a politica colonial e as tensões na america portuguesa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA PODER E MOVIMENTOS SOCIAIS NORTE E NORDESTE DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ANTONIO FILIPE PEREIRA CAETANO Entre Drogas e Cachaça: A Política Colonial e as Tensões na América Portuguesa (Capitania do Rio de Janeiro e Estado do Maranhão e Grão-Pará, 1640-1710) Recife – PE 2008

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA PODER E MOVIMENTOS SOCIAIS NORTE E NORDESTE

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    ANTONIO FILIPE PEREIRA CAETANO

    Entre Drogas e Cachaa: A Poltica Colonial e as Tenses na Amrica Portuguesa

    (Capitania do Rio de Janeiro e Estado do Maranho e Gro-Par, 1640-1710)

    Recife PE 2008

  • Caetano, Antonio Filipe Pereira

    Entre drogas e cachaa: a poltica colonial e as tenses na Amrica Portuguesa (Capitania do Rio de Janeiro e estado do Maranho e Gro-Par, 1640-1710) / Antonio Filipe Pereira Caetano. Recife : O Autor, 2008. 374 folhas : il., tabela.

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Histria, 2008. Inclui: bibliografia.

    1. Histria. 2. Movimentos sociais. 3. Poltica cultural. I. Ttulo. 4. Revoltas Brasil Histria. I. Ttulo.

    930.85 981

    CDU (2. ed.) CDD (22. ed.)

    UFPE BCFCH2009/02

  • ANTONIO FILIPE PEREIRA CAETANO

    Entre Drogas e Cachaa: A Poltica Colonial e as Tenses na Amrica Portuguesa

    (Capitania do Rio de Janeiro e Estado do Maranho e Gro-Par, 1640-1710)

    Profa. Orientadora Dra. Virginia Maria Almodo de Assis

    Tese de Doutorado apresentada ao programa ps-graduao stricto sensu em Histria da Universidade Federal de Pernambuco para obteno do grau de doutor.

    Recife PE 2008

  • Antonio Filipe Pereira Caetano

    Entre Drogas e Cachaa: A Poltica Colonial e as Tenses na Amrica Portuguesa

    (Capitania do Rio de Janeiro e Estado do Maranho e Gro-Par, 1640-1710)

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________________________

    Prof. Dra. Virginia Maria Almedo de Assis Orientadora

    __________________________________

    Prof. Dr. Rafael Chambouleyron Universidade Federal do Par

    ________________________________________

    Prof. Dr. Mozart Vergetti de Menezes Universidade Federal da Paraba

    ________________________________________

    Prof. Dra. Tnia Maria Pires Brando Universidade Federal de Pernambuco

    ______________________________________

    Prof. Dr. Marc Jay Hoffnagel Universidade Federal de Pernambuco

    ______________________________________

    Prof Dra. Suely Creusa Cordeiro de Almeida(suplente) Universidade Federal Rural de Pernambuco

    _______________________________________

    Profa. Dra. Maria do Socorro Ferraz Barbosa (suplente) Universidade Federal de Pernambuco

    Recife PE 2008

  • AGRADECIMENTOS

    senso comum que um trabalho no se faz s, coletivo! No entanto, o grande desafio no momento de enumerar as pessoas que precisam ser lembradas e agradecidas na confeco de uma tese de doutorado no tomar muito tempo do leitor, diminuir a quantidade de nomes e dizer o mnimo possvel. Muito difcil! Principalmente no meu caso, cujo trabalho atingiu cinco localidades para que pudesse ser concretizado: Maranho, Rio de Janeiro, Recife, Alagoas e Portugal. Mas tentarei ser o mais breve possvel e aqueles que forem esquecidos ou no citados peo desculpas pelo ato falho.

    Comecemos institucionalmente por aquelas que financeiramente auxiliaram na

    concretizao das linhas que seguiro. Para isso, importante mencionar a bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq essencial para aquisio de livros, realizao de viagens e acesso a documentao de maneira mais gil e tranqila; bem com a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior - CAPES, que me proporcionou durante Setembro a Dezembro de 2007 bolsa sandwich para que fosse feito estgio de doutoramento na Universidade de Lisboa, em Portugal, proporcionando o contato com um conjunto documental pouco cotejado at ento sobre os movimentos sociais.

    Em terras pernambucanas inicio minha gratido com a professora Virginia Maria Almodo de Assis, minha orientadora, que aceitou o desafio de auxiliar um desconhecido na tarefa de dar conta de algumas revoltas nada valorizadas no meio acadmico, mas, mesmo assim, exerceu a funo com sabedoria, perseverana e bons conselhos. Confesso que no nada fcil me ter como orientando, principalmente porque sou dependente, gosto de ouvir crticas e prezo pela ansiedade. Por conta disso, agradeo pela pacincia e credibilidade depositada em minha pessoa ao longo desses quatro anos.

    Aos meus colegas de turma tambm reconheo os bons momentos de debate durante o cumprimento dos crditos, bem como aos professores do programa especialmente Tnia Brando, Marc Hoffnagel e Antonio Montenegro que cada um ao seu modo auxiliou para que eu pudesse aprofundar questes lacunares, aumentar a capacidade crtica e buscar um caminho prprio dentro da discusso historiogrfica colonial. Fao questo de lembrar, inclusive, os funcionrios do curso que sempre se colocaram disposio para acessorar na burocracia administrativa e papelada constante para manuteno da matrcula. Devo tambm penhorar minhas dvidas a Ioneide e Ana responsvel por bolsas de estgio no exterior e sua estagiria, respectivamente da Pr-Reitoria de Pesquisa (PROPESQ-UFPE), fundamentais

  • para aquisio da bolsa sandwich atravs da CAPES. Importante nesse momento tambm foi a Profa. Adriana Maria Paulo da Silva (UPE) que emitiu parecer favorvel ao meu trabalho quando o tempo j se escasseava para o cumprimento dos prazos. Perto dali, na Paraba, cabe tambm lembrana de Mozart Vergetti (UFPB), leitor deste trabalho na qualificao e um bom apontador das falhas do texto naquele momento.

    Subindo um pouco no mapa e encostando nas praas maranhenses os agradecimentos devem ser iniciados ao Prof. Rafael Chambouleyron (UFPA), que mesmo no o conhecendo pessoalmente foi o grande responsvel pela minha atualizao na historiografia local e nas temticas concernentes ao Estado do Maranho e Gro-Par. O acesso at ele somente foi possvel atravs de Alrio Cardoso (UFMA) que tambm me prestou auxlio na avaliao do cotidiano religioso e econmico daquela localidade. Destaco tambm o contato com Regina Freitas (UFMA) e Polyanna Assuno (doutorando em histria pela UFF), sobretudo pelo incentivo em encarar a tarefa to difcil de escrever sobre a Revolta de Beckman. No mbito da pesquisa, lembro-me de Patrcia Durans, Eugnia Borges, Djalda Branco e Maria Thereza Oliveira, funcionrias da Biblioteca Pblica Benedito Leite, prestativas no momento da coleta de fontes; de Ariel, estagirio no Arquivo do Solar dos Vasconcelos que mesmo sob censura superior me autorizou a fotografar parte da documentao da Cmara de So Luis, complementados, posteriormente, com os CD-ROMS dos documentos digitalizados no Arquivo Pblico do Maranho e cedidos por Gilliam Mellane. Por fim, fao questo de citar Marinelma Medeiros, que mesmo no sendo maranhense, foi entre os arquivos daquele Estado que pudemos trocar informaes que me levariam a conquista de obras sobre meu objeto de estudo na Universidade de Braslia.

    Atravessando o Atlntico e chegando as terras Lisboetas, agradeo enormemente a Profa. Maria Leonor Garcia da Cruz que recebeu a tarefa de me co-orientar na Universidade de Lisboa, me inserindo no cenrio lusitano no mbito institucional e nos acervos regionais. O contato com a professora em tela foi estabelecido por Clia Cristina Tavares (UERJ), minha professora de graduao, incentivadora nos caminhos da ps-graduao e praticamente uma cidad portuguesa. Sem ela, no saberia o que era certo ou errado em domnios lusos, nem teria um abrigo, um teto, j que a mesma me levou at Z Carlos, D. Eullia e Teresa Vital. Os dois primeiros me deram um lar, uma famlia que carregarei para o resto da vida, especialmente minha me portuguesa, com seus afagos, suas broncas, sua companhia e seu carinho me deixou completamente vontade em uma casa que no era minha. Quanto a Teresa Vital, uma cicerone, uma guia, uma amiga, aquela que desafiava a desvendar os mistrios e os lugares na velha Lisboa.

  • No cotidiano do trabalho, agradeo aos funcionrios do Arquivo Histrico Ultramarino Fernando, Mrio, Jorge e rica que, como ningum, sabem tratar bem o pesquisador e transformar aquela instituio em um dos lugares mais agradveis para a realizao de uma pesquisa. Destaque tambm para aqueles que trabalham na Biblioteca da Ajuda, um lugar de difcil acesso, mas que esconde preciosidades da Amrica portuguesa. Fora de Lisboa, fao tambm penhora aos membros da Biblioteca Pblica de vora, solcitos e acessveis na coleta documental. Voltando a Universidade de Lisboa, fao questo de lembrar tambm do prof. Dr. Antonio Dias Farinha, que gentilmente me permitiu ser ouvinte em sua cadeira sobre Histria do Brasil da ps-graduao, me propiciando o contato com outros pesquisadores lusitanos.

    Chegando ao solo alagoano gostaria de lembrar a importante concesso de dispensa da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), no ltimo e mais difcil ano de confeco desta tese; a Janaina Cardoso de Mello, professora da mesma instituio, pela parceria nas empreitadas acadmicas e pela substituio durante o semestre de cumprimento dos crditos em Recife; a Adriana Nunes de Souza, por ser fazer presente nas dvidas ortogrficas e nos conselhos para os direcionamentos profissionais; e a Fernando Lopes da Silva Junior, grande amigo, parceiro, irmo e fundamental em todos os momentos e etapas na construo das linhas que aqui sero lidas.

    Por fim, voltando terra natal, ao Rio de Janeiro, agradeo a minha me, Vnia de Oliveira Pereira, talvez a minha maior f e aquela que, incondicionalmente, torce e se deslumbra com minhas etapas conquistadas; s amigas Marta Muniz Bento e Monique da Motta Brust, cada uma a sua maneira, incentivadoras de caminhada acadmica e conhecedora do esforo que foi chegar at aqui; aos demais familiares, que indiretamente auxiliam no suporte psicolgico e mental para que as coisas fluam bem; a Herbert e Ana, funcionrios da Biblioteca Nacional, que contriburam para aquisio de alguns documentos sobre a Histria do Maranho; bem com aqueles que trabalham no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, que desde do mestrado me possibilitaram o acesso a documentos at ento restritos; a Mauro Lerner, Ins Stampa, Cristina Ruth e Cntia Aguiar, companheiros e funcionrios do Arquivo Nacional por acreditarem que esse meu sonho era possvel. Lembro tambm de Marieta Carvalho, companheira de UERJ, de desafios paleogrficas e teses perdidas.

    Enfim, acho que devo parar por aqui mesmo, repetindo a velha celeuma para aqueles que no aparecero nestas rpidas linhas que agradeo da mesma maneira, pois acredito que aqui no o fim e sim o incio de vrios suportes, apoios e conselhos que ganhei e ganharei por mais outros anos.

  • RESUMO

    O sculo XVII foi marcado para o Imprio Ultramarino Portugus como um perodo turbulento, no s por conta dos embates realizados para retomada da coroa das mos dos hispnicos, como tambm por fazer com que sua soberania e poder se mantivesse intacto nas conquistas americanas. Ameaando este objetivo, inmeros movimentos sociais eclodiram nos trpicos, no entanto, o alvo dos amotinados no foi o monarca e sim os seus representantes administrativos. Dentro desta perspectiva que se enquadra a Revolta da Cachaa, ocorrida no Rio de Janeiro entre 1660-1661, e a Revolta de Beckman, que assolou o Estado do Maranho e Gro-Par nos anos de 1684-1685, fruto das condies adversas e problemticas das regies coloniais incompatveis com a prtica poltica exercida pelos funcionrios da coroa. Desta feita, a presente tese de doutorado tem por inteno realizar um estudo comparativo entre esses dois movimentos, buscando entender o campo de tenses que os fomentaram e as alteraes que as regies sofreram aps o trmino do movimento. Levando em considerao as semelhantes motivaes insatisfao com governadores ou grupos locais, a aplicao de companhias comerciais e a procura de um equilbrio na distribuio dos benefcios visamos compreender como duas regies to diferentes pde desenvolver formas de resistncia to iguais, com estratgias distintas mais que culminaram no atendimento dos interesses do monarca lusitano. Alm disso, tem-se aqui o objetivo de desvendar o papel destas conquistas na tessitura poltica e econmica da Amrica portuguesa, sobretudo tendo como perspectiva o projeto aucareiro proposto para aquelas bandas nesta centria. Palavras chaves: Poltica Colonial, Movimentos Sociais; Amrica Portuguesa.

    ABSTRACT

    The XVII century was marked for the Portuguese empire overseas as a turbulent period, not only on account of collisions made to resume the crown of the hands of Hispanics, as well as to make its sovereignty and power remained intact in American achievements. Threatening this objective, many social movements erupted in the tropics, however, the target of rebels was not the monarch, but their administrative representatives. Within this perspective that fits the Revolta da Cachaa, held in Rio de Janeiro between 1660-1661, and the Revolta de Beckman, which struck the state of Maranho e Gro-Par in the years of 1684-1685 as a result of adverse conditions and problems of regions colonial practice incompatible with the policy pursued by officers of the crown. This time, this doctoral thesis intention is to conduct a comparative study between these two movements, seeking to understand the scope of the tensions and fueling the changes that the region suffered after the end of the movement. Taking into account similar motivations - dissatisfaction with governors or local groups, the application of commercial companies and the search for a balance in the distribution of benefits - aim to understand how two such different regions could develop forms of resistance as equals, with different strategies that culminated more in care of the interests of the monarch Lusitanian. Furthermore, it is here in order to uncover the role of these achievements in political and economic fabric of American Portuguese, especially with the prospect the project proposed for those sugar project in this century. Key-words: Colonial Policy; Social Movements; America Portuguese.

  • SUMRIO

    Introduo _______________________________________________________________ 10

    Captulo 1 Poder, Movimentos Sociais e a Historiografia: a Revolta da Cachaa e a Revolta de Beckman ________________________________________________________ 27

    * Amrica Portuguesa: entre a cultura poltica europia e as adaptaes locais __________ 29

    * Beckman: Suspense e Mistrio! Uma trama de Jesutas, a Milcia e a Companhia de Jesus__________________________ 40

    * Revolta da Cachaa: em busca de um lugar na produo histrica __________________ 65

    Captulo 2 Dois Sculos, Duas Conquistas, Um Problema! A Capitania do Rio de Janeiro e o Estado do Maranho e Gro-Par na Periferia da Amrica Portuguesa ___________ 83

    * Centro e Periferia na Poltica Colonial Portuguesa ______________________________ 85

    * Ocupao Territorial e Territrios Luso-americanos na Unio Ibrica _______________ 90

    * Acar, Drogas e Cachaa na busca pela sobrevivncia na economia colonial portuguesa_____________________________________________ 111

    Captulo 3 Morram, Morram, Peream os Urubus A Ao Jesutica e os Protestos dos Sditos Americanos ______________________________________________________ 132

    * Missionrios Jesutas, a Repartio Sul e a escravizao do nativo americano ________ 134

    * Em terras Jesutas quem sofre so os sditos maranhenses _______________________ 143

    * Beckman, Cachaa e os Jesutas ____________________________________________ 162

    Captulo 4 Os S em Maus Lenis Famlia, Poder, Revolta e Administrao na Capitania do Rio de Janeiro e no Estado do Maranho e Gro-Par ________________ 180

    * A Construo da Oligarquia S e o Complexo Administrativo Ultramarino __________ 185

    * Conquistador, Soldado, Perulero, Encomendero, Almirante, Administrador Colonial... e Salvador Correia de S e Benavides _________________________________________ 194

  • * Letrado, Estanquista, Achacado, Militar, Estrategista, Gestor Colonial... e Francisco de S e Menezes ________________________________________________ 204

    * Tiranos, Viles, Ditadores, Infiis, Usurpadores e Prevaricadores: Sditos dos Trpicos e a Queda da Famlia S. __________________________________ 214

    Captulo 5 E Todos os Caminhos Levam s Restries Comerciais... As Companhias Comerciais Lusitanas no Rio de Janeiro e no Maranho __________________________ 226

    * A Poltica Mercantilista, as Restries Econmicas e as Companhias Comerciais _____ 231

    * Vinho Versus Cachaa... a Companhia Geral do Comrcio do Brasil, 1649 __________ 238

    * ndios Versus Negros... a Companhia Geral do Comrcio do Maranho, 1682 ________ 251

    * Revoltas Versus Companhia de Comrcio... Sobrevivncia na Poltica Colonial Lusa __ 260

    Captulo 6 To Longe, To Perto A Revolta da Cachaa, a Revolta de Beckman e a Prtica de Resistncia Ultramarina __________________________________________ 274

    * To Perto ____________________________________________________________ 278

    * To Longe ___________________________________________________________ 299

    * Alm do Horizonte: Repercusses nas Conquistas aps o Avesso dos Ponteiros ______ 315

    Consideraes Finais ______________________________________________________ 329

    Fontes e Bibliografia ______________________________________________________ 339

    LISTA DE TABELAS

    Tabela I Contratos Estabelecidos para o Abastecimento de Escravos (1680-1682) _____ 25

  • 10

    Introduo

    No h nada que o esprito humano faa mais frequentemente como comparaes. Bernadin de Saint-Pierre diz isso a propsito. Para o senso comum, comparar um verbo muito estimulante. Ele acompanha o olhar do fregus, anima o olho do crtico. Discernir no imediatamente estabelecer analogias, entrever razes, esboar raciocnios? Alm disso, no ato de comparar h algo de comparativo por capilaridade gramatical. Uma apreciao, uma estimativa, um julgamento de postura e, de imediato, um primeiro julgamento de valor como o que se aloja na frmula quase proverbial s se pode comparar o que comparvel.

    (Marcel Detienne)

    Era madrugada quando um grupo de insatisfeitos invadiu o espao administrativo local para prender seu representante. As reivindicaes giravam em torno da ordem e da sobrevivncia em regies longnquas do reino portugus. Primeiro ato, repdio aos administradores rgios, especialmente, os governadores; para, em um segundo momento, instaurar-se um conselho de moradores que conduziriam o processo de maneira mais enftica. O no reconhecimento da autoridade governamental era o start para um conjunto de medidas que giravam em torno da expulso dos elementos da regio que estavam ligados aos grupos do poder at o envio de um representante dos amotinados denominado normalmente de procurador do povo para tornar oficialmente pblica suas exigncias, bem como as denncias contra os representantes rgios. Assim, apaziguado os nimos do motim, a falta de direcionamento gerou um desconforto e uma contradio entre os amotinadores configurando uma brecha para a recuperao da capitania pelos antigos ou novos administradores. Com as regies de novo em suas mos, a coroa ditava as regras, mas zelava pela manuteno do jogo das negociaes para o exerccio da soberania, do bem viver e do controle sobre as conquistas amrico-lusitanas.

    O relato acima pode perfeitamente ser encaixado em grande parte dos movimentos sociais que assolaram o imprio ultramarino portugus entre 1640 e 1710. Com pequenas correes, ajustes e adaptaes locais a histria se tornou recorrente, especialmente em um perodo onde a coroa portuguesa estava aberta a negociaes j que vinha de uma recente reconquista de poder de seus vizinhos espanhis. A conjuntura Seiscentista proporcionou movimentos sociais em todos os cantos do Atlntico, porm os mesmos serviam muito mais para resoluo das dificuldades locais do que imediatamente para apontar o monarca lusitano como inimigo. Antes de tudo ele era um aliado para ajustar as irregularidades de um

  • 11

    complexo poltico. Nesta conjuntura, duas experincias rebeldes nos interessam: a Revolta da Cachaa e a Revolta de Beckman.

    Eclodida, no Rio de Janeiro entre 1660-1661, a Revolta da Cachaa derrubou um dos personagens mais importantes do cenrio administrativo do Imprio Ultramarino portugus, Salvador Correia de S e Benavides. Resultado da proibio do comrcio da cachaa, das arbitrariedades promovidas pelo representante rgio na capitania e das necessidades dos colonos em ampliar a sua participao no espao da cmara municipal, este movimento durou em torno de seis meses e alou ao cenrio fluminense os produtores de cana-de-acar da Freguesia de So Gonalo do Amarante1. Mesmo no recebendo esse nome naquele momento, pois sua documentao remete tumulto do Rio de Janeiro, revolta do Rio de Janeiro ou amotinados do Rio de Janeiro, a alcunha acabou se popularizando depois da obra de Antonio Callado, Revolta da Cachaa Teatro Negro2. Assim, ainda que esse conceito limite a complexidade do episdio j que tinha como inteno no s reverter s restries a economia de aguardente optamos no uso deste, acreditando na consolidao de um discurso atualmente recorrente na historiografia.

    A Capitania do Rio de Janeiro no sculo XVII tinha sua economia voltada para a produo do acar e de seus derivados, como a aguardente. Todavia, no panorama comercial aucareiro, a localidade levava desvantagem frente s capitanias de Pernambuco e da Bahia, que, por possurem uma maior produo e melhor qualidade do acar, acabavam escoando mais seus gneros3. Em posio perifrica, cabia a ela como uma das alternativas para sua sustentabilidade, o comrcio da cachaa com a costa africana4. somente na segunda metade desta centria que a regio fluminense passou a adquirir a caracterstica comercial apontada por autores como Joo Fragoso e Antonio Carlos Juc Sampaio, para os quais o Rio de Janeiro se constituiu como um plo estratgico nas transaes mercantis do imprio ultramarino portugus, libertando-se, ento, da exclusiva dependncia da economia agrcola5.

    1 Cf. Antonio Filipe Pereira Caetano. Entre a Sombra e o Sol A Revolta da Cachaa, a Freguesia de So

    Gonalo do Amarante e a Crise Poltica Fluminense (Rio de Janeiro, 1640-1667). Dissertao (Mestrado em Histria), Departamento de Histria, Universidade Federal Fluminense, 2003; Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na Amrica Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1769). Tese (Doutorado em Histria), Departamento de Histria, Universidade de So Paulo, 1996. 2 Cf; Antonio Callado. A Revolta da Cachaa: Teatro Negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

    3 Cf. Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Sculo XVII. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1978.

    4 Cf. Selma Pantoja e Jos Flvio Sombra Saraiva (Orgs.) Angola e Brasil nas Rotas do Atlntico Sul. Rio de

    Janeiro: Bertrand Brasil, 1962. 5 Cf. Joo Luis Fragoso. Homens de Grossa Aventura: Acumulao e hierarquia na Praa Mercantil do Rio

    de Janeiro (1790-1839). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; Antonio Carlos Juc Sampaio. Na Encruzilhada do Imprio: Hierarquias Sociais e Conjunturas Econmicas no Rio de Janeiro (c. 1650- c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

  • 12

    Neste caso, no momento em que explodiu a revolta de 1660, a regio ainda era marcada por um esforo de insero na lgica econmica colonial no qual a produo do acar era o seu principal caminho. Diante das peculiaridades fsicas a cana no produzia um acar de boa qualidade, transformando a aguardente em produto compensador. O papel que a cachaa adquiriu na capitania e, principalmente, para os produtores deste gnero foi abalado com a criao da Companhia Geral do Comrcio do Brasil, 1649. Paralelamente aos problemas gerados pela restrio da produo e comercializao da aguardente, o governador Salvador Correia de S e Benavides decidiu ampliar a frota fluminense atravs do pagamento de um imposto. A finta foi m recepcionada pelos proprietrios da capitania devido s dificuldades financeiras por que passavam. Mesmo com a contrariedade da cmara local, o administrador rgio aplicou o tributo. Estas duas motivaes j eram suficientes para justificar a ocorrncia da revolta, porm, aliada tentativa destes reparos, apontados pelos revoltosos como injustias, os amotinados visavam, tambm, alterar as dificuldades que os produtores das freguesias mais distantes da capital tinham em introduzir seus nomes nos pleitos da cmara, seja pelo no acesso aos editais eleitorais ou pela falta de representatividade. Por grande parte dos amotinados envolvidos no episdio serem produtores da aguardente e estarem localizados no interior da capitania, tal objetivo acabou sendo um item importante de reivindicao do movimento.

    Invadindo a sede do governo, os revoltosos tentaram uma negociao com o governador interino, Thom Correia de Alvarenga, que no obteve sucesso, levando derrubada do governador e tomada de saque da capitania. Inaugurada a rebelio, depuseram a cmara, aclamaram um novo governador (Agostinho Barbalho Bezerra), debateram as medidas da Companhia Geral do Comrcio, expulsaram aqueles que possuam relacionamentos familiares, comerciais e/ou polticos com os Ss e enviaram carta a Portugal pedindo ajuda para o movimento e denunciando os administradores.

    A revolta durou at abril de 1661, quando Salvador Correia de S e Benavides surpreendeu os amotinados em uma madrugada, retomando o controle da capitania e punindo seus principais responsveis, dentre eles Jernimo Barbalho Bezerra. Assim, os acontecimentos ocorridos na segunda metade no Sculo XVII no Rio de Janeiro revelam os problemas enfrentados por aquela regio para se inserir na lgica mercantilista colonial, as alianas e disputas polticas travadas para a conquista de espaos polticos e/ou econmicos, a absoro dos discursos e prticas polticas do antigo regime para legitimao de suas atitudes, o uso do direito poltico para a defesa das necessidades dos homens coloniais e a conscincia rgia do seu papel como rbitro na relao entre sditos e administradores rgios coloniais.

  • 13

    No outro extremo das conquistas lusitanas na Amrica, nas capitanias do Norte, em 1684-1685, mais precisamente no Estado do Maranho e Gro-Par mais um membro da famlia S, Francisco de S e Menezes, seria vtima da fria dos colonos ultramarinos. A Revolta de Beckman fora desencadeada pelas dificuldades de relacionamento entre os jesutas e os colonos maranhenses, pelas acusaes de excessos cometidos na gesto do governador e pelo no cumprimento das medidas prometidas pela Companhia Geral do Comrcio do Maranho. Da mesma maneira de que sua congnere no Rio de Janeiro, o conceito do movimento se encontrou aqui utilizado tambm com referncia a sua atribuio pela historiografia, at porque a revolta maranhense no se reduziu aos irmos Beckman, muito pelo contrrio, sendo uma complexa articulao de grupos sociais no qual esta famlia encontrava-se a encabeando.

    O Estado do Maranho e Gro Par, diferente do que ocorreu com qualquer outra localidade na Amrica Portuguesa, possui duas peculiaridades: em primeiro lugar, fora fundado atravs de um ato rgio, isto significa dizer que a conquista por Jernimo de Albuquerque frente ocupao dos franceses, no episdio conhecido como Frana Equinocial, tinha uma inteno portuguesa de ocupao do espao6; e em segundo lugar, como conseqncia desta primeira, a regio tinha como funo delimitar o territrio lusitano, ou seja, era uma localidade estrategicamente importante para a coroa portuguesa, pois ao mesmo tempo em que marcava o fim de seu territrio, na prtica, era a regio mais prxima da Europa.

    Economicamente, a capitania do Maranho tambm tentou se enquadrar na produo de cana-de-acar, mas o fracasso desta tentativa acabou marcando aquela localidade por uma pobreza generalizada7. Com uma escassa circulao de metais, uma intensa dependncia da mo-de-obra indgena e constante interveno dos jesutas na prtica cotidiana local, o Maranho se voltou para a produo de gneros de abastecimento interno e na extrao das chamadas drogas do serto, como salsa, tabaco, baunilha, gengibre, canela, cravo, anil e outros gneros8. Logo, diferente do que ocorreu nas zonas aucareiras coloniais, as distines sociais e a delimitao do status do homem maranhense foi medida em sua insero nestas atividades, bem como na aquisio dos negros da terra.

    6 Sobre o episdio da Frana Equinocial, conferir: Mrio Meireles. Frana Equinocial. So Luis: Tipografia

    So Jos, 1962. Ver tambm do mesmo autor, Mrio Meireles. Histria do Maranho. S.l.: D.A.S.P. Servio de Documentao, 1960. 7 Cf. Charles R. Boxer. A Idade do Ouro no Brasil As Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial.

    So Paulo: Companhia das Letras, 1988. 8 Duarte Ribeiro de Macedo. Notcias dos Gneros que H no Par e Maranho Comunicado a um amigo,

    1673 In: Biblioteca Nacional, Manuscritos, 05-03,047.

  • 14

    Manoel Beckman e grande parte dos envolvidos na revolta de 1684 enquadravam-se, justamente nessas caractersticas: proprietrios de terras, dependentes da mo-de-obra indgena e com uma produo agrcola limitada. Tais problemas eram oriundos das constantes oscilaes das leis rgias no que tange explorao dos amerndios pelos colonos. Sob jurisdio dos representantes das companhias de Incio de Loyola, os indgenas ora estavam proibidos de serem escravizados, ora permitiam-se limitadas prticas de seu uso como mo-de-obra. O domnio temporal e espiritual dos nativos pelos jesutas incomodava e prejudicava a economia e o status social dos colonos maranhenses, que chegaram, em 1661, a promover o processo de expulso dos religiosos da capitania. A interveno do padre Antonio Vieira missionrio responsvel pela companhia naquela localidade fora decisiva para o retorno dos jesutas bem como pela ampliao de suas jurisdies sobre os amerndios.

    Uma alternativa para se resolver a pendenga foi a proposta de criao da Companhia Geral de Comrcio do Estado do Maranho, em 1682, que tinha dentre seus objetivos a funo de introduzir africanos na regio para suprir a carncia de mo-de-obra. Alm disso, o estanco, como tambm ficou conhecido o rgo, abastecia a localidade de gneros carentes, dava exclusividade de comrcio dos produtos da regio a serem feitos pelos assentistas e introduzia especialistas para cuidarem da extrao das drogas do serto9. Instaurada com o novo governador, Francisco de S e Menezes, a companhia teve dificuldades de ser aceita pela populao, desconfiada de que suas promessas seriam realmente cumpridas10.

    A intuio dos colonos estava correta e a companhia no cumpriu suas juras. O administrador rgio, j em Belm, deixou a pendenga para ser resolvida pelo responsvel pelo estanco, Pascoal Jansen, que sucumbiu presso dos insatisfeitos. A estadia de S e Menezes no Par revelou um problema endmico da administrao das capitanias do Norte: apesar da capital do Estado do Maranho e Gro-Par encontrar-se em So Luis, praticamente todos os governadores permaneciam mais em Belm do que naquela cidade, resultado da intensa prtica comercial e dos ganhos extras financeiros que um governador poderia conquistar estando na capital do Par. Logo, no momento em que eclodiu a revolta no Maranho, esta prtica tomada pelos governadores foi vista pelos colonos com desprezo pela populao e pelo interesse particular de seus gestores.

    Tomada capitania, os revoltosos tambm promoveram suas mudanas: nova cmara fora instaurada, eleita uma junta militar para conduzir o movimento, priso dos assentistas e

    9 Maria Liberman. O Levante do Maranho Judeu Cabea do Motim: Manoel Beckman. So Paulo:

    Centro de Estudos Judaicos/FFCLH-USP, 1993, p. 63. 10

    Milson Coutinho. A Revolta de Bequimo. So Luis: Instituto Geia, 2004, p. 163.

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    daqueles que ocupavam cargos indicados pelo governador, extino do estanco e expulso dos jesutas do Estado do Maranho. O movimento foi controlado a partir da chegada do novo governador, Gomes Freire de Andrade, que conseguiu fragmentar a revolta, e prender e enforcar Manoel Beckman em 10 de Novembro de 168511. O olhar sobre fatos ocorridos no Maranho nos permite avaliar as dificuldades das capitanias do Norte, a maneira como a estratgia de defesa territorial gerou a necessidade de uma espcie de pacto com os jesutas, os problemas da administrao local, os empecilhos promovidos pela coroa portuguesa para o desenvolvimento econmico e os mecanismos de impedimento de libertao das amarras do julgo colonial.

    Enfim, apesar de distantes do tempo e no espao, a Revolta da Cachaa e a Revolta de Beckman possuem muito em comum: derrubaram governadores, so resistncias contra a famlia S, foram frutos dos problemas oriundos das companhias comerciais, fracassaram em tentativas de angariar apoios para suas causas em outras localidades (como So Paulo e Belm), usaram da mesma prtica poltica para o desenvolvimento do movimento e, enfim, demonstram como as mesmas foram marcadas por tentativas frustradas de insero na lgica colonial promovida pelo Estado portugus. Mas, possuem elementos frutos da prpria especificidade local e da maneira de viver em suas respectivas regies, desenvolvendo suas particularidades enquanto movimentos herdeiros da prtica rebelde Seiscentista.

    Logo, questes ainda permanecem: o que fez com que estes movimentos ocorressem? Por que os mesmos possuem caractersticas to similares? A simples utilizao das caractersticas do Antigo Regime conduzia adoo de prticas de resistncias semelhantes? Qual o papel de cada uma delas no intenso ricochete que assolou o imprio ultramarino portugus? De que maneira os desgastes na lgica de insero da prtica mercantilista colonial auxiliaram na ecloso destes movimentos? Quais so os elementos genuinamente locais promotores da revolta? Enfim, visando responder essas questes que se volta esse presente trabalho. No entanto, preciso deixar evidente que aqui no priorizar fazer uma anlise pormenorizada dos movimentos em tela at porque existe uma gama de obras e pesquisas que versaram sobre este assunto, detalhando as revoltas, discutindo seus envolvidos, sua conjuntura e suas caractersticas e sim realizar um estudo comparativo dos dois casos, buscando suas similitudes e suas divergncias. A partir dessa comparao, busca-se tambm analisar os episdios como fruto dos desgastes das unidades coloniais e como a realizao de conflitos altera e/ou mantm o papel que cada uma daquelas capitanias possua

    11 Joo Francisco Lisboa. Crnica do Brasil Colonial: Apontamentos para a Histria do Maranho. Rio de

    Janeiro: Vozes, 1976.

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    dentro da lgica poltico-econmica portuguesa. Logo, estamos tambm interessados em entender de que maneira o conjunto das prticas lusitanas adaptadas no Rio de Janeiro e no Maranho tornaram-se estmulos suscetveis para a ecloso de tumultos que tornam pblicos os problemas do cotidiano colonial e seus esforos no enquadramento dentro da prtica mercantilista ultramarina.

    Geograficamente, como foi apontado, a presente tese deter-se- em duas localidades lusas na Amrica: a Capitania do Rio de Janeiro e o Estado do Gro-Par e Maranho. A opo por essas regies justifica-se primeiro por terem gerado formas de resistncia com caractersticas extremamente semelhantes; em segundo lugar porque so experincias frustradas e/ou dificultosas de insero na lgica aucareira colonial; e por ltimo, pois cada uma delas passou a desempenhar papis distintos no jogo ultramarino, possuindo funes especficas no complexo colonial lusitano e fazendo com que suas necessidades locais fossem ouvidas atravs do uso da resistncia contra os governadores.

    No que tange ao corte temporal, pretende-se aqui uma delimitao entre 1640-1710. Apesar dos movimentos terem ocorrido entre 1660-1661 (Rio de Janeiro) e 1684-1685 (Maranho), optou-se aqui pela ampliao das datas visando uma melhor compreenso dos acontecimentos. O corte inicial, 1640, foi marcado no s pelo fim do domnio espanhol da coroa portuguesa, a Restaurao, como tambm pela exploso do ricochete nos domnios lusos da Amrica sia. Alm de promover a difuso de um discurso poltico sobre o recurso do direito, neste momento a coroa portuguesa atuava nas alteraes da prtica colonial, tentando adotar medidas que aproximavam os dois lados do Atlntico. Em sntese, tambm houve nesse perodo a ampliao das necessidades regionais, constituindo-se como o momento certo para negociaes frente a uma coroa recm-restaurada.

    Como corte final, 1710, podemos destacar tanto o incio de novas formas de resistncia, no qual o monarca comeava a no ser visto com bons olhos pelos sditos ultramarinos (Guerra dos Emboabas, Guerra dos Mascates e Revolta de Filipe dos Santos), quanto s mudanas nas prticas lusitanas na Amrica aps a conquista aurfera de Minas Gerais, que redefiram o papel de cada localidade aqui estudada. Alm disso, ampliando a delimitao temporal, conseguimos perceber algumas modificaes naquelas realidades, correlacionadas com as reivindicaes feitas atravs dos movimentos.

    Em termos tericos a presente tese tem por objetivo se enquadrar na recente discusso sobre o Imprio ultramarino portugus. At os anos 80, a historiografia brasileira foi pautada pela ciso entre aqueles que consideravam a Amrica portuguesa como local nico e exclusivo da extrao das riquezas portuguesas para o desenvolvimento do capitalismo

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    industrial12; e de outro lado, aqueles que tentavam enxergar a existncia de uma dinmica prpria nas reas coloniais, objetivando demonstrar uma certa autonomia econmica e poltica nas regies coloniais frente s decises metropolitanas.13 Todavia, ambas as vertentes historiogrficas analisavam a Amrica portuguesa somente em relao ao mundo metropolitano, deixando escapar a sua insero na conjuntura imperial ultramarina.

    A lgica colnia versus metrpole esteve em voga dos anos 60 a 80, e mesmo com a publicao de trabalhos como O Imprio Martimo Portugus de Charles R. Boxer,14 no houve uma tentativa sistematizada de discutir a idia de imprio no que tange ao Brasil. Tal feito somente se iniciou nos fins dos anos 90, tempo depois da publicao de trabalhos portugueses com esta perspectiva, como Histria da Expanso Portuguesa, de Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhri;15 e Histria de Portugal, de Jos Mattoso.16 Em termos braslicos, as obras que atualmente melhor se enquadram nessa tendncia seriam os trabalhos de Jnia Furtado, Dilogos Ocenicos; e Antigo Regime nos Trpicos, organizado por Joo Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Ftima Gouva.17 Neste sentido, o presente trabalho insere-se nestas novas abordagens sobre a histria do Brasil colonial, enxergando-o como fazendo parte de um vastssimo imprio, mas no excluindo as presses mercantilistas que eram exercidas sobre estas regies.

    Se a prpria insero no cerne da historiografia colonial atual, no uma relevncia, creio que seja importante destacar o vis que aqui ser dado: os movimentos sociais. Muito se tem produzido sobre os aspectos polticos, as condies econmicas, as caractersticas religiosas e as configuraes sociais. No entanto, tem escapado s formas de resistncia. Mas quando me refiro a esses movimentos no estou me remetendo aos conflitos do sculo XVIII, movimentos que possuem um estudo j sistematizado e consolidado em nossa historiografia18.

    12 Dentre esses podemos apontar Celso Furtado. Formao Econmica do Brasil. So Paulo: Companhia

    Editora Nacional, 1970; Caio Prado Jnior. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1976; e Fernando Novais. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). So Paulo: Hucitec, 1981; 13

    Neste caso, podemos apontar Jacob Gorender. O Escravismo Colonial. So Paulo: tica, 1978; Stuart Schwartz. Segredos Internos Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1988; Joo Fragoso e Manolo Florentino. Arcasmo como Projeto: Mercado Atlntico, Sociedade Agrria e a Elite Mercantil do Rio de Janeiro (1780-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; e Ciro Flamarion Cardoso. Agricultura, Escravido e Escravismo. Petrpolis: Vozes, 1980. 14

    Charles R. Boxer. O Imprio Martimo Portugus. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. 15

    Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhri (Dir.) Histria da Expanso Portuguesa. Lisboa: Crculo de Leitores, 4 Volumes, 1998. 16

    Jos Mattoso (Dir.) Histria de Portugal. Lisboa: Estampa, 8 volumes, 1993. Para este trabalho, destaca-se o volume 3 (No Alvorecer da Modernidade, 1480-620) e o volume 4 (O Antigo Regime (1620-1807). 17

    Jnia Furtado. Dilogos Ocenicos. Minas Gerais: UFMG, 2003..; Joo Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Ftima Gouva. O Antigo Regime nos Trpicos, Op. Cit; 18

    Keneth Maxwell. A Devassa da Devassa: a Inconfidncia Mineira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970; Laura de Mello e Souza. Norma e Conflito. Belo Horizonte: UFMG, 1999; Joo Pinto Furtado. Inconfidncia

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    Reporto-me aos motins, s revoltas, s insurreies, aos alvoroos do sculo XVII at ento estudados, quase que exclusivamente, por Luciano Raposo de Almeida Figueiredo19. Mas, diferente da perspectiva de Figueiredo, aqui no pretendemos analisar a ecloso destes movimentos sociais a partir da imposio de taxaes e sim averiguar as pr-condies coloniais para que fossem acionados mecanismos de resistncia que no tocassem na autoridade da coroa portuguesa, mas que afetavam direta e indiretamente no s seus representantes rgios no mundo colonial como seus sditos ultramarinos.

    Logo, acreditamos que a relevncia deste trabalho encontra-se na tentativa de buscar sublinhar a importncia da relao entre os movimentos de resistncia na Amrica portuguesa Seiscentista com o transporte, as adaptaes e os ajustes das estruturas do Antigo Regime portugus nas terras americanas. Mais do que isso, pretendemos avultar a hiptese de que tais movimentos eram essenciais para a manuteno da poltica-econmica colonial naquele momento, pois eram os responsveis pela reafirmao da autoridade monrquica. Assim, no momento em que escolhemos trabalhar com os movimentos sociais para entender a poltica colonial lusitana temos como perspectiva buscar a compreenso das particularidades dos mesmos, tanto no mbito de suas aes como em suas principais caractersticas, sendo esse um caminho para a montagem do campo de tenso que gerou aqueles episdios.

    Assim, acreditamos que nossa referncia terica se filia aos pressupostos da Nova Histria Poltica. Difundida no incio do sculo XX pela escola dos annales20 e teve como referncia as obras de Fernand Braudel, Antonio Manuel Hespanha, Ren Remond, Ernst Kantorowicz, Nobert Elias, Peter Burke e Emmanuel Le Roy Ladurie21. Seus trabalhos trouxeram uma nova viso de histria poltica que no se esgotou no estudo dos aspectos polticos do objeto, demonstrando que uma abordagem poltica tambm imiscuda das prticas culturais, sociais, econmicas, ideolgicas e religiosas. Segundo Maria de Ftima Gouva o avano proporcionado por esta nova abordagem encontra-se no fato de que ela :

    Mineira: Crtica Histrica e Dilogo com a Historiografia. So Paulo: Edusp, 2000; Ian Jancs. Na Bahia, Contra o Imprio. So Paulo: Hucitec, 1966; Evaldo Cabral de Mello. A Fronda dos Mazombos. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. 19

    Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na Amrica Portuguesa, Op. Cit; 20

    March Bloch. Os Reis Taumaturgos. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1993; Lucien Febvre. Combate pela Histria. Portugal: Presena, 1989; George Duby. Histria e Nova Histria. Lisoba: Teorema, 1989; e Jacques LeGoff et alii. A Nova Histria. Lisboa: Edies 70, 1978. 21

    Fernand Braudel. Reflexes sobre a Histria. So Paulo: Martins Fontes, 1992. Antonio Manuel Hespanha, s Vsperas do Leviat, Op. Cit. ; Ren Remond (org.) Por uma Histria Poltica. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1996; Ernst Kantorowicz. Os Dois Corpos do Rei. So Paulo: Companhia das Letras, 1998; Nobert Elias. A Sociedade de Corte. Lisboa: Estampa, 1987; Peter Burke. A Escrita da Histria Novas Perspectivas, Op. Cit. ; e Emmanuel Le Roy Ladurie. O Estado Monrquico. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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    a identificao de um campo especfico do poltico, com estruturas e uma cultura que lhe so prprias, assim como a insero desse campo de conhecimento no interior da histria atual numa perspectiva mais ampla. Preocupa-se fundamentalmente com a histria das formaes polticas e das ideologias, em que o estudo da cultura poltica ocupa um lugar importante para a reflexo e explicao dos fenmenos polticos, permitindo detectar as continuidades no tempo de longa durao22.

    So justamente estas idias que nos norteiam, visando fazer um estudo da cultura poltica moderna com nfase tanto na sua aplicabilidade nos estudos sobre o mundo ultramarino lusitano, quanto procurando entender as relaes de poder travadas nos diversos espaos sociais amrico-lusitano. Neste sentido, o Estado ser aqui entendido como aquele proposto por Michel Foucault: repartido, dividido, enfim, em migalhas23. Um Estado composto por diversas facetas de poder, que conjuntamente constituem um corpo nico capaz de transmitir e conceber a idia de soberania. Pensando em termos lusitanos, estaramos falando no Estado corporativo defendido por Antnio Manuel Hespanha.

    Optando por essa concepo de poder, de acordo com o corte cronolgico proposto, fica ainda mais latente a importncia dada idia de imprio escolhida como referncia terica. Inserir o Rio de Janeiro e o Maranho como parte integrante do imprio colonial portugus trouxe quase que a obrigatoriedade de entender o homem colonial como um sdito e colono. Neste caso, as concepes acerca das relaes entre os sditos e o soberano tambm devem ser plenamente adaptveis s condies especficas do mundo colonial.

    Segundo a lgica da pater famlia, o rei era considerado um pai, aquele que deveria estar presente amparando e protegendo seu sdito. Suas cerimnias, sua aclamao e suas festividades eram as formas mais concretas desse monarca tornar-se visvel ao seu sdito, que deveria retribuir com sua fidelidade, o seu amor e a sua vassalagem24. Uma outra concepo que corroborava para mitificao da imagem dos reis modernos era a idia de sacralidade, difundida por tericos como Jacques Bossuet e Jean Bodin, que concebiam o poder como produto da vontade de Deus25. Esta vertente providencialista do poder poltico possua uma

    22 Maria de Ftima Gouva. O Ressurgimento da Histria Poltica no Campo da Histria Cultural. Mimeo, p.

    7. 23

    Michel Foucault. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990. 24

    Ernst Kantorowicz. Os Dois Corpos do Rei, Op. Cit. , p. 128. 25

    Antnio Manuel Hespanha & ngela Barreto Xavier, A Representao da Sociedade e do Poder In: Jos Mattoso (Dir.) Histria de Portugual. Lisboa, Estampa, Volume 4, 2000, p. 127.

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    influncia inegvel na pennsula Ibrica, sobretudo se levarmos em considerao fundao do Estado moderno portugus, permeado de religiosidade e devoo divina26.

    A teoria do direito divino dos reis transformava o monarca em algo sagrado, como um representante de Deus na Terra. A repulsa ao rei significava um desrespeito. Porm, em meados do sculo XVII, os Estados Ibricos, alm do providencialismo, concebiam o monarca a partir das concepes neotomistas, que viam o rei como o responsvel pela manuteno da ordem, da paz e do bem comum. Pensadores como Francisco de Vitria, Fernando Vazquez e Francisco Surez acreditavam que o poder era uma concepo divina entregue comunidade em sua forma plena, mas estes revestiram o monarca com o poder atravs de um pacto que o obrigava a garantir um governo para todos. Caso o acordo fosse quebrado, a idia de tirania era posta em prtica e a usurpao do poder era o resultado natural do rompimento do acordo27.

    Nesta concepo, em se tratando dos bastidores do poder, o rei era aquele que simbolizava uma das vrias facetas do Estado, congregando para si a funo de manter a harmonia entre as instituies. O regime polissinodal, como classifica Hespanha, tornava o monarca cabea de um amplo sistema administrativo, que deveria zelar pela inexistncia de conflitos entre os distintos corpos sociais que compunham o sistema poltico. Porm, nas praas fluminenses e maranhenses a ausncia fsica do rei, as arbitrariedades cometidas por seus representantes e a necessidade dos homens locais, acabou proporcionando ao monarca uma dimenso de poder maior do que no reino, j que os sditos depositavam nele a responsabilidade de resolver as pendengas e tenses. Estas deveriam ser contornadas e/ou estimuladas pelo monarca, pois s assim o mesmo garantia o seu poder. Para Rubem Barbosa Filho, foi exatamente esta especificidade que acabou dotando o poder rgio no prprio reino, o que implicaria em dizer que no Seiscentos por conta dos raios solares se intensificarem sobre as conquistas americanas que a coroa lusa conseguia se equilibrar em meio a uma nobreza que se aproveitava do poder polissinodal28.

    Assim, em se tratando dessa relao entre monarca e os representantes administrativos, entremeada pela atuao do sdito, utilizaremos a metfora construda pelo jesuta Antonio

    26 Cf. Ana Isabel Buescu. Memria e Poder Ensaios de Histria Cultural (Sculos XV-XVIII). Lisboa:

    Cosmos, 2000. 27

    Luis Reis Torgal. Ideologia Poltica e Teoria do Estado na Restaurao. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Volume II, 1982, p. 28. Para aprofundamento sobre o conceito de absolutismo conferir: Martim de Albuquerque. O Poder Poltico no Renascimento Portugus. Liboa: ISCSPU, 1968; e Fritz Hartung e Roland Mousnier. Quelques Problmes Concernant La Monarchie Absolue In: X Congresso Internazionale di Scienze Storiche, V.IV, Storia Moderna, Firenze, 1955, pp. 1-55. 28

    Ver Rubem Barbosa Filho. Tradio e Artifcio: Iberismo e Barroco na formao americana. Rio de Janeiro: IPUERJ, 2000.

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    Vieira, comparando o rei ao Sol e seu representante a Sombra, demonstrando que na rea em que o rei estava mais afastado seus governadores possuam um poder imenso que poderia vir a incomodar seus sditos29. Por conta disso, estaremos usando expresses de retrica como sombra rgia, sol lusitano, raios solares, sombra maranhense/fluminense ou outras congneres, fazendo uso da linguagem instituda pelo missionrio jesutico e apropriada em outros trabalhos como o de Raymundo Faoro30. No entanto, imprescindvel deixar claro que a opo por esse recurso tem por objetivo flexibilizar a escrita e evitar os excessos de usos de termos como rei, o que no significa a atribuio de um poder amplo e que no passe pela negociao dos monarcas portugueses do sculo XVII. Sabemos que a nomenclatura de rei sol, convencionalmente atribuda aos monarcas franceses, pois exalavam um poder poltico centralizador, situao que no pode ser enquadrada, em nosso pensamento, para o caso luso Seiscentista. Assim, se fosse entendido dessa maneira estaramos entrando em contradio com a prpria perspectiva das linhas que se seguem que visavam demonstrar um poder poltico colonial construdo a base de negociao e barganha dos dois lados do Atlntico.

    Em termos documentais este trabalho indicirio, at porque as sries documentais para o estudo dos movimentos sociais no existem. Para isso, trs corpi documentais foram empregados como base. O primeiro compreendeu as correspondncias jesuticas, as crnicas e os tratados daqueles que, inicialmente, descreveram a Amrica portuguesa, como Ferno Cardim, Diogo de Campos Moreno e Padre Antnio Vieira. Essas fontes impressas nos ajudaram na representao sobre a realidade do sculo XVI e XVII, e tambm se tornou elemento fulcral para o entendimento das formas de adaptao e ajustes dos modos de vida lusitana nas novas reas coloniais31.

    29 O Senhor de tudo, das atribuies e das incumbncias o rei. O funcionrio ser apenas a sombra real. Mas

    a sombra se o sol est no znite muito pequenina e toda se vos mete debaixo dos ps. Mas quando o sol est no Oriente ou no ocaso, essa sombra se estende to imensamente, que mal cabe dentro do horizonte. Padre Antonio Vieira. Sermes Pregados no Brasil. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1940. 30

    Cf. Raymundo Faoro. Os Donos do Poder. So Paulo: Publifolha, 2 Volumes, 2000. Cabe ressaltar que tal utilizao retrica j tinha sido utilizada por mim tambm na dissertao de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense, em 2003. 31Andr Joo Antonil. Cultura e Opulncia no Brasil. So Paulo: Melhoramentos, 1976; Sebastio Rocha Pita. Histria da Amrica Portuguesa. Rio de Janeiro: H. Garnier Livraria Editora, 1984; Dierick Ruiters. A Tocha da Navegao, 1623 In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Volume 269, 1975; Padre Antnio Vieira. Sermes Pregados no Brasil. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1940. Ferno Cardim. Tratado da Terra e da Gente do Brasil. So Paulo: Editora Nacional, 1978; Pero Magalhes Gandavo. Tratado da Terra e do Brasil. Rio de Janeiro: Anurio do Brasil, s.d; Diogo de Campos Moreno. Livro Que se D Razo do Estado do Brasil. Recife: Arquivo Pblico Estadual, 1966; Henry Koster. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Secretaria Estadual do Governo de Pernambuco, 1978; Serafim Leite. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 10 Volumes, 1967. Como tambm, Documentos Para Histria do Acar. Rio de Janeiro, 3 Volumes, 1954-1963.

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    Enquanto isso, as correspondncias entre o Conselho Ultramarino e os rgos administrativos coloniais so documentos que abrangem o sculo XVII e nos possibilitaram reconstituir os jogos de poder daquele perodo, como tambm nos enfronhar nas questes econmicas que sacudiam o mundo colonial. Para esse conjunto documental o Projeto Resgate de Documentao Histrica Baro do Rio Branco j catalogou documentos referentes ao Rio de Janeiro e Maranho, que foram utilizados aqui como fontes obrigatrias32. Ainda em termos da produo administrativa, para as capitanias do norte, contamos com os livros da cmara do Maranho (acrdos, cpias de carta, registro geral, receitas e despesas, inventrios de bens do conselho e aforamentos) que revelam mais das especificidades regionais33.

    Por fim, os documentos sobre os movimentos sociais e sobre a realidade Seiscentista de cada localidade. No caso do Estado do Gro-Par e Maranho podemos apontar os manuscritos do IHGB, os Anais da Biblioteca Nacional, o Livro de Registro de Ordens Rgias, o conjunto de leis e alvars, a coleo de cartas rgias, bem como os relatos do padre Joo Felipe Betendorf, do governador Bernardo Pereira de Berredo e do Provedor da Fazenda, Francisco Teixeira de Morais34. Para o caso do Rio de Janeiro tambm contamos com os anais da Biblioteca Nacional, os livros de acordos e vereanas, a coleo de documentos histricos, os anais do Rio de Janeiro e os documentos transcritos por Vivaldo Coaracy35. Estes conjuntos foram essenciais no s para a reconstituio daquelas formas de resistncia, como para o estabelecimento de um estudo comparativo. Enfim, um conjunto documental rico, diverso e variado, que possibilitou inmeras abordagens e formas de cotejamento.

    32 Conselho Ultramarino/Brasil. Arquivo Histrico Ultramarino Instituto de Investigao Cientfica

    Tropical/Lisboa, 2000 (Cd-rom). 33

    Livros da Cmara do Maranho. Arquivo Pblico do Estado do Maranho, 1646-1722. Livros da Cmara do Maranho. Solar dos Vasconcelos, 1649-1798. 34

    Coleo de Cartas Rgias, Maranho. Biblioteca Nacional. Manuscrito 16, 3, 3; Leis e Alvars. Arquivo Nacional, Fundo: Diversos Cdices, Cdice 691; Livro de Registro de Ordens Rgias para o Par e Maranho, 1673-1803. Biblioteca Nacional. Manuscritos, Fundo Carvalho, 07, 2,021; Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Volumes 26, 66 (Livro Grosso do Maranho) e 67, 1965; Manuscritos do Maranho. Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Lata 466, pasta 6; Bernardo Pereira de Berredo. Anais Histricos do Maranho. Rio de Janeiro: Alumar, 1905; Francisco Teixeira de Morais. Relao Histrica e Poltica dos Tumultos que sucederam na cidade de So Luis do Maranho In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, Tomo XL, 1877, pp. 67-155; Joo Felipe Betendorf. Crnica da Misso dos Padres Missionrios da Companhia de Jesus no Estado do Maranho In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, LXXII, 1909. 35

    Acordos e Vereanas do Legislativo Municipal, 1635-1650. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Cdice 16-3-20; Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, s/a; Arquivo Pblico do Estado do Par. Documentos Histricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928; Legislativo Municipal/Senado da Cmara Vereana, 1635-1650. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Cdice 16-3-20; LISBOA, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Leitura S/A, 1967.

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    Todavia, em termos metodolgicos a presente tese usou das idias difundidas pela Histria Comparada. Apesar de ter surgido praticamente junto com a escola dos annales e sendo apontada at mesmo nos trabalhos de Marc Bloch, a histria comparada no teve seu desenvolvimento na historiografia francesa36. Preocupados no estudo de uma histria local, o mtodo da comparao serviu para os franceses muito mais para a insero nas questes nacionais, nos estudos da demografia histrica e nos trabalhos sobre a economia. Ao contrrio do que aconteceu com a Inglaterra, onde a histria comparada teve condies mais adequadas para o seu desenvolvimento, para os franceses havia muito mais uma preocupao com a internacionalizao de uma discusso cientfica37.

    Sem um conjunto de mtodos e prticas especficas, a Histria Comparada ainda carecia de aperfeioamento, mas um instrumento revelador de determinadas circunstncia da realidade. Segundo Hunt, o trabalho de Jean Bouvier sobre o capitalismo francs acabou explicando as razes que levaram o afastamento da historiografia francesa desta metodologia e propiciou alguns pressupostos norteadores para quem se visa enveredar por este campo. Para Bouvier,

    toda nao outra. A Frana nunca foi inferior nem superior a qualquer outra nao legitimamente comparvel pelo avano do desenvolvimento, as dimenses e nveis relativos deste, seus ritmos e velocidades. Nem inferior nem superior Blgica ou Itlia, por exemplo. Porque semelhana de toda nao e de todo Estado a Frana foi naturalmente outra do que seus caminhos38.

    O que as linhas acima nos sugerem o grande perigo que um trabalho de Histria Comparada pode ter, ou seja, sempre usar a comparao como recurso para prtica maniquesta, esta que no foi a inteno aqui. Muito pelo contrrio, pois a comparao foi

    usada como um caminho para ressaltar mais os elementos comuns do que os divergentes. No estamos interessados em saber qual o movimento social teve mais sucesso, mas sim em ressaltar como cada um deles, com suas matrizes similares, alteraram ou no o papel daquelas localidades no conjunto do Imprio Ultramarino Portugus. Alm disso, no instante em que colocamos lado a lado tenses ocorridas em espaos temporais e geogrficos divergentes podemos perceber as necessidades que permeavam os sditos que viviam em condies ultramarinas.

    36 Heinz-Gehart Hunt. O Lento Surgimento de uma Histria Comparada In: Jean Boutier & Dominique Julia

    (Orgs.) Passados Recompostos: Campos e Canteiros da Histria. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998, p. 205. 37

    Idem, p. 207. 38

    Jean Bouvier Apud Heinz-Gerhart Hunt, Op. Cit., p. 208.

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    A opo pelo uso da histria comparada relaciona-se ao objetivo de melhor definir o objeto de estudo, promover um aprofundamento da pesquisa das localidades e utilizar o olhar das diferenas para ressaltar os elementos em comum. Isto significa dizer que estamos em busca das singularidades e das pluraridades39. Neste caso, entendemos a comparao como um recurso similar ao promovido pelos trabalhos de micro-historiadores, onde se tem a inteno de buscar os elementos incomuns, as particularidades e especificidades, at por que como nos diz Marcel Detienne, comparar um ato inato a qualquer ser humano, mas o historiador que se debrua sobre esse mtodo deve ser plural e singular ao mesmo tempo40.

    Diante de tudo isso, esta tese foi dividida em seis captulos. No primeiro, Poder, Movimentos Sociais e a Historiografia: a Revolta da Cachaa e a Revolta de Beckman sob novos olhares discutiremos as estruturas fundamentais que caracterizam o Antigo Regime portugus, dando nfase nos elementos da cultura poltica que sustentavam as possibilidades de ecloso de movimentos sociais. Assim, conceitos como rei, poder, reino, violncia, revolta, resistncia, negociao, autoridade, enfim uma gama de termos recorrentemente usados no perodo em foco e que revelam a prtica poltica portuguesa sero cotejados e ajustados na lgica da conquista americana. Ainda neste captulo, faremos uma discusso historiogrfica sobre os movimentos sociais na Amrica Portuguesa, tentando dar conta de como estas formas de resistncia tm sido vistos at ento pelos autores.

    No segundo captulo, Dois Sculos, Duas Conquistas, Um Problema! A Capitania do Rio de Janeiro e o Estado do Maranho e Gro Par na Periferia da Amrica Portuguesa, pretendemos discutir como duas regies do domnio lusitano no Ultramar vivenciaram o momento da construo de seus espaos no sculo XVI e XVII. Em sntese, o que se pretendeu foi entender o papel de cada uma dessas regies na conjuntura poltica do Imprio Ultramarino portugus. Usando a comparao, observou-se como um mesmo acontecimento atingiu as conquistas de maneira completamente distinta, privilegiando o processo de consolidao de ocupao territorial, o estabelecimento da malha administrativa, as reaes frente s tentativas de invases de outras monarquias, o impacto e as mudanas do domnio hispnico sobre a coroa portuguesa.

    No terceiro momento, Morram, Morram, Peream os Urubus A ao jesutica e os protestos dos sditos americanos, comearemos a analisar os possveis elementos acionadores para ecloso de movimentos sociais nas duas capitanias. Dentre as vrias ordens religiosas institudas na Reforma Catlica europia, os jesutas, tiveram uma atuao mais enrgica na

    39 Sandra Nitrini. Literatura Comparada: Histria, Teoria e Crtica. So Paulo: Edusp, 1998.

    40 Marcel Detienne. Comparar o Incomparvel. So Paulo: Idias e Letras, 2004, p. 9.

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    Amrica Portuguesa. Todavia sua prtica evangelizadora, marcada pela contrariedade, concomitante ao exerccio de atividades econmicas, acabou trazendo problemas aos colonos ultramarinos e para a coroa portuguesa, mesmo sendo essa prtica evangelizadora resultado do processo de expanso do cristianismo no mundo moderno com o aval e cumplicidade do Estado Monrquico Luso. exatamente essa relao social de mltiplas faces que este captulo se prope a discutir.

    No quarto captulo, Os S em Maus Lenis... Famlia, Poder, Revolta e Administrao na Capitania do Rio de Janeiro e no Estado do Maranho e Gro-Par procuramos descortinar a administrao poltica portuguesa nas localidades em tela. Esta se pautou na ampliao de sua malha de cargos, rgos e atribuies. No caso especfico dos domnios americanos, uma quantidade de Ouvidores, Provedores e Governadores se revezavam no governo tentando dar conta das necessidades ibricas para controle da localidade. Complementar a esta conjuntura, interesses contraditrios e divergentes pautavam os administradores rgios e a elite colonial local, gerando constantes desavenas e alianas Logo, nesta parte, daremos uma ateno especial maneira como a administrao colonial portuguesa se formou, privilegiando os mecanismos de articulao com os grupos locais e as insatisfaes por eles promovidas ao longo de suas gestes.

    No penltimo captulo, E Todos os Caminhos Levam s Restries Comerciais... As Companhias Comerciais Lusitanas no Rio de Janeiro e no Maranho tentamos perceber como a formao de companhias econmicas comerciais passou a ser um item importante na prtica mercantilista do Estado portugus e espanhol para garantir o monoplio de produtos e maiores lucratividades para aqueles que estavam envolvidos nestas atividades. Aplicadas em sua maioria nos domnios ultramarinos, as mesmas tornaram-se, mais das vezes, entraves para o desenvolvimento locais, pois promoviam a obstruo do sdito ultramarino e reforava o poder de grupos privilegiados. Desta forma, ciente do papel desempenhado por estes rgos no Antigo Regime luso-espanhol, pretendeu-se desvendar sua atuao no Rio de Janeiro e no Estado do Maranho e Gro-Par.

    No captulo derradeiro, To Longe, To Perto A Revolta da Cachaa, a Revolta de Beckman e a Prtica de Resistncia Ultramarina, aps a discusso sobre os campos de tenses que estimularam as insatisfaes dos sditos portugueses nas localidades estudadas privilegiou-se a anlise do desenvolvimento dos movimentos oriundos dessas insatisfaes. Traando um perfil comparativo, o presente captulo visou dar conta das especificidades e aproximaes da prtica de ao daqueles movimentos. Dessa forma, tem-se a inteno de expor os reflexos dos movimentos para as referidas capitanias, mas precisamente dando

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    nfase no papel e/ou nas alteraes das funes que estas localidades adquiriram antes, durante e depois da ecloso do tumulto.

    Claro que temos a conscincia que a discusso no se encerra nas pginas que se seguiro a partir deste momento, mas se constituem, antes de tudo como um olhar, uma verso, uma interpretao de dois episdios que sofreram reaes distintas do senso comum populacional: enquanto a Revolta da Cachaa completamente desconhecida e ainda busca por um lugar ao sol; a Revolta de Beckman popularmente desenhada como o primeiro grande movimento colonial. Separadas pelos espaos, pelo tempo, pela historiografia e pelo senso comum, aqui tentaremos algo diferenciado, ou seja, mostrar que no fundo essas duas revoltas possuam o mesmo objetivo: resolver seus problemas locais e exaltar a figura do rei como aquele que definia o jogo poltico colonial. Enfim, tudo que se buscava era poder concorrer de forma leal dentro da lgica mercantilista proposta para o mundo colonial, sendo ainda mais fiis e sditos da coroa lusitana. Contraditrio, se pensarmos que revoltas deveriam ter um senso ou uma pitada de liberdade, mas, naquele momento, liberdade estava associada a um outro imaginrio, que tentaremos de desvendar nas linhas que se seguem.

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    Captulo 1 Poder, Cultura Poltica e Historiografia: A Revolta da Cachaa e a Revolta de Beckman sob a Luz de Novos Olhares

    (...) O povo no deve tomar nenhuma iniciativa, mesmo em caso de manifesta tirania, se os grandes no esto de acordo com o rei.

    O povo no pode ofender o soberano, mas pode defender-se de qualquer ato inquo praticado por ele: no pode subtrair sujeio e reverncia que deve ao rei, mas pode resistir a ofensa. contra natura que o inferior se vingue do superior e o mande castigar, mas defender-se algo de natural.

    (Gabriel Chappys, 1602)

    Nos movimentos sociais do sculo XVII na Amrica portuguesa um padro de conduta acabou sendo implantado para o desenvolvimento das revoltas. Seja no Rio de Janeiro ou no Estado do Maranho e Gro-Par, os amotinados, reuniam suas insatisfaes, estabeleciam estratgias para a aplicao do movimento, usurpavam a capitania de seu administrador, mas faziam questo de informar a coroa portuguesa seus atos o mais rpido possvel, enviando um procurador popular e/ou documentos que atestavam a sua verso sobre os acontecimentos.

    No Rio de Janeiro de 1660, o primeiro ponto de contato foi feito com o governador-geral, Francisco Barreto, que foi informado da ao popular desenvolvida na capitania justificada como o melhor caminho para que suas queixas fossem ouvidas pelo monarca portugus. Aproveitando-se da rivalidade pr-existente entre Barreto e o governador do Rio de Janeiro, os revoltosos demonstravam sua fidelidade e posicionavam-se como encurralados poltica e economicamente. Com uma reao tmida, o governador do Estado do Brasil, apenas enviou representantes para tentar conter o embate entre os grupos, mostrando que no tinha a inteno de intervir nas pendengas locais que assolavam os diversos espaos ultramarinos41.

    A segunda tentativa deu-se com o Conselho Ultramarino, caminho mais prximo e imediato coroa portuguesa. Neste caso as acusaes acabaram se tornando mais duras, j que listaram todos os atos, as divergncias e as atitudes de Salvador Correia de S e

    41 Arquivo Histrico Ultramarino, Instituto de Investigao Cientfica Tropical e Arquivo Pblico do Estado do

    Rio de Janeiro. Conselho Ultramarino/Catlogo Castro Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1657). Cd-Rom Nmero 1, Documento Nmero 851-852.

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    Benavides e Thom Correia de Alvarega, seu governador interino desaprovado pelos sditos fluminenses. Criando um clima de tenses, os revoltosos resgatavam o papel do monarca para o controle da ordem, bem como desenvolvia insinuaes de que sua fidelidade deveria ser recompensada pelo atendimento de suas reivindicaes.

    Nas regies do Norte, sob a gide da capitania do Maranho, a situao foi semelhante. Porm, ao invs de somente se prenderem ao envio de documentos, os sditos de So Luis optaram por enviar Tomas Beckman a Portugal para detalhar as aes realizadas pelos revoltosos. Com o estatuto de procurador do povo, o irmo de Manoel Beckman visava apontar as tiranias realizadas por Francisco de S e Menezes, bem como discorrer sobre os empecilhos trazidos pela instaurao da Companhia Geral do Comrcio do Maranho e as aes dos missionrios jesuticos naquela localidade.

    No entanto, fora justamente um membro da Companhia de Incio de Loyola, o padre Joo Felipe Betendorf, que o impediu de realizar tal feito. Chegando a Lisboa quase que ao mesmo tempo em que o amotinado, o religioso construiu coroa a imagem dos revoltosos como perturbadores da ordem local e interessado em resolver questes pessoais, o que inclua discordncias frente aos religiosos. Preso, Tomas Beckman retornou ao Estado do Maranho junto com o novo governador, Gomes Freire de Andrade, onde fora julgado e, posteriormente, condenado.

    As situaes descritas sobre o Rio de Janeiro e o Maranho em meio s contestaes sociais trazem a luz algo bem interessante para o mundo amrico-lusitano: mesmo os homens ultramarinos estando longe da gide e da proteo rgia, o sentimento de fidelidade, vassalidade e de sditos permaneciam inalterados. Pelo menos em se tratando do Seiscentos, o que se pode constatar a relao soberano-sdito nos domnios americanos como algo forte, essencial e importante tanto para o monarca e, principalmente, para aqueles que deixaram a vida na Europa para construo do mundo colonial.

    Os movimentos sociais desse perodo tornaram pblico, talvez como em nenhuma outra situao daquela sociedade, essa relao de dependncia entre o soberano e os sditos mais distantes, revelando a importncia que os segundos atriburam ao rei como aquele que tinha por obrigao manter a ordem daquela realidade. Por que e como isso acontecia? Como os sditos enxergavam o monarca? Qual era o papel da revolta neste contexto? De que maneira as relaes polticas eram pautadas pelo tom da negociao? E mais do que isso, como essa barganha poderia se reverter na construo da autoridade e soberania rgia na Amrica? O captulo que se inicia visa explorar, preliminarmente, essas questes, bem como visa desenvolver uma anlise da produo histrica sobre os dois movimentos em tela, tentando

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    demarcar no s os conceitos e direcionamentos tericos que seguem este trabalho, mas demonstrar de que maneira este se diferencia daqueles feitos anteriormente.

    Amrica Portuguesa: entre a cultura poltica europia e as adaptaes locais

    Quando nos remetemos discusso da questo poltica ou das estruturas do Antigo Regime portugus e suas possveis adaptaes na Amrica lusa, podemos perceber um caminho duplo traado pela historiografia, e, ambos pautados por vises divergentes. O primeiro caminho refere-se discusso sobre o poder estatal da Europa na poca moderna, que oscila entre a centralizao monrquica e a constituio de um sistema polissinodal; j o segundo, mais especificamente sobre trabalhos que estudam a colonizao braslica, incidem sobre a contradio entre a vigncia do pacto colonial nos meandros polticos ou na flexibilizao das relaes a partir de autonomias e liberalidades concedidas aos sditos locais.

    Ao falar em Estado Monrquico europeu entre os sculos XV e XIX, o conceito de Absolutismo salta aos olhos como um rtulo automaticamente associado por historiadores. Grande parte desta tradio foi inaugurada por dois trabalhos com abordagens tericas diferentes, mas que acabam chegando mesma concluso: a do Estado moderno centralizado na figura do rei. Assim, Perry Anderson em Linhagens do Estado Absolutista, preocupado com o estabelecimento das caractersticas diversas que marcavam os Estados Europeus tentava demonstrar que as monarquias europias passaram por estgios diferentes da construo desse Estado centralizador, mas ressaltava que o fortalecimento deste no excluu a propriedade nobilirquica ou o poder da nobreza no Ocidente, apenas o elevando ao outro nvel, que passava pela propriedade privada e pela delimitao dos direitos gerais42.

    No caso Ibrico, Anderson se debruou sobre a Espanha e apontou o Estado hispnico como difusor do Absolutismo, o colocando como fragilizado em decorrncia das divergncias oriundas das disputas entre Castela e Arago. Logo, durante as unificaes do reino, promovida por Carlos V, houve uma disperso do poder, isto , o Estado espanhol conseguiu generalizar o Absolutismo pela Europa, mas no visou centralizar o poder por conta da difcil racionalizao poltica e econmica, levando a constituio de uma aristocracia com amplos poderes dentre do Estado. Porm, mesmo relativizando o Absolutismo ibrico, a historiografia sobre o perodo moderno, voltou-se muito mais para compreender a primazia hispnica no

    42 Perry Anderson. Linhagens do Estado Absolutista. So Paulo: Brasiliense, 2004.

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    processo de centralizao monrquica no entendimento de sua lgica de funcionamento e em suas caractersticas no reino portugus.

    Enquanto isso, inaugurando uma abordagem social que flertava com o poltico, difundida posteriormente pela escola dos annales, March Bloch, em Os Reis Taumaturgos, no s discutiu os poderes religiosos e sagrados dos monarcas ocidentais, como o caso de Inglaterra e Frana, mas tambm atribuiu a essa relao de poder e religio como o elemento que configurava o poder absoluto dos monarcas43.

    Para o bem ou para o mal, estes dois trabalhos acabam atribuindo ao Estado Moderno um poder incontrolvel, insubstituvel e inatingvel. O monarca, nesta configurao era intocvel, absoluto e sagrado. Sua autoridade era conquistada a partir destes quesitos, como tambm do medo imposto sobre os sditos que desrespeitassem seu poder e soberania. Evidentemente outras obras ampliaram tais perspectivas, demonstrando que estas mesmas caractersticas estavam presentes no caso lusitano. Todavia, uma nova historiografia portuguesa tentou frear a viso hipertrofiada do Estado Ibrico, estabelecendo limites e distribuindo o poder sobre o corpus poltico e administrativo.

    Joel Serro ao analisar o caso do absolutismo lusitano atribua etapas ou fases de sua construo. Num primeiro momento haveria um governo central de conselheiros, tribunal e justia; para em seguida uma gesto centralizada no rei e conselheiros pudessem existir. Noutro momento surgiria um governo monocrtico (sculo XVIII), para ser finalizado com a existncia de uma comisso de ministros que seriam subsidiados pelo rei44. Apontando a era Pombalina como o pice do Absolutismo, Serro destacava o Seiscentos como um momento onde o rei luso estava subjulgado a lei moral, religiosa e aos usos e costumes45.

    Neste caso no se pode esquecer que o termo absolutismo um conceito tardio, do prprio sculo XVIII. Assim, a idia de Estado Moderno tambm uma construo da historiografia liberal, j que naquele momento os termos Rgis e monarquia dinstica se faziam mais presentes46. Mesmo que esse perodo fosse marcado por multiplicidade de disputas polticas e pelo pluralismo de poder, este no era exclusividade do soberano; at porque ele est submetido s leis. Seguindo um pouco esta, trilha Antonio Manuel Hespanha,

    43 Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos: o Carter Sobrenatural do Poder Rgio, Frana e Inglaterra. So

    Paulo: Companhia das Letras, 1993. 44

    Joel Serro (org.) Absolutismo In: Dicionrio de Histria de Portugal. Lisboa: Iniciativa Editorial, Volume 1, 1971. 45

    Idem, p. 9. 46

    Martim Albuquerque. O Poder Poltico no Renascimento Portugus. Lisboa: ISCSPU, 1968, p. 342.

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    em As Vsperas do Leviat47 aperfeiou as idias de Joel Serro. Oriundo do direito, Hespanha relativizou o conceito de Absolutismo ao Estado portugus pelo menos at o sculo XVIII, momento em que houve uma maior concentrao de poder pelo monarca. Assim, nas centrias anteriores, o sistema poltico lusitano estaria marcado pela cooperao mtua entre o rei e seu corpo administrativo, que decidiam coletivamente os rumos do Imprio. Na prtica o que este autor fez foi a valorizao dos grupos nobres e das famlias nobilirquicas medievais no controle estatal do Quinhentos e Seiscentos.

    Construindo a idia de um sistema polissinodal, onde o rei era a cabea e o corpo administrativo (cmara, provedoria, conselhos, tribunais e outros) eram os membros que formavam a imagem do Estado monrquico portugus, Hespanha valorizou o sistema corporativo e atribuu uma autonomia poltica, econmica e jurisdicional aos rgos que compunham o sistema poltico do Antigo Regime luso. Assim, o papel do rei era evitar os excessos e as sobreposies de funes desses corpi administrativos48.

    A discusso promovida por Hespanha acabou gerando uma preocupao na historiografia portuguesa em estudos da poca moderna voltados para o entendimento das relaes polticas, da formao das casas nobilirquicas, do papel das cortes, da configurao da nobreza e sobre a distribuio de ttulos, honrarias e mercs49. O novo olhar luso sobre seu Antigo Regime acabou constituindo o poder rgio no Quinhentos e Seiscentos marcado pela negociao e articulao dos corpus administrativos do que precisamente sobre o exerccio da fora. A propsito da Amrica portuguesa, a interpretao de que o Estado portugus era envolto de um poder absoluto acabou gerando a viso das relaes polticas entre colnia e metrpole estabelecidas atravs da supremacia da segunda em relao primeira, no havendo brechas que extrapolassem o pacto colonial. Mas, a primeira historiografia que analisou a administrao colonial Srgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Caio

    47 Antonio Manuel Hespanha. As Vsperas do Leviat: Instituies e Poder Poltico, Portugal Sculo

    XVII. Coimbra: Almedina, 1984. 48

    Cf. ngela Barreto Xavier e Antnio Manuel Hespanha. A Representao da Sociedade e do Poder In: Jos Mattoso (Dir.) Histria de Portugal. Estampa: Volume 4, 1993. 49

    Cf. trabalhos como Nuno Gonalo Monteiro. O Crepsculo dos Grandes: a Casa e o Patrimnio da Corte e Cultura Poltica no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; Pedro Cardim. Corte e Cultura Poltica no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; Joaquim Romero Magalhes. As Estruturas Polticas de Unificao In: Jos Mattoso (Dir.) Histria de Portugal. Lisboa; Estampa, 4 Volumes, Volume 3, 1993; Diogo Ramada Curto. O Discurso Poltico em Portugal (1600-1650). Lisboa: Universidade Aberta, 1988; Jos Subtil. Governo e Administrao In: Jos Mattoso (Dir.) Histria de Portugal, Op. Cit, volume 4, 1993.

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    Prado Jnior segundo Laura de Mello e Souza, vem negativamente no s o Estado portugus como a estrutura poltica transferida para os domnios coloniais50.

    Srgio Buarque de Holanda hiper-valorizaria a administrao hispnica em detrimento da portuguesa, revelando o interesse espanhol na construo de cidades, universidades e do desenvolvimento cultural colonial, diferente do que fizeram os lusitanos, que se estabeleceram no litoral visando o retorno mais rpido para a Europa51. Porm, em nosso entendimento, ao construir a metfora do Semeador e Ladrilhador, Holanda deixou escapar o momento onde os dois lados transformaram-se em um, ou seja, o momento da Unio Ibrica (1580-1640), onde houve um desenvolvimento administrativo nos domnios lusos na Amrica justamente durante o controle rgio hispnico.

    Caio Prado Jnior muito mais preocupado em atribuir um sentido colonizao do que em averiguar a estrutura poltica colonial se debruou sobre a questo da distncia para caracterizar a administrao portuguesa como desorganizada e desordenada52. No entanto, para o trabalho que se pretende aqui, acreditamos que a distncia favoreceu mais do que prejudicou. Tanto o rei reforou os laos de fidelidade com seus sditos mais distantes, como estes tiveram a oportunidade de possuir mais liberalidade em seu cotidiano. Alm do que, os agentes coloniais acabaram por isentar o monarca da relao mais dura frente aos sditos ultramarinos.

    Por fim, Raymundo Faoro, talvez o primeiro grande trabalho sobre o poder no Brasil, foi aquele que melhor demonstrou tambm a idia de centralizao poltica e administrativa do Estado portugus sobre o mundo colonial53. No destacando as especificidades e particulares locais, nem muito menos as adaptaes nas conjunturas ultramarinas, Faoro concedeu at um sucesso a estrutura administrativa aplicada em solo braslico. Corroborando com a viso deste autor, Fernando Novais, apontaria o pacto colonial como principal elemento que causaria a dependncia e subordinao da colnia metrpole54. Voltando-se muito mais para anlise econmica do que poltica, no significando que esta ltima no exista, Novais procurava demonstrar que o controle poltico portugus estaria enraizado na poltica mercantilista moderna que estimulava os Estados europeus a um processo de acumulao

    50 Laura de Mello e Souza. O Sol e a Sombra: Poltica e Administrao na Amrica Portuguesa do Sculo

    XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 40. 51

    Srgio Buarque de Holanda. Razes do Brasil. So Paulo: Companhia da Letras, 1995. 52

    Caio Prado Jnior. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Publifolha, 2000. 53

    Raymundo Faoro. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Poltico Brasileiro. So Paulo: Globo, 2004. 54

    Fernando Novais. Portugal, o Brasil e a Crise do Antigo Sistema Colonial. (1777-1808). So Paulo: Hucitec, 1979.

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    primitiva de capital essencial para o desenvolvimento da economia industrial do sculo XVIII. Experincia, diga-se de passagem, que Portugal no viveu nesse perodo!

    Assim, influenciados pelas primeiras interpretaes sobre o Estado portugus, os tericos precursores sobre o mundo ultramarino braslico tambm estreitaram a relao poltica entre Portugal e Amrica, dando a entender que todos os assuntos coloniais passavam pelo crivo monrquico. As alteraes nestas vises, concordamos nesse momento tambm com Laura de Mello e Souza, ocorreram a partir dos novos olhares sobre o Antigo Regime portugus e dos trabalhos que antecedem essa viso e que ampliam os raios de ao da relao entre Portugal e os seus domnios coloniais, o que forou a utilizao de uma nova terminologia como a idia de imprio ultramarino portugus.

    Desta feita, Charles R. Boxer, A. J. R. Russell-Wood e Stuart Schwartz, estudiosos sobre o imprio lusitano, no s dotaram a administrao portuguesa de um estatuto positivo, tentaram criar uma viso do complexo ultramarino como um todo, estabelecendo comparaes entre as partes e os outros mecanismos de atuao portuguesa e ressaltando as especificidades que marcaram cada uma destas ocupaes55. Na prtica, estes autores demonstraram que apesar da estrutura do Antigo Regime portugus possuir um modelo especfico, no momento de sua implantao nos cantos do imprio sofreram correes e ajustes para melhor se adaptarem a lgica de cada realidade.

    O impacto causado por esse novo olhar sobre o mundo ultramarino portugus acabou sendo responsvel por outras vises trazidas por Luis Felipe de Alencastro e Evaldo Cabral de Mello. Para Maria Fernanda Bicalho, a grande originalidade de Alencastro foi deslocar o eixo de relao do complexo colonial para o Atlntico Sul, o que implicou na exploso do binmio metrpole versus colnia56. Assim, Alencastro desenvolveu uma rejeio a idia de monoplio e exclusivismo ao demonstrar os constantes contatos existentes entre a costa Africana e a Amrica, bem como recupereu o lugar dos sditos braslicos como sujeitos de direitos e construtores do espao ultramarino57. Sobre este ltimo ponto, Evaldo Cabral de Mello que ganhou um lugar na historiografia, ao descortinar o poder de negociao e barganha dos sditos portugueses atravs de suas conquistas. Alm disso, deu o devido lugar

    55 Charles R. Boxer. O Imprio Martimo Portugus. So Paulo: Companhia das Letras, 2002; A.J.R. Russell-

    Wood. Um Mundo em Movimento. Os Portugueses na frica, sia e Amrica (1415-1808). Lisboa: Difel, 1998; e Stuart Schwartz. Da Amrica Portuguesa ao Brasil: Estudos Histricos. Lisboa: Difel, 2003. 56

    Maria Fernanda Baptista Bicalho. Pacto Colonial, Autoridades Negociadas e o Imprio Ultramarino Portugus In: Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho & Maria de Ftima Silva Gouva (Orgs.). Culturas Polticas: Ensaios de Histria Cultural, Histria Poltica e Ensino de Histria. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. 57

    Cf. Luis Felipe de Alencantro. O Trato dos Viventes A Formao do Brasil no Atlntico Sul. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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    s famlias ultramarinas, no momento em que demonstrou sua formao como um elemento de fora e poder no complexo poltico colonial58. Dessa maneira, Mello comprovou em seus trabalhos que as famlias coloniais souberam usar do pacto colonial em seu benefcio, quando conquistam ttulos, benesses, cargos e outras honrarias do Estado portugus.

    No bojo de Alencastro e Evaldo Cabral de Mello, outros historiadores desenharam um contorno mais autnomo, independente e livre das malhas administrativas coloniais, resgatando as suas particularidades. As coletneas O Antigo Regime nos Trpicos e Dilogos Ocenicos sintetizam o interesse da atual historiografia em dotar a estrutura poltica colonial de especificidade gerada no prprio germe da construo do corpo administrativo colonial59. Ainda assim, os mesmos promoveram um profcuo debate sobre as relaes comerciais e a dinmica do mercado Atlntico; sobre o papel dos conflitos, revoltas e motins para a conjuntura colonial; sobre novas dimenses de gnero, escravido e etnia; bem como analisaram as redes de alianas, a distribuio dos cargos e o redimensionamento do conjunto administrativo em solo amrico-lusitano. Enfim, ao invs de imposio tem-se negociao; de centralizao tem-se autonomia; de absolutismo tem-se soberania.

    Neste caso, a expanso da Rgis lusitana sobre a Amrica foi permeada por problemas/ajustes que deveriam ser feitos pelos prprios sditos do alm mar. A rede de funcionrios, a distribuio da terra, a concesso de ttulos tiveram um outro efeito para a construo do Atlntico, no qual queles que dela se beneficiavam passando a ter o direito de negociao com o monarca portugus60.

    Todavia, Laura de Mello de Souza em seu recente trabalho elaborou uma dura crtica a esses textos que flexibilizam a atuao poltica portuguesa em seus domnios coloniais. Em primeiro lugar, rejeitou o uso indiscriminado das idias de Antonio Manuel Hespanha, considerado pela autora como excessivamente jurdico, pouco valorizando a Amrica e desrespeitando a presena da escravido no mundo ultramarino61. Em segundo lugar, ressaltou a m delimitao de conceitos que norteariam o trabalho, inclusive a idia de Antigo Regime,

    58 Cf. Evaldo Cabral de Mello. Rubro Veio O Imaginrio da Restaurao Pernambucana. Rio de Janeiro:

    Topbooks, 1997; O Nome e o Sangue: uma Parbola Familiar no Pernambuco Colonial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. 59

    Cf. Joo Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Ftima da Silva Gouva (Org.). O Antigo Regime nos Trpicos: Dinmica Imperial Portuguesa (Sculos XVI e XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001; Jnia Ferreira Furtado (Org.) Dilogos Ocenicos: Minas Gerais e as Novas Abordagens para uma Histria do Imprio Ultramarino Portugus. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 60

    Sobre o governo colonial Ver Maria Fernanda Bicalho Elite Colonial: A Nobreza da Terra e o Governo das Conquistas Histria e Historiografia, pp. 74-97; Leonor Freire Costa. Elite Mercantil na Restaurao: Para uma Releitura, pp. 99-131; e Joaquim Romero Magalhes. Os Nobres da Governana das Letras, pp. 65-71; todos os textos em Nuno Gonalo Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares