorrente há de ser incluída na ressalva do mencionado dispositivo.

III - Recurso Especial não conhecido. Decisão por maioria. (STJ – RESP 199801 – RJ – Processo: 1999/0000091-9 – Terceira Turma – Relator: Eduardo Ribeiro – DJ 02.10.2000 – grifos nossos)

Esse é o entendimento que prevalece na maioria dos julgados6:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. LEI Nº 8.009/90. ESTATUTO DO IDOSO. LEI Nº 10.741/2003. EXEGESE. DIGNIDADE HUMANA DO IDOSO. 1. A impenhorabilidade do bem de família, prevista na Lei 8.009/80, visa a preservar o devedor do constrangimento do despejo que o relegue ao desabrigo. 2. Deveras, a lei deve ser aplicada tendo em vista os fins sociais a que ela se destina, por isso que é impenhorável o imóvel residencial caracterizado como bem de família, bem como os móveis que guarnecem a casa, nos termos do artigo 1º e parágrafo único da Lei nº 8.009, de 25 de março de 1990. Precedentes: AgRg no AG nº 822.465/RJ, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJU de 10.05.2007; REsp nº 277.976/RJ, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJU de 08.03.2005; REsp nº 691.729/SC, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, DJU de 25.04.2005; e REsp nº 300.411/MG, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJU de 06.10.2003. 3. As exceções à impenhorabilidade do bem de família, previstos no art. 3º da Lei nº 8.009/1990, devem ser interpretadas restritivamente, considerando a sistemática estabelecida pela lei, sendo certo que a ressalva da lei decorre de dívida do imóvel por contribuição de cota condominial e não contribuição de melhoria. 4. É que "o vocábulo contribuições a que alude o inciso IV, art. 3º, da Lei n. 8.009/90 não se reveste de qualquer conotação fiscal, mas representa, in casu, a cota-parte de cada condômino no rateio das despesas condominiais. Nesta circunstância, a obrigação devida em

6 É o que também se pode verificar nos seguintes julgados: RESP 1100087/MG, Primeira Turma, Relator: Ministro Luiz Fux, DJe 03.06.2009; RESP 155718/SP, Terceira Turma, Relator: Ministro Eduardo Ribeiro, DJ 28.02.2000; RESP 152520/SP, Terceira Turma, Relator: Ministro Waldemar Zveiter, DJ 19.04.1999.

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decorrência da má conservação do imóvel da recorrente há de ser incluída na ressalva do mencionado dispositivo." (RSTJ 140/344). 5. A penhorabilidade por despesas condominiais tem assento exatamente no referido dispositivo, como se colhe nos seguintes precedentes: no STF, RE 439.003/SP, Rel. Min. EROS GRAU, 06.02.2007; no STJ, REsp. 160.928/SP, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJU 25.06.01 e REsp. 203.629/SP, Rel. Min. CESAR ROCHA, DJU 21.06.1999.

6. A exegese proposta coaduna-se com a dignidade humana que tutela o idoso, nos termos do art. 37 da lei 10.741/03. 7. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ – RESP- RS – 873224 – Processo: 2006/0169438-3 – Primeira Turma – Relator: Luiz Fux – Dje 03/11/2008 – grifos nossos)

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - CONDÔMINO INADIMPLENTE - EXECUÇÃO -PENHORA - IMÓVEL - UNIDADE RESIDENCIAL INTEGRANTE DE CONDOMÍNIO EM PLANO HORIZONTAL - TEORIA DOS DIREITOS LIMITANTES E LIMITADOS - APLICAÇÃO DA EXCEÇÃO PREVISTA NA LEI N.º 8.009/90, ART. 3.º, IV - INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. I - O condomínio em plano horizontal impõe direitos limitantes e limitados e a obrigação "propter rem" de contribuir "pro rata" para as despesas condominiais se transmuda em indisponibilidade, e inalienabilidade da unidade autônoma, desde o momento em que seu titular se torna inadimplente. II - O vocábulo "contribuição" a que alude o inciso IV, art. 3.º da Lei n.º 8.009/90 não se reveste de qualquer conotação fiscal, mas representa, in casu, a quota parte de cada condômino no rateio das despesas condominiais. Nesta circunstância, a obrigação devida em decorrência da má conservação do imóvel da recorrente há de ser incluída na ressalva do mencionado dispositivo. III - Recurso Especial não conhecido. Decisão por maioria. (STJ – RESP – Recurso Especial - 199801 – Processo: 1999/0000091-9 –

RJ – Terceira Turma – Relator: Ministro Waldemar Zveiter – DJ 02/10/2000)

Ao apreciar a questão, manifestou-se o STF pela possibilidade para o

pagamento das despesas condominiais, sem, contudo, analisar o alcance da

expressão que autorizaria a penhora:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. BEM DE FAMÍLIA. PENHORA. DECORRÊNCIA DE DESPESAS CONDOMINIAIS. 1. A relação condominial é, tipicamente, relação de comunhão de escopo. O pagamento da contribuição condominial [obrigação propter rem] é essencial à conservação da propriedade, vale dizer, à garantia da subsistência individual e familiar --- a dignidade da pessoa humana. 2. Não há razão para, no caso, cogitar-se de impenhorabilidade. 3. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (STF – RE – Recurso Extraordinário 439003 - SP – Segunda Turma – Relator: Eros Grau – 06/02/2007)

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Como ao STF cabe somente a interpretação de matéria constitucional, o

entendimento que prevalece na prática é o constante dos Recursos Especiais acima

citados.

Não parece, entretanto, que o significado atribuído à palavra contribuições

pelo STJ seja correto.

No Código Civil de 1916 não se cogitava dos chamados condomínios em

planos horizontais. Tal modalidade de propriedade só foi prevista pela Lei 4.591/64.

Este diploma legal, ao tratar dos valores devidos por cada condômino para a

manutenção e conservação das áreas que não eram de propriedade exclusiva,

assim dispunha:

Art. 12. Cada condômino concorrerá nas despesas do condomínio, recolhendo, nos prazos previstos na Convenção, a quota-parte que lhe couber no rateio.

Nos artigos 9º, §3º, “d” e 12, §§ 2º e 3º do citado diploma legal a palavra

contribuição fazia menção às despesas condominiais, mas não se podia falar que

tais palavras eram utilizadas como sinônimos, já que o vocábulo contribuição se

referia também ao recolhimento de impostos e taxas relativos ao imóvel. Confira:

Art. 11. Para efeitos tributários, cada unidade autônoma será tratada como prédio isolado, contribuindo o respectivo condômino, diretamente, com as importâncias relativas aos impostos e taxas federais, estaduais e municipais, na forma dos respectivos lançamentos.

Se a palavra contribuições constante da referida lei pudesse ser utilizada para

substituir a expressão despesas de condomínio, também o poderia ser em relação

aos impostos e taxas, já que também a estas espécies tributárias da mesma forma

se referia.

A Lei 4.591/64 regulamentou os condomínios horizontais até a entrada em

vigor, em 11.01.2003, do novo Código Civil, o qual passou a disciplinar a matéria

relativa nos artigos 1.331 a 1.358.

Parece, assim, que em 1990, quando então vigia a Lei 4.591/64, os valores

devidos por cada condômino para a manutenção e conservação das áreas comuns

do condomínio eram tratados pelo nome de despesas de condomínio e não

contribuição. Não faria sentido utilizar somente na Lei 8.009/90 uma expressão

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diversa para significar exatamente a mesmo tipo de obrigação prevista na lei que

disciplinava os condomínios em edificações.

É de se ressaltar, ainda, que na época da conversão da Medida Provisória

143/90 predominava no Direito Tributário pátrio a corrente tripartite das espécies

tributárias, a qual classificava os tributos em impostos, taxas e contribuições de

melhoria. Tal quadro só foi alterado quando, em 29.06.1992, ao julgar o Recurso

Extraordinário nº 146.733-9, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os

empréstimos compulsórios e as contribuições sociais eram também espécies

tributárias. Por ser bastante elucidador, transcreve-se excerto do voto do relator,

Ministro Moreira Alves:

De efeito, a par das três modalidades de tributos (os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria) a que se refere o artigo 145 para declarar que são competentes para instituí-los a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, os arts. 148 e 149 aludem a outras modalidades tributárias, para cuja instituição só a União compete: o empréstimo compulsório e as contribuições sociais, inclusive a intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas. (STF – RE 146.733-9 – SP – Tribunal Pleno – Relator: Ministro Moreira Alves, DJ 06.11.1992)

Portanto, somente a partir da data tal passou-se a considerar que no

ordenamento jurídico pátrio existiam outras duas espécies tributárias, além das

descritas no artigo 145 da Constituição Federal. Tal fato reforça o argumento que a

intenção do legislador ao incluir as exceções do artigo 3º, IV, da Lei 8.009/90, na

ordem trazida pela Constituição Federal no artigo 145, I, II e III e pelo artigo 5º do

Código Tributário Nacional, foi permitir a penhora do imóvel residencial familiar

apenas para o pagamento de tributos. Neste sentido se manifestou Pablo Stolze

Gagliano, ao tratar da referida exceção, em palestra proferida no II Fórum Brasil de

Direito, na cidade de Salvador/BA, na data de 30.05 a 01.06.01:

[...] A exceção diz respeito a tributos como o ITR e o IPTU, bem como taxas e contribuições de melhoria relativas ao imóvel residencial. Respeitável plêiade de juristas, todavia, entende que a cobrança de taxa de condomínio, enquadrável na categoria de „obrigação propter rem‟, alinha-se junto às hipóteses de exceção à proteção legal do bem de família, de maneira que o condômino inadimplente poderá ter a sua unidade habitacional penhorada para efeito de pagamento de despesa condominial. Apesar disso, tenho as minhas dúvidas a respeito do alcance da norma. Da forma como vem redigida a norma legal (permitindo a penhora para a cobrança de impostos, taxas e contribuições devidas em razão do imóvel), quase que transcrevendo os termos do Código Tributário Nacional, parece-me que a ‘taxa’ referida na regra legal é espécie de tributo, de natureza

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estatal, donde de se conclui não se tratar de taxa de condomínio. Tenho absoluta certeza de que o legislador quis se referir à cobrança de tributos, para elencar esta exceção à regra da impenhorabilidade legal do bem de família. Aliás, por se tratar de exceção, inadmissível a

interpretação extensiva para se aplicar a norma a situação não prevista em lei. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2009, v.1, p.284, grifos nossos)

Muito embora referido doutrinador se refira à impossibilidade de penhora do

bem de família considerando a substituição da cota devida por cada condômino em

relação ao vocábulo taxa, uso totalmente descabido, como já demonstrado em

passagem anterior, tem-se que o raciocínio é em tudo aplicável também à

impossibilidade de constrição se a substituição for realizada em relação às

contribuições.

Em relação, ainda, ao significado da expressão contribuições, com uma única

exceção, qual seja a constante da parte inicial do inciso IV do artigo 8º da

Constituição Federal de 1988, que trata da contribuição confederativa, estas sempre

significaram espécie tributária. Como anota Couto Filho (2005, p. 44) já “na época do

Império, (o ordenamento jurídico) utilizava o termo „contribuição‟ como sinônimo de

imposto.”

Na Constituição vigente, com exceção das contribuições confederativas

supramencionadas, “símbolo de uma impertinência terminológica cometida pelo

Poder Constituinte Originário na escolha da denominação do recolhimento [...]”,

como bem observa Couto Filho (2005, p.44), o vocábulo contribuição se refere à

espécies tributária constante do artigos 8º, IV, parte final, o qual se refere às

contribuições sindicais, e àquelas descritas nos artigos 145, III, 149 e §§ 1º a 4º e

149-A da Constituição Federal.

Surge então o seguinte questionamento em relação à interpretação que tem

sido dada pelo STJ ao artigo 3º, inciso IV, da Lei 8.009/90: pode-se levar em conta

que a expressão contribuição contida na Lei 8.009/90 pode abarcar,

simultaneamente, tanto as contribuições de melhoria quanto a quota devida por cada

condômino ao respectivo condomínio? Como anota Couto Filho (2005, p. 45) a “[...]

alegação de que cada ramo do Direito pode atribuir uma natureza jurídica diversa

para um instituto é absurda, pois a divisão do Direito em ramos se apresenta apenas

como um recurso didático para sua melhor compreensão.” Assim, não parece ser

correto o raciocínio que atribui significados distintos para a palavra contribuição,

conforme se trate de instituto atinente ao Direito Civil ou ao Direito Tributário.

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Desta forma, se fosse excluída a conotação tributária dada à palavra

contribuição constante do inciso IV do artigo 3º da Lei 8.009/90, conforme a

tendência que se verifica na maioria dos julgados colacionados, faria sentido

excetuar a impenhorabilidade do imóvel que serve de moradia familiar somente em

relação aos impostos e taxas e não à contribuição de melhoria? Não se apresenta a

alternativa mais adequada, ainda mais quando se considera que a contribuição de

melhoria é justamente o tributo devido pelo proprietário de imóvel que foi valorizado

pela realização de obra pública, para evitar que se enriqueça às custas da

sociedade, a qual financia a atividade do Estado.

Sob outro prisma, tem-se que o direito a um teto, um local para constituir sua

moradia, está intrinsecamente ligado ao direito à dignidade da pessoa humana, um

dos princípios que regem a República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, da

Constituição Federal de 1988).

Surge, assim, dúvida acerca da possibilidade de o Poder Judiciário, após a

inclusão do direito social à moradia no artigo 6º da Constituição Federal pela

Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, poder interpretar

dispositivos referentes a tal direito na legislação infraconstitucional de forma

restringi-lo.

A dignidade da pessoa humana

[...] traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais [...]. (MORAES, 2009, p. 22)

Conclui-se, portanto, que haverá violação ao direito fundamental à moradia

[...] sempre que for implantado um sistema infraconstitucional ou ato advindo de autoridade pública que resulte lesão a esse direito, em redução, desproteção,ou inviabilização do seu exercício, uma vez que a moradia goza da proteção fundamental, sendo dever do Estado o respeito, a preservação, a ampliação e a facilitação do exercício desse direito essencial. (RITONDO, 2008, p. 124/125)

Como ensina Couto Filho (2005,p. 92)

[...] toda interpretação de norma jurídica deve observar os limites impostos pela Constituição do seu Estado soberano, pois é a Carta Magna que traz e

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concretiza os mais importantes e fundamentais valores eleitos por uma determinada sociedade.

Ao analisar o teor das decisões proferidas pelo STJ no que atine às despesas

de condomínio, observa-se justamente uma exegese, por tudo que até aqui foi

exposto, um tanto quanto duvidosa, que privilegia o crédito dos credores, no caso os

condomínios em plano horizontal, com a consequente restrição do direito de moradia

dos condôminos e indiretamente da dignidade de tais pessoas.

Embora se reconheça que uma eventual mudança de interpretação possa

ensejar a moratória por parte de muitos condôminos, os quais, sabendo que não

perderão seu imóvel e não sofrerão nenhuma penalidade mais grave, além das

multas que são cobradas pelo atraso do pagamento das despesas devidas ao

condomínio, por deixar de quitar os valores devidos para conservação e manutenção

da coisa comum, não pode o Judiciário, por este único e exclusivo fator, restringir o

exercício de um direito fundamental de tal relevância.

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7 CONCLUSÃO

Do estudo realizado pôde-se verificar que, predomina o entendimento, no que

diz respeito às exceções à impenhorabilidade do único imóvel que serve de moradia

familiar, que a expressão contribuições constante da parte final do inciso IV do artigo

3º da Lei 8.009/90, não possuiu conotação fiscal, o que autorizaria a penhora do

único bem imóvel do devedor que reside em condomínio em plano horizontal para a

quitação de despesas devidas para a conservação e manutenção de áreas comuns.

A análise dos institutos despesas de condomínio e contribuição em relação à

legislação constitucional e infraconstitucional, bem como no que atine à corrente

doutrinária das espécies tributárias existentes no ordenamento jurídico pátrio à

época em que a Lei 8.009/90 entrou em vigor, parece indicar que a penhora da

moradia familiar somente pode se dar para o pagamento das contribuições de

melhoria.

Além disso, conforme analisado no decorrer de todo o trabalho, as despesas

de condomínio são devidas para conservação e manutenção das áreas comuns

daquele que reside em condomínio de edifícios, para o rateio dos valores

despendidos para tais atividades. Já proteção ao bem de família legal tem por

objetivo proteger a família que se encontra em situação de penúria financeira, do

desabrigo por dívidas por ela contraídas. O que se visa, portanto, é assegurar a

existência com um mínimo de dignidade àquele que em um momento de dificuldade

econômica corre o risco de perder até mesmo seu teto, inclusive em relação aos

valores devidos a título de despesas de condomínio.

Tal assertiva se torna ainda mais verdadeira quando se tem em vista que com

a inclusão do direito à moradia no rol dos direitos e garantias fundamentais pela

Emenda Constitucional 26/2001, vedou-se ao intérprete ampliar hipóteses que tal

direito possa ser restringido, passando a ser bastante questionável o

posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Desse modo, tem-se que a correta interpretação dos dispositivos da lei que

regulamenta o bem de família legal deve prevalecer sobre quaisquer outras,

inclusive a que põe em relevo motivos de ordem patrimonial, em detrimento da

dignidade da pessoa humana, a qual é assegurada, em uma de suas faces, pelo

direito à moradia.

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