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A poltica social no perodo FHC e o sistema de proteo socialSnia Draibe

Uma homenagem a Vilmar Faria

IntroduoA poltica social do governo Fernando Henrique Cardoso examinada neste artigo tendo em vista principalmente seus efeitos sobre o sistema brasileiro de proteo social1. Nesse sentido, abordarei de maneira geral o sistema de polticas sociais e suas principais mudanas, inovaes e reformas ocorridas nos dois mandatos presidenciais, concentrando-me nas instituies da poltica social orientaes, princpios, regras de incluso e excluso. Para isso, tomarei como exemplo alguns programas particulares. Os estudos comparados sobre as reformas do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) constituem uma profcua linha de trabalho, de presena cada vez maior na literatura internacional. E no por acaso. Acompanhando as recentes transformaes do capitalismo, fortes e crescentes presses incidiram sobre os sistemas de proteo social, desafiados pelo desemprego estrutural de longa durao, pela piora na distribuio de renda, pelo aumento e diversificao da pobreza, pela reduo dos recursos fiscais. Acrescente-se a isso a hegemonia do novo sistema de valores, diferente e, em boa medida, hostil aos princpios de solidariedade e justia social que presidiram, na etapa anterior, a expanso do sistema.

1.Uso o conceito de sistema de proteo social em sentido abrangente, com conotao similar ao de Estado (ou regime) de Bem-Estar Social ou do conceito mais recentemente disseminado, o de Social Policy System. O termo proteo remete idia de proteo contra riscos sociais, tanto os velhos e clssicos perda previsvel da renda do trabalho como os contemporneos ter em-

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prego decente, educar os filhos, viver nas megalpoles, habitar e alimentar-se condignamente etc. Tais conceitos so de maior amplitude, portanto, que o de seguridade social, usualmente referido previdncia, sade e assistncia social.

A primeira gerao de estudos examinou as mudanas pelo vis de suas relaes com os fenmenos da globalizao e da hegemonia do neoliberalismo, declarando-as destrutivas dos Estados de Bem-Estar Social, uma vez que passaram a ser orientadas pelos dois mais caros princpios do revivido liberalismo radical: a responsabilidade pblica reduzida a polticas para grupos pobres, por intermdio de redes de proteo e programas focalizados, e a responsabilidade estritamente individual, em que as pessoas so estimuladas a assumir os seguros contra os riscos sociais, condenando-se assim extino as formas solidrias prevalecentes (cf. Sojo, 2003, p. 1). A tese do provvel retorno ao Estado Mnimo circulou com intensidade, na Amrica Latina, especialmente aps a radical reforma chilena de Pinochet. Verses mais matizadas insistiram no argumento de que, com certa independncia das orientaes poltico-ideolgicas, os governos contemporneos tornaram-se todos eles prisioneiros do difcil dilema entre a nova poltica econmica e a poltica de proteo social, produzindo o desmantelamento ou, no mnimo, um recuo, um retrenchment, como quer Pierson (1994), da proteo social. No caso dos pases latino-americanos, sob forte presso financeira internacional, esses teriam optado radicalmente por um lado da balana o do ajustamento fiscal e as reformas comerciais e patrimoniais pr-mercado. Ao faz-lo, teriam dado passos mais significativos naquela mesma direo. Privatizaes de servios sociais pblicos, quedas significativas do gasto social, redues importantes dos graus de proteo social anteriormente oferecidos teriam sido os resultados mais palpveis desses processos. Ao no se confirmarem os prognsticos pessimistas do desaparecimento do Welfare State, e ao se acumularem evidncias sobre a grande variao das experincias nacionais nem todas elas cabendo naqueles figurinos , uma segunda gerao de estudos deslocou o foco, passando a indagar em que medida as alteraes observaram algum padro e, se positivo, como se comportam os padres reformistas em relao ao tipo ou, como quer Esping-Anderson (1990), ao regime de Welfare State antes presente: o liberal, o conservador ou o social-democrata. Entre os inmeros achados dessa leva de estudos, est a quase montona constatao de que, afinal, no plano das instituies e de organizao, significativa a permanncia no apenas das mesmas instituies de proteo social, mas tambm dos mesmos regimes, sendo rarssimos os casos em que as evidncias confirmam uma efetiva mudana de modelo.

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Mas a constatao da permanncia apenas o primeiro passo para se pesquisar e se entender o sentido e os resultados, sobre um mesmo sistema de proteo social, de deliberadas inovaes, correes e inflexes norotineiras que tenham afetado algumas de suas dimenses e planos. No novidade que, mesmo na ausncia de reformas radicais, mudanas de segundo grau podem melhorar ou piorar a proteo social, podem alarg-la e fortalec-la, ou fragiliz-la e amesquinh-la. As noes j citadas de recuo, encolhimento, ou de inflexo que uso neste trabalho , tm servido exatamente para dar conta desse nvel de mudana em sistemas invariantes. Uma vertente de estudos mais recente tem privilegiado, para a compreenso das reformas dos sistemas de proteo social Social Policy System, no seu jargo -, as relaes entre poltica econmica e poltica social, no no sentido clssico das bases materiais do progresso social ou no sentido comum do gasto social, e sim na concepo do lugar e do papel reservado s polticas sociais no modelo de desenvolvimento econmico. Isto , as potencialidades e as capacidades da poltica social em promover e facilitar o crescimento econmico. Sistemas com tais caractersticas configurariam um tipo especfico de Welfare State, o Welfare State Desenvolvimentista (cf. Mkandawire, 2001; Gough, 2001; Chang, 2002;Wong, 2003b), desdobrado em dois subtipos: o Welfare State Desenvolvimentista Inclusivo fundado em programas sociais universalistas, os quais mantm seus imperativos sociais e contribuem para o aprofundamento da democracia (cf. Kwon, 2003) , e o Welfare State Desenvolvimentista Seletivo, o qual, ainda que estimule o crescimento, limita suas aes sociais aos segmentos pobres da populao. Tal distino revelou-se especialmente til nos estudos sobre as reformas recentes da proteo social em pases do Leste Asitico, possibilitando aferir o trnsito de sistemas seletivos em direo a sistemas inclusivos (Kwon, 1999, 2002, 2003; Wong, 2003a e b). Carmelo Mesa-Lago (1989), que, pioneiramente, j tipificara os sistemas latino-americanos de proteo social, vem examinado suas recentes reformas da perspectiva aqui assinalada (cf. Mesa-Lago, 2002). Os casos de Cuba, Costa Rica e Chile permitem ao autor construir trs modelos de desenvolvimento, definidos segundo as relaes entre fins (crescimento versus eqidade) e meios (Estado versus mercado). Alm de estudar comparativamente o desempenho socioeconmico dos trs pases, usa aqueles casos-tipo como parmetros para apreciar as reformas introduzidas em outros pases, verificando sua maior ou menor aproximao com o modelo estatista cubano, ou o liberal chileno ou ainda o equilibrado modelonovembro 200365

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costa-riquense. Nas suas concluses, assinala o melhor desempenho econmico e social do modelo balanceado da Costa Rica, mas insiste no fato de que, nos anos de 1990, todos os trs pases introduziram medidas corretivas em seus prprios sistemas, particularmente na seguridade social. Assim, enquanto o Chile reduziu em parte o peso do mercado, Cuba e, em segundo lugar, a Costa Rica, reduziram o peso do Estado, introduzindo o princpio do mercado. Em nenhum dos trs casos, constata, o modelo preexistente foi alterado (cf. Mesa-Lago, 2002, p. 25). O que poderamos dizer a respeito do caso brasileiro, na perspectiva indicada pela literatura? Correndo o risco do simplismo, diria que duas so as questes bsicas a responder: As reformas recentes redundaram ou no em mudana estrutural do nosso sistema de polticas sociais? Se no ocorreu mudana radical de regime, ento quais teriam sido os efeitos das reformas sobre os princpios e as instituies da proteo social brasileira? Como teriam se comportado as dimenses inclusivas e seletivas do nosso sistema, em decorrncia das mudanas recentes? com base nessas questes que examino, aqui, as reformas dos programas sociais brasileiros implementadas ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002). Do ponto de vista metodolgico, cabe lembrar que anlises de reformas, sejam quais forem a sua natureza, exigem a identificao de um ponto de partida, mesmo que na forma de um constructo, uma fixao do momento ex ante, necessrio porque ser em relao a ele que se estabelecero, no momento seguinte, as continuidades, as mudanas, o qu e o quanto houve de variao. A situao mais complexa no nosso caso. O ponto de partida, como no poderia deixar de ser, o nosso histrico sistema de proteo social, construdo sob a gide do Estado Desenvolvimentista, pois s a detectamos cabalmente os princpios de justia social e de solidariedade em que se fundamentou, assim como suas caractersticas institucionais. Mas no se pode desconhecer, por outro lado, que, nos anos de 1980, tal sistema j havia sido, de algum modo, alterado por um primeiro ciclo de reformas. Ora, se quisermos apreciar as mudanas ocorridas durante o governo FHC, se faz necessrio fixar esse duplo ponto de partida, pois sobre eles que incidem as reformas da segunda metade dos anos de 1990. Inovaes e reformas radicais so facilmente identificveis. Mas como distinguir, na vida regular das polticas pblicas, episdios de reforma e mudanas significativas de outras variaes pouco importantes? Progra66

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mas governamentais, e no s os sociais, variam muito; no Brasil, variam mais ainda conforme as marcas que cada governo quer, sobre eles, imprimir. No dessa variao rotineira que tratamos aqui; ao contrrio, manejamos um conceito forte de reforma, circunscrevendo sua abrangncia aos casos em que as mudanas afetaram os princpios, as estruturas, as regras duras de uma dada poltica (ou de alguma de suas subreas, desde que estas possuam perfil prprio, como o caso, por exemplo, de cada um dos nveis de ensino, na rea educacional)2. Reformas parciais foram identificadas pelo mesmo critrio: afetam parte dos princpios e da institucionalidade de uma dada poltica. Foi tambm importante distinguir dois momentos no exame de algumas reformas: o da introduo referido ou circunscrito a mudanas no arcabouo legal, na definio das novas regras e mesmo as mudanas institucionais iniciais e o da implementao referido ao processo de implantao de inovaes anteriormente decididas e iniciadas.

O sistema brasileiro de proteo social: legado histrico e ciclos recentes de reformasSo conhecidas as caractersticas do sistema brasileiro de proteo social, construdo entre 1930 e aproximadamente os anos de 1970: um sistema nacional de grandes dimenses e complexidade organizacional, envolvendo recursos entre 15% e 18% do PIB, integrado por praticamente todos os programas prprios dos modernos sistemas de proteo social exceto o seguro-desemprego , cobrindo grandes clientelas, mas de modo desigual e muitssimo insuficiente. Do ponto de vista decisrio e de recursos, combinava uma formidvel concentrao de poder e recursos no Executivo federal com forte fragmentao institucional, porosa feudalizao e balcanizao das decises. Alm de desperdcios e ineficincias, seus programas atendiam mal aos que deles mais necessitavam. Do ponto de vista da relao pblico-privado, a predominncia dos sistemas sociais pblicos, tanto os universais (educao e, em menor grau, sade) como os securitrios, no impedia, muito pelo contrrio, que o setor privado lucrativo abocanhasse boa parte da proviso social, seja diretamente, atendendo aos segmentos mdios e altos, seja indiretamente, por meio da intricada e interessada relao com a mquina e os recursos estatais, alguns bastante polpudos, como, por exemplo, os que circularam por quase vinte anos pelo Banco Nacional de Habitao (BNH) e pelo Fundo

2.Longe de expressar a mera preferncia pelo formalismo, o que est em jogo sob tal conceito a possibilidade de detectar o que fundamental, em matria de poltica social: os princpios de justia social e de solidariedade em que se fundamenta; sua abrangncia (seu maior ou menor universalismo) e os meios do seu exerccio, nesse caso, os efeitos das variaes sobre as capacidades e as qualidades de suas instituies.

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3.No curto espao de trinta anos (1950-70), cerca de 40 milhes de pessoas migraram para as cidades, nas propores de 24% da populao total nos anos de 1950, 36% nos de 1960 e 40% nos de 1970 (cf. Cardoso de Mello e Novais, 1998, p. 581). 4.Fundos sociais e vinculao de receitas distinguem, at hoje, a armao brasileira de financiamento do gasto social. Um estudo clssico e pioneiro dos fundos sociais o de Rezende (1985).

de Apoio Social (FAS), estimulando e alavancando os grandes complexos industriais da construo civil, um, e o segmento hospitalar, o outro, sob um padro que Marta Arretche (1990) chamou de estatista-privatista. No casual, portanto, que tal sistema tivesse baixos impactos redistributivos, ou seja, praticamente nula capacidade de reduo da secular desigualdade social. O que , em parte, coerente com a natureza mais geral do modelo ou o regime de Welfare State aqui construdo, de tipo conservador, pautado por uma concepo de interveno social do Estado meramente sancionadora da distribuio primria da renda e da riqueza. Coerente ademais com o padro de desenvolvimento econmico perseguido desde os primrdios da modernizao capitalista e levado ao paroxismo pelo regime militar de 1964 a 1985. Afinal, nosso Estado Desenvolvimentista teve bastante xito em dar impulso industrializao e promover a transformao capitalista da estrutura social, mas o fez, como se sabe, em base a processos sociais extremamente violentos recorde-se a selvagem modernizao do campo e a rapidez da urbanizao3 e de um modo pouco moderno, nada inclusivo de incorporao social dos setores populares, pouco referido a direitos e expanso da cidadania, limitado, na prtica, aos assalariados urbanos do mercado formal de trabalho e, no plano das polticas, regulao das relaes trabalhistas e aos benefcios previdencirios (Draibe, 2003). No difcil verificar a um tipo desenvolvimentista de Welfare State, potente para estimular o crescimento econmico, at porque apoiado em uma de suas mais distintivas criaturas, os fundos sociais4, mas socialmente pouco inclusivo (dada a ineficincia dos restritos programas universais) e no-seletivo (j que pouco ou mal focalizado nas camadas mais necessitadas). Sobre esse sistema incidiram as mudanas que trato a seguir.reformas 1980 e 1990: dois ciclos de reformas

Muitas e profundas so as diferenas das reformas desses dois momentos: as referentes ao ambiente econmico, poltico e cultural em que se deram; e as relativas a princpios e valores da sua conduo. A agenda reformista do primeiro ciclo, como se sabe, a da democratizao. Processada na primeira fase da Nova Repblica, e simbolicamente encerrada com a promulgao da Constituio de 1988, ganhou uma traduo particular no campo das polticas sociais: a reforma do sistema de proteo sob a dupla chave de sua democratizao e da melhora da sua

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eficcia. Em boa medida, o acerto de contas com o autoritarismo supunha um dado reordenamento das polticas sociais, o qual respondesse s demandas da sociedade por maior eqidade e pelo alargamento da democracia social. Tambm a melhora da eficcia das polticas inscreveu-se naquela agenda, uma vez que se reconhecia ser j significativo o esforo de gasto que o pas realizava na rea social em face de seus medocres resultados. No plano institucional, objetivos desse teor sustentaram proposies de descentralizao, maior transparncia e accountability dos processos decisrios, acompanhados do reforo da participao social grandes idias-fora que fechavam o crculo da democratizao do Estado. A Constituio de 1988 consagrou os novos princpios de reestruturao do sistema de polticas sociais, segundo as orientaes valorativas ento hegemnicas: o direito social como fundamento da poltica; o comprometimento do Estado com o sistema, projetando um acentuado grau de proviso estatal pblica e o papel complementar do setor privado; a concepo da seguridade social (e no de seguro) como forma mais abrangente de proteo e, no plano organizacional, a descentralizao e a participao social como diretrizes do reordenamento institucional do sistema. Na linha das questes enunciadas de incio, que efeitos sobre o nosso sistema de polticas sociais produziram ou produziriam, se plenamente implementadas as reformas de 1988? Envolto no otimismo da dcada de 1980, o horizonte com que os setores progressistas pensaram a reforma da proteo social era o de um modelo universalista e redistributivo. Atingi-lo exigiria por certo reestruturar, corrigir, limpar por dentro o prprio sistema de polticas sociais, cujas piores distores j se conheciam. Entre elas, a distribuio muito desigual dos benefcios sociais, concentrados e apropriados por alguns segmentos, corporaes, regies, alm de grupos etrios, raas e o sexo masculino. Desmontar as estruturas que reproduziam e magnificavam as desigualdades e introduzir, nas polticas sociais, mecanismos redistributivos fortes teriam exigido ir muito alm do que se logrou alcanar. Trocar efetivamente o rumo do nosso sistema de proteo social, fazendo-o avanar em direo a um padro mais inclusivo de Estado de Bem-Estar, teria exigido o estabelecimento de uma base mnima comum de benefcios sociais, digna e decente, a partir da qual, e s a, as diferenas se manifestariam. Ora, alm de enfrentar interesses muito encastelados, um movimento dessa envergadura exigiria uma reviso conceitual, melhor dito, cultural profunda, tanto do que se considerava e se propunha como universalismo, como dasnovembro 200369

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suas tradues programticas e organizacionais, exatamente para evitar que por trs e por dentro do universalismo operassem os mesmos frreos mecanismos reprodutores da desigualdade, como, alis, to bem nos ensinava a experincia de mais de um sculo em educao fundamental. At a no fomos, em 1988. Principalmente pela afirmao dos direitos sociais, o sistema de proteo saiu fortalecido e ampliado das novas definies constitucionais, sobretudo nas reas de sade e assistncia social. Mas ainda era o mesmo sistema histrico construdo desde os anos de 1930, de base categorial e meritocrtica forte, capaz de fazer com que a inequvoca ampliao do escopo da proteo, em 1988, se houvesse realizado ainda sob a secular regra de dar mais aos mesmos, por meio do mecanismo de expanso vertical dos privilgios, de que nos fala Mesa-Lago (1989). Em meados da dcada seguinte, sob o governo FHC, a reforma do sistema de proteo social voltou ordem do dia. Em outro ambiente intelectual e valorativo e em meio s restries fiscais que acompanharam o programa de estabilizao e as reformas pr-mercado, um outro ciclo de mudanas veio alterar a fisionomia do sistema brasileiro de proteo social. Qual o ponto de partida do novo movimento de mudanas? Inequivocamente, as estruturas e os formatos do Estado de Bem-Estar Social herdado do passado, j que as reformas dos anos de 1980 no haviam mudado a sua natureza, nem boa parte dos seus modos seculares de operao. Mas, sem dvida, no se tratava mais daquele sistema em sua pureza, em sua integridade, j que tambm alterado pelas mudanas introduzidas no primeiro ciclo reformista. Ou seja, pode-se dizer que, diferena dos antecessores, os reformadores dos anos de 1990 tiveram um duplo ponto de partida: o sistema tal como chegara dcada de 1980, e as mudanas recentes, definidas e implementadas entre o final desses anos e a metade da dcada posterior. Essa marca original longe est de ser trivial. Desde logo, estou aqui me referindo ao fato de que o reordenamento da poltica social proposto no segundo ciclo de reformas nem partiu do zero nem operou em qualquer vazio social. Essa verdade de toda e qualquer situao de reforma de polticas aqui tem um particular significado, o de que o movimento reformador dos anos de 1990 teve de se haver tanto com o legado histrico do sistema de proteo social como com esse outro legado social, institucional, poltico e cultural deixado pelo ciclo democratizante de reformas. Por recentes que fossem as novas polticas sociais, suas marcas e caras institucionais l estavam, nos anos de 1990, abrigadas nos princpios sob os quais se armaram, em suas regras e rgos,70

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muitos ainda em implementao. E, sobretudo, em seu pessoal, nos seus principais atores, entre os quais as suas prprias burocracias e quadros tcnicos dirigentes, mas fundamentalmente as suas clientelas e redes de apoio, antigas e novas. Nesse momento, j constituam o corpo e a alma das polticas reformadas nos anos de 1980, por isso mesmo o terreno social da resistncia ou do apoio, nesse novo ciclo. Se ns pensarmos nas duas polticas sociais reformadas com xito no primeiro ciclo a sade, com o Sistema nico de Sade (SUS), e a assistncia social, com a Lei Orgnica da Assistncia Social (Loas) , torna-se mais claro o sentido dessas observaes. Para diz-lo de forma muito resumida, os dois ciclos de reforma guardam relao entre si, no se podendo explicar o segundo sem se levar em conta o primeiro. Continuidades e rupturas, contra-reformas, reforma da reforma, path dependency so esses alguns dos conceitos com que se pode apreender as relaes entre ambos (cf. Draibe, 2002a e b; 2003). No Quadro 1, apresento as reas e as polticas reformadas nos dois ciclos.QUADRO 1 Brasil: Reforma do Sistema de Proteo Social segundo os ciclos (1985-2002)

REAS

DE

POLTICAS

1 CICLODE

2 CICLODE

REFORMAS

REFORMAS 1999-2002

1985-1988 EDUCAO Ensino Infantil Ensino Fundamental Ensino Mdio Ensino Superior POLTICADE

1995-1998

Reformada Reforma parcial

Reforma parcial Introduzida Implementada Reforma parcial

Introduzida Reforma parcial

SADE

PREVIDNCIA SOCIAL Emprego e Proteo do Desemprego Seguro-desemprego Programas de Insero Produtiva PROTEO

Introduzida

Ampliada Introduzida

POBREZA Reformada Implementada Introduzida Introduzida

Assistncia Social Programas de Combate Pobreza Rede de Proteo (transferncias monetrias)

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Se julgarmos os casos com o conceito estrito de reforma (mudana completa de princpio e estrutura, afetando toda a poltica e no apenas um ou outro de seus nveis), somente duas reas sociais foram reformadas, e apenas no primeiro ciclo: sade e assistncia social. A sua implementao atravessa o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique. Reformas parciais ocorreram, no primeiro ciclo, na Previdncia Social, e no segundo, na poltica de sade, na poltica educacional (ensino fundamental) e outra vez na Previdncia Social. Inovaes ou incio de mudana (introduo) registram o seguro-desemprego, no primeiro ciclo, e, no segundo, a educao infantil e o ensino mdio, os programas de insero produtiva, e os de combate pobreza, a includa a Rede de Proteo Social, em base s transferncias monetrias diretamente s famlias pobres. Nas sesses seguintes, examino as principais reformas e inovaes do segundo ciclo, correspondente aos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Seguindo a velha tradio, tomo em primeiro lugar as propostas para, em seguida, tratar das medidas de fato implementadas.

A estratgia de desenvolvimento social do governo FHC: concepo, desenho e propostas (1996 e 1998)A poltica social proposta pelo governo FHC foi definida de modo ambicioso e apresentada sob uma armao complexa. Mais que nos registros do programa eleitoral Mos obra de 1994 (cf. PSDB,1994), seus princpios, objetivos e prioridades foram dados a pblico em maro de 1996, em documento intitulado Uma estratgia de desenvolvimento social (cf. Brasil, Presidncia da Repblica, 1996). Exprimindo opinies e propostas decantadas h catorze meses de iniciado o governo, ali se apresenta um denso e sofisticado programa social, definido nos termos mais gerais de um sistema nacional de proteo social e referido, de modo explcito e nada ingnuo, s principais questes que j polarizavam, na poca, o debate e, diga-se de passagem, a forte crtica sobre a natureza e os limites da poltica social do governo. O campo da proposta delimitado: a poltica social tratada no documento a que se destina a garantir o direito social, a promover a igualdade de oportunidades e a proteger os grupos vulnerveis5. No abrange, portanto, os outros programas pblicos sociais ou de impacto social, restringindo-se aos voltados mais diretamente para polticas de bem-estar e promoo social que so seguindo a tradio internacional as reas de

5.Conforme o documento: Procura-se examinar, apenas, as polticas, programas e aes que promovam, consolidem ou garantam direitos sociais bsicos e a igualdade de oportunidades, ofeream defesa contra situaes recorrentes de risco e dem proteo social a grupos vulnerveis (Brasil, Presidncia da Repblica, 1996, p. 2).

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educao, sade e nutrio, previdncia social e seguro-desemprego, trabalho, habitao e saneamento (Idem, p. 5). A inspirao, afirma-se, social-democrata e o horizonte, mais que o Estado, o de uma sociedade de bem-estar, para a qual se pretende caminhar, plano onde se articulariam os objetivos da poltica social e da consolidao democrtica (Idem, p. 9). A estratgia foi apresentada por meio dos seus objetivos, condies e desafios. Ao registrar cautelosamente as condies necessrias e os desafios, condicionantes gerais da poltica social, alm de repetir o ritual da referncia poltica de estabilizao, o documento indica os condicionantes externos (e, portanto, em sentido negativo, os limites) em que esbarra a poltica social: a retomada do crescimento, o aumento do emprego6 e a melhora da distribuio da renda7. Vamos poltica social propriamente dita. Seu ncleo, como indica o documento, constitudo por trs conjuntos ou eixos de programas os servios sociais bsicos de vocao universal e de responsabilidade pblica; os programas bsicos e o programa de enfrentamento da pobreza , articulados segundo as orientaes e as prioridades do governo. Os primeiros, os programas sociais pblicos como as polticas de previdncia social, sade, educao, habitao e saneamento bsico, trabalho e assistncia social , ocupam posio decisiva, sendo dupla a sua insero na proposta: constituem um dos eixos centrais da poltica e, ao mesmo tempo, a sua reestruturao apontada como condio necessria da estratgia global. Ou seja, a estratgia de desenvolvimento social repousaria, entre outras condies e desafios, na efetiva universalizao dos servios sociais pblicos, na melhora da eficcia e da qualidade dos mesmos, no aumento do seu impacto redistributivo, da a necessidade de sua reestruturao, segundo as diretrizes da descentralizao, da elevao da participao social e das parcerias entre os nveis da federao e com a sociedade civil (Idem, p. 40). O segundo eixo resulta da seleo de programas prioritrios em cada um daqueles programas sociais universais, compondo-se o novo grupo de programas bsicos, aos quais seriam conferidos prioridade no financiamento, garantia de regularidade dos fluxos financeiros, apoio para gerenciamento dinmico e adequado, monitoramento regular da implementao e avaliao peridica do cumprimento das metas preestabelecidas (Idem, p. 41). Substantivamente, foram apresentados 45 programas prioritrios, selecionados pelo seu carter estratgico diante da pobreza, da desigualdade social e tambm do novo padro de crescimento8.

6.Por meio do mix de programas pblicos destinados a promover a gerao de emprego (com financiamento a pequenas e microempresas; investimentos pblicos em infra-estrutura urbana; afirmao do contrato coletivo de trabalho, alm de medidas de desregulamentao das relaes contratuais e modernizao do sistema de intermediao de mode-obra); a melhora da qualificao profissional (programas de qualificao e outros); e a garantia da proteo ao trabalhador (incluindo o reforo do segurodesemprego, e benefcios aos trabalhadores aposentados rurais e carentes). 7. Por meio do aumento dos nveis educacionais da populao; da capacitao profissional; da articulao do seguro-desemprego com programas de qualificao e de requalificao; do aumento da poupana, da taxa de investimento; do apoio aos setores intensivos em mo-de-obra e da promoo da maior autonomia e independncia das organizaes sindicais (cf. Bra-

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sil, Presidncia da Repblica, 1996, pp. 23 e 25). 8. Destinados a enfrentar pontos de estrangulamento mais dramticos (como a Reforma Agrria), acelerar o processo de reforma e reestruturao de servios sociais (como a melhoria do ensino fundamental) e [...] proporcionar ateno a grupos sociais que requerem ao imediata e inadivel (a reduo da mortalidade na infncia, a capacitao de jovens e a renda mnima para idosos e deficientes) (Idem, p. 41). A lista completa est disponvel em http:// www.planalto.gov.br/ publi_04/ COLEO / ESTRA5A.HTM. 9.O Conselho implementou,a partir de 1995, os programas Universidade Solidria, Alfabetizao Solidria, Capacitao de Jovens e Artesanato Solidrio.

O terceiro eixo programtico o de combate pobreza, conforme as prioridades estabelecidas: reduo da mortalidade infantil; desenvolvimento da educao infantil e do ensino fundamental; gerao de ocupao e renda; qualificao profissional; melhoria das condies de alimentao dos escolares e das famlias pobres; melhoria das condies de moradia e de saneamento bsico e fortalecimento da agricultura familiar. Liderado pelo Programa Comunidade Solidria, foi concebido como uma estratgia inovadora de coordenao das aes federais, em parceria com estados, municpios e sociedade, segundo os princpios da descentralizao e da solidariedade. Na sua frente pblica e sob a ao supervisora da Secretaria Executiva, foram selecionados vinte programas a serem canalizados, em ao simultnea, aos segmentos sociais mais carentes, focalizados pelos critrios territorial (municpios) e de renda (familiar). Na sua frente no-governamental, o Conselho do Programa Comunidade Solidria foi entendido como um mecanismo de articulao entre o governo federal e a sociedade civil, visando mobilizao, ao dilogo e implementao de experincias inovadoras9. Definidos os trs eixos (Quadro 2), decorrem da sua articulao as prioridades governamentais efetivas, num desenho que lembra uma pirmide (Figura 1).2 Governo FHC: Estratgia de Desenvolvimento SocialQUADRO

OBJETIVOS Garantia dos direitos sociais Igualdade de oportunidades Proteo aos grupos vulnerveis

CONDIES NECESSRIAS Estabilidade macroeconmica Reforma do Estado Retomada do crescimento econmico Reestruturao dos programas sociais universais

DESAFIOS Crescimento econmico Gerao de emprego Melhora da distribuio de renda

FIGURA 1

Combate pobreza Comunidade Solidria 20 programas pblicos + programas do Conselho da CS Programas prioritrios (45 programas bsicos e estratgicos) Servios sociais bsicos de vocao universal e de responsabilidade pblica (Previdncia Social, Sade, Educao, Habitao e Saneamento Bsico, Trabalho e Assistncia Social)

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Essas foram as concepes e o desenho de poltica que orientaram a ao social do governo Fernando Henrique no seu primeiro mandato e, em boa medida, tambm no segundo. De fato, tal como apresentadas no programa de governo Avana Brasil (cf. PSDB, 1998), lanado na campanha eleitoral de 1998, as propostas para a poltica social do segundo governo seguem as mesmas linhas mestras da Estratgia de 1996. Ainda assim, h diferenas que convm registrar. A primeira uma diferena na forma como os programas sociais foram agrupados e apresentados. Embora o programa de 1998 reitere a centralidade dos programas bsicos de carter universal, as aes programticas foram agrupadas de outro modo, segundo reas de ao (urbana, rural etc.) e pblicos-alvo (crianas e adolescentes, jovens, terceira idade, mulheres etc.). H tambm diferenas, poucas, nas prioridades indicadas no interior de cada grande rea social. Mas, inegavelmente, a grande mudana se d no campo da poltica de enfrentamento da pobreza, a nfase posta agora nos programas de transferncia direta de renda para famlias pobres, a ser integrada por vrios programas j existentes, que deveriam, ademais, passar por um processo de aperfeioamento, universalizando a cobertura a todos os que a eles tm direito, garantindo a sade financeira de suas fontes e desenvolvendo mecanismos de superviso e controle. Nem o programa eleitoral de 1994 nem a Estratgia de 1996 registravam programas dessa natureza. J o programa eleitoral de 1998 registra a nova preferncia, sublinhando a importncia das transferncias tanto para a melhoria da eqidade (ou da igualdade de oportunidades), como por operarem como sistema proteo no enfrentamento das situaes de necessidade e de risco (cf. PSDB, 1998, pp. 181-185). Passo agora ao plano real da implementao das polticas, examinando algumas das principais inovaes e reformas dos programas sociais, selecionadas pela sua pertinncia ao tema deste trabalho.

Continuidades e mudanas: as reformas sociais do governo FHCJ sabemos que poucas foram as reformas radicais das polticas sociais nos dois ciclos reformistas da histria brasileira recente. No governo Fernando Henrique, reformas parciais ocorreram no ensino fundamental, na previdncia social e na sade, e foram introduzidas ou iniciadas na educao infantil, no ensino mdio, nos programas de insero produtiva (microcrdito) e nos programas de combate pobreza.novembro 200375

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10.A descentralizao assumiu formas variadas e abrangeu medidas tais como: extino das centralizadas agncias federais por exemplo, a Legio Brasileira de Assistncia (LBA); acelerao da municipalizao; transferncias de recursos a fundos estaduais e municipais e, uma das novidades, s prprias unidades responsveis pela atividade final, como o caso das escolas.Ver NEPP (1996, 1997), Draibe (1998a, 1999a); Draibe e Arretche (1997). 11.A implantaao dos conselhos foi acelerada: ao final dos anos de 1990, atuavam na rea social cerca de 25 conselhos nacionais, com funo estratgica no processo de formao das polticas e tomada de decises (cf. Draibe, 1998b). Sobre os conselhos locais de sade, assistncia social, educao e outros, ver Carvalho (1997). 12.A exemplo da legislao que criou as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIPs) ou da criao da Agncia Nacional da Sade (ANS).

Mas sobre a rea social como um todo incidiram mudanas que, no configurando reformas no sentido aqui tratado, ainda assim no deixaram de alterar-lhe a fisionomia. Anunciadas na Estratgia de 1996 como diretrizes da reestruturao dos servios sociais universais, a descentralizao, a implantao da prtica da avaliao e a democratizao da informao efetivamente encabeam as alteraes mais visveis e sistemticas aplicadas na rea10. Tambm a participao social registra aumento, seja pela institucionalizao dos conselhos nacionais, previstos ou no na legislao, seja pela vinculao de conselhos locais operao de programas, especialmente os descentralizados, com o objetivo de estimular o envolvimento e o controle social dos beneficirios e da comunidade11. No plano da relao com o setor privado e o Terceiro Setor, se bem que de forma menos generalizada que as orientaes anteriores, duas outras linhas de ao revelaram tambm as preferncias governamentais na conduo da rea social. De um lado, uma viso positiva das parcerias com as organizaes no-governamentais (ONGs), nem tanto em relao prestao de servios sociais uma antiga tradio no pas, especialmente na rea de assistncia social , antes pelo seu reconhecimento como interlocutor legtimo na formulao da poltica social. De outro lado, a modernizao e o reforo dos mecanismos da ao regulatria do Estado, em relao ao setor privado lucrativo e s prprias organizaes do Terceiro Setor, envolvidos na proviso social por meio de mudanas legislativas ou da criao de rgos destinados a tais funes12. Ainda no plano do que se poderia chamar estilo de poltica, merecem referncia trs inovaes nos procedimentos que, sem substituir os anteriores ou se impor a eles, ainda assim foram usados com certa persistncia em mais de uma das reas sociais. Destaco, em primeiro lugar, a introduo de novos parmetros para a alocao de recursos, seja pela utilizao do per capita para definir os valores de repasse a estados, municpios ou instncias intermedirias e bsicas dos servios sociais, seja pelo uso de valores diferenciados, maiores segundo a maior carncia. Os mecanismos, em si, no so novos; a novidade maior foi sua utilizao em programas sociais universais, como veremos em seguida em vrios programas da educao e da sade. Outra sistemtica de alocao de recursos, introduzida especialmente nos programas assistenciais e de combate pobreza, foram os procedimentos competitivos para a seleo de projetos, selecionados por aferio

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do mrito, segundo critrios previamente divulgados. No estou me referindo s concorrncias pblicas, reguladas por legislao, mas a processos de seleo de projetos e parceiros, introduzidos em reas nas quais secularmente predominaram a barganha, o clientelismo e o acesso privilegiado aos recursos. Provavelmente, como quase tudo em poltica pblica, as mudanas indicadas no podem ser reduzidas to-somente a iniciativas do governo, pois, a crer nas evidncias e nos registros de inmeras pesquisas, responderam a diretrizes, preferncias e estilos de poltica prprios da gesto Fernando Henrique Cardoso. Independentemente dos resultados alcanados por certo foram heterogneos, registrando xitos e limites , quero chamar a ateno para o modo persistente, sistemtico e generalizado com que tais diretrizes e opes foram observadas nas reas sociais nucleares, um padro bastante incomum de homogeneidade e convergncia de orientaes. Em que medida inovaes e mudanas como as mencionadas afetaram ou afetam o perfil e a natureza do nosso regime de Estado de Bem-Estar Social, preocupao central deste trabalho? Um passo necessrio, para responder ou refletir sobre a questo, ser o acompanhamento das alteraes implementadas em alguns programas sociais durante o governo FHC. Para facilitar a exposio, as polticas e os programas sociais pblicos do governo federal foram agrupados em trs conjuntos: os universais (educao e sade); os programas de seguridade social, emprego e renda (previdncia social, programas de capacitao e insero produtiva); e os programas voltados para a pobreza (assistncia social, programas de combate pobreza e subsdios monetrios s famlias).programas Os programas universais: educao e sade

As mudanas e as inovaes introduzidas nos programas de sade e de educao pelo governo FHC so pontos estratgicos para o exame de duas ordens de questes. Em primeiro lugar, permitem verificar o sentido social das reformas: preservou-se o carter pblico e a incondicionalidade do acesso a esses programas, ou se procedeu sua privatizao, por meio de alguma modalidade de reduo ou substituio da responsabilidade pblica na sua proviso? Alterou-se, de algum modo rompendo, reduzindo ou aperfeioando , o padro anterior de universalismo? Procedeu-se a algum tipo de focalizao, substitutiva ou complementar, envolnovembro 200377

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13.Provavelmente em razo da fragmentao do sistema, dada sua original descentralizao federativa, e a decorrente ausncia de atores nacionalmente unificados capazes de propor alteraes do modelo moldado pelo regime militar e pela reforma de 1971.A exceo cabe ao ensino superior, que contou sempre com atores dotados de boa capacidade de defesa e resistncia (cf. Draibe, 1999b). 14.No estamos considerando as alteraes decorrentes da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996, entre elas, as novas regras do Ensino Profissionalizante. 15.Os novos PCNs foram elaborados por comisses nacionais de especialistas, que enfatizaram sobretudo os contedos disciplinares no-tradicionais, como a filosofia, a sociologia etc., e os temas transversais, como meio ambiente, defesa das minorias etc. 16.Entre 1995 e 1998, foram implantados o Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica (Saeb); o Exa-

vendo (ou no) a excluso de algum segmento social? Em segundo lugar, tambm constituem um ponto timo de exame das reformas do ponto de vista das relaes federativas.A reforma do ensino fundamental

No plano nacional, a reforma educacional esteve ausente, de modo notrio e at certo ponto estranho, da agenda do primeiro ciclo de reformas de programas sociais brasileiros13. Mudanas significativas ocorreram to-somente no segundo ciclo e se concentraram no primeiro mandato do governo FHC. Em sentido estrito, a reforma educacional limitou-se ao ensino fundamental, e de modo parcial, embora tendo sido tambm iniciada nos nveis mdio e infantil14. Mas aqui tambm, inovaes e mudanas afetaram o conjunto do sistema educacional, incidindo sobre vrias dimenses e planos, entre eles:!

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Plano da qualidade e contedos do ensino: as medidas principais envolveram, de um lado, o reforo e a ampliao dos programas nacionais de capacitao docente, sendo a TV Escola o principal deles; de outro, a modernizao dos contedos do ensino fundamental e mdio foi o objetivo da elaborao e da distribuio, a todos os professores das redes pblicas, dos Parmetros Curriculares (PCNs)15. Plano das avaliaes educacionais, em apoio s atividades de superviso e monitoramento da qualidade do ensino: alm da modernizao e da rotinizao da produo de estatsticas educacionais, a ao central foi a implantao do sistema nacional de avaliaes pedaggicas, abrangendo os trs nveis de ensino16. Plano do financiamento do ensino fundamental: a medida central foi a reforma do financiamento e da sistemtica de gastos do ensino fundamental, por meio do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio (Fundef). Plano da organizao e sistema decisrio: sob forte orientao descentralizante, as medidas principais envolveram a radical descentralizao dos programas federais de apoio ao ensino fundamental e, por intermdio do Fundef, de estmulo municipalizao daquele nvel de ensino.

J h razovel literatura dedicada a essas inovaes (cf. Durhan, 1999). Neste artigo, restrinjo-me a examinar certos aspectos da reforma do en-

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sino fundamental, tratando de verificar tanto seu grau de coerncia como o modo como especificaria as concepes e as diretrizes propostas para a rea social no primeiro mandato do governo FHC. Como se sabe, o Fundef alterou o sistema de financiamento do ensino pblico de nvel fundamental, at ento regulado pela Lei Calmon, de 1983, e as regras da distribuio e da aplicao de recursos do salrioeducao (Draibe, 2004). Seu primeiro objetivo foi o de garantir recursos mnimos para o ensino fundamental. O segundo foi o de reduzir as disparidades de gasto no interior de cada estado e no pas como um todo. De fato, a nova lei promove em dois planos a equalizao dos valores a serem gastos no ensino fundamental. Nos estados, a equalizao total: definese um per capita por aluno, suprimindo-se assim as diferenas entre estado e municpios e entre os municpios entre si. No plano nacional, a equalizao se faz pela fixao, por lei ordinria, de um piso mnimo para todo o pas. Caberia Unio complementar os fundos estaduais sempre que seus recursos se revelassem insuficientes para respeitar o piso estabelecido. O terceiro objetivo da reforma foi o de abrir a possibilidade de melhora dos salrios docentes, j que na nova sistemtica pelo menos 60% dos recursos totais do Fundef destinam-se obrigatoriamente remunerao dos docentes de nvel fundamental. Fortes reaes cercaram a medida, logrando postergar por um ano sua implementao17. Mas, inegavelmente, a engenharia do Fundef constituiu um exemplo de inovao que explorou ao limite a possibilidade de alterar a partilha federativa e reordenar a aplicao dos mesmos recursos numa direo redistributiva, alm de promover melhorias no nvel do gasto mdio por estudante, nos salrios mdios e na qualificao dos docentes.Vrios estudos relacionam tambm com Fundef a acelerao da municipalizao (especialmente das quatro primeiras sries do ensino fundamental) e melhorias ocorridas na qualidade do ensino, refletida na reduo do nmero dos professores leigos e na melhor qualificao dos docentes18. A descentralizao e o reforo da redistributividade do gasto foram outras das diretrizes implementadas pela transferncia de recursos para estados, municpios e diretamente para as prprias escolas, em quase todos os programas federais de apoio ao ensino fundamental: Programa da Descentralizao da Merenda Escolar, Programa TV Escola e Programa de Manuteno e Desenvolvimento de Ensino (PMDE). possvel reconhecer, por esses programas, trs orientaes ou preferncias das autoridades educacionais de ento. Em primeiro lugar, a op-

me Nacional do Ensino Mdio (Enem), e, no caso do ensino superior, o Exame Nacional de Cursos, conhecido como Provo. 17.As resistncias expressaram pelo menos trs perspectivas distintas: o ponto de vista de estados e municpios perdedores de recursos, por no oferecerem matrculas de nvel fundamental na proporo de 15% de suas receitas; a estratgia de oposio sistemtica do Partido dos Trabalhadores no governo FHC e a preocupao com a carncia de recursos para o financiamento de outros nveis de ensino, em especial, a pr-escola e o ensino mdio (cf. Draibe, 2004). 18.Entre 1998 e 2000, o gasto mdio per capita com estudantes cresceu 48,5% no pas (117,5% no Nordeste, 90% no Norte e 20% no Sudeste). Em relao s remuneraes, entre 1997 e 2000, o crescimento mdio nacional dos salrios docentes foi de 29,5% (54% no Nordeste, 35% no Norte). J em respeito qualificao, entre 1997 e 2000, o

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nmero de professores no-qualificados reduziu-se em 46%, tendo crescido 11% a proporo dos titulados em ensino mdio e 12% dos titulados no ensino superior (cf. Soares, 1998; Semeguini, 2001). 19.Entre 1990 e 2000, registram-se os seguintes resultados: reduo da taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais, de 17,2% para 13,3%; elevao do nmero mdio de anos de estudos da populao de 25 anos ou mais, de 3,9%, em 1990, para 5,7%; aumento da cobertura do ensino fundamental de 87% a 97% na faixa etria entre 7 e 14 anos; reduo da defasagem srie-idade de 50% para 41%; reduo da repetncia escolar (1 a 8 sries) de 40% para 21,6%; aumento de 10% do corpo docente no ensino fundamental e de 36% no nvel mdio (cf . Brasil, MEC, 2001).

o por uma modalidade radical de descentralizao aquela que transfere recursos diretamente para as escolas, reforando sua autonomia e, mais ainda, para as suas associaes de pais e mestres. Alm do reforo da autonomia escolar, claro o objetivo de encorajar a participao da comunidade professores e pais na gesto escolar. A outra, que se verificou no PMDE, foi a de introduzir progressividade no gasto educacional: os per capita por aluno foram definidos de modo a beneficiar as escolas das regies mais pobres. Finalmente, a terceira, tambm verificada no PMDE, foi a de reduzir o arbtrio e o clientelismo na alocao de recursos: a fixao do per capita automatizou o repasse de recursos, antes negociados no balco dos projetos especiais do FNDE e absolutamente manipulados na barganha poltica (cf. Draibe, 1998a; NEPP, 1997, 1999). No se pode nem aqui se quer estabelecer qualquer mecnica relao causal entre inovaes institucionais e resultados educacionais, sabidamente positivos nos anos de 1990, em matria de reduo do analfabetismo, universalizao do acesso ao ensino fundamental, aumento da escolaridade da populao e outros19. Importante destacar a coerncia das medidas educacionais com as diretrizes da Estratgia de 1996, reforada pela manuteno da equipe central do MEC, alis identificada pela sua forte coeso e continuidade ao longo dos dois mandatos. E registro, to-somente para repetir o que j foi observado por todos, os obstculos enfrentados pela equipe reformista no tocante reforma universitria.A poltica de sade

A reforma sanitria foi a grande vitoriosa no primeiro ciclo de reformas. Impulsionada por forte movimento social, ganhou seus contornos definitivos na Constituio de 1988, com a criao do Sistema Unificado de Sade (SUS), apoiado no direito universal da populao sade. A sua implantao, na dcada de 1990, revelou-se tambm um processo notvel de construo institucional, de criao de capacidades administrativas, gerenciais e de prestao dos servios de sade, em todo o pas e, especialmente, em suas regies mais pobres. Processo que se destaca ainda mais quando se consideram as grandes dimenses de um sistema que atende a mais de cem milhes de pessoas, num pas com a heterogeneidade social e regional como o nosso. At por isso mesmo esbarrou em dificuldades de todo tipo: as costumeiras dificuldades financeiras, institucionais e de baixa eficcia, e tambm as relativas s iniqidades com que grupos da populao se beneficiam dos seus servios, refletindo em boa parte a dificuldade

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maior de se reverter o antigo modelo hospitalocntrico e implantar de fato o modelo assistencial preconizado pelo seu desenho original, com nfase na ateno preventiva e primria. A reforma parcial do SUS, ocorrida no segundo ciclo, envolveu medidas pertinentes a essas questes. O amplo e heterogneo leque de inovaes incidiu sobre quase todas as dimenses do sistema nacional de sade, por meio de iniciativas e medidas que podem ser agrupadas em seis eixos:!

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Financiamento, sistema de transferncias e subsdios monetrios: diversificao/ampliao das fontes (criao de CPMF, em 1996); redistribuio de recursos em benefcio da ateno bsica; introduo do per capita individual entre os parmetros de transferncia intergovernamental; vinculao dos recursos para a sade (PEC, 2000); transferncia monetria s famlias com risco nutricional (Bolsa-Alimentao, em 2001). Autonomizao e descentralizao da gesto e do gasto: redefinio das modalidades de descentralizao e enquadramento dos municpios (NOB 96). Diversificao do modelo de assistncia e focalizao das aes bsicas populao carente: Programa Sade da Famlia Agentes Comunitrios de Sade; Piso de Assistncia Bsica. Programas prioritrios: Combate Mortalidade Infantil e Sade da Mulher. Reorganizao do aparato regulatrio do Estado. Modernizao dos sistemas de regulao e controles (agncias nacionais).

Mais que descrever cada uma das medidas, muitas delas j tratadas em outros estudos (cf. Oliva Augusto e Costa, 1999; NEPP, 2000; Vianna e Dal Poz, 1998), de interesse deste trabalho examinar suas orientaes e sentidos, tanto no contexto geral do SUS como em relao estratgia governamental que as dirigiu. A orientao descentralizante, expressando qui a preferncia pela modalidade municipalista, est registrada em muitas das medidas e eixos e ainda nos resultados, por meio da acelerao da municipalizao ocorrida de 1996 em diante20. A introduo de orientaes redistributivas e de reforo das aes de maior impacto social podem ser lidas, em boa medida, nos novos programas. Considere-se em primeiro lugar, o Piso de Ateno Bsica (PAB), iniciado em 1997, por meio do qual duas inovaes importantes foram in-

20.Ao final de 1998, 93% dos 5.506 municpios estavam j enquadrados (4.665 na modalidade Plena de Ateno Bsica e 471 na Plena do Sistema Municipal) (Cf. Oliva Augusto e Costa, 1999).

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21.Para a descrio e a avaliao do PACS e do PSF, ver, especialmente, Oliva Augusto e Costa (1999);Vianna e Dal Poz (1998). 22.A unidade de sade da famlia refere-se a um territrio delimitado, cada equipe assumindo uma rea de residncia de seiscentas a mil famlias, variao que leva em conta as diversidades regionais. 23.O crescimento do PSF foi significativo: entre 1996 e 2000, as equipes de sade aumentaram de dois mil para 7.981; os agentes de sade, de 34 mil para 128 mil, e a populao coberta, de 22 milhes para seiscentos milhes. 24.A Emenda Constitucional n. 29, de 2000, estabeleceu para o gasto com sade a vinculao de no mnimo 12%, no caso dos estados, e 15%, no caso dos municpios. No caso da Unio, determinou-se a elevao do gasto em 5%, em relao ao ano de 1999, com base na variao do PIB. A implementao foi gradativa, tais patamares devendo ser atingidos em 2004.

troduzidas no SUS. Primeiro, o reforo explcito das aes bsicas e preventivas de sade, sem dvida uma orientao focalizante que, alm de se estabelecer no interior do sistema universal, no foi apresentada nem se implementou como substituio ou restrio das aes voltadas para outros nveis da assistncia. Segundo, porque introduziu um mecanismo redistributivo, em termos de recursos, por meio da fixao de um piso mnimo nacional, definido como um per capita por habitante/ano. Ou seja, na ateno bsica, substituiu-se o tradicional critrio de oferta de servios (repasse de recursos de acordo com o nmero de pessoas atendidas) pelo critrio da demanda (repasse de acordo com o nmero de habitantes). Reforou-se, desse modo, a redistributividade do gasto regional e entre municpios, aumentando os impactos do SUS nos municpios pobres e desprovidos de servios, por isso mesmo no atendidos pelo critrio anterior (cf. NEPP, 2000). Ainda no primeiro mandato presidencial, a mais forte inovao programtica e de concepo provavelmente corresponde ao Programa Sade da Famlia (PSF), que veio englobar e ampliar um programa ainda incipiente, o Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACCS)21. As implicaes do PSF so mais gerais, como insistem muitos especialistas, pois, alm do reforo das aes bsicas e da focalizao nas famlias e reas mais carentes, teve efeitos institucionais importantes: em certa medida, tratou-se de uma mudana do modelo assistencial, pela introduo de dois novos princpios ordenadores da ateno primria: a adscrio territorial da clientela22 e a unidade familiar como unidade de referncia23. O reforo financeiro do SUS, por meio da fixao de suas fontes de receita, foi o objetivo de duas medidas importantes. Em primeiro lugar, a instituio de uma fonte de receita, com a criao da CPMF, de natureza provisria, mas desde ento renovada. Em segundo, o estabelecimento, mediante emenda constitucional de 2000, da vinculao de receitas municipais e estaduais ao gasto com sade, e a determinao do parmetro de aumento do gasto da Unio24. A gradativa implementao da medida no impediu que seus efeitos positivos sobre o gasto com sade j se manifestassem nos anos imediatos promulgao da lei. Se a vinculao no resolveu definitivamente a questo de insuficincia de recursos (Marques e Mendes, 2000), a fixao e a preservao de receitas mnimas para a rea responderam a um dos mais fortes problemas enfrentados pelo SUS, resolvido apenas parcialmente com a criao da CPMF. Nesse plano, sem dvida o sistema pblico de sade, no seu todo, saiu fortalecido.

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Reforo que pode ser lido, tambm, nas medidas que visaram a modernizar os cdigos e os sistemas de regulao e controle pblico sobre a prestao privada dos servios mdico-sanitrios. O amplo, forte e diversificado mercado privado de sade conviveu historicamente com um sistema de normas e instituies bastante frouxo e tradicional, de baixa capacidade tanto para disciplinar a proviso privada como para garantir os direitos dos consumidores. Com a criao da Agncia Nacional de Sade (ANS) e o reforo da Vigilncia Sanitria, no primeiro mandato, dotou-se o pas de um sistema regulatrio novo, que, em vrios momentos, comprovou uma grande capacidade de ao, como foram os episdios de regulamentao dos preos dos medicamentos, do enfrentamento da indstria do tabaco e, sobretudo, do controle do mercado privado de seguros de sade25. Em 2001, outra inovao transformou o programa de combate mortalidade infantil no Programa Bolsa-Alimentao, agora sob a forma de transferncia monetria direta s famlias com filhos pequenos em risco nutricional. Deixo para comentar mais frente, junto com os outros programas desse tipo, o significado mais geral dessa alterao. Seguramente, as inovaes e as mudanas realizadas no foram exaustivas nem suficientes para enfrentar as dificuldades e completar o aperfeioamento do SUS. Tampouco a gesto da poltica, no perodo a que nos referimos, logrou enfrentar um dos gargalos que afeta o sistema desde o seu incio, qual seja, a implantao incompleta das redes intermedirias e bsicas de servio, o que sobrecarrega sistematicamente o sistema hospitalar. O que as mudanas comentadas revelam o esforo de corrigir e aperfeioar o SUS especialmente pela introduo de critrios de focalizao e redistributividade do gasto sem alterar ou comprometer, entretanto, os princpios universalistas de sua constituio. Padro de mudana, como se viu, perseguido tambm no sistema de ensino.A proteo ao trabalho e ao trabalhador: seguridade social, polticas de emprego e relaes de trabalho

25.A Lei n. 9.656 de 1998 regulamentou os seguros privados, trazendo entre suas inovaes a extenso da cobertura do risco para tratamentos de enfermidades crnico-degenerativas e Aids e a exigncia de contrapartida financeira das seguradoras, quando seus segurados utilizam servios pblicos de sade.

A legislao trabalhista e sindical, a previdncia social e os programas de proteo do trabalho e dos trabalhadores foram as reas de poltica social mais sensveis s transformaes recentes da estrutura produtiva e do mercado de trabalho, e, ao mesmo tempo, as que estiveram mais pressionadas a mudar ou inovar, tanto por razes de equilbrio fiscal, no caso da previdncia, como para se modernizarem e se adequarem aos padres de competitividade, no caso da legislao do trabalho,novembro 200383

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ou ainda para responderem ao crescente desemprego, no caso das polticas ativas de emprego.Previdncia Social

26.Introduo da exigncia de idade mnima de 60 anos (homens) e 55 anos (mulheres) para aposentadorias de servidores pblicos, com exceo dos militares; proibio do acmulo de aposentadorias (exceo a mdicos e professores). No caso dos servidores em atividade poca da reforma, as idades mnimas foram 53 e 48 anos, mediante a imposio do pedgio, de 20% ou 40% do tempo faltante para a aposentadoria integral e proporcional, respectivamente. 27. Foram extintas as aposentadorias por tempo de servio, as proporcionais e as especiais de categorias socioprofissionais (com exceo de professores de ensino fundamental e mdio e as especiais para atividades insalubres). Foi introduzido ainda um fator previdencirio para o clculo das aposentarias do setor privado.

A instituio do Sistema de Seguridade Social, a definio de um piso mnimo para os benefcios, a igualao dos trabalhadores urbanos e rurais no direito aos benefcios e a criao do seguro-desemprego constituram as mais destacadas inovaes e mudanas nesse campo da proteo social brasileira, no primeiro ciclo reformista. Entretanto, a reforma de 1988 no alterou os princpios estruturadores do sistema previdencirio. Embora aperfeioado, permaneceu como sistema pblico, universal e de adeso compulsria, apoiado em regime de repartio simples e benefcio definido, admitindo nas suas regras as aposentarias proporcionais e por tempo de servio. Manteve tambm as regras bsicas do pacto social anterior, ao no suprimir a no-contributividade dos trabalhadores rurais, assim definida desde que se iniciou sua incorporao, em 1971. E no foram alterados os regimes especiais de funcionrios pblicos, preservando-se o direito integralidade e paridade das aposentadorias com os salrios dos ativos. Mudanas mais radicais, obedecendo a uma outra agenda e, especialmente, s presses do ajustamento fiscal, vieram a ocorrer no segundo ciclo reformista, culminando com a reforma previdenciria de 1998, cujas principais alteraes foram: mudanas nos critrios de elegibilidade, pela determinao da idade mnima para as aposentadorias e a substituio do conceito de tempo de servio por tempo de contribuio26; mudanas nas aposentadorias, pela alterao nas regras de clculo, extino das aposentadorias proporcionais e de quase todas as especiais27; unificao dos regimes especiais de servidores pblicos e supresso dos auxlios assistenciais (auxlio-natalidade, auxlio-funeral e renda mensal vitalcia). Duas medidas propostas pelo governo no foram aprovadas: a introduo da idade mnima de aposentadoria para trabalhadores do setor privado (segurados do Regime Geral) e a cobrana de contribuio dos inativos (Melo, 2002; Delgado, 2001). Nas observaes finais, examino o sentido mais geral dessas alteraes. Mas sublinho, desde j, alguns aspectos, sempre da perspectiva do sistema de proteo social. Em primeiro lugar, deve se reconhecer que a reforma no alterou as linhas mestras do sistema previdencirio, preservando seu carter pblico, compulsrio e de repartio simples. Em

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relao aos direitos sociais previdencirios, a alterao a registrar a supresso, do plano de benefcios, dos auxlios assistenciais, de fato um encolhimento da proteo, implantado em 1995, e que, curiosamente, despertou pouca resistncia. Do ponto de vista da homogeneizao dos regimes especiais, foi pequeno o avano, embora tenha sido esse um dos alvos dos reformadores, especialmente motivados para alterar os regimes dos servidores pblicos. Neste artigo, por importante que seja, interessa pouco a perspectiva do dficit pblico e a contribuio do dficit previdencirio no mesmo. Se a reforma de 1988 foi incompleta e se afastou, em alguma medida, dos objetivos enunciados na Estratgia de 1996 do governo Cardoso, foi menos, a meu ver, pelas razes ao gosto dos fiscalistas e liberais, antes porque deixou em aberto, sem considerao, a questo da total desproteo dos trabalhadores do amplo setor informal, hoje quase 60% da populao economicamente ocupada28. Mais que o alardeado dficit da previdncia, essa , de fato, a bomba-relgio da nossa proteo social, no desarmada pelos reformadores nos dois ciclos aludidos. Outro limite foi o modo com que a dimenso de gnero foi tratada, reduzida tradicional diferenciao de idade, de nenhum modo acenando para o reforo da proteo mulher trabalhadora, especialmente as de baixa renda.Emprego e proteo ao desemprego: polticas passivas e ativas na experincia brasileira recente

Certo alargamento da proteo social pode ser encontrado na extenso do seguro-desemprego, entre 1997 e 1998. No ciclo reformista dos anos de 1980, sua introduo veio completar, do ponto de vista dos contemporneos riscos sociais, o nosso sistema de proteo social; no segundo ciclo de reformas, foi ampliado, estendido a novas categorias sociais e aproximado dos programas de capacitao. Com efeito, medidas do final do primeiro mandato do governo FHC promoveram a extenso da elegibilidade para os empregados domsticos, a extenso do prazo de vigncia mxima do seguro (de quatro para cinco meses, podendo ser aumentada em at sete meses) e a criao da Bolsa-Qualificao29. Em 2001 cobria cerca de 4,4 milhes de trabalhadores (53% dos demitidos) e envolvia gastos da ordem de 0,5% do PIB (Brasil, Ministrio do Planejamento, 2002). Na rea do trabalho, em dois outros planos podem ser detectadas inovaes institucionais no perodo: no plano da capacitao profissio-

28.Em 1999, havia 40,2 milhes de pessoas (60% da populao ocupada no setor privado) no protegidas pela Previdncia Social. [...] Em 2025, mais da metade deste contingente de semprevidncia j ter mais de 60 anos. [...] Por outro lado, cerca de 7,5 milhes de trabalhadores que ganham mais que um salrio mnimo no esto formalizados porque seus patres no assinam suas carteiras (cf. Pinheiro, 2002, publicao eletrnica). 29.Destinada aos desempregados habilitados para o seguro e que estejam freqentando cursos de capacitao, a bolsa substitui ou complementa o seguro-desemprego.

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30.Financiado com recursos do FAT e voltado sobretudo para os trabalhadores desempregados e de baixa qualificao, o Plano Nacional de Formao Profissional (Planfor) iniciou-se em 1995 e apresentou taxas expressivas de crescimento, tendo qualificado cerca de doze milhes de trabalhadores, at 2002, com gastos acumulados da ordem de 0,16% do PIB.

nal 30 e no dos programas de insero produtiva, especialmente os de microcrdito e de apoio s micro e pequenas empresas Programa de Gerao de Emprego e Renda (Proger), Proger Rural, Programa de Apoio Agricultura Familiar (Pronaf), Programa de Crdito para a Reforma Agrria (Procera) e Programa de Crdito Produtivo Popular, do BNDES. As inovaes so importantes, mesmo quando os resultados de muitos programas tenham ficado a desejar. Por outro lado, tal investimento institucional, por maior que fosse sua envergadura, no logrou avanar de forma significativa na articulao do seguro-desemprego com os servios de intermediao de mo-de-obra e de qualificao profissional, exatamente a direo apontada na Estratgia de 1996, qual seja, consolidar no Brasil um eficiente Sistema Pblico de Emprego. Uma rpida referncia deve ser feita, ainda, s mudanas da legislao sindical e trabalhista. O debate sobre a primeira vem de longe, mas a alterao da regulao das relaes contratuais de trabalho entrou com fora na agenda pblica apenas nos anos de 1990, concentrada em dois temas: os custos indiretos da mo-de-obra e a rigidez dos contratos. No sentido forte, nenhuma reforma incidiu sobre essas reas do trabalho durante o governo FHC, mas foram muitas e significativas as alteraes introduzidas: desindexao salarial; extenso da abrangncia do contrato por tempo determinado, antes restrito s atividades transitrias, sempre que resultante de negociao coletiva; instituio do banco de horas (alternativa ao pagamento de horas extras); instituio da modalidade da suspenso do contrato de trabalho, por perodo de dois a cinco meses, associada qualificao profissional e bolsa-qualificao; instituio do regime de trabalho em tempo parcial (com jornada at 25 horas e salrio proporcional); introduo do instituto da mediao trabalhista e das comisses de Conciliao Prvia; e reforo dos mecanismos de fiscalizao do trabalho. Ora, esse conjunto das mudanas compe um expressivo quadro de flexibilizao do sistema brasileiro de relaes de trabalho. No se tratou de nenhuma radical desregulamentao das relaes trabalhistas, at porque os estatutos que as regulam a Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT) e a legislao sindical permaneceram inalterados. Mas verdade que as mudanas foram feitas segundo os sinais do mercado, e no por acaso foram interpretadas, aqui e ali, como restrio aos direitos e, mais ainda, como respondendo reduo de custos da mo-de-obra, atendendo ao interesse dos empregadores.

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Assistncia social e programas de combate pobreza

Assim como a poltica de sade, a poltica assistencial foi bastante alterada no ciclo democratizante de reformas. Impulsionada por conjuntos expressivos de atores, a nova poltica de assistncia social foi definida na Constituio de 1988 e na Lei Orgnica da Assistncia Social (Loas), de 1993, como poltica pblica fundada nos direitos sociais bsicos, associada a aes permanentes, dirigidas aos setores vulnerveis segundo suas necessidades. Sua implantao iniciou-se no primeiro mandato do governo FHC. Decisiva e de grande valor simblico foi, logo nos primeiros dias do governo, a extino da LBA, a agncia de clientelismo e assistencialismo, por excelncia. Em seguida, por fora da Lei Orgnica da Assistncia Social, teve incio o novo programa de transferncia monetria a idosos carentes e pessoas portadoras de deficincias fsicas, que, em 2002, cobria cerca de 1,5 milhes de pessoas. Foram tambm implantadas, em todo o pas, as instituies e os rgos do novo sistema: Conselho Nacional da Assistncia Social (Conanda), Fundo Nacional da Assistncia Social, os conselhos e os fundos estaduais e municipais. Ao final do primeiro perodo do governo FHC, o pas j contava com um sistema nacional de assistncia social de forte institucionalidade, apoiado em fundos, rgos e conselhos estaduais e municipais e periodicamente mobilizado por conferncias nacionais, foro privilegiado da formao da poltica31. Paralelamente a essa poltica, implantou-se outra frente de ao, voltada ao combate pobreza, primeiro com o Programa Comunidade Solidria; em seguida, no segundo mandato, com o Programa Comunidade Ativa, o Projeto Alvorada e a Rede de Proteo Social. As concepes e as caractersticas do Programa Comunidade Solidria j foram indicadas. No segundo mandato, o eixo pblico do programa foi redesenhado, recebeu a denominao Comunidade Ativa e passou a estimular e coordenar, em parceria com o Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), programas de desenvolvimento local nos municpios mais carentes (cf. Brasil, Presidncia da Repblica, 2003). Ao mesmo tempo, outro programa foi iniciado em 2000, o Projeto Alvorada. Denominado Plano de Apoio aos Estados de Menor Desenvolvimento Humano, seguiu as orientaes bsicas dos anteriores, organizando suas intervenes em municpios selecionados segundo aquele indicador (IDH), e por meio de um conjunto de programas federais nas reas de sade, educao e gerao de renda.

31.Dos 5.560 municpios do pas, em 2001, 4.105 cumpriam todos os requisitos da gesto descentralizada: conselhos, fundos e planos (cf . Brasil, MPAS, 2001).

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32.O Fundo (iniciativa do senador Antnio Carlos Magalhes, com o apoio do PT) foi criado por Emenda Constitucional de dezembro de 2000, tendo como fonte de recursos, at 2002, um porcentual da CPMF: 0,08% da alquota de 0,38%. 33.O Cadastro nico, operado pela Caixa Econmica, foi concebido como instrumento de identificao de beneficirios, unificao de benefcios e de gesto para os rgos governamentais. Ao final do perodo de governo, ainda no estava cabalmente implantado.

A evoluo do Projeto Alvorada, nos dois anos finais do segundo mandato, se fez em direo a um novo programa, de orientao e contedos distintos, a Rede Social, sob a qual foram agrupados os programas de transferncia de renda s famlias pobres. Ao que parece, duas circunstncias reforaram o ainda incipiente Rede Social, anunciado no programa eleitoral de 1998. J em 1999, para a renegociao de um contrato de emprstimo com o BID, a idia aparece no Programa de Reforma e Proteo Social, um conjunto de 22 programas selecionados nas reas de sade, educao, previdncia e trabalho, destinados prestao de servios sociais bsicos e voltados para grupos de baixa renda. Ainda a se mesclavam servios sociais e transferncias monetrias, como o Bolsa-Escola, e programas universais e focalizados na linha coerentemente seguida at ento. A segunda e decisiva circunstncia, que parece ter efetivamente alavancado e ampliado o escopo da Rede, foi a aprovao do Fundo de Combate Pobreza32, em 2000. J no ano seguinte de sua aprovao, foram criados os programas Bolsa-Alimentao (na rea de sade), Agente Jovem (na Secretaria da Assistncia Social) e, pouco mais tarde, Auxlio-gs (2002). E foram acoplados aos anteriores, o Bolsa-Escola, de 1998, o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (Peti), de 1995, e outros programas de transferncia preexistentes. Nascia assim a Rede Social Brasileira de Proteo Social, concebida como um conjunto de transferncias monetrias a pessoas ou famlias de mais baixa renda, destinado a proteg-las nas distintas circunstncias de risco e vulnerabilidade social. Sob a liderana do Projeto Alvorada e apoiada na implantao do Cadastro nico33, instrumento da unificao das transferncias, a Rede Social se formava pelos seguintes programas:! ! ! ! ! ! ! ! ! !

Bolsa-Escola (MEC). Bolsa-Alimentao (MS). Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (Peti) (MPAS). Programa do Agente Jovem (MPAS). Bolsa-Qualificao (MT). Benefcio Mensal Idoso (MPAS). Benefcio Mensal Portadores de Deficincia (MPAS). Renda Mensal Vitalcia (MPAS). Bolsa-Renda (seguro-safra) (MA). Auxlio-gs (MME).

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Aposentadorias Rurais (MPAS). Abono Salarial PIS/Pasep (CEF). Seguro-desemprego (MT).

O oramento do ano de 2002 e a mensagem presidencial que o acompanhou indicaram a Rede, seus programas e a previso de um gasto da ordem de 3% do PIB. A Rede Social no foi implementada como tal, mas sua irrupo na poltica social brasileira, como alternativa de enfrentamento da pobreza, produziu inflexes e rupturas importantes, sobre as quais convm refletir com cuidado. A informao e o rpido sumrio das mudanas e das inovaes ocorridas na poltica social entre 1995 e 2002 longe esto de serem exaustivas, mas j permitem retomar, guisa de concluso, as perguntas iniciais que motivaram este texto.

Observaes finaisRetomo a questo de partida: em que nvel e direo se alterou nosso sistema de proteo social, em decorrncia das mudanas de orientao e polticas processadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso? De incio, consideremos as informaes anteriores pelo prisma dos polarizados temas do debate internacional. Estado ou Mercado? Como vimos, as orientaes reformistas do governo, no perodo de 1995 a 2002, no se pautaram por diretrizes privatizantes dos servios pblicos. Em nenhum plano das inovaes institucionais registrou-se um recuo do Estado. Ao contrrio. Indicadas nas propostas gerais, as inovaes e as alteraes implementadas nos servios sociais pblicos e universais visaram a aperfeioamentos, reforos, aumento do seu impacto redistributivo, melhoras de eficcia, no a sua substituio ou privatizao. Emprego e renda, ou poltica social? Tampouco essa disjuntiva parece ter orientado a poltica social do perodo. Dizendo-o claramente: a poltica social no foi concebida e apresentada, a crer nos documentos e informaes, como substitutiva ou mesmo capaz de suprir todas as necessidades sociais, dramaticamente aumentadas pelo crescimento da pobreza, pelo desemprego e pela queda da renda. Ao contrrio. Na Estratgia de 1996, sem qualquer ingenuidade, diga-se de passagem, a retomada do crescimento econmico foi definida como condio necessria da viabilidadenovembro 200389

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e do sucesso do programa social, exatamente pela sua capacidade de gerar empregos e melhorar a renda das famlias. Em outros termos, a poltica social no foi entendida como capaz de, por si s, reverter as tendncias socialmente negativas do ajustamento fiscal, sobretudo, o desemprego. Polticas universais ou programas para a pobreza? A poltica social do perodo, como vimos em alguns poucos exemplos, no se reduziu ao programa de enfrentamento da pobreza, nem foi este privilegiado em detrimento dos programas sociais universais, especialmente os de educao e sade. At onde as informaes nos permitem verificar, orientou-se por uma concepo ampla de sistema de proteo social, no interior do qual foram feitas as opes de desenho e encaminhadas as prioridades programticas. Universalismo ou focalizao? Outra vez, a oposio no adequada para enquadrar a proposta de poltica social do governo FHC, nem pelo lado dos programas universais, nem pelo lado do programa de enfrentamento da pobreza. Na verdade, como tratei de mostrar, o universal e o focalizado combinaram-se duplamente no interior do programa de enfrentamento da pobreza, mas tambm no interior dos programas universais bsicos, sobretudo os de educao e sade. Ou seja, as polticas sociais universais, alm de eixo estruturador do desenvolvimento social, cumprem papel decisivo no combate pobreza. A focalizao no interior dos programas universais foi a orientao observada, no perodo, com vistas a melhorar seu impacto redistributivo. Seguramente, focalizao no o melhor conceito para tratar aquele conjunto de medidas e mecanismos introduzidos na poltica educacional ou no SUS, por meio dos quais foram conferidas prioridades s aes bsicas, de maior impacto social (ensino fundamental, aes bsicas de sade), s regies e aos municpios mais pobres (por exemplo, pelo uso do per capita como mecanismo de transferncia de recursos) e aos grupos mais pobres da populao (por exemplo, o Programa de Sade da Famlia, ou os programas de transferncia monetria, dentro das reas sociais Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentao). Pelo lado do programa focalizado, por definio os de enfrentamento da pobreza , tambm a combinao e o equilbrio entre programas universais e aes focalizadas, entre polticas estruturais e polticas emergenciais, como se dizia ento, pautaram explicitamente o Programa Comunidade Solidria, mas tambm outros que com ele conviveram, como o Comunidade Ativa e o Projeto Alvorada. Quanto identificao dos chamados programas bsicos ou prioritrios, a estratgia foi de articulao, e no de substituio ou reduo de quaisquer dos dois grupos de programas.90

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De que estratgia se trata aqui? Focalizar no universalismo, assim foi chamada a estratgia (Skocpol, 1991) assentada no duplo objetivo de preservar a base universalista e democrtica do Welfare State e reduzir as chances da reproduo da desigualdade sob o manto de programas universais, freqentes sobretudo em sociedades muito desiguais. nesse campo maior de opes que podemos examinar, agora, o sentido de algumas orientaes e mudanas registradas neste trabalho. As mudanas da previdncia social e da legislao trabalhista tm um significado particular. Se tomarmos a classificao de Mesa-Lago (2002), poderamos dizer que, no Brasil, como na Costa Rica, um princpio de mercado foi introduzido nessas duas reas, mesmo quando sua natureza mais geral no tenha sido alterada. No caso da previdncia social, refirome introduo do princpio de contribuio definida, segundo a expectativa do ganho futuro, substituindo o princpio de benefcio definido. Mesmo no sendo estabelecida a obrigatoriedade de contas individualizadas, horizonte de boa parte dos promotores da reforma, s medidas de 1998 pode ser creditado o fortalecimento do carter contributivo e atuarial do sistema, estreitando-se a relao contribuio/benefcio futuro. No caso da legislao trabalhista, tambm se pode identificar aquele princpio de mercado nas mudanas introduzidas, pontualmente, nas regras e mecanismos da contratao. Mas, do mesmo modo que na previdncia, aqui tambm no se tratou de uma radical mudana da velha matriz regulatria, a CLT. Esta tanto quanto a legislao sindical saram inclumes daquele ciclo de reformas. De acordo com o quadro analtico de Mesa-Lago (2002), tratou-se ento de um movimento equilibrado, como o da Costa Rica, bem distante da radicalidade de um modelo como o chileno. At que ponto, porm, tais modificaes afetaram o campo dos direitos sociais do nosso Estado de Bem-Estar Social? E em que medida conservaram ou reverteram as alteraes do ciclo anterior, o dos anos de 1980? A reforma previdenciria de 1998 no alterou o perfil e os princpios gerais da previdncia social, que permaneceu um regime pblico, de adeso compulsria e de repartio simples. Preservou tambm os principais avanos igualitrios da Constituio de 1988: a igualao entre trabalhadores urbanos e rurais, o piso mnimo dos benefcios, o segurodesemprego. No caso dos trabalhadores rurais, foi mantido o princpio no-contributivo. Nesse plano pelo menos, dificilmente pode ser caracterizada como uma contra-reforma, em relao s mudanas da dnovembro 200391

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cada anterior. Nem mesmo em relao ao conceito de seguridade social se pode afirm-lo, j que se manteve e se mantm, at hoje, onde sempre esteve apenas no texto constitucional e nos ttulos da pea oramentria (cf. Mello, 2002). A questo mais complexa, no caso da legislao trabalhista. Talvez resida no carter parcial das mudanas a sua debilidade e, mais, a distncia que guardou em relao aos princpios da Estratgia de 1996. Faltou-lhe flego e fora para efetivamente lograr a modernizao e a democratizao do nosso sistema de relaes do trabalho, adequando suas normas s novas formas de produzir e trabalhar e s condies de uma sociedade plural, abolindo a excessiva tutela do poder pblico sobre as relaes individuais e coletivas de trabalho, de modo a estimular a liberdade de negociao e tambm a formalizao das relaes de trabalho. No conduzindo as inovaes a horizontes mais amplos, o esforo de mudana reduziu-se quelas medidas pontuais que, nas condies precrias em que j se encontravam o mercado de trabalho e os sindicatos, to-somente puderam revelar seus aspectos restritivos de direitos e absolutamente incuos, como esperado, ademais, em termos da maior competitividade ou do crescimento do emprego. Outra inflexo, e no menos importante, foi o ajustamento do pilar universalista do nosso sistema de polticas sociais, e nas duas direes mostrada neste ensaio: a introduo de mecanismos redistributivos e de focalizao no interior dos prprios programas universais, com objetivos de melhora da eqidade e do impacto redistributivo, de um lado; de outro, o peso crescente dos cash benefits nos programas assistenciais e para a pobreza, na forma de Rede Social, tendencialmente. O modo como se tratou de corrigir e aperfeioar nossos programas universais de educao e sade foi j suficientemente registrado. No conhecemos ainda todos os seus resultados, mas sem dvida nosso Welfare State saiu mais democratizado dessa experincia. Pensemos com cuidado na outra dimenso da inflexo, referente aos programas de transferncia monetria e de Rede Social como opo para o enfrentamento da pobreza. Voltemos um pouco histria. Programas de transferncia monetria direta a pessoas ou famlias pobres no estiveram totalmente ausentes do cardpio brasileiro de programas assistenciais, embora jamais tivessem sido a regra. E proliferaram desde 1994, quando se iniciaram as experincias municipais com programas de renda mnima e, no caso do Distrito Fede92

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ral, do programa Bolsa-Escola. Na maioria das vezes, tais programas tinham como pblico-alvo as famlias com filhos em idade escolar e/ou em risco nutricional, exigindo-se dos beneficirios o compromisso de freqncia escolar e em unidades de sade. Os programas federais do primeiro mandato do governo Fernando Henrique tinham exatamente a mesma embocadura o Bolsa-Escola, o Peti e o Bolsa-Alimentao.Tinham mais: eram implementados pelas prprias reas nas quais se pretendia que tivessem impacto: Bolsa-Escola, na rea da educao; Peti, na assistncia social; Bolsa-Alimentao, na rea da sade. Fosse pago o recurso onde fosse, unificado ou no no cadastro nico, com carto ou sem, o importante que se pretendeu sempre que as instituies, as redes e as culturas prprias de cada rea fossem mobilizadas de modo que a transferncia monetria no substitusse a proviso dos servios nem se afastasse deles a escola, o posto de sade onde se situavam e se situam os corpos tcnicos do Estado que podem e devem, cada qual na sua rea particular, zelar pelo cumprimento dos objetivos. Portanto, menos pelo compromisso moral das famlias em manter seus filhos na escola ou lev-los ao posto de sade, o que se pretendeu foi o comprometimento do Estado insisto, servios sociais, assistentes sociais, professores, mdicos, paramdicos, conselhos locais com a melhoria do desempenho das crianas, dos adolescentes e de suas famlias. No so outras as razes que levaram a que um programa como o Bolsa-Escola fosse considerado uma das experincias com mais xito, na Amrica Latina, assim julgado inclusive por pases que tinham experimentado verses estreitas de programas de subsdios monetrios e todas as mazelas que normalmente os acompanham. Nem tudo j ocorria como o modelo, como o demonstraram vrias avaliaes daqueles programas (World Bank, 2001; Morris et al., 2003); nem mesmo o Bolsa-Escola, dado o ainda baixo envolvimento das prprias escolas, limitadas a enviar freqncia escolar s prefeituras. Mas aquele era o desenho, aquela era a concepo, direo para a qual se encaminhavam os programas, por meio de medidas de aperfeioamento. Ora, a Rede Social, tal como concebida e desenhada no segundo mandato, rompia com a tradio, e apontava para outro destino. Deixando de lado o que conceitualmente no deveria nela estar, como aposentarias rurais, seguro-desemprego ou bolsa-capacitao, a nova Rede parecia estar fadada, se implementada, a reduzir-se a mero programa de subsdio monetrio e mais nada, tal como todos e tradicionalssimos programas de transferncia, conhecidos em todo o mundo, os quais, na melhor das hinovembro 200393

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pteses, e quando bem supervisionados, limitam-se a identificar bem os necessitados e suas necessidades, variando o valor final do subsdio segundo as circunstncias: ter filhos, precisar de gs etc. A alternativa Rede Social no rompia apenas com aquela linha moderna de cash programs. Aparentemente rompia e muito com as prprias orientaes originais do governo na rea de programas para a pobreza. No primeiro mandato, e tal como proposto na Estratgia de 1996, o programa de enfrentamento da pobreza foi concebido sob outros princpios. E no por qualquer ingenuidade ou omisso. J se conheciam, ento, os resultados desastrosos de quase todas as experincias latino-americanas de Rede Social, programas de Emergncia e Fundo Social de Pobreza, a exemplo do Programa Nacional de Solidariedad (Pronasol) do Mxico: duplicao e conflitos distributivos com as redes de servios sociais universais, desperdcios, estigmatizao, alm dos conhecidos problemas de centralizao, manipulao clientelstica e eleitoral, por exemplo. No instituir o Fundo e no criar a Rede Social foram opes explcitas, fundadas em princpios e preferncias enunciados: centralidade dos programas sociais bsicos de vocao universal e, no programa de enfrentamento da pobreza, a articulao entre programas universais e programas focalizados, estivessem ou no estes ltimos sob forma de subsdio monetrio. Em que medida o caminho que vinha sendo trilhado na reforma dos programas sociais, preservando e aperfeioando os programas universais e articulando, no seu interior, os programas seletivos e focalizados, entre eles os de subsdios monetrios um modelo que recentemente foi chamado de experincia universalista brasileira de reforma de programas sociais , poderia ser comprometido, ou mesmo interrompido, por aquela inclinao do sistema de polticas sociais em direo aos programas de cash benefits e Rede Social? Essa no , com certeza, uma resposta que se possa encontrar no perodo Fernando Henrique. Finalizo essas observaes com uma referncia s caractersticas de homogeneidade e coeso da rea social, destacadas em vrios momentos do texto. A fragmentao da rea social proverbial, no Brasil, especialmente no governo federal. Assim o foi mesmo sob a batuta normatizadora, tecnocrtica e autoritria dos militares. Mas, ento, a que atribuir aquelas similitudes e homogeneidades nos oito anos de governo FHC, quando tambm atuavam, e com fora, fatores que o impulsionavam na direo contrria da fragmentao e da heterogeneidade, como, por exemplo, o amplo e heterogneo espectro poltico da coalizo governante, as disputas94

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eleitorais quase anuais e, principalmente, as frreas disputas interministeriais por recursos escassos, pressionado que foi o gasto pblico pelo ajustamento fiscal severo e presses financeiras notveis? Provavelmente sero muitas e tambm outras as causas. Aqui, quero indicar, muito rapidamente e a ttulo de hiptese, certas razes de ordem estratgica e poltica que teriam contribudo para tal comportamento coeso da rea social. Em outro trabalho (Draibe, 2004), ao examinar as condies e os xitos da reforma do ensino fundamental implementada no primeiro mandato, chamei a ateno para alguns especiais recursos polticos com que contou a rea social no governo Fernando Henrique. Em primeiro lugar, e exprimindo a estratgia com que se negociou a composio ministerial no interior da coalizo governante, os ministrios sociais foram reservados ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e ocupados ou diretamente por seus membros ou por pessoas de sua influncia. A grande exceo, como se h de lembrar, foi a Previdncia Social, ocupada pelo Partido da Frente Liberal (PFL) durante os dois mandatos, mas surpresa maior, a sugerir uma escolha estratgica, talvez tenha sido o deslocamento do Ministrio da Educao para a rea de influncia do PSDB, quando h mais de trs dcadas, e com rpidas e rarssimas excees, vinha sendo monopolizado (e fortemente disputado) pelos setores conservadores ou liberais conservadores, chamassem eles PSD, Arena, PDS34 ou, mais recentemente, PFL. Em segundo lugar, mais que ao PSDB em geral, os ministrios sociais foram comandados ou estiveram sob a rea de influncia do seu ncleo paulista, originados da matriz comum de fundadores do partido, pessoalmente muito ligados ao futuro presidente da Repblica e, quase todos, membros destacados do governo Montoro (198