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A poética dos jardins

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A poética dos jardins

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A poética dos jardins

universidade estadual de campinas

Reitor Fernando Ferreira costa

coordenador Geral da universidade edgar Salvadori De Decca

conselho editorial Presidente

Paulo Franchetti Alcir Pécora – christiano Lyra FilhoJosé A. R. Gontijo – José Roberto Zan

Marcelo Knobel – Marco Antonio ZagoSedi Hirano – Silvia Hunold Lara

A poética dos jardins

Charles W. MooreWilliam J. Mitchell

William Turnbull, Jr.

tradução Gabriela Celani

Índices para catálogo sistemático:

1. Jardins – Projetos 712 2. Arquitetura paisagística 712

Título original: The poetics of gardens.copyright © 1988 Massachusetts Institute of Technology

copyright © 2011 by editora da unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada emsistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0951-2

M781p Moore, charles W.A poética dos jardins / charles W. Moore, William J. Mitchell, William

Turnbull Jr.; tradução: Gabriela celani. – campinas, sp: editora da unicamp, 2011.

Tradução de: The poetics of gardens.

1. Jardins – Projetos. 2. Arquitetura paisagística. I. Mitchell, William J. (William John), 1944-2010. II. Turnbull, William, Jr. III. celani, Gabriela. IV. Título.

cdd 712

ficha catalográfica elaborada pelosistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

editora da unicampRua caio Graco Prado, 50 – campus unicamp

cep 13083-892 – campinas – sp – BrasilTel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

Agradecimentos

Maya Reiner contribuiu enormemente com este livro, produzindo a maio­ria das vistas axonométricas. Outros desenhos foram feitos por Julie Eizen­berg, Leon J. N. Glodt, Hank Koning, Regina Maria Pizzinini e Barbara Rus­sell. A obra O parque de Petworth [com a igreja de Tillington ao fundo], de J. M. W. Turner, foi reproduzida com a permissão da Tate Gallery, de Londres. As cenas do jardim Yuan Ming Yuan foram reproduzidas com a permissão da Bibliothèque Nationale, de Paris. O projeto de plantação de William Kent para Rousham foi reproduzido com a permissão de Country Life. A obra Paisagem com Enéas em Delos, de Claude Lorrain, foi reproduzida com a permissão da National Gallery, de Londres. A casa de hóspedes de G. M. Butt em Nasim Bagh, Caxemira, ofereceu o ambiente necessário para a redação do texto; Debra Edelstein, da MIT Press, editou sua versão final; e Rebecca Daw encontrou maneiras elegantes de integrar o texto com as imagens.

Charles W. MooreWilliam J. Mitchell

William Turnbull, Jr.

Sumário

Prefácio à edição brasileira ..................................................................................................... 9

Prefácio ............................................................................................................................................................ 11

1 O genius locci ...................................................................................................................................... 13Shan e shui .................................................................................................................................................. 14Deus e Caim .............................................................................................................................................. 19Sol e sombra .............................................................................................................................................. 21Memória e expectativa ..................................................................................................................... 23

2 O lugar do paisagista .................................................................................................................. 25Ocupando o lugar ................................................................................................................................. 34Dando início ao jogo........................................................................................................................... 36Dando forma aos espaços............................................................................................................... 39

Modelando o terreno ......................................................................................................................... 40Revestindo o piso .................................................................................................................................. 41Criando marcos ..................................................................................................................................... 43Delimitando o espaço ......................................................................................................................... 44Fechamentos ............................................................................................................................................ 46Coberturas ................................................................................................................................................ 47Aberturas .................................................................................................................................................. 48Conexões.................................................................................................................................................... 49

Microclimas .............................................................................................................................................. 50Irrigação e drenagem .......................................................................................................................... 50Iluminação ................................................................................................................................................ 51Aquecendo e refrescando ................................................................................................................. 53Aromas ....................................................................................................................................................... 54Sons .............................................................................................................................................................. 55

Dando vida ................................................................................................................................................ 55Cultivando ................................................................................................................................................ 55Ocupando o espaço .............................................................................................................................. 56Mobiliando ............................................................................................................................................... 57Dando nomes .......................................................................................................................................... 58Habitando o jardim ............................................................................................................................. 60

3 O lugar do passado ........................................................................................................................ 65Cenários ....................................................................................................................................................... 67

Uluru .......................................................................................................................................................... 67Ryoan-ji ..................................................................................................................................................... 74Os parques de Capability Brown ................................................................................................ 75Isola Bella .................................................................................................................................................. 82Bali ................................................................................................................................................................ 87

Coleções ....................................................................................................................................................... 97Vale da Morte ......................................................................................................................................... 99As coleções de três reinos ................................................................................................................ 101O Palácio de Verão............................................................................................................................... 112

Vila Imperial de Katsura .................................................................................................................. 117Sissinghurst ............................................................................................................................................. 123Alguns jardins botânicos ................................................................................................................. 131

Peregrinações ........................................................................................................................................... 139Amarnath ................................................................................................................................................. 139Lamayuru ................................................................................................................................................. 143Rousham.................................................................................................................................................... 147Stourhead .................................................................................................................................................. 159Villa Lante ................................................................................................................................................ 168Jardins urbanos: Isfahan e Pequim ............................................................................................. 172

Simetrias ...................................................................................................................................................... 182As simetrias de Ram Bagh.............................................................................................................. 182As águas de Caxemira ....................................................................................................................... 187Shalamar Bagh ....................................................................................................................................... 195Nishat Bagh ............................................................................................................................................. 199Os jardins das tumbas mogóis...................................................................................................... 204A Alhambra ............................................................................................................................................. 215O Generalife ............................................................................................................................................ 221Vaux-le-Vicomte.................................................................................................................................... 224Studley Royal ......................................................................................................................................... 229

4 Nossos próprios lugares .......................................................................................................... 233O novo paraíso ........................................................................................................................................ 233

Simetrias maiores................................................................................................................................. 237As peregrinações de Swift ............................................................................................................... 239Coleções mais caras ............................................................................................................................. 241Cenários mais simples ....................................................................................................................... 243

Edens de encomenda ......................................................................................................................... 244Conversando sobre jardins americanos.............................................................................. 246

Pátios ........................................................................................................................................................... 247Jardins frontais ...................................................................................................................................... 251Quintais ................................................................................................................................................... 256Jardins laterais ....................................................................................................................................... 260Cemitérios ................................................................................................................................................ 266

Bibliografia ................................................................................................................................................. 275Teoria e história do paisagismo ................................................................................................ 275Austrália ...................................................................................................................................................... 275Bali .................................................................................................................................................................... 276China .............................................................................................................................................................. 276Inglaterra ..................................................................................................................................................... 277França ............................................................................................................................................................. 278Índia ................................................................................................................................................................ 278Itália ................................................................................................................................................................. 279Japão ................................................................................................................................................................ 279Ladakh .......................................................................................................................................................... 279Pérsia .............................................................................................................................................................. 280Espanha ........................................................................................................................................................ 280Estados Unidos ....................................................................................................................................... 280

Índice remissivo ....................................................................................................................................... 281

Glossário de plantas ......................................................................................................................... 287

p r e f á c i o à e d i ç ã o b r a s i l e i r a 9

Prefácio à edição brasileira

Há alguns anos, quando disse a Bill Mitchell que gostaria de traduzir seu li­vro The logic of architecture* para o português, ele me res pondeu que adoraria que eu o fizesse, e que gostaria ainda mais que eu traduzisse o livro The poetics of gardens. Dentre as de zenas de livros que ele publicara, esse era sem dúvida um de seus preferidos, e já havia sido traduzido para o japonês e para o italia­no. Nessa época, Mitchell era o único autor vivo do livro — Charles Moore e William Turnbull já haviam fale cido —, mas infelizmente quando terminei esta tradução Bill também já havia partido, deixando órfãos seus inúmeros orientados, que hoje, espalhados pelo mundo, são conhecidos como SOBs — students of Bill. Felizmente, ele nos deixou sua vasta obra publicada, que se cons­titui na principal fonte de fundamentação teórica da área conheci da interna­cionalmente como computational design (e também chamada de design computing ou design and computation), que inclui mais que a informática aplicada à arqui­tetura, envolvendo também os aspectos cognitivos do processo de projeto.

Talvez por ter sido escrito em coautoria com dois famosos arquitetos, sócios do escritório MLTW — Moore, Lyndon, Turnbull e Whitaker —, o livro A poé-tica dos jardins parece, à primeira vista, muito diferente das demais obras de Mit chell. Mas os conceitos computacionais também estão presentes nesta obra, introduzidos de maneira sutil, podendo passar completamente desperce­bidos. O livro permite, na verdade, diversas leituras alternativas, dependendo do leitor.

No início do Capítulo 3 os autores afirmam que os jardins são “paisagens retóricas” que podem ser lidas, que possuem um conteúdo e que podem ser analisadas em termos de sua estrutura gramatical: “podem-se analisar seus artifícios estruturais e suas simbologias e suas figuras de linguagem”. Essa lei­tura estruturalista do espaço projetado remete diretamente à gramática da for­ma de George Stiny e às demais teorias descritas por Mitchell em A lógica da arquitetura, livro que publicou em 1990, logo após A poética dos jardins.

Na seção intitulada “Simetrias” (no original, Patterns) há diversas referên­cias à computação. O principal exemplo do uso da lógica no paisagismo são os mes mos jardins persas que Stiny e Mitchell haviam analisado pela ótica da gramática da forma em 1980**. Segundo Moore, Mitchell e Turnbull, esses jar­dins “prendem nossa atenção com sua forma, com suas simetrias e repetições e variações e complementações”. Simetrias, repetições e variações são termos também utilizados por Mitchell no livro The art of computer-graphics pro-gramming, publicado em coautoria com Liggett and Kvan em 1987, um pouco antes da publicação de A poética dos jardins. Esse livro introduzia técnicas de

* Publicado pela Editora da Unicamp em 2009, com o título de A lógica da arquitetura.** G. Stiny e W. J. Mitchell, “The grammar of paradise: on the genera tion of Mughul gardens”, Environ-

ment and Planning B 7(2), pp. 209­26.

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programação em Pascal juntamente com conceitos de computational design: ele­mentos parametrizados que podiam receber diferentes valores e assim resultar em variações formais, laços de código (loops) que permitiam obter repetições e ritmo, declarações condicionais que possibilitavam o controle dos resultados de acordo com o contexto etc.

A relação de A poética dos jardins com os dois livros citados acima é tão forte que é possível entendê­los como uma trilogia. Por esse motivo, pretende­se tra­duzir em breve The art of computer-graphics programming, para que o leitor de língua portuguesa possa ter à sua disposição uma excelente introdução à área de computational design e à obra de William Mitchell.

Nota

Todas as notas de rodapé do livro são de autoria da tradutora. Elas foram incluídas na versão em português como forma de facilitar a compreensão por leitores jovens ou não familiarizados com a literatura inglesa ou com a área de paisagismo.

Para evitar confusões a repeito das plantas citadas no livro, que na maioria das vezes possuem nomes populares diferentes nas diversas regiões do Brasil e nos demais países de língua portuguesa, optou­se por citar, sempre que pos­sível, seus nomes cien tíficos. No final do livro há um pequeno glossário com os no mes científicos e as imagens de todas as plantas mencionadas, ela borado pelo arquiteto e paisagista Carlos Eduardo Verzola Vaz.

Agradeço ao Carlos pela elaboração desse dicionário e pela cuidadosa revi­são técnica do texto, e ao professor José Pinto Duarte, da Universidade Técnica de Lisboa, também SOB, como eu, e um grande especialista da área de computa-tional design, pelas diversas sugestões a respeito da tradução de termos do livro.

Agradeço também à equipe da Editora da Unicamp por sua enorme compe­tência na produção deste livro.

Gabriela Celani

p r e f á c i o 1 1

Prefácio

As necessidades essenciais dos seres vivos — respirar, comer, se reprodu­zir — estão relacionadas, para a maioria das espécies, incluindo os humanos, com a necessidade de abrigo, de habitar um pedaço do mundo. Os pássaros se apropriam de um lugar acusticamente; o som de seu canto marca os limites de seu espaço. Os lobos utilizam um sistema de demarcação do território baseado em odores. Os seres humanos, desde sua aparição neste mundo, têm lutado e morrido para definir, defender e às vezes estender seus domínios. A ocupação da terra é celebrada e aperfeiçoada por meio de palavras, construções e monu­mentos e, em certos períodos e locais particularmente especiais, por meio de jardins, locais em que córregos, árvores, flores do campo e pedras da monta­nha são colecionados, ou lembrados, e organizados em forma de uma extensão de nós mesmos sobre a superfície da terra. Este livro se destina às pessoas que pretendem fazer isso.

No século XI, no final do período Heian no Japão, um autor anônimo, pro­cedente da nobreza, estabeleceu as regras e os procedimentos da arte dos jar­dins em um livro chamado Shakuteiki. Seus conselhos eram simples: Comece obervando a disposição da terra e da água. Estude o trabalho dos mestres anti­gos e lembre­se dos lugares belos que você conhece. Então, no lugar que você escolher, deixe a memória falar e torne seu aquilo que mais o comove. Nesse mesmo espírito, acreditamos que exista uma universalidade na criação dos jar­dins, o que torna útil analisarmos grandes criações, feitas para outros lugares, com outros climas, em outros tempos, por pessoas muito diferentes de nós; aprender sobre seus recursos e lembrar suas imagens, fragrâncias e sons; cole­cionar e recriar e transformar, organizando­os em uma ordem que faz sentido para nós, e muitas vezes condensando­os, miniaturizando­os para caberem no espaço de que dispomos (que ficará tanto menor quanto mais a população do mundo crescer).

Começamos explorando as qualidades do lugar que criam a promessa de um jardim: as características do terreno e da água, as plantas existentes e as possibilidades de cultivo, as relações com o tecido urbano e a arquitetura ao redor, a orientação solar, a direção dos ventos, a posição das estrelas, os ciclos dos dias e das estações do ano, e as conexões feitas por nossa memória com momentos passados e lugares longínquos.

Os lugares da Natureza, não importa quão belos e comoventes, não são ain­da jardins; eles só se tornam jardins quando conformados por nossas ações e conectados aos nossos sonhos. Por isso, descrevemos as ações necessárias para criar um jardim: conformar o terreno, definir e conectar espaços com paredes, coberturas, caminhos e monumentos, irrigar, plantar e cuidar, tecer desenhos feitos de memórias com nomes, imagens e lembranças, e tomar posse do espaço por meio de rituais de ocupação. (Gostaríamos de deixar claro que não temos nenhuma dica de jardinagem a oferecer. Nossa preocupação neste livro é com

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a maneira como se dão significados especiais aos lugares, por meio dessas ações e desses rituais.)

Em seguida, apresentamos uma seleção de paisagens e jardins, não apenas como um buquê de flores sortidas, mas como uma fonte de conhecimentos, um repositório de onde se podem tirar materiais, formas, relações e ideias. Essa é a parte principal do livro; apresentamos desenhos cuidadosamente elaborados de cada lugar (a maioria deles em grandes vistas axonométricas), descrevemos uma visita guiada, contamos sobre sua história e analisamos as principais so­luções e ideias presentes, que podem contribuir para o estudo dos jardins. Em diferentes culturas, tempos e lugares do mundo, diferentes tipos de jardins foram desenvolvidos. Por isso, nossos exemplos vão desde a Roma antiga até a Inglaterra moderna, desde a corte de Ch’ien Lung até o Reino Mágico de Walt Disney, desde os monastérios no alto do Himalaia até as colônias penais na baía de Sydney.

No final, analisamos o transplante e a adaptação das grandes tradições paisagísticas do passado para o solo norte­americano. Perguntamo­nos que significado essas tradições podem ter para nós nos dias de hoje, e imaginamos Luciano, o autor grego dos diálogos satíricos, reunindo os criadores dos gran­des jardins para discutir propostas para algumas situações tipicamente ame­ricanas. A partir dessa conversa, podemos tirar algumas dicas e sugestões sobre como os modelos e as ideias presentes nos jardins do passado podem ser apropriados, reinterpretados e transformados para o nosso tempo e os nossos lugares. Como nos lembra T. S. Elliot, em The Sacred Wood, “os poetas imaturos imitam; os poetas maduros roubam; os poetas ruins estragam o que copiaram, e os bons poetas transformam­no em algo melhor, ou ao menos em algo diferente”.

o g e n i u s l o c c i 1 3

1 — O genius locci

Os romanos interpretavam os lugares como se fossem rostos, como revelações externas de um espírito interno vivo. Cada lugar (assim como cada pessoa) ti-nha seu próprio Genius, ou espírito — que podia se manifestar, ocasional mente, como uma serpente.

De acordo com a antiga ciência chinesa dos ventos ( feng) e das águas (shui), o sopro da natureza flui através da terra. As formas do terreno revelam a pre-sença de dragões azuis (o princípio masculino) e de tigres brancos (o feminino), e os locais propícios para edifícios ou jardins são encontrados onde as dife­rentes correntes por eles representadas se cruzam por obra do acaso. A arte do feng shui, assim como a do acupunturista, consiste em escolher com precisão o local correto.

Na Inglaterra do século XVIII, Alexander Pope1 aconselhou seu mecenas, Lorde Burlington, e outros entusiastas de jardins da época: “Consulte o Genius Locci em tudo; é ele quem diz às Águas para subirem, ou descerem...”.

Mas nessa época as antigas serpentes, os dragões e os tigres viviam ape­nas na metáfora e na alusão; educados na tradição clássica, os autoconfiantes representantes do liberalismo inglês viam agora a Natureza como uma força imanente que se digladiava na busca da perfeição, mas propensa a mudar de direção em consequência de acidentes de percurso. “Consultar o Genius Locci” significava buscar um entendimento da perfeição da Natureza que um local possuía em potencial e favorecer sua emergência, onde necessário, por meio de cuidadosas intervenções.

Na segunda metade do século XVIII, as referências às qualidades ineren­tes aos diferentes locais já começavam a adquirir um tom sutilmente diverso, mais exploratório. O grande paisagista dessa era Lancelot Brown falava tão

1 Poeta inglês que viveu entre o final do século XVII e meados do XVIII, famoso por seus versos satí-ricos e por sua tradução da Ilíada de Homero. No início do século XVIII, Pope criticou os jardins formais ingleses, que viriam a ser substituídos, ao longo desse século, por um novo estilo, mais naturalista, introduzido por Capability Brown.

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frequentemente sobre tirar vantagens das “capacidades” das propriedades de seus clientes, que acabou sendo apelidado “Capability” Brown.

Hoje fazemos levantamentos e inventários dos recursos de um local, para em seguida falarmos, de modo ainda mais agressivo, dos “impactos ambien-tais”. Como se a Mãe Natureza fosse ser brutalmente atacada, analisamos a sangue­frio suas chances de sobrevivência ao golpe.

Por trás dessas metáforas e dessas construções mitológicas está o simples fato de que cada local tem suas qualidades especiais, feitas de pedra e de terra, de folhas e de flores, de contexto arquitetônico, de Sol e de sombra, e de sons, aromas e brisas. Procurando­os, podemos encontrar sugestões para a criação de formas ou de engenhosos mecanismos de preservação das qualidades na­turais do local — elementos que servirão de ponto de partida para o projeto de nosso jardim.

Shan e shui

A palavra chinesa que significa “paisagem” é escrita com dois ca racteres que identificam ao mesmo tempo uma oposição elementar e uma complementação: shan (“montanhas”) e shui (“água”). As formas eretas e rígidas das montanhas são o yang para o yin submisso da água. Cada um deles dá forma ao outro; a água é con tida e moldada em córregos, cascatas, lagos e mares pelas mon­tanhas ao seu redor, enquanto as próprias montanhas são erodidas e escavadas pelo fluxo das águas. O caráter de um local se de senvolve por meio do equilí-brio entre o shan e o shui ali encontra dos — pelo menos em um dado momento do tempo geológico.

Do lado yang podem surgir espinhaços, picos ou até mesmo cordilheiras. Estas podem ser erodidas em sua parte superior, dando lugar a planaltos, cha-padas, torres ou outras elevações isoladas. Suas laterais podem se converter

Taos, Novo México

Lago Oeste, Hangzhou Impressões da Lua, Hangzhou

Taughannock, Nova York O Oceano do Sul

Shan e shui

o g e n i u s l o c c i 1 5

Uma caverna

As formas yang da terra

Uma montanha

Uma cadeia de montanhas

Platôs

Protuberâncias

Penhascos

Colinas

Rochedos

Um vale

Um desfiladeiro

Uma ravina

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em encostas, penhascos ou terraços. Nas bordas e cumeeiras dessas elevações encontramos às vezes lugares de uma magia especial, que é enfatizada por meio da construção de terraços e mirantes. As montanhas podem ser reduzi-das a colinas, montes, montículos, protuberân cias e saliências, esculpidas em penhascos ou suavizadas em du nas. Pedaços muito pequenos, quando que-brados, podem se trans formar em matacães, rochas, pedras, pedregulhos e seixos. Os vales, o oposto dos espinhaços, podem mergulhar bem fundo para dentro da terra. Com diferentes proporções, mais ou menos aci dentados, po-dem se transformar em ravinas, grotas, canhões, fendas e valinhos. Abaixo da superfície da terra pode haver bura cos, cavernas, covas e grutas. As partes mais ou menos planas (que nunca são totalmente niveladas, pois do contrário a água não escoaria) podem se estender em planícies, pradarias e estepes.

Formas yin emergem da água (que é amorfa em si própria) pa ra complemen-tar as feições da terra e completar o todo (yin-yang). Vales podem dar forma a arroios, córregos, riachos e rios. Mudanças nas elevações podem formar que-das d’água, corredeiras, cachoeiras e cascatas. Depressões podem acumular água em poças, piscinas, lagos, lagoas e billabongs2. Suas bordas podem se con-verter em taludes, costões ou praias, com reentrâncias (baías, angras, ensea das) e protuberâncias (pontas, istmos, penínsulas, pontões, pro montórios), ou ainda receber pontes, quebra­mares, embarcadouros e diques, construídos pelo ho-mem. A terra e a água também podem se misturar, dando origem a pântanos, banhados, brejos, charcos, atoleiros e playas3. Fragmentos de terra circundados por água dão origem a ilhas, bancos de areia ou arquipélagos.

Se a superfície da água é calma, ela reflete o céu, interrompendo a superfície da terra; todos nós nos fascinávamos, quando crianças, com as poças d’água, que pareciam infinitamente profundas, refletindo as nuvens do céu. Este tema foi explorado em um jardim de uma pequena ilha no Lago Oeste, na cidade de Hangzhou. A superfície irregular das águas do lago ao redor do jardim, que se estendem até a costa distante, fragmenta os reflexos. Mas, dentro da ilha, as superfícies calmas de pequenas piscinas refletem a Lua, que parece infinita-mente distante.

As qualidades especiais de alguns lugares têm origem na presença invisível de águas subterrâneas. Cardos4, aristidas5 e, mais dramaticamente, arvoredos de carvalho6 concentram­se sobre os aquíferos subterrâneos na Califórnia; esse detalhe na superfície denuncia uma estrutura subjacente, assim como um or-namento esculpido em uma catedral medieval7. Os antigos nabateus8 do Negev construíam longos muros baixos de pedras (pouco mais que linhas elevadas sobre o solo) para direcionar as enxurradas das chuvas pouco frequentes para seus campos e jardins. Essas linhas permaneciam verdes, nutridas por baixo,

2 Palavra australiana que se refere a pequenos lagos formados nas laterais de rios de mean dros. 3 Playas são lagos secos que tipicamente se formam em regiões semiáridas. Sua super fície é formada

por sedimentos finos e sais.4 Asteraceae.5 Aristida behriana, um tipo de gramínea australiana.6 Quercus.7 Os autores referem­se aqui ao uso de frisos e de fechos de abóbadas decorados na arquitetura góti-

ca, que enfatizam sua função estrutural subjacente.8 Povo que vivia entre a Síria e a Arábia atuais durante o período da Antiguidade Clássica.

Um riacho

Um rio

Um lago

Um pântano

Um lago

As formas yin da água

o g e n i u s l o c c i 1 7

Uma ilha

Fragmentos de terra contornados por água

Um arquipélago

A água interrompe o plano do terreno

Água subterrânea: kanats

Um jardim compacto no deserto

Uma nascente no deserto

Um córrego de montanha

Um jardim linear na montanha

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muito depois que as terras ao seu redor já haviam se tornado secas novamente. Os atuais habitantes do Negev também aprenderam a coletar as enxurradas em locais específicos, de maneira que pequenos arvoredos de eucaliptos sobre-vivem em meio a colinas estéreis. E sob o planalto iraniano existe um vasto sistema de canais feitos pelo homem (kanats), que trazem água das montanhas do norte. A água trazida por esses canais, que podem ser identifi cados (espe-cialmente quando vistos de cima) por fileiras de poços alinhados9, viabilizou o surgimento de assentamentos humanos, campos de plantio e jardins.

Durante a maior parte da história, a água, imprescindível para a vida, vinha de debaixo do solo ou caía do céu, como por milagre. Era fácil perceber como a água sempre acabava escorrendo para o oceano, mas era difícil imaginar de onde ela vinha. O enigma só foi desvendado no século XVIII, quando se des­cobriu o ciclo de evaporação e precipitação (exuberantemente representado na Fontana de Trevi, em Roma). Dessa forma, as fontes d’água — nascentes, poços, picos de montanhas que fazem com que a chuva se precipite — eram imbuídas de poder e de mistério; elas não apenas viabilizavam o cultivo, como também se constituíam em locais apropriados para a criação simbólica de um jardim. Nascentes e poços no deserto são fontes concentradas de água. Assim, os jar-dins que deles dependem (como os jardins murados da Pérsia) naturalmente se irradiam a partir de um centro fresco e sombreado, lembrando os oásis, volta-dos para dentro, densos e simétricos. Jardins feitos para comemorar a água que vem das montanhas (como os jardins mogóis da Caxemira, por exemplo) ten-dem a ser lineares — faixas estreitas de verde com caminhos ao longo de córre­gos com cascatas. As chuvas e a neblina da montanha proveem fontes de água difusas. Dessa forma, em lugares úmidos, como a Inglaterra, as grandes áreas verdes — campos, prados e bosques — são os elementos básicos de composição dos jardins. (Nos jardins contemporâneos, irrigados com água encanada, esse tipo de conexão direta com o Genius Locci acaba se perdendo.)

As formas de shan e shui que encontramos em um local tra zem consigo lem­branças de mitos e alusões a maravilhas distan tes que podem fazer parte da composição de um jardim. Tradicio nalmente, as montanhas fazem referência a eixos cósmicos — que conectam a terra dos homens à morada dos deuses no paraíso. (Até mesmo a réplica do pico Matterhorn10, em concreto pintado, no centro da Disneylândia, traz reminiscências de um poder ancestral, mesmo estando na cidade de Anaheim, Califórnia, e mesmo não havendo acima dela nada mais que os aviões do aeroporto John Wayne.) Vales podem nos lembrar Shangri­lá, e grutas podem sugerir portais para o submundo. Em Moby Dick, Herman Melville descreve como o fluxo de uma correnteza pode nos levar aos mistérios longínquos das profundezas do oceano. Na beirada da água, a terra dos homens se encontra com as profundezas mágicas e inabitáveis para os humanos — mas habitadas, na imaginação, por Poseidon11 e Netuno, Nereu12 e as 50 Nereidas13, Proteu14 pastoreando suas focas entre as ondas, sereias, fadas,

9 Esses poços, cavados em intervalos espaçados mais ou menos uniformemente, eram usados para acessar o canal subterrâneo.

10 O pico Matterhorn é um dos mais altos dos Alpes suíços.11 Deus supremo dos mares na mitologia grega; conhecido como Netuno pelos romanos.12 Deus marinho primitivo na mitologia grega.13 Filhas dos deuses Nereu e Dóris, que viviam no Mar Egeu, na mitologia grega.14 Deus marinho, filho de Poseidon, na mitologia grega.

o g e n i u s l o c c i 1 9

o crocodilo que se escondia sob as águas do grande e cinzento­esverdeado Rio Limpopo15, e a grande baleia branca16. E qualquer coisa colocada em uma ilha, um mundo à parte, delimitado, assume um significado especial. O túmulo de Jean­Jacques Rousseau em Ermenonville, perto de Paris, tornou­se inesquecível graças a sua instalação sobre uma pequena ilha coberta de choupos17 no meio de um lago; é necessário cruzar a água para ler sua lápide, que diz: “Ici repose l’homme de la nature e de la vérité”18. (Na verdade, seus restos mortais sequer se encontram lá; foram transferidos para o Panthéon, como seria de esperar, mas a falta de vérité não invalida esse efeito cuidadosamente planejado.)

Deus e Caim

“Deus fez o primeiro jardim”, escreveu Abraham Cowley19, “e Caim, a pri-meira cidade”. Um jardim é, em parte, uma extensão da arquitetura — um fragmento de uma cidade — e, em parte, um paraíso natural. Desse modo, as possibilidades de um jardim são em grande parte resultantes do equilíbrio (ou tensão) entre os artifícios do homem e o crescimento natural das plantas pre-sentes em um lugar.

Na natureza, a vegetação busca um estado de equilíbrio. Nesse estado, cha-mado pelos biogeógrafos de paisagem clímax, a comunidade vegetal alcançou um equilíbrio no qual cada membro recebe uma porção suficiente de luz, ar e água, e os processos de germinação e crescimento, morte e deterioração encon-tram­se contrabalançados. Nos jardins criados pelo homem as plantas tentam fazer o mesmo, mas são colocadas em outro estado de equilíbrio por meio da capina, da poda e da rega.

Um jardim pode aproveitar árvores existentes, que podem ser mantidas, além de uma variada gama de plantas nativas que brotam na região (como as folhagens avermelhadas na Nova Inglaterra e as palmeiras anoréxicas em Beverly Hills). O uso dessas espécies ajuda a integrar o local ao contexto natu-ral. Podem­se também utilizar espécies exóticas, possíveis de ser obtidas em viveiros ou em outros jardins — algumas delas crescerão sem dificuldades, enquanto outras, de terras e climas muito diferentes, precisarão de muitos cui-dados. As plantas exóticas podem ser usadas como recordações comoventes

15 Importante rio da África, famoso pelos ataques de crocodilos, que emergem de surpresa de suas águas.

16 Os autores aqui provavelmente se referem a Moby Dick, a temível baleia cachalote do livro homô-nimo do escritor americano Herman Melville, de 1851.

17 Populus.18 Aqui repousa o homem da natureza e da verdade.19 Poeta inglês que viveu no século XVII.

Forração vegetal formando um tapeteUma paisagem verde em um clima úmido

20 a poética dos jardins

de lugares distantes; carvalhos e ulmeiros20 na Austrália remetem à terra natal dos primeiros colonizadores, do outro lado do mundo, enquanto palmeiras na Escócia remetem à brisa cálida do Mediterrâneo.

Assim como Robinson Crusoé, o jardineiro cria um ambiente a partir da-quilo que a natureza lhe oferece em um dado lugar. As árvores podem ser usadas para conformar o espaço com seus troncos e copas, dando sombra e tor­nando o local mais fresco; elas podem ser agrupadas em pequenos ca pões, arvoredos, matas, florestas ou selvas; ou alinhadas para formar barreiras contra o vento, cercas­vivas e alamedas. Árvores existentes podem ser elimina-das para dar lugar a clareiras. Tapetes verdes podem ser criados com gramí­neas, ervas, musgos, liquens, juncos e outras pequenas plantas, que podem ser cultivadas em canteiros, gramados, savanas e tundras. Se as árvores e forra-ções criam a arquitetura dos espaços externos — as paredes, os pisos e as co-berturas —, os arbustos e as moitas, que possuem uma escala mais próxima do corpo humano, podem ser comparados à mobília. Eles podem ser colocados isoladamente, como esculturas, ou em grupos densos, formando cercas, toucei-ras e bordaduras. Sua superfície pode ser ondulada e texturizada, lembrando as poltronas e os sofás vitorianos, ou podada em topiária21. As trepadeiras são usadas para forrar paredes e pisos, podendo ainda ficar penduradas, como se fossem cortinas transparentes.

A paisagem natural pode servir de fundo para um edifício, da mesma ma-neira que um templo grego se destacava contra a acrópole22 selvagem; ele está na natureza, ele não é parte da natureza. Em uma escala menor, os pavilhões, gazebos e pérgulas podem servir como marcos da presença humana em um jardim. Algumas vezes (em especial nos ambientes urbanos) o tecido arqui-tetônico pode ser contínuo, capturando e emoldurando fragmentos da nature-za em pátios, terraços e jardineiras. Em outras ocasiões a arquitetura percorre a natureza, e a natureza percorre a arquitetura; segundo o arquiteto indiano Charles Correa23, em climas quentes não precisamos mais que a proteção de um chhatri24 — que não oferece barreiras contra o vento, os aromas ou as vistas — durante o dia, enquanto de manhã cedo e à noite o melhor lugar para estar é simplesmente sob o céu. “Por isso na Ásia”, diz Correa, “o símbolo da

20 Ulmus.21 Arte de podar as plantas, criando formas especiais.22 A parte mais elevada das cidades gregas antigas.23 Arquiteto indiano nascido em 1930. Estudou nos Estados Unidos e atua em Bombay. Foi professor

visitante da School of Architecture and Planning do MIT nos anos 2000, a convite de William Mitchell.

24 Típico quiosque indiano coberto por domo. A palavra chhatri significa guarda­chuva ou canopi.

Agrupamentos de árvores

Arvoredo

Capão

Mata

Os acidentes geográficos, as árvores e as forrações vegetais criam a arquitetura do espaço aberto

Clareira

Fileira de árvores para barrar o vento

Alameda

As árvores dão forma ao espaço com seus troncos e suas copas