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A POESIA EXPERIMENTAL DE ANA HATHERLY por Maria Cristina Vasconcellos de Otoya Universidade do Estado do Rio do Janeiro/ UERJ Rio de Janeiro 2005

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A POESIA EXPERIMENTAL DE ANA HATHERLY

por

Maria Cristina Vasconcellos de Otoya

Universidade do Estado do Rio do Janeiro/ UERJ Rio de Janeiro

2005

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A POESIA EXPERIMENTAL DE ANA HATHERLY

por

Maria Cristina Vasconcellos de Otoya

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Linha de Pesquisa: Literatura Portuguesa e outros campos do saber

Orientadora: Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira

Rio de Janeiro 2o. semestre de 2005

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

OTOYA, Maria Cristina Vasconcellos de A poesia experimental de Ana Hatherly. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ. Orientadora: Profa. Dra.Nadiá Paulo Ferreira. Rio de Janeiro: 2o. semestre de 2005. 80 p.

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OTOYA, Maria Cristina Vasconcellos. A poesia experimental de Ana Hatherly. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao programa de Pós-graduação em letras da UERJ.

Dissertação aprovada em_________ de _______________________ de 2005.

_____________________________________________________ Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira (UERJ-Orientadora) _____________________________________________________ Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves (UFF-Titular) _____________________________________________________ Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta (UERJ-Titular) _____________________________________________________ Profa. Dra. Ângela Maria Dias de Brito Gomes (UFF – Suplente) _____________________________________________________

Profa. Dra. Maria Helena Sansão Fontes (UERJ – Suplente)

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DEDICATÓRIA

Ao meu marido Juan Francisco;

Aos meus filhos Giselle, Juan e Natascha;

Aos meus pais Clívia e Lourival.

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho mesmo que seja individual, é, na verdade, resultado de cooperações.

Agradecer a todos que me apoiaram ao longo desse caminho, para a realização deste

trabalho, expressa apenas em parte o meu reconhecimento, para quem de alguma forma

colaborou para que a pesquisa seguisse adiante.

A Deus, em quem sempre busco apoio, minha força e confiança, sempre;

Ao meu marido Pancho, pelo companheirismo e disponibilidade, cumplicidade e incentivo

com que compreende minha necessidade de crescimento;

Aos meus filhos Giselle, Juan e Natascha pelo amor e carinho com que estiveram ao meu

lado, compreendendo, ajudando e dando força nos momentos mais críticos;

Aos meus pais, Clívia e Lourival que, com seu amor e ensinamentos, proporcionaram e

incentivaram meu aprendizado durante toda vida;

Aos meus irmãos Maria Lúcia, Maria Betânia e Luiz André pelo estímulo e apoio;

À minhas tias Clarisse Pires mestra das primeiras letras e Clélia Pires o constante incentivo;

À Profa. Nadiá Paulo Ferreira, querida orientadora, pelo apoio bibliográfico, interesse,

amizade e qualidade da sua orientação desde o início desta caminhada;

Ao amigo Adail Ubirajara Sobral, interlocutor virtual, pela generosidade em trocar idéias,

partilhar conhecimento e dedicação com que leu e opinou sobre o meu trabalho;

Ao professor Marcus Alexandre Motta, meu co-orientador, pelos sábios e valiosos

conselhos que direcionaram esta pesquisa;

Aos professores Maria do Amparo Tavares Maleval, Maria Cristina Batalha, Sérgio Nazar

David, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Guillermo Giucci e Marina Machado Rodrigues, pelos

doutos ensinamentos;

À colega e amiga Marina Loureiro, pelo incentivo e disponibilidade em ler meu trabalho;

À Liana Flosky Manno colega, amiga e parceira generosa;

Ao incentivo do querido amigo Marcelo Maya que, infelizmente, não está mais entre nós.

Aos colegas da primeira turma de Literatura Portuguesa, pelo respeito mútuo e colaboração.

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RESUMO

Este trabalho é uma leitura da poesia de Ana Hatherly. A Poesia Concreta era a poesia

praticada na segunda metade do século XX, em Portugal e no mundo. A Poesia

Experimental, da qual fazia parte Ana Hatherly, era uma de suas vertentes. Essa poesia de

vanguarda coloca-se à frente dos princípios e valores estéticos do seu tempo. A poesia

concreta teve origem com os inovadores e não convencionais poemas de Mallarmé, ainda

no fim do século XIX. O século seguinte foi de profundas transformações em todas as

esferas do conhecimento humano, e os poetas não ficaram a parte disso, o que justifica a

profusão de movimentos poéticos. Ana Hatherly, ao longo de sua vida acadêmica tem

pesquisado e investigado, através do trabalho que produz, a literatura e suas diferentes

ideologias, regras e formas, com o intuito de compreender a realização do texto e do ato de

escrever. Suas idéias são fundamentadas em seu interesse e conhecimento da literatura

tradicional, fazendo releituras das obras de Fernando Pessoa e Luís de Camões. A escolha,

dentre tantas, de três poesias do período experimental de Ana Hatherly, foi feita com o

interesse em direcionar o olhar para poesias que são sínteses de sua obra: a exploração do

conceito de escrita. As poesias selecionadas privilegiam o fenômeno da intertextualidade,

propondo uma reinvenção da leitura através da ambigüidade da escrita.

Palavras-chaves: poesia experimental – poesia portuguesa moderna – Ana Hatherly –

poesia visual

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ABSTRACT

This work is a reading of Ana Hatherly’s poetry. The poetry practiced in the second half of

the 20th century, in Portugal and in the world, was Concrete Poetry. Experimental Poetry, in

which Ana Hatherly took part, was one of its trends. This avant-garde poetry faces the

principles and the aesthetic values of its time. Concrete poetry had its origin in the

unconventional poems written by Mallarmé, in the late 19th century. The following century

was of deep transformations and the poets did not ignore this, which explains the myriad of

poetic movements. Ana Hatherly has researched and investigated, through her work, the

literature and its different ideologies, rules and forms, intending to understand the

production of the text and the act of writing, basing these ideas on her personal interest and

knowledge of the traditional literature, doing re-interpretations of the poems of Fernando

Pessoa and Luís de Camões. By choosing three, among so many poems from the

experimental period of Ana Hatherly, I tried to emphasize poems that represent a synthesis

of her work: the investigation of the concept of writing. The selected poems highlight

intertextuality, proposing a re-invention of reading through the ambiguity of writing.

Key – words: experimental poetry – modern Portuguese poetry – Ana Hatherly – visual

poetry

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SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................. 9

1 – A Arte no século XX.................................................................................................... 11

1.1 – A Vanguarda em Portugal..................................................................................... 15

1.2 – O Concretismo no Brasil..................................................................................... 17

1.3 – A Poesia Experimental Portuguesa..................................................................... 29

2 – As Proposta Teóricas...................................................................................................... 37

2.1 – A reinvenção da leitura – Aspectos plurais.......................................................... 37

2.2 – Mensagem ........................................................................................................... 44

2.3 – Poesia visual como jogo ...................................................................................... 48

2.4 – Texto, leitura e experimentação........................................................................... 55

3 – A Produção Poética........................................................................................................ 58

3.1 – Noite Canto-te Noite – Vem Noite antiqüíssima e idêntica................................. 60

3.2 – Eros Frenético .................................................................................................... 66

3.4 – Leonorana .............................................................................................................69

Conclusão............................................................................................................................. 78

Referências Bibliográficas................................................................................................. 81

Anexos.................................................................................................................................

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a palavra evocadora invocativa alocutiva a articulação mais discursiva a expressão mais alusiva a interpelação o culto do sentido íntimo

(HATHERLY, 2001, p.325)

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A CORRRIDA EM CÍRCULOS I

O círculo é a forma eleita: É ovo, é zero,

É ciclo, é ciência. Nele se inclui todo o mistério

E toda a sapiência.

É o que está feito, Perfeito e determinado,

É o que principia No que está acabado.

II

A viagem que o meu ser empreende Começa em mim,

E fora de mim, Ainda a mim se prende.

A senda mais perigosa

Em nós se consumando, Passamos a existência

Mil círculos concêntricos Desenhando.

III

Se o círculo como meta A nenhum ponto leva,

Ninguém distinguirá o vencedor De entre os vencidos.

E assim ficam os prémios todos Recebidos,

Ou só invalidados?

(HATHERLY,1959)

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Introdução Fazer uma leitura de alguns poemas de Ana Hatherly, produzidos durante sua

participação no movimento de Poesia Experimental, é a proposta deste trabalho.

Durante esse período, Ana Hatherly visa produzir novas formas poéticas, onde a

investigação da linguagem é submetida a uma sistemática experimentação, resultando daí

um processo de reflexão e exercício.

Inicialmente, serão apresentadas as diretrizes do movimento de Poesia

Experimental, a fim de compreender não só a poesia portuguesa dessa época, mas

principalmente a produção poética de Ana Hatherly.

A poesia da chamada segunda vanguarda portuguesa foi desenvolvida entre as

décadas de sessenta e setenta do século XX. Foi uma poesia de intervenção, uma vez que

observamos a participação dos escritores dessa época em movimentos sociais e políticos.

Eles acompanhavam e também se opunham ao endurecimento do processo de

institucionalização de um Estado repressivo e conservador. Ana Hatherly diz que ingressou

no grupo dos experimentalistas, porque esses tinham uma posição de insubordinação e, na

época, tudo o que era subversivo lhe interessava. Lutar era para ela uma posição certa

àquela altura, quando o mundo fervilhava de acontecimentos marcantes: movimentos

estudantis, guerras, feminismo, expansão do rock, etc...

O experimentalismo poético é uma das vertentes dessa nova vanguarda que, além da

poesia, abrangeu ainda a pintura, a música, o teatro e o cinema, provocando uma verdadeira

revolução no modo de fazer e de ver a arte. A autora justifica sua adesão ao

experimentalismo, recorrendo à lingüística moderna, ao estruturalismo, à semiótica, à teoria

da forma, à ciência experimental, à publicidade, à caligrafia, à tipografia, aos ideogramas

chineses, aos caligramas antigos, à tecnologia de ponta, ou seja, Ana Hatherly, como uma

escritora de seu tempo, utiliza-se dos inúmeros meios propiciados pelos avanços

tecnológicos e científicos sem descuidar dos saberes passados.

Ao afirmar que a criação poética experimental está assentada no “princípio de uma

pesquisa contínua” (HATHERLY, 1981, p. 92), Ana Hatherly nos dá a direção para a leitura

de sua obra, cujo processo criativo se baseia ainda no ato lúdico da descoberta e da

sondagem.

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Sua adesão ao Concretismo, como ela própria afirmou, além de breve, porque o

considerava ortodoxo e redutor, aconteceu tardiamente. Não obstante ter escrito, em 1959,

o primeiro poema declaradamente concreto publicado em Portugal, só aderiu ao

concretismo em 1966. A despeito da brevidade de seu engajamento ao Concretismo, esse

lhe proporcionou um grande aprendizado, levando-a a integrar elementos desse processo a

outras experiências produtivas, como sua poesia visual ou seus poemas em prosa.

Em várias ocasiões, Ana Hatherly afirmou que o tema da escrita, seja ele na sua

representação oral ou visual, sempre marcou seu trabalho de escritora/poeta/pintora, que é

caracterizado pela incessante pesquisa sobre o ato criativo e sobre a criação.

Ana Hatherly afirmou que a palavra é uma “fábrica de realidades” (HATHERLY,

2004, p.151), e isso ela corrobora em sua obra, pois se pela palavra passa a experiência do

mundo, suas obras refletem essa experiência e quando elas, as palavras, deixam de produzir

sentido nos poemas e textos orais, transformam-se em elementos plásticos nos poemas

visuais.

O entrelaçamento entre escrita, pintura e cinema revela vivência na tradição cultural

de sua época, quando o artista participava dos vários movimentos e formas de arte,

fazendo-os interagir, para criar uma obra única. A proposta da obra de Ana Hatherly traduz-

se, nas palavras da própria autora, na reinvenção da palavra, num apelo à reinvenção da

leitura, através da “ambigüidade de escrita, a sua contradição na pluralidade dos

significados, a própria ilegibilidade natural da escrita” (HATERLY, 1981, p.151). Essa

posição provocou, por vezes, críticas hostis à sua poesia.

Para uma melhor compreensão da fase concretista de Ana Hatherly, vamos

apresentar uma breve exposição histórica do movimento concretista brasileiro e da poesia

experimental portuguesa. Nesse estudo, vamos destacar a poesia de Mallarmé, Un Coup des

Dés, com a finalidade de mostrar a decisiva influência de Mallarmé nos movimentos de

vanguarda da segunda metade do século XX.

Selecionamos, da extensa obra de Ana Hatherly, poemas visuais e experimentais em

prosa e verso, e os poemas que visam releituras de outros poemas.

Esse recorte será o ponto de partida de uma leitura, que tenta articular a produção

teórica de Ana Hatherly sobre a literatura e a vanguarda portuguesas com o seu fazer

poético.

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II – HE STRANGLES THEE WITH SCARFES OF SILK Sento-me no meio de ruínas: Não me queixo Grito um grito calado Meu sofrimento é de pedra Meu desejo cinge-me a garganta Com lenços de seda Com vozes de seda Sinto tua carícia longínqua Final Um tremor me percorre: Suicidas-me com tua mão que me salva (HATHERLY, 2001)

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1 – A arte no século XX

Desde as últimas décadas do século XIX, a arte passava por profundas modificações

e rupturas que contribuíram para a eclosão dos movimentos das vanguardas européias do

início do século XX. Em Portugal as transformações artísticas começaram a ocorrer de

modo perceptível a partir de 1890, por iniciativa dos simbolistas e decadentistas. Fernando

Pessoa, em seu texto, Sobre a Moderna Literatura Portuguesa, afirma que essas iniciativas

foram recebidas “com violenta desaprovação, como tudo que é novo” (PESSOA, 1976, p.

420)

O século XX foi, sem dúvida, uma época de profundas transformações em todas as

esferas da experiência humana e os artistas não podiam se manter alheios a essas mudanças,

o que em parte justifica a profusão de movimentos de vanguarda e ideais artísticos que nele

surgiram. A literatura portuguesa se inscreve no panorama da arte européia, ainda que com

certa defasagem de tempo, e tal como as vanguardas, o modernismo em Portugal

desencadeou sucessivos movimentos que produziram novas idéias e novos meios de ação,

como é o caso dos manifestos e da criação de revistas.

O Modernismo primeiro movimento de vanguarda da literatura portuguesa deu

origem aos dois únicos números da revista Orpheu1. A supervalorização do cenário

cosmopolita, enfatizando as máquinas, e a multidão que se aglomerava nas ruas e nas saídas

das fábricas é o que vai caracterizar o Modernismo português, em que se destacam entre

muitos outros Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros.

O grupo Orpheu, ao contrário do Futurismo, defendia o encontro entre o passado e o

futuro. Entre seus colaboradores havia os que participavam da estética pós-simbolista e os

que buscavam novas formas de expressão poética, procurando inscrever-se de forma

atuante na cultura do seu tempo. Fernando Pessoa foi, desde o início, o “motor da primeira

vanguarda portuguesa” (MELLO E CASTRO, 1980, p. 19), considerando o modernismo uma

arte cosmopolita. A respeito de cosmopolitismo diz Fernando Pessoa:

1 – A Revista Orpheu, foi trimestral e teve uma vida breve. Tinha a intenção de estabelecer não apenas uma contribuição literária, mas proceder a uma intervenção na história da cultura de Portugal de seu tempo e de sua posteridade, estabelecendo um elo entre o Modernismo, o Simbolismo e o Clássico.

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Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é

aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a Oceania são a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu – mesmo, aquele cais de Alcântara – para ter ali toda a terra em comprimido.(...) Por isso a verdadeira arte moderna tem que ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. (PESSOA, 1976, p. 408)

Em Portugal, no começo do século XX, as vanguardas estéticas surgiram como

escândalos que se contrapunham ao academicismo e ao espírito conservador. E a esse

respeito diz Pessoa:

Quando em março de 1915 surgiu em Lisboa a revista Orpheu, foi-lhe feito, pela gente que representa entre nós aquilo a que em outros países se chama de crítica, um acolhimento adverso e escandaloso.(...) A mesma ordem de manifestações acolheu o aparecimento do segundo número, salvo que determinadas peças literárias, que esse número continha, levaram a um auge de indignação dispersa a adversa opinião popular a seu respeito. (PESSOA, 1976, p. 433)

O objeto estético proposto por Pessoa teria a seu ver que representar uma mudança

fundamental no modo de pensar nacional, que deveria ser transformado pela literatura. “O

peso de chumbo da tradição” precisava ser posto de lado, esquecido mesmo, pois era

necessário escrever sobre assuntos que interessassem a inúmeros países, e não mais apenas

aos portugueses. Escrever sobre assuntos cotidianos seria então tarefa para jornalistas e

comentaristas políticos. Os poetas precisavam ser “portugueses escrevendo para toda a

Europa”, e aquele era o momento afirma Pessoa de “trabalhamos livres de Camões, de

todos os tediosos absurdos da tradição portuguesa, para o Futuro” (PESSOA, 1976, p. 422).

Os princípios básicos do Modernismo são: estética da diversidade, questionamento

dos valores estabelecidos ética e literariamente, exaltação eufórica das invenções da

técnica, libertação da escrita literária de todas as convenções e de todas as regras. Para o

Futurismo, o importante era inovar e ao contrário do grupo Orpheu, todas as linguagens do

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passado deveriam ser condenadas, todas as artes existentes, desprezadas, pois nada do que

havia sido feito anteriormente representava a velocidade desse século que iniciava.

As guerras dos primeiros cinqüenta anos do século passado engendraram

revoluções. O mundo, perplexo, assistia então a sucessivos movimentos artísticos. A

humanidade se deparava com novos e perigosos acontecimentos. À euforia pelas máquinas

que tanto influenciaram o Futurismo é quebrada pelo advento da primeira grande guerra.

Sucederam-se movimentos que se contrapunham àqueles momentos de incerteza. Antes e

depois da primeira guerra mundial, os Manifestos se multiplicaram mantendo aceso o

espírito de renovação. Continuou a crescente transformação tecnológica que se fazia

presente em vários aspectos da sociedade. Os movimentos nas artes se sucederam: o já

citado Futurismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Cubofuturismo, o Dadaísmo, o

Espiritonovismo, o Surrealismo, o Neovanguardismo.

O Expressionismo, que nasceu na Alemanha, foi uma reação contra todo o passado,

representando uma rebelião contra a totalidade de padrões e valores que vigoravam na

época. Pregava a libertação da tradição e da história.

O Cubismo, diretamente influenciado pelas artes plásticas, baseava-se na

simultaneidade e no mesmo plano de percepções, lembranças, intuições. A livre associação

de planos o tornava bem próximo da pintura. O jogo de formas era submetido a uma lógica,

porém esta se achava distante do racionalismo. Seu principal representante foi Apollinaire,

e sua obra Calligrammes exerceu grande influência na Poesia Experimental.

O Dadaísmo se caracterizava basicamente pela expressão de revolta contra as

instituições e as convenções vigentes: questionamento da realidade, sátira à arte e à

literatura. Sem dúvida os artistas dadaístas refletiram o estado de aniquilamento moral dos

homens e mulheres europeus, entristecidos e desencantados pela experiência de uma guerra

continental.

O Surrealismo preconizava a escrita automática, acreditando que, através da

associação livre, seria possível um discurso que revelasse o inconsciente. A publicação do

manifesto em 1924 marcou o início do movimento que primou por uma nova e ousada

linguagem artística.

Essa rápida passagem pelos principais movimentos estéticos e artísticos entre

guerras permite perceber em todos eles um desejo de ruptura com o passado e um sonho

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para um futuro rico em promessas. O curto período entre guerras foi marcado pela ânsia de

viver, de aproveitar o aqui e agora. A nova guerra mudou outra vez o pensamento e o

comportamento do ser humano. A Segunda Guerra lançou no espírito humano a incerteza

sobre a permanência e a duração da paz. Para o mundo ocidental, a guerra de 39-45

representou o fim de toda e qualquer ortodoxia.

Pode-se considerar que a chegada de um futuro, preconizado por Fernando Pessoa,

no início do século, para a prática de novas tendências, tem como marco ano de 1945, ano

em que terminou a segunda grande guerra na Europa e começou a era atômica. Nessa

época, processou-se em alguns centros da Europa uma espécie de reavaliação, de retomada

de certos princípios das vanguardas, princípios esses que, de alguma forma, teriam ficado

perdidos entre as duas guerras.

A literatura de vanguarda veio para romper com toda a concepção literária então

vigente. No mundo todo, em meio a revoluções e guerras, os avanços das teorias

psicanalíticas, contribuem para criar o ambiente para a propaganda de novas idéias e novas

formas de expressão. Surge um processo de dissociação psicológica, como atitude

existencial, uma conscientização da angústia, posturas plenamente justificadas na abalada

Europa pós-guerra, constituindo um complexo de valores que se refletirão no pensamento

humano das décadas seguintes.

A literatura, sempre acompanhando as mudanças tecnológicas, políticas e sociais

que então ocorriam, acompanha o comportamento e a cultura de sua época, pois como

defende Ana Hatherly, “o texto literário, refletindo sempre o contexto histórico-social em

que surge” (HATHERLY, 1979, p. 93), resulta de um equilíbrio entre os conflitos e tensões

do momento histórico em que é produzido, dos conflitos do autor e sobretudo dos

“conflitos dentro do próprio texto, criados pelo autor” (HATHERLY, 1979, p. 93)

Com o desenvolvimento da tradição modernista, cujas bases se reportam ao Orpheu

e mais longe ainda à Geração de 18702, surge a poesia de vanguarda ou a Novíssima Poesia

Portuguesa. Sendo assim, essa poesia assume, como diz Melo e Castro, um “certo acertar o

2 – Um grupo de jovens intelectuais, iluminados por idéias inovadoras, inspirados na cultura francesa, opõem-se a um governo monárquico cada vez mais contestado. Liderados ideologicamente por Antero de Quental e José Fontana e do qual fizeram parte alguns dos maiores escritores da história da Literatura Portuguesa, como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e Guerra Junqueiro, compõem o essencial da chamada Geração de 70.

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passo” (MELO E CASTRO, 1980, p.17), com a poesia praticada no resto do continente

europeu. Ela representa, portanto, um modo de estar no mundo, um novo questionamento,

provocado pelo rápido e enorme desenvolvimento técnico e científico que, alargando o

potencial do campo de ação do espírito humano, influenciou o próprio pensamento.

1.1 – A vanguarda em Portugal

Música, literatura, artes plásticas e mesmo as recém criadas artes do século XX, o

cinema e a fotografia, voltavam-se para o espírito de invenção e de radicalidade dos

movimentos de vanguarda do início do século em questão. A palavra vanguarda não é

usada com muita freqüência nos ensaios críticos ou teóricos quando se fala de poesia

portuguesa, somente a partir dos anos 60 é que ela aparece mais freqüentemente e, muitas

vezes, com conotações contraditórias.

Mas afinal o que é, nesse contexto, vanguarda?

Em seu sentido literal, vanguarda (que vem do francês avant garde, “guarda

avançada”), faz referência ao batalhão militar que precede as tropas em ataque durante uma

batalha. Daí deduz-se que vanguarda é aquilo que “está à frente”, o que se aguarda. Pode-se

dizer que, da ótica da teorização, vanguarda é o conjunto de práticas textuais, sociais e

políticas que, questionando, impulsiona todo um modo novo de pensar e de agir, que,

assumidamente voltado para o futuro, provoca uma série de outras ações que, poderão

corroborar ou não, com essa noção estabelecida a priori. Melo e Castro diz o seguinte

sobre a vanguarda:

É, portanto, numa ótica de práticas textuais, sociais e políticas que aqui se encontrarão as vanguardas do século XX conferindo-lhes aquilo que elas reivindicaram sempre para si, em oposição às estratificações literárias e filosóficas típicas do século XIX: o serem um conceito operacional que de fato opera; o serem uma ação que de fato age; o serem um programa que se objetiva; o serem uma teoria que, como tal modifica as práticas. (MELO E CASTRO, 1980, p. 17)

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As vanguardas fazem uso de “Manifestos”3, curtos textos panfletários que têm como

objetivo, apresentar as principais idéias, diretrizes e objetivos dos movimentos, exercendo

assim a função de verdadeiros porta-vozes, que agindo nos contextos sociais, revolucionam

a noção de obra de arte, e no caso específico da poesia, vê-se a progressiva substituição do

texto lírico, com rima e métrica tradicionais, pela produção de texto com versos livres e

nenhum compromisso com a tradição.

Apesar da ruptura que toda vanguarda enseja, a produção literária de Ana Hatherly,

assim como a de muitos outros poetas, tem por base uma espécie de reelaboração crítica de

antigos modos de trabalhar, e como bem diz a autora isso não é exclusividade dos poetas

experimentais, pois em outras épocas isso também ocorria, como não poderia deixar de ser.

Nesses termos, falar de vanguarda é pensar do ponto de vista de um projeto dinâmico e

dialético, pois a idéia de vanguarda pode definir a atividade do artista, conduzindo-o a uma

busca, a uma procura de suas origens e de suas raízes. Assim, o poeta aproveitando-se

dessas origens, as repensa, sem no entanto nunca romper necessariamente com elas, ainda

que este seja o projeto original. Ana Hatherly, em relação á poesia experimental, faz

questão de assinalar o sentido de ruptura:

Esse aspecto de ruptura da poesia experimental é muito particular porque essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nunca é uma ruptura com as nossas raízes. (HATHERLY, 19981, p. 21)

Repensar a atividade de criação de forma dinâmica, projetando-a para o futuro e não

mais amarrada pela história, considerar os materiais dessa criação, falar em termos de

estrutura, usar a capacidade criadora para construir novos modelos, não mais reproduzindo

os pré-existentes, transformar a obra de arte num acelerador do tempo de forma a transmitir

a experiência humana, eis os projetos das vanguardas que, desde o início do século XX, se

sucedem na sua proposta de “valores remodeladores de vida” (MELO E CASTRO, 1980, p.

23), como nos diz Melo e Castro quando analisa os movimentos das vanguardas

portuguesas. 3 – Curtos textos panfletários, importantes de vias de acesso ao pensamento vanguardista, lançados entre 1909 e 1924. Manifesto Futurista, Manifesto cubista, Manifesto Dada, etc...

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Em algumas áreas do conhecimento e da filosofia, ainda segundo Melo e Castro

afirma que, o ser humano é capaz de encontrar as “linhas de força dominantes” (MELO E

CASTRO, 1980, p. 23). No entanto, na criação literária e mais ainda na poesia, isso nem

sempre é possível. Daí a atitude experimental que se dá em relação à poesia, que muitas

vezes não é uma corrente estética, mas, uma atitude de procura e de investigação que tem

vital importância para o artista, este, através dos meios, métodos e problemas que a

sociedade e a ciência apresentam, procura trabalhar numa obra em que o indivíduo e

também a coletividade se satisfaçam em sua busca estética, ou pelo menos em princípio,

como diz Melo e Castro:

A obra de arte experimental isola-se do seu autor e coloca-se numa perspectiva de disseminação coletiva de informação: a informação de sua própria existência como objeto belo correspondendo às necessidades estéticas da coletividade. Necessidades essas que cada indivíduo da coletividade procurará satisfazer através da percepção “sui generis” que tiver dessa mesma obra. (MELO E CASTRO, 1965, p.58).

Sendo de vanguarda, a obra, coloca-se culturalmente à frente dos princípios e

valores estéticos dominantes no seu tempo, e ao romper com os horizontes de expectativa

prevalecentes causando inevitável estranheza. Com isso a comunicação de uma mensagem

de vanguarda nunca é imediata, nem de fácil compreensão. No entanto, apesar das relações

humanas necessitarem de objetos exteriores para se referenciarem e estabelecerem uma

plataforma para o entendimento, esse entendimento em relação às vanguardas é lento,

demorado, pois é preciso tempo para que a obra seja aceita.

É da natureza mesma dos produtos de vanguarda que sua compreensão e acesso não

sejam fáceis, e que sua aprovação e aceitação não sejam imediatas. No entanto, à medida

que o público aceita esse trabalho inovador, ele vai ter a oportunidade de experimentar um

alargamento das suas experiências perceptivas. Por exemplo, as inovações concretistas,

como produto de vanguarda, provocaram um estranhamento inicial, o que é natural face ao

seu afastamento das estruturas previamente conhecidas. No entanto, para Angel Crespo e

Pilar Gomes, a diluição desse estranhamento e sua assimilação cultural só vieram

corroborar a legitimidade e a autenticidade poética do movimento.

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1. 2 – O concretismo no Brasil

Em viagem à Europa, em 1912, o jovem poeta Oswald de Andrade trouxe em sua

bagagem influências suficientes para o desencadeamento dos movimentos de vanguarda no

Brasil. Alguns anos antes havia sido publicado o Manifesto Futurista de Marinetti, e a partir

daí, todas as manifestações que se seguiram passaram a ser chamadas de futuristas. Essas

vanguardas parecem justificar o pensamento corrente de que os diferentes gêneros artísticos

não são sistemas estáticos nem isolados, mas que, ao contrário, interagem com outras

instituições no tecido social e, inscritos nos acontecimentos históricos, denotam momentos

de vigência, de esplendor e de declínio, ou seja, transformações, pelas quais todas as

atividades humanas necessariamente passam, como já era entendido desde o Romantismo.

Fora dos movimentos literários, outros segmentos artísticos ajudaram a romper com

a arte e cultura vigentes na época. Em 1917, a exposição de pinturas expressionistas de

Anita Malfatti culminou com a polêmica gerada entre Oswald de Andrade e Monteiro

Lobato que discordava das inovações estéticas. Em 1921, Oswald apresentou, através dos

jornais, o jovem Mário de Andrade e o chamou de jovem futurista. Outros dois personagens

importantes desse período foram o escultor Victor Brecheret e o músico Heitor Villa-

Lobos, que já apresentavam obras modernistas. A Semana de Arte Moderna durou apenas

três dias, mas, nesse curto espaço de tempo, a arte brasileira sofreu seu maior abalo e

rompeu definitivamente com o atraso cultural em que o Brasil se encontrava.

A Semana de Arte Moderna fez eclodir no país vários movimentos culturais, no

entanto, vale ressaltar que o acontecimento em si, passado o escândalo, não teve grande

importância em sua época. Somente com o passar do tempo, a Semana de Arte Moderna

não só entrou para a história da literatura brasileira, mas também influenciou outros

movimentos artísticos, como por exemplo, o Concretismo. A multiplicidade e diversidade

da produção no campo das artes em geral, bem como o desejo de originalidade, foram a

marca das criações artísticas difundidas por todo o século XX.

No Brasil, uma série de complexas transformações no âmbito social, político e

econômico que marcaram a década de 50, vinham se manifestando desde o fim da segunda

guerra mundial. Essas transformações insinuavam o perfil de um momento de mudança

para uma "nova modernidade", que forneceria um ambiente estimulante para o

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desenvolvimento e sugestões renovadoras nas artes. No final dos anos 1940 e início dos

anos1950, mais uma vez, as artes, em especial a literatura, promoveram novas mudanças,

quebrando paradigmas e criando novas possibilidades.

Algumas mostras dessas possibilidades se encontram em eventos, como a

inauguração de Museus de Arte Moderna no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1949 e

1948 respectivamente, e a I Bienal de Arte de São Paulo em 1951. Nessa Bienal, pela

primeira vez no Brasil, fazia-se uma exposição de arte com efetiva repercussão

internacional, trazendo ao contato do público e de artistas locais; o que de mais

contemporâneo se realizava no exterior, como o trabalho de Max Bill e também o de

Niemeyer com Le Corbusier.

Essas transformações, pelas quais a sociedade estava passando, ao lado do

crescimento industrial, explicitam também o interesse de alguns setores dos endinheirados

paulistas em financiar a Companhia Vera Cruz de Cinema com o claro intuito de instalar

uma indústria cinematográfica no país. Era o apogeu do desenvolvimentismo brasileiro,

iniciava-se a era JK. É nesse período que a sociedade brasileira adquiria definitivamente

sua feição urbana, movida pela ideologia do desenvolvimento e pela associação com

capitais externos. Começa nessa época a construção e a instalação de um novo e sofisticado

parque industrial.

Influenciados por esse ambiente borbulhante de novas idéias, Augusto de Campos,

Décio Pignatari e Haroldo de Campos fizeram o trabalho de “inventores”, criando um

movimento de poesia que continha elementos da antropofagia de Oswald de Andrade, do

formalismo de Pound e da herança visual de Mallarmé, buscavam com isso um novo estilo,

uma nova forma para a poesia que fosse o produto de uma evolução crítica. Os jovens

poetas paulistas seguiam assim as idéias do poeta russo Maiakovski, que dizia que para se

ter uma arte revolucionária é necessário revolucionar a forma de expressão dessa arte. Não

se pode ser produzir algo de novo, utilizando-se formas arcaicas de expressão.

Esses poetas paulistanos conceberam então um grupo denominado Noigandres.

Junto a sua criação, houve o lançamento de uma revista para divulgar as idéias propostas

pelo grupo, bem como seus poemas, a revista também era chamada Noigandres. Essa

palavra, que nomeava o grupo e a revista, foi retirada de um poema de Ezra Pound. A

revista lançou as bases para o Concretismo no Brasil

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O movimento concretista, na sua dimensão poética, foi lançado pelo poeta suíço-

boliviano Eugen Gomringer, na época, secretário de Max Bill, na Escola Superior da

Forma4, e a quem Décio Pignatari encontrou numa visita a Ulm, em 1955. Esse encontro foi

decisivo para a internacionalização do movimento, pois Pignatari já difundira as idéias do

movimento pela América do Sul. O contato foi reciprocamente proveitoso, havendo mesmo

uma troca de influência produtiva para ambas as partes. O grupo brasileiro fez, no Brasil,

ampla divulgação dos artigos teóricos e da poesia de Gomringer, enquanto este fazia o

mesmo com o trabalho do grupo Noigandres pela Suíça, Alemanha e Áustria.

Ainda nesse momento, os poetas brasileiros costumavam designar “ideograma” a

sua poesia. Seguindo a idéia de Pound, esses poemas em geral, apresentavam uma

semântica mais complexa, plurilíngüe e de múltiplas direções de leitura, que apontava para

uma desconstrução total do verso e não mais uma reformulação. Gomringer nomeava suas

composições de estrutura ortogonal e linguagem reduzida, escritas em alemão, francês,

inglês e espanhol de Konstellationen, tal como fazia Mallarmé, mas, depois acabou

aceitando a denominação geral poesia concreta (conkrete dichtung), proposta pelo grupo

Noigandres.

A partir da publicação de Plano-Piloto para Poesia Concreta, em 1959, o

movimento completou sua maturação e irradiou suas idéias, não apenas no ambiente

literário, mas em outras áreas do contexto cultural brasileiro. A poesia concreta é a

denominação de uma prática poética formulada, a partir do Brasil e da Suíça, que tem como

características básicas: textos verbivocovisuais, a eliminação dos laços do discurso, em prol

de uma conexão direta entre as palavras e a integração entre o verbal e o não verbal.

O projeto concretista brasileiro procurou estabelecer uma tradição literária, baseada

nos movimentos de vanguarda internacional, a fim de renovar decisivamente a poesia

nacional, lançando no mercado internacional a poesia concreta brasileira. Aproveitando-se

de bases lançadas pelo Simbolismo francês, esse movimento procurou repensar toda a

produção artística e desenvolveu uma nova possibilidade estética. A poesia concreta,

4 – Centro de tradição artística, cujo antecedente imediato foi a Bauhaus, empenhado em construir uma nova realidade poética, uma arte da poesia verdadeiramente criativa.

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portanto, teve origem nos revolucionários poemas de Mallarmé, que representaram um

marco divisório na criação e composição poética5.

Por isso, quarenta e três anos depois do lançamento do movimento concretista,

Augusto de Campos, em uma entrevista6 relembra os precedentes históricos de sua obra e

do movimento de poesia concreta no Brasil e diz o seguinte:

Para mim, o marco divisório da linguagem poética de invenção, na modernidade, é a obra Un Coup De Dés de Mallarmé (1897), o poema concebido intersemioticamente como estrutura fragmentária ("subdivisions prismatiques de l'Idée"), na confluência do painel visual e da partitura musical. A partir da compreensão dessa obra foi possível rever as experiências das vanguardas do começo do século e caminhar para novas elaborações. "Sans présumer de l'avenir qui sortira d'ici, rien ou presque un art", o último Mallarmé - de Un Coup De Dés a Le Livre - cataliza e radica as principais alternativas futuras da linguagem poética. Nessa obra e nos desenvolvimentos subseqüentes das vanguardas históricas, que vão ser reciclados e radicalizados pela poesia concreta, encontram-se os pressupostos formais da poesia da Era Tecnológica, que se expande ao longo da segunda metade do século. Além de Mallarmé e das vanguardas do início do século, eu colocaria como precedentes diretos, Ezra Pound (o "método ideogrâmico", a colagem e a metalinguagem dos Cantos), James Joyce (o caleidoscópio vocabular do Finnegans Wake e sua polileitura textual), Cummings (a atomização e o deslocamento sintático dos seus poemas mais experimentais) e, num segundo plano, por mais idiossincrática e menos rigorosa, a prosa experimental, minimalista e molecular, de Gertrude Stein. No caso particular da poesia brasileira, o Sousândrade (séc.19) de O Inferno De Wall Street, com seus epigramas-mosaicos pré-colagísticos, Oswald de Andrade e o poema-minuto "antropófago", a engenharia construtivista de João Cabral. Numa consideração transdisciplinar, mencionaria as transformações da linguagem musical de Webern a Cage e da visual de Malévitch/Mondrian a Duchamp. (CAMPOS, 1995)

Na origem da poesia concreta, vamos encontrar principalmente, a substituição do

descritivo pelo plástico, do auditivo pelo visual, a tendência figurativa, o método 5 – Para Haroldo de Campos “a arte da poesia, embora não tenha uma vivência função-da-História, mas se apóie sobre um continuum meta-histórico que contemporaniza Homero e Pound, Dante e Eliot, Góngora e Mallarmé, implica a idéia de progresso, não no sentido de hierarquia de valor, mas no de metamorfose vetoriada, de transformação qualitativa, de culturmorfologia: “make it new”. (CAMPOS, 1987, p. 32) 6 – Essa entrevista foi concedida a K. Davis Jackson, Erik Vos e Johanna Drucker, no Simpósio sobre Poesia Experimental, Visual e Concreta, na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em 1995.

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ideogramático, as experiências dadaístas. Por isso, para pode-se dizer que o projeto

concretista, segundo Pedro Reis:

insere-se numa passagem da persuasão poética e das formas fixas a uma poética de descoberta, libertas dos rigores das regulamentações formais acumuladas ao longo da história e promovidas à condição de normas de valor estético aceite. (REIS, 1998, p. 62).

Isso ocorre porque entre as formas poéticas fixas e as livres, deu-se uma evolução, e

neste curso a própria poesia alterou-se, levando a poesia concreta ao limite, o que tentava

mostrar o esgotamento da poesia lírica tradicional. Com isso, o sentido tradicional é

convertido num sentido novo, no qual o desprezo pelos ornamentos situa a poesia concreta

no espaço de uma significação intersemiótica, na forma de combinação de componentes

verbais e plásticos, e não mais exclusivamente no espaço da significação verbal. Ana

Hatherly, explica esse sentido de ruptura tão preconizado pelo movimento concretista, da

seguinte maneira:

Essa é a rotura que os poetas de vanguarda assumem ao recusar “a tradição” enquanto poder instituído. E ao assimilar o passado cultural como uma reformulação do conceito de história, ela deixa de ser fundamento de eternidade para se tornar essa “estrutura ausente” que revitaliza, vorazmente, todas as formas, dotando-as e privando-as constantemente de significado. (HATHERLY, 1979, p. 121).

No seu texto Poesia concreta: pequena marcação histórico-formal, Décio Pignatari

diz que o poeta americano Cummings soube entender o problema do figurativismo de

Apollinaire, um figurativismo, que impossibilitava a estruturação do ritmo. Cummings

escapou dos caligramas realizando verdadeiros ideogramas com uma melhor utilização dos

recursos tipográficos, utilizando letras e sinais de pontuação, “tecendo uma anedota

pontuada de acidentes líricos ou satíricos” (PIGNATARI, 1987, p. 67).

Cummings também soube usar com maestria os recursos fisiognômicos de alguns

caracteres verbais, usando letras maiúsculas e minúsculas, sinais de pontuação, a fim de

obter os efeitos desejados. Ainda citando Pignatari, enumero alguns exemplos de poemas

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com o uso de recursos fisiognômicos: Si-lên-cio de Haroldo de Campos, O formigueiro de

Ferreira Gullar e, o, talvez, mais famoso de todos Ovonovelo de Augusto de Campos. Há,

nesses poemas, múltiplos tipos de criação, ora é a própria letra o material utilizado, ora a

multiplicação de elementos, funcionando como estrutura do poema, levando a uma

criação/recriação da experiência. De qualquer modo, mesmo negando que sua poesia seja

caligrama, os concretistas mantêm afinidades com as experiências de Apollinaire, pela

espacialização do material verbal, largamente utilizado pelos poetas brasileiros.

A poesia concreta passa pela revogação de propostas anteriores, sendo o projeto

concretista a construção de um valor positivo, que é o da liberdade, o que aboliria o

constrangimento das convenções, e como afirma Augusto de Campos “a verdadeira missão

social da poesia seria essa de arregimentar as energias latentes na linguagem para destronar

seus dogmas petrificantes” (CAMPOS, 1987, p.116). A intenção primordial da poesia

concreta é ser uma revitalização da linguagem, e por isso o procedimento poético concreto

sobre o material verbal é radicalmente diferente do usado na comunicação cotidiana.

Discorrendo sobre esse assunto, Augusto de Campos afirma:

Não que a poesia pretenda usurpar à linguagem discursiva a função comunicativa peculiar a esta. Mas é que o sistema lingüístico de comunicação, facilmente satisfeito, como que exaure à palavra sua vitalidade própria, transformando-a logo num túmulo-tabu, célula-morta de um organismo vivo. O procedimento da poesia é exatamente o contrário. (CAMPOS, 1987, p.116)

Isso quer dizer que a poesia não pretendia substituir o discurso, pois sua função não

é essa, mas a poesia pretende ter autonomia em relação a linguagem, e atuar sobre ela para

conter sua alegada degeneração.

Algumas definições da poesia concreta ou concretismo, como a de Afrânio

Coutinho na sua Introdução à Literatura no Brasil, segundo o qual “depois de 1950,

revelando influências de Mallarmé, Pound, Joyce, Apollinaire, Gomringer, veio surgindo

um movimento poético inspirado no concretismo pictórico” (COUTINHO, 1972, p.295),

levam à constatação de que o concretismo poderia ser “definido como um movimento

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literário que produziu poemas concretos” (FRANCHETTI, 1992, p. 22) como bem explicou

Paulo Franchetti em Alguns aspectos da teoria da poesia concreta.

Os poetas criadores do concretismo situam-se agora “noutro espaço”, o espaço

específico de sua investigação; sua luta se dá em outro local, o da criação artística, e a

execução de um poema passa a ser considerada uma “operação”. E esses criadores

propunham um experimentalismo poético (planificado e racionalizado) que obedeceria a

alguns princípios por eles determinados:

– abolição do verso tradicional, através da eliminação dos laços sintáticos

(preposições, conjunções, pronomes, etc...), o que gerou uma poesia quase sempre feita de

substantivos e de verbos;

– utilização de paronomásias, neologismos, estrangeirismos, separação de prefixos e

sufixos, repetição de certos morfemas, valorização da palavra solta (som, forma visual,

carga semântica) que se fragmenta e se recompõe na página;

– poema transformando-se em objeto visual, valendo-se do espaço gráfico como

agente estrutural, uso dos espaços brancos, de recursos tipográficos, etc.... em função disso

o poema deveria ser simultaneamente lido e visto.

Essas propostas para a criação foram usadas com lucidez por João Cabral de Melo

Neto, em alguns de seus poemas, onde as poucas palavras, nuas e secas, o jogo dos

elementos iguais, com bem ressalta Pignatari, “estão a serviço de uma vontade didática de

linguagem direta” (PIGNATARI, 1987, p, 68), um exemplo é essa quadra do poeta citado:

Como não há noite Cessa toda fonte Como não há fonte Cessa toda fuga. (MELO NETO, 1987, p. 68)

Nesses versos, as palavras curtas, incisivas, tornam os versos secos, como seca é a

situação apresentada, também o uso do verbo cessar, como idéia de ausência, repetido, é a

repetição da ausência, as palavras são precisas, enxutas.

Augusto de Campos diz que “a poesia concreta começa por assumir uma

responsabilidade total perante a linguagem” (CAMPOS, 1987, p. 69), realizando-se assim

uma crítica que tem como princípio a relação palavra-objeto. No Brasil, essa atitude, foi um

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ataque lúcido contra o “jargão lírico”, quer dizer, o concretismo pretendia abolir o

tratamento lírico dado ao poema, atitude essa que em Portugal soou como uma provocação,

uma transgressão.

Para confirmar a diversidade de características, há o fato de serem classificadas

como poemas concretos, criações em alguns aspectos bastante diferentes entre si. Tomamos

como um dos exemplos destas propostas o poema Terra de Décio Pignatari, no qual a única

palavra utilizada é o substantivo “terra”, que aparece decomposto, e a marca da visualidade

é o vocábulo disposto na página formando um “desenho”. Neste poema, Pignatari levanta o

problema da terra, um assunto tão em voga na época da composição, quanto na atualidade.

Ele trabalha as palavras como um campo arado, atomizando-as, “ter”, “ara”, “terra”:

ra terra ter rat erra ter rate rra ter rater ra ter raterr a ter raterra terr araterra ter raraterra te rraraterra t

erraraterra terraraterra (PIGNATARI, 1956)

Seguindo o mesmo caminho de organização visual, porém indo além e, criando um

jogo verbal de forte impacto mediante o despojamento de palavras, temos o poema de

Augusto de Campos:

de sol a sol soldado de sal a sal salgado de sova a sova sovado de suco a suco sugado de sono a sono sonado

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sangrado de sangue a sangue (CAMPOS,1999, p. 479))

Aqui, as palavras usadas são, nessa ordem, dois substantivos e um adjetivo,

alternadamente, no entanto, nos dois últimos versos há uma quebra de estrutura, mudança

que provoca no leitor um certo impacto, devido à inversão da ordem da categoria das

palavras, a disposição do adjetivo antes dos substantivos.

Podemos encontrar em antologias internacionais de poesia concreta, poemas

visuais, isto é, poemas que não usam componentes verbais, poemas semióticos, inventados

pelos brasileiros Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto, que usam apenas uma “chave

léxica”7, bem como outros que, apesar de usarem material verbal, são “ilegíveis”, em

termos do sentido verbal, pois apelam mais para uma contemplação que para a

verbalização. Há ainda os poemas sonoros, que usam uma linguagem verbal, mas cuja

vocalização resulta em sons e ruídos despojados de sentido.

Assim, o alargamento do campo poético que a poesia concreta representa, encontra

correspondência na produção semiológica. De fato, a poesia concreta é a produção literária

que ao recorrer aos signos de outras linguagens, transcende o literário e o autor a classifica

como produção artística num sentido mais amplo. Como afirma Haroldo de Campos na

introdução da primeira edição da Teoria da Poesia Concreta:

Seu consumo se deu de maneira a mais surpreendente. Na linguagem

e na visualidade cotidianas, a poesia concreta comparece. Está no texto de propaganda, na página e na titulagem do jornal, na diagramação do livro, no slogan de televisão, na letra de “bossa nova”. É consumida inadivertidamente mesmo por aqueles que se recusam a reconhecê-la como poesia. (CAMPOS, 1987, p. 7).

O poeta concreto tendo o olhar voltado para o cotidiano, enxerga elementos deste,

como poesia, independentemente das definições tradicionais do poético. Devido a uma

nova concepção de gênero literário, os poetas concretistas e experimentais assumiram uma

posição por vezes contraditória. Pretendiam que a questão de nomenclatura, do “rótulo”,

7 - A chave léxica é um exercício de tradução didática, um ou mais símbolos com explicação verbal, que ajudam a entender, visualizar e relacionar os fragmentos do poema.

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não fosse importante, sem no entanto, abdicar do termo poesia e, desde o início, afirmaram

ser ela poesia concreta, como assegura Augusto de Campos em seu texto Poesia Concreta:

Em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo ponto, pela música de vanguarda (concretismo, música concreta), diria eu que há uma poesia concreta. (CAMPOS, 1987, p. 40).

Ao traçarem uma linha evolutiva da poesia, os poetas concretos pretendem legitimar

o movimento concretista como uma manifestação inequivocamente poética, como

continuadora de uma tradição literária, participante do universo literário, refutando todas as

críticas que não a consideravam nem poesia nem literatura.

Augusto de Campos recusa a denominação de Concretismo, preferindo a designação

de Poesia Concreta, o que significa rejeitar os “ismos”, como uma noção de fenômenos

fugazes, temporais, que numa hora estão na moda e designam uma vanguarda em outra

hora já passaram. Assim, Augusto de Campos procura afirmá-lo como um fenômeno

perene, o que paradoxalmente lhe tiraria a natureza de movimento. A classificação da

poesia concreta como movimento pode ser tomada mais como um expediente teórico do

que propriamente como uma abordagem rigorosa do fenômeno. Não haveria então, nenhum

percurso a ser feito entre o produto e a categoria, uma vez que os dois são uma só coisa, e a

expressão “poesia concreta” designa não só a produção literária como também o gênero

literário, nomeando a um só tempo a produção e sua catalogação.

O fato é que os jovens poetas concretistas, ao se apropriarem de uma tradição

literária, recuam no tempo ao sugerirem um profundo enraizamento para o seu projeto

poético na história da literatura. Para tal eram mencionados nomes conhecidos – Mallarmé,

Apollinaire, Pound, etc. – embora não raro aludissem apenas a uma parte restrita da obra

desses autores, e apenas a um aspecto periférico de suas obras, usando isso para instituir um

elo entre eles, porque de outro modo seria impossível fazer essa associação. No entanto, o

estabelecimento dessa tradição não é algo definido a priori, mas sim algo que os poetas

concretistas fazem ao longo do tempo e de acordo com o conhecimento que vão travando

nas novas bibliografias com que entram em contato.

A volta ao passado, indo até às origens mais remotas da poesia, à invenção mesmo

da escrita alfabética, levou os poetas a descobrirem que esta forma de comunicação é

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relativamente recente e que antes dela já existia a comunicação por imagens, como nos

explica Ana Hatherly em A Reinvenção da leitura. Percebe-se assim que a poesia como

texto, já que o cantar poético é originalmente verbal, é indissociável de seu aspecto gráfico.

Pode-se até dizer que, como a escrita tem origem na pintura que a precede, a poesia é uma

pintura de palavras. Nesse sentido, ao considerarem o verso como unidade poética

esgotada, os concretistas pretenderam encontrar uma nova unidade poética e descobriram

então que o espaço gráfico, a página em branco podia converter-se na unidade formal

desejada.

Desde o Ovo8 de Símias de Rodes, que data do século III a.C., um poema bucólico

composto em forma de ovo, até a poesia concreta, passando pelos poemas medievais e os

dos séculos XVII e XVIII, há o embate dialético entre a palavra e a imagem, provocando

um diálogo entre o verbal e o visual, neles a disposição das palavras, letras e outros signos,

geram uma pluralidade de significações, e obviamente de leituras, produzindo, muitas

vezes, uma união não harmônica, crítica e irônica em relação à tradição poética.

Poderíamos dizer então que os dois principais mecanismos envolvidos na concepção de um

poema visual implicam necessariamente numa tomada de posição diante do mundo e dos

modos de se relacionar com ele.

Durante o século XX, houve um grande diálogo entre as artes visuais e a poesia,

acompanhando a diluição de limites rígidos entre as diferentes linguagens, aproximando as

artes e gerando conseqüentemente a quebra de fronteira entre texto e imagem. Alfredo

Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, contextualiza da seguinte maneira a

poesia concreta no Brasil:

A poesia concreta, ou concretismo, impôs-se a partir de 1956, como a expressão mais viva e atuante da nossa vanguarda estética (...) No contexto da poesia brasileira, o concretismo afirmou-se como antítese à vertente intimista e estetizante dos anos quarenta e repôs temas, formas e não raro atitudes peculiares ao Modernismo de 22 em sua fase mais polêmica e mais aderente às vanguardas européias. Os poetas concretos entendem levar às últimas conseqüências certos processos estruturais que marcam o futurismo (italiano e russo), o dadaísmo e, em parte, o surrealismo, ao menos no que este significa de exaltação do imaginário e do inventivo no fazer poético. (BOSI, 1999, p. 531)

8 – Esse poema encontra-se na Antologia Grega e na pequena antologia de poemas em forma de coisa organizada por Charles Boultenhouse para Art News Annual XXVIII de 1959.

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Ironicamente essa situação nos leva a concluir que um movimento que se pretendia

de ruptura com a produção poética de sua época, que sempre se atribuiu a posição de

vanguarda em relação ao contexto cultural em que surgiu, cujos componentes ao lado de

sua produção poética produziam um vasto trabalho teórico, com o intuito de explicar e

justificar sua produção e objetivos, era afinal de contas herdeiro de uma tradição, inserido

numa continuidade milenarmente estabelecida, vínculo esse que os concretistas faziam

questão de provar.

No entanto, e apesar de tudo, o concretismo enriqueceu a poesia contemporânea

brasileira, propondo novas relações semânticas para o produto estético, com a possibilidade

da palavra pura, palavra-coisa; trouxe os ideogramas, a poesia russa moderna colocou a

poesia no centro da roda, tornando-a objeto de debate. A experiência acrescentou novos

códigos e parâmetros estéticos à cultura contemporânea brasileira despertando polêmicas

ainda hoje9. Foi um movimento avassalador, sem precedentes na nossa história literária.

O Noigandres foi o grupo que se manteve como o mais unido, ativo e influente

grupo de poesia no debate nacional ao longo de quatro décadas, sendo a sua intensa

atividade de produção de poesia, crítica e tradução rotulada usualmente de "concreta" ou

"concretista". Mesmo depois de haver passado a época do movimento da poesia concreta

como corrente definida como tendência artística brasileira, os integrantes originais, os

primeiros membros desse movimento não pararam de produzir. Sempre envolvidos em

debates, em discussões e em críticas, continuaram marcando os rumos da arte e do

pensamento estético, nacional e internacional.

1.3 – A Poesia Experimental Portuguesa

A poesia portuguesa dos últimos cinqüenta anos apresenta-se cheia de novas

tendências, grande quantidade de autores e de textos, uma diversidade de modos que se

pretendem representantes dos inúmeros movimentos de vanguarda que fazem parte da cena

literária mundial. As principais influências da poesia experimental convergem e aparecem 9 – Poesia concreta: produto de uma evolução d formas. Implica uma dinâmica, não uma estática. Teoria e prática se retificam e se renovam mutuamente, num circuito reversível. Certo: compreender a obra em progresso como uma dialética. Errado: paralisar para compreender. (CAMPOS, 1987, p. 96)

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na criação de alguns dos atuais teorizadores e críticos portugueses de poesia, como: E.M.

Melo e Castro, Ana Hatherly, M.S. Lourenço, entre outros.

A poesia experimental, uma evolução da poesia concreta, é essencialmente

característica da segunda metade do século XX e segue a orientação de experimentar ou

construir objetos poéticos, dando importância às intuições e à sua relação dialética com os

signos. A poesia experimental é caracterizada, igualmente, pelo automatismo surrealista e

por uma análise aplicada às estruturas morfológicas e sintáticas, à rima, às analogias

verbais, à distribuição visual dos espaços e dos caracteres gráficos, sendo sua principal

tendência a de explorar ao máximo as possibilidades estruturais do material artístico.

O aparecimento da Poesia Concreta em Portugal, e subseqüentemente da Poesia

Experimental, feita a partir do início da década de 1960, foi marcada por dois

acontecimentos: o primeiro, em 1956, foi a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari,

depois de seu encontro com Gomringer. No entanto, essa visita não rendeu muitos frutos. O

segundo foi em 1962, quando da publicação de uma pequena compilação da Poesia

Concreta do Grupo Noigandres de São Paulo, pela Embaixada Brasileira em Lisboa. Essa

publicação, definitivamente, tornou-se um marco na poesia portuguesa, introduzindo o

concretismo em Portugal e influenciando a obra de vários poetas. No entanto, a Poesia

Concreta, em Portugal, não se apresentou como um movimento organizado, como

aconteceu no Brasil graças à criação do grupo Noigandres.

Ana Hatherly afirma que, o espírito da poesia experimental de vanguarda que tem

sua origem histórica no poema de Mallarmé Un Coup des Dés Jamais n’ Abolira le Hasard,

teve também a influência dos experimentos Futuristas, Dadaístas, Surrealistas e Letristas,

sendo em parte um reflexo dessas produções literárias. Alguns historiadores, no entanto,

determinam o aparecimento dos poemas visuais com os futuristas, no século XX, com suas

“palavras em liberdade” e a “revolução tipográfica”. Mas se de fato quisermos indicar o

que antecede essas referências, chegaremos a algumas longínquas experiências com textos-

imagens, que como afirma Ana Hatherly:

compreendem hieróglifos, ideogramas, criptogramas, diagramas, rebus, mandalas, amuletos, jóias, brinquedos lápides e até alguns monumentos, além de todos os outros textos e objetos poemáticos identificáveis como tal. (HATHERLY, 1981, p.139)

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Diz ainda Ana Hatherly que:

de fato é a partir do momento em que se torna possível estabelecer uma identidade entre ikon e logos, escreve ainda Sylvester Houéddard, que se define para a poesia de vanguarda e para o poema visual em particular (mas estão intimamente ligados) uma cronologia que faz remontar a sua origem à mais longínqua Antigüidade. (HATHERLY, 1981, p.138)

Vemos com isso que as próprias referências históricas da poesia concreta são por si

só insólitas, tendo entre seus antepassados a cultura greco-latina, os carmina figuratas10 e

elementos da cultura oriental. Ana Hatherly, autora de inúmeros trabalhos sobre a

ancestralidade do visual na poesia, refere-se ao fato de o virtuosismo dos carmina figurata

latinos já implicarem numa alteração do ordenamento do processo de leitura tradicional, ela

diz:

Nos “Carmina Figurata” latinos, avulta o nome de Porfyrius Optatianus e na

época carolíngia os dos poetas Alcuino e Bonifácio, residindo a particular virtuosidade dessas composições no seu caráter acróstico, pois deveriam ser lidas não só horizontal como verticalmente. (HATHERLY, 1981, p.139)

Esses textos-imagens, cuja composição dos elementos na página, levam o leitor a

uma pluralidade de leituras, apresentam poemas acrósticos em formatos variados.

A cultura asiática também influenciou a identidade entre o icônico e o lingüístico,

pois, especialmente, na China e no Japão, o poeta-pintor-calígrafo é uma unidade cultural

paradigmática. Os concretistas brasileiros referem-se, em especial ao ideograma chinês,

base para muitos poemas, mas, também utilizaram poemas japoneses, particularmente os

hacai, que oferecem a síntese absoluta procurada pela poesia concreta na composição de

seus poemas. Essa linguagem concentrada, vigorosa, sua estrutura gráfico-semântica, seus

processos de composição e suas técnicas de expressão, dão ao poema uma forma sintética

que apareceu de forma decisiva nos movimentos de renovação da poética moderna.

10 Carmina figurata são poemas figurativos latinos com belos textos-imagem.

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Na opinião de Ana Hatherly, o poeta experimental acentua a identificação entre ele

e o objeto criado, o que é, sempre, a intenção primeira do criador. No entanto, essa relação

texto/objeto acrescentado de conhecimento pode produzir um estranhamento entre o autor e

sua obra, e como afirma a autora, em Algures – o espaço da significação:

Para um poeta experimental, a dialética do ato criador e do objeto criado, que é uma evolução da relação entre o eu e o objeto (o ser e o mundo das coisas), adquire um aspecto realmente particular, pois para ele, o processo, mais que o objeto criado, é o ponto onde reside o fulcro da questão, o algures da criação, o centro do sistema gravitacional de relações que existem e são postas em funcionamento e em questão – violadas – de cada vez que se pratica um ato criador. (HATHERLY, 1979, p. 51)

Ou seja, para a autora, a experiência criadora, o ato de criação e os múltiplos planos

da experiência são os elementos mais importantes para o poeta. Esses elementos têm

inclusive mais valor que a obra pronta em si, ou seja, mais processo do que produto. Ana

Hatherly referindo-se a Mallarmé no que diz respeito às constelações e astros, ao espaço da

palavra e da significação em sua obra, afirma que o poeta:

“obrigou” aos poetas que vieram depois dele, mudarem de forma profunda, a maneira de conceber o texto poético, desde sua base até sua forma pronta, e tratar essa mudança com uma objetividade científica – não se pode esquecer que e a arte experimental é desenvolvida paralelamente à ciência experimental, da qual assume inclusive a terminologia – que “vem alterar a “posição” do poeta em relação à concepção tradicional”. (HATHERLY, 1979, p. 52)

Na passagem da década de 1950 para 1960, os valores trazidos para a poesia

portuguesa renovaram-se na voz poética de Melo e Castro, Ana Hatherly, M.S. Lourenço e

muitos outros que se afirmaram como nomes essenciais da poesia contemporânea

portuguesa, bem como a geração de poetas reunidos em torno da Poesia 6111.

11 – A Poesia de 61 foi uma das principais contribuições para a renovação da linguagem poética portuguesa e um dos mais importantes movimentos da poesia portuguesa do século XX. Alguns dos nomes reunidos ao redor desse movimento são: Rui Belo, Heberto Helder, João Rui de Sousa, Fiama de Hasse Paes Brandão, Luiza de Neto Jorge, Ernesto de Melo e Castro, Maria Teresa Horta, António Ramos Rosa, Casimiro de Brito, entre outros.

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Tão debatida e tão questionada, longe de chegar a um consenso, a poesia produzida

nos anos 1950 e 1960 retoma as proposta do modernismo, radicalizando-as, e seu caráter

tem como meta a ruptura dos cânones poéticos, provocando impacto nos leitores.

Caracterizada por um enorme hibridismo de modos e formas, a poesia dos anos 1960

caminha, ora para uma renovação do discurso poético, ora para um surrealismo,

ultrapassado por uma linguagem que, mais do que uma mistura de versos à moda de

Rimbaud, é a promessa de uma linguagem absolutamente renovadora, utópica, inaugural.

Essas duas tendências da poesia da década de 1960 diversificaram-se e enriqueceram-se,

ainda mais com a procura de um experimentalismo da forma verbal que o grupo Poesia 61

traz para as letras portuguesas. Esse grupo fazia uma poesia de redescoberta, atualizando a

relação texto-imagem, criando uma poesia anti-retórica e anticonvencional.

Considerando que a poesia é um reflexo formal da atividade humana, Melo e Castro

em sua obra Proposição 2.0, considera os seguintes tipos de poesia experimental:

1 – Poesia visual: caligramas de Apollinaire, experiências gráficas do Futurismo,

Concretismo, no Brasil e no mundo, Videopoemas em Lisboa.

2 – Poesia auditiva: experiência com voz humana gravada ou não, Poesia Rítmica

ou Poesia Melódica com palavras sílabas ou sons puros, algumas experiências dadístas e

letristas, composição direta na fita gravada (banda sonora).

3 – Poesia tátil: o poema é um objeto, todas as formas de colaboração com artistas

plásticos, os Ready-mades, os Parangolés do Hélio Oiticica, objeto poema e poema objeto,

todos os processos de construção que dão ao poema um corpo material.

4 – Poesia respiratória: experiência de Pierre Garnier com o sopro humano.

5 – Poesia lingüística: E.E. Cummings, James Joyce, Ezra Pound e muitos outros,

tentativas de criação de palavras e línguas novas, poesia poliglota.

6 – Poesia conceitual e matemática-cibernética: métodos permutacionais e

combinatórios, estrutura numérica da obra de arte experiências de Raymond Queneau.

7 – Poesia sinestésica: desenvolvimento das sinestesias, produtos híbridos dos tipos

de poesia já referidos.

8 – Poesia espacial: Mallarmé, “Un Coup des Dés”, de um modo geral o sentimento

espacial manifesta-se como denominador comum de todas as formas atuais do

experimentalismo poético.

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O experimentalismo poético, que foi sendo construído ao longo do século XX,

chegou aos anos 1960/1970, como um vívido elemento das composições poéticas, sendo

um artifício de distinção fundamental entre a poesia convencional e a poesia experimental.

Segundo Melo e Castro, praticamente toda a poesia experimental feita em Portugal a partir

do início dos anos 60 pode ser denominada Poesia Espacial, porque, seguindo a mecânica

da estrutura poética criada por Mallarmé, nesses poemas o que sobressai são as

coordenadas visuais. E, efetivamente, é nesse campo de experiências visuais e espaciais do

texto que se dá a inovação da pesquisa morfológica, fonética, sintática e semiológica, que

marcou de forma indelével a Poesia Experimental Portuguesa.

A natureza híbrida desse produto que se apresenta como poético faz com que a primeira reação, tanto da crítica como do público, tenha sido majoritariamente a rejeição ao produto de vanguarda como arte, o que, no caso da poesia experimental, equivale à rejeição do produto apresentado como poesia. Isso leva Ana Hatherly a comentar que:

Os Experimentalistas foram objeto de crítica, de censura e até de perseguição. E não foi só em Portugal que isso aconteceu. Não será então lícito perguntar: porque razão o Experimentalismo incomodou tanto? Que sacrossanto valor tinham os cânones estabelecidos (e já atacados pelos Modernistas) para que seu questionamento tivesse de ser tão combatido? O que é que esse questionamento punha em perigo? (HATHERLY, 2001, p.9)

Para a autora, a atitude experimental da poesia apóia-se num estudo aprofundado da

possibilidade ou impossibilidade de comunicação entre os homens feita através dos vários

sistemas dirigidos à percepção.

Isso tudo justifica que Moacy Cirne, em sua obra Vanguarda: um projeto

semiológico classifique a poesia concreta como uma produção intersemiótica, na medida

em que dela participam signos literários e outros signos vindos de diferentes áreas

artísticas. Essa mesma observação pode ser feita em relação à obra de Ana Hatherly, por

exemplo, que, embora tenha criado seus textos visuais para serem observados em galerias

como quadros, considera-se uma escritora que explora simultaneamente o pictórico e o

lingüístico, desejando que o texto resultante seja percebido imediata, simultânea e

coincidentemente como um todo.

A autora a nos diz que a palavra é uma “fábrica de realidades” (HATHERLY, 2004, p.

151) pela qual passam as experiências do mundo, e que, se impedida de funcionar como

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“agente produtor de sentido”, a palavra, olhada apenas por seu aspecto plástico, convida-

nos a assistir a uma dança em cima do papel; assim sem amarras, a palavra vai construindo

seu sentido, mas a partir dos sentidos que lhe são oferecidos, ou seja, do que conseguimos

descobrir no campo da imagem:

Todas as palavras Quando escritas São palavras de papel Coisas Que não existem Senão assim Nesse real imaginado (HATHERLY, 2003, p.46). Ou seja, para a escritora, as palavras só têm real existência quando nós lhes damos

existência, quando nós as lemos, quando as “reconhecemos”.

Ana Hatherly investiga, através do trabalho que produz, as estruturas que o

fundamentam, fazendo pesquisas da estrutura da linguagem ao nível literário e ao nível

visual, inclusive porque, como ela menciona, a poesia concreta levanta o problema da

definição do próprio conceito de literatura. E quando isso acontece, percebe-se que o

fenômeno havia sido questionado quanto à sua literariedade e poeticidade. Investigando

durante todo esse tempo, através de seus próprios textos, a literatura com suas ideologias e

suas regras, com seus propósitos e seus significados, como o ato de realizar um texto, o ato

de escrever em si, Ana Hatherly afirma:

Esta minha atitude, ditada por uma necessidade interior, pessoal, é, porém, paradigmática: representa uma necessidade contemporânea que muitos escritores e artistas sentiram e praticaram. Creio mesmo, embora seja difícil definir essas áreas de interação, que o processo é grandemente imposto de fora para dentro. (HATHERLY, 1977, p. 50)

Com isso, a autora nos diz que foi levada a investigar certos campos, certas áreas da

literatura, para extrair deles uma série de significados que levassem a uma transfiguração da

leitura, ou como ela o diz em alguns de seus textos, a uma reinvenção da leitura. A

produção desse tipo de poesia oscilava entre a designação de poesia concreta e poesia

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experimental. Por isso, Ana Hatherly definiu como poesia concreta, em seu artigo o

Idêntico Inverso, a produção denominada poesia experimental, ela diz:

Reduzir a música a ritmo, o pensamento a esquema, a palavra a substantivo: eis a poesia concreta. E a trilogia de toda a criação poética aparece assim mais uma vez demonstrada. (HATHERLY, 1981, p. 91)

Apesar da revista que divulgava essa produção poética em Portugal chamar-se

Poesia Experimental, observa-se que os poetas portugueses além de serem signatários de

um documento internacional que reúne poetas concretos de outros países têm suas obras

publicadas em antologias de poesia concreta, sendo que eles mesmos designam sua poesia

como tal, o que pode ser observado na afirmação de Melo e Castro12:

Venho falar-vos da mais recente Poesia Portuguesa e, em particular da Poesia Concreta – pois Guimarães editores vai lançar, nesta mesma Feira do Livro, um volume de Poesia Concreta de que sou o autor. (MELO E CASTRO, 1981, p. 95)

Por causa dessa, digamos, falta de especificidade, podemos entender que, sob a

denominação “Poesia Concreta” encontra-se um conjunto heterogêneo de produção poética

que, com o passar do tempo, constituiu um interessante questionamento a respeito do

critério da escolha dos poemas para a elaboração de antologias.

A incorporação de elementos de outras mídias (visuais, auditivas, táteis) ao texto

criou uma nova tendência, que renovou com muita força o pensamento artístico português.

O texto poético deixou de ser tomado como mera interpretação da realidade e passou a

constituir sua própria realidade:

O letrismo descobre sobretudo outros materiais para construir

poemas, permitindo-se um novo formalismo. De oral (até a Idade Média) a poesia tornou-se escrita e, agora, em nossos dias, foi arrebatada pelos sentidos: poesia visual, auditiva e táctil. (ARAGÃO, 1981, p. 35)

12 – Discurso proferido na Feira do Livro de Lisboa de 1962, quando do lançamento do seu livro Ideogramas.

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A poesia concreta ou experimental foi criticada, censurada e perseguida, não porque

se rebelasse contra os cânones estabelecidos (pois isso o modernismo já havia feito), mas

porque ameaçava romper definitivamente com a noção de verso na medida em que o

reduzia à exploração fônica, semântica e visual da palavra. A novidade que ela apresentava,

era vista como terrorismo intelectual por todos os que não estavam preparados para

compreender o que se passava. O entendimento do movimento de poesia experimental foi

deixado para o futuro, quando o código da arte de vanguarda já fosse dominado por mais

pessoas, de modo a ser possível anular a estranheza provocada e permitir o acesso

generalizado. Esse processo de distanciamento corresponde às formas de ver esse tipo de

arte.

Para finalizar: parece-nos claro que mesmo o que há de mais radical nesta

nova poesia não se desvincula – ao contrário – dos princípios básicos da poesia concreta. Continuamos, portanto, a chamar de concreta a esta poesia. (PINTO e PIGNATARI, 1987, p. 162)

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É uma tela de 2,44 X 2,44m em que o real imaginado está devidamente enquadrado Tudo seria plano como planeado se não houvesse o splash a perturbação que anima a placidez geométrica do fotograma do freeze-frame que esta pintura muda quer ser e afinal não é Porque o real que esta pintura pinta e que ele quer que se sinta é um real que se mente nesta pintura rente É uma pintura que por nós entra fina e quase débil como as magras palmeiras postas ali para o olhar subir um pouco para o longe para um céu azul que não existe a não ser como ameaça latente na cruel esterilidade dum real que não mente O que esta pintura quer tornar patente não interessa:

É preciso desconfiar das imagens diz o próprio artista e num quadro o sentido vem de toda parte E acrescenta: Amanhã o público vai quer outra coisa além do que eu vi Mas o que é a arte Senão artifício da verdade? (HATHERLY, 2003)

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2 – As Propostas Teóricas Falar das propostas teóricas de Ana Hatherly, dos seus conceitos sobre a poesia

experimental e de sua vertente, a poesia visual é conhecer um pouco da pesquisadora que

existe por trás da artista, é também apreciar sua capacidade de estar sempre participando

dos acontecimentos de seu tempo, no qual, “à frente de todos os significados há uma

palavra rebelde à procura do mais pequeno pretexto para se amotinar” (CUNHA E SILVA,

1999, p.10). É desse tipo de palavra, da palavra pré-explosiva, aquela que dispensa

reverência, que Ana Hatherly trata em sua obra, de forma pioneira, pois em suas palavras,

“Escrever é inventar o mundo, usando sempre as mesmas letras” (HATHERLY, 2003, p.13),

porque, toda experimentação inova, inventa.

A aceitação dos novos parâmetros para a poesia enfrentou enormes dificuldades, e

as teorias difundidas pela poesia de vanguarda foram vistas como uma revolução. O

posicionamento assumido pelos poetas concretos refletia uma insubordinação, um

questionamento de valores, colocando em cheque o status quo vigente. Era a época de um

hibridismo caracterizado pela apropriação, montagem, colagem e fusão entre os vários

discursos, textos literários ou visuais, oriundos de campos semânticos e lingüísticos

distintos e até mesmo de épocas distintas.

A abolição dessas fronteiras era feita pelo grupo de poetas concretistas e

experimentais, que realizava esforços no sentido de uma ruptura, de um combate, de uma

luta contra as tradições. Esses grupos desempenharam o ambíguo papel de tropa de choque,

pois, tendo a tarefa de confrontar o poder, tentavam estabelecer eles mesmos a nova ordem.

Questionando sempre, esses poetas, contribuíram para a mudança e reformulação da crítica,

da tradução, trazendo benefícios também para a atividade da leitura. Eles diziam que para

haver uma comunicação era necessário que houvesse ruptura. E os poetas sempre querem

se comunicar mais e mais.

2. 1 – A reinvenção da Leitura – Aspectos Plurais As principais propostas do movimento de Poesia Experimental são: a ruptura com a

tradição poética; a redução do verso à palavra e a utilização de estruturas não verbais ligadas ao campo da imagem.

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Ana Hatherly, em seu texto, A Reinvenção da Leitura13 afirma “que a escrita

alfabética é relativamente recente e que muito antes dela já se estabelecia a comunicação

por imagem.” (HATHERLY, 1981, p.138). Conseqüentemente, para ela, não se pode

dissociar a origem da poesia, como escrita, dos signos não verbais; ou seja, escrita e

imagem sempre estiveram associadas na história da humanidade, razão pela qual para a

autora a introdução da imagem na composição poética não faz outra coisa senão retomar as

origens da própria escrita. A proposta da poesia visual se sustenta assim coerentemente, na

seguinte afirmação: “A escrita é uma pintura de palavras.” (HATHERLY, 1981, p. 138)

Mallarmé o grande mestre da poesia de vanguarda, introduziu uma série de

inovações em seu livro Un Coup des Dés [Um lance de Dados]. Nele, o verbal e o visual se

associam à musicalidade, que vai desembocar na proposta verbivocovisual14 dos

concretistas. Essa articulação entre signo verbal e signo visual nos permite ir mais longe,

para olharmos, por exemplo, os desenhos rupestres das cavernas, feitos na pré-história.

Constatamos então que essas imagens são uma forma de comunicação, funcionando como

textos, para contar histórias, sempre com a intenção de transmitir uma mensagem.

A necessidade de traçar as origens da poesia concreta nos leva, portanto, para

épocas bem anteriores a de Mallarmé. As pesquisas de Ana Hatherly conduziram-na à

descoberta de que na Antiguidade, já havia a relação entre texto e imagem. Ao longo da

história, a existência do texto-imagem comprova que as artes irmãs, poesia e pintura, não só

fazem parte da história da humanidade, mas também caminham lado a lado, em quase

perfeita simbiose. Literatura e pintura partilham territórios muito próximos, um mesmo

espaço limite, com relações de tensão e de paradoxo. Essa quase co-habitação territorial diz

respeito ao espaço e às relações intersemióticas aí estabelecidas. Assim, quando falamos de

poesia visual, vemos /lemos a criação de um novo texto visual. As novas imagens e as

novas leituras são o outro lado do ver, ou seja, são o que Ana Hatherly nomeia de

escritalidade:

13 – Nessa obra a autora teoriza as questões recorrentes em sua obra poética-ensaística, procurando as raízes da linguagem, a procedência da imagem em relação à palavra, refazendo o caminho desde os poemas visuais gregos do século IV a.C. até os poemas visuais do século XX. 14 – Termo empregado por Joyce para expressar a estruturação ótico-sonora, geradora de idéias, colocadas à disposição do poema.

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o poema é para ver-se ler-se (às vezes ouvir-se) mas sobretudo adivinhar-se o poeta é uma sombra um perfil um desaparecimento mas sobretudo a despedida mão feita poema (HATHERLY, 2001, p. 306)

Não que o significado das palavras se altere devido a simples disposição no espaço

do papel, altera-se sua função, passando a existir múltiplas possibilidades de criação de

sentido a partir da disposição das palavras. Assim, a escrita poética passa a criar seu próprio

objeto, que se descobre freqüentemente ao nível da frase. A linha de ruptura que demarca a

modernidade da poesia está representada na pesquisa e na descoberta dos valores outros da

palavra, o que se torna patente no uso de um vocabulário intencionalmente restrito a

algumas palavras, na brevidade do discurso poético e na cuidadosa escolha das imagens.

Ao listar os inúmeros experimentos de texto-imagem, Ana Hatherly afirma que o

rigor do “caráter místico da escrita”15 (HATHERLY, 1981, p. 139) não é um privilégio do

Ocidente, pois no Oriente ele é assumido com exatidão, sendo o poeta-pintor-calígrafo

relevante figura nas sociedades do Japão e da China. Destaque-se que, na Índia e no Tibete,

essas práticas tiveram caráter esotérico. No Oriente Médio e no Norte da África também

foram encontrados, ao longo dos tempos, poemas-objetos, com as implicações culturais

semelhantes. 15 – Anos mais tarde, em 1998, numa palestra proferida durante o Festival de Poesia na Ilha de Porto Seguro, Ana Hatherly corrobora essa idéia de caráter místico ao falar sobre Quando o poeta pensa a escrita (HATHERLY, 2004, p. 99).

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Ana Hatherly, em sua visão diacrônica, considera que os textos visuais, praticados

por diferentes culturas, em diferentes épocas, criaram uma tradição de mensagens visuais,

uma vez que, durante toda a Idade Média e nos séculos XVII e XVIII, se encontram textos-

imagens que, utilizando-se de inúmeros dispositivos, como a organização de palavras, letras

e signos nas páginas, contribuem para uma pluralidade de significados e de leituras. Essa

reformulação, essa nova relação entre texto e imagem culminou no século XIX, com o

poema Un coup des dés, de Mallarmé, poema símbolo dos tempos modernos.

Nesse sentido, a poesia experimental retomou essa tradição, acrescentando novas

formas e novas técnicas ao entrelaçamento entre imagem e palavra, sendo essa a grande

contribuição trazida pela arte de vanguarda. É a partir dessa retomada que Ana diz que

“interpretar é transformar” (HATHERLY, 1981, p. 141).

Outra característica do discurso poético dessa época baseia-se em uma

disponibilidade intrínseca ao valor das palavras, dada pela sua decomposição, o que foi

amplamente explorado pelas poesias concreta e experimental. Ana Hatherly considera, que

a proposta concretista de abolir o subjetivismo da obra de arte tornou-se uma constante na

criação. A poesia começa a utilizar uma linguagem inovadora, capaz de alterar o sentido da

expressão discursiva. O poema, tornado objeto funcional, conclama o leitor a uma leitura

interpretativa. O discurso poético deixa de ser explícito, a expressão poética liberta-se da

significação das palavras, e, assentada em processos sintáticos que produzem um outro

significado, torna possível a leitura do poema, e este na qualidade de texto-objeto, exige

uma participação do leitor no processo criativo.

O aspecto lúdico da poesia de vanguarda do século XX, assim como da poesia do

barroco, é determinante, fazendo que essa arte se torne um jogo, em que tanto palavra

quanto imagem estão ativamente envolvidas. Elas jogam com a transgressão, que é

característica da arte de vanguarda, podendo mesmo ser considerada seu aspecto

fundamental. Em relação à vanguarda Ana Hatherly diz:

A abolição dum mito, ou a sua ultrapassagem resulta geralmente na criação dum outro e assim assistimos a um processo de substituições em cujos resíduos se enforma a qualidade mágica do ato criador: o fascínio (HATHERLY, 1981, p. 142).

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E esse fascínio levou os movimentos de vanguarda contemporâneos a exercerem um

papel subversivo, uma prática de subverter as estruturas lógicas, psicológicas e ideológicas

que compunham a sociedade burguesa, propiciando uma renovação da literatura e das artes.

O poema concreto, com sua postura de ruptura, de rebeldia, lutava contra a tradição, contra

o lirismo, contra o establishment, e por isso foi considerado uma ameaça aos valores

burgueses.

Com as sucessivas transformações, abriram-se novas perspectivas para o poema

concreto, dando origem a novas formas e ampliando o âmbito da leitura até que os modelos

literários tradicionais fossem suplantados pelas novas manifestações poéticas, como a

poesia visual, e outras propostas inovadoras, até chegar aos happenings, dos quais

participavam os poetas do grupo de Poesia Experimental.

Ana Hatherly afirma que os poetas visuais desejavam a universalização da poesia,

pretendendo assim abolir as barreiras lingüísticas e se propagar à escala mundial, o

movimento de poesia concreta foi fundamental para a poesia, que da expressão lírica

tornou-se uma combinação pura de sinais, ou seja, criou um novo deslocamento da palavra

para o signo. Os componentes não-verbais do poema concreto, isto é, os elementos

extralingüísticos que se tornam componentes da linguagem visual transcendem os idiomas,

contribuindo dessa forma para o processo de internacionalização do poema concreto.

Para Ana Hatherly, o poema como objeto suscita no leitor uma reflexão, tornando-o

produtivo e participante de um jogo intelectual. No entanto, os aspectos emocionais devem

ser excluídos, porque estes estão ligados à expressão lírico-discursiva rejeitada pela poesia

concreta, cuja pretensão é firmar-se como objetiva. O concretismo criou seus próprios

significados, em função de uma construção poética que rompe com o símbolo lógico. O

poema experimental rompe mais ainda, ao propor um outro desvendamento, o do mistério

do dizer, isto é, não há a necessidade de se partir de algo concreto para se construir um

significado, podendo construí-lo a partir do próprio vocábulo. Com isso, há um

deslocamento do significante para o significado, gerando novas possibilidades de

comunicação, com a palavra passando a ter um outro estatuto. A respeito disso, afirma Ana

Hatherly:

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A poesia concreta, nas suas formas visual e fônica, é simultaneamente uma expressão realista e abstrata e se é certo que a arte sempre foi abstracta – sempre algo abstrai ou de algo extrai – os poetas concretos acrescentam algo quando dizem: quanto mais a arte abstrai do seu modelo menos se torna mimética, descritiva e enganadora, e portanto mais se torna concreta e verdadeiramente humana (HATHERLY, 1977, p. 95).

A simultaneidade do aparecimento do movimento de poesia concreta, na Europa e

no Brasil, deu origem a diferentes caminhos. No Brasil, predomina a tendência a favorecer

o ideograma e a fidelidade aos princípios de Mallarmé, que defendia a relação intrínseca

entre texto e música, fazendo do poema “uma autêntica partitura”. Na Europa, a poesia

concreta foi influenciada principalmente pelas artes plásticas, via Bauhaus. Essa influência

pós-cubista fez que a poesia assimilasse elementos da Pop Art, quebrando dessa maneira as

fronteiras entre as artes. Seguindo essa tendência européia, Ana Hatherly produziu dois

livros: Mapas da Imaginação e da Memória e O Escritor16, em 1973 e 1975,

respectivamente.

Nessas duas obras, a escritora, utilizando-se de signos não verbais, onde a palavra se

torna desenho, apresenta uma narrativa visual que, seguindo uma seqüência de discurso

determinada, evoca acontecimentos, indicando que, no desenho, a visualidade não precisa

de maiores explicações, bastando para tanto que se entenda o mecanismo a que se recorre,

isto é, o dispositivo da narração. Os textos citados são uma reflexão sobre a

comunicabilidade ou incomunicabilidade do texto, sua legibilidade ou ilegibilidade,

resultantes de pesquisa, para descobrir os mecanismos da escrita, experimentalmente.

O experimentalismo de Ana Hatherly apresenta uma vertigem, o que a coloca no

limiar das possibilidades, sem, no entanto perder o raciocínio quase científico, característica

de sua obra, o que lhe possibilita a experimentação e dá unidade ao seu trabalho. A partir

das experiências com textos ilegíveis, aqueles que devem ser reconhecidos e identificados,

mas não necessariamente lidos, e que, possibilitam uma gama enorme de leituras.

RATATOCK! des pliques &des plock

16 – Em sua obra, e nessas duas em particular, Ana Hatherly produz um discurso reflexivo, definindo a interdependência e a complexidade da escrita e da pintura. “O meu trabalho começa com a escrita – sou um escritor que deriva para as ares visuais através da experiência com a palavra. HATHERLY, 2004, p. 77)

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RATAPLOCK! titorolock. toplock. je t’ en mock. toc. je t’ en plock. Frock. poporolock. piporocock. troploctictictoc (HATHERLY, 2004, p.188)

Ana Hatherly desenvolveu sua poesia visual, afirmando que ela “transcende e

engloba o problema do conteúdo ao nível do significado” (HATHERLY, 2004, p. 148), ou

seja, o alargamento do significado se dá de tal forma que ele não fica mais restrito a um

conteúdo específico, literal, limitado pela forma gráfica, uma vez que os signos gráficos

comportam ilimitados significados. No desenho, o pensamento visual não precisa ser

deduzido, ao contrário do que muitas vezes se imagina, pois ele próprio é a essência, a alma

do assunto, proporcionando inúmeros significados. No desenho, ou texto-imagem,

entrevemos o funcionamento de um mecanismo em que ele atualiza um fundo potencial.

Quer dizer, o modelo é a imagem, que, ao mesmo tempo em que nos induz, também nos

posiciona, nos guia, na realização do ato mágico, onde o mundo se deixa reunir na imagem

e dura o tempo dessa composição. E só na transparência do desenho é que a composição

revela sua verdadeira natureza.

Essa poética inter-artes, em que o desenho/pintura é a poesia, é também a explosão

contemporânea de códigos de representação, que pretendem abolir as categorizações

hierárquicas entre as artes, uma ação semiótica. No cenário da poética visual, tem-se de

levar em conta que, o contexto da intertextualidade é fundamental para o entendimento

dessa ambigüidade territorial entre palavras e imagens. Por outro lado, a palavra só assume

sua significação no diálogo com outra palavra, com outro discurso, onde se fazem presentes

outras vozes, outros acentos, sociais, de classe, de gênero etc...

A abolição de fronteiras entre os diversos campos e disciplinas, que é uma das

características mais recorrentes e comumente aceitas da vanguarda, pode ser algo positivo

para uns, mas perigoso ou pernicioso para outros, e para isso alerta Ana Hatherly:

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A queda de fronteiras entre as artes exigida pelas vanguardas desde os princípios do século produziu-se de facto, inclusive no íntimo de cada uma delas, e hoje podemos assistir aos diferentes desdobramentos dentro de cada área específica que, por isso em muitos casos, se tornou menos exclusiva (HATHERLY, 1981, p. 77).

Dada a falta de exclusividade dos desdobramentos em cada campo artístico, Ana

Hatherly acentua a valorização preferencial do espaço, onde a palavra livre e em

movimento se opõe aos valores tradicionais do texto. Diz ela que é próprio do autor meditar

sobre o grau de legibilidade de um texto, meditar sobre o desgaste da língua sob o peso das

sucessivas ideologias e avaliar até que ponto há limitações na decifração da mensagem. E,

com base em Wittgenstein, a autora afirma que nem tudo é sempre legível, sempre dizível

ou sempre decifrável, sendo que o objeto mais amplo da arte se inscreve nessa zona de

obscuridade, e embora sujeito a limitações de expressão e interpretação, permite “infinitas

leituras criadoras” (HATHERLY, 1981, p.149).

Diante da contínua evolução da ciência e da tecnologia, o indivíduo criador, o

artista, o poeta, deixou-se influenciar por tais descobertas inovadoras e refletiu isso em sua

obra, fazendo estreita correlação entre um dado tipo de texto e um dado tipo de contexto,

que embora reconhecível, porque conhecido, se mostra cristalizado em sua obra, de um

modo que cria novos sentidos. O uso do termo inter-artes, aponta para a necessidade de

diluição das fronteiras entre as diversas artes e, embora focalizando a atenção no diálogo

entre elas, aponta para o hibridismo e a fluidez pertinentes ao tempo em que vivemos.

Quando Ana Hatherly diz que todo texto suscita a crítica, e que o crítico é um leitor

especializado, ela coloca esse crítico entre o texto e o autor, e entre o texto e o leitor, com

uma função teórica, que seria a de contribuir para uma comunicação, um esclarecimento,

permitindo que haja uma relação de interdependência ou co-participação entre as partes

implicadas, ou seja, que o autor e leitor mantenham um dado relacionamento através do

texto.

No particular universo de Ana Hatherly, unem-se tradição e modernidade, palavra

escrita e palavra desenhada, sentido e imagem. Para ela poesia e poesia visual são duas

faces, inseparáveis, de um todo que são sua reinvenção do signo, que, abrindo territórios da

imaginação proporcionam uma reinvenção da leitura. Assim, a palavra inscrita numa

realidade ambígua, no caso específico, num momento de transição entre o antigo e o novo,

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entre o tradicional e a vanguarda, torna-se também ambígua. E essa ambigüidade da escrita

apresenta uma pluralidade de significados, provocando uma forma de reinvenção da leitura,

recriada pela interpretação. E nesse sentido Ana Hatherly diz:

E o seu grau de maior ou menor inteligibilidade, quer dizer, o seu

teor informativo, quer dizer também a sua maior acessibilidade imediata, é o que vai definir o seu grau de comunicação e a exigência duma leitura adequada. (HATHERLY, 1981, p.147)

2. 2 – Mensagem

A partir da teoria lingüística de Roman Jakobson, são determinados os principais

critérios, ou seja, os modos fundamentais a serem usados na organização do processo

verbal, a fim de permitir o reconhecimento empírico da função poética. São eles: a seleção

e a combinação.

A seleção usa os seguintes princípios de similaridade, equivalência, semelhança,

dessemelhança, sinonímia e antonímia, enquanto a combinação está apoiada no princípio da

contigüidade, uma vez que é através dela que se faz a construção da seqüência. Portanto, o

objetivo da função poética é projetar “o princípio da equivalência do eixo da seleção sobre

o eixo da combinação”. (HATHERLY, 1981, p.132). Quer dizer, para se comunicar

verbalmente, selecionam-se vocábulos a partir de uma similaridade de significados entre

eles e se constrói uma seqüência, visando produzir uma combinação entre as palavras

escolhidas para que estas possam dar corpo à mensagem desejada.

A ambigüidade é uma propriedade inalienável e o elemento indispensável em toda

obra poética, fazendo que a mensagem poética esteja aí centrada. Então, além de a

mensagem poética ser ambígua, tanto o destinador quanto o destinatário também se tornam

ambíguos, isto é no sentido da não serem fixos os sentidos propostos. A ambigüidade de

qualquer texto criativo reside na possibilidade de interpretação múltipla admitida pelo

código da fala/escrita, mas também pelos desvios que o texto permite, como uma estrutura

viva em constante processo de transformação.

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Além desses fatores, temos a reiteração da mensagem poética, que pode ser imediata

ou não, mas que toma a forma de propriedades facilmente reconhecíveis na poesia.

A ruptura da poesia experimental com os ditames dos processos tradicionais

provoca o surgimento de um novo modelo, por necessidade de se expressar uma nova visão

particular do artista acerca da realidade, o que gera um grau de recusa muito grande, de

uma enorme luta, até que esse experimentalismo se imponha ao modelo cultural por meio

da criação de um novo padrão de sensibilidade, padrão esse que a partir do agir do leitor,

promova interpretações de acordo com sua capacidade criativa.

No seguinte trecho do poema A vida pessoal e subjetiva na segunda metade do

século XX, a experimentação está na confrontação das duas colunas separadas, onde os

textos da coluna esquerda são citações, e os da coluna da direita são criações da autora:

Abro a boca caio atravesso-te Quero Ser Ser A vida interior diluo reverbera com as me tremo vozes dos outros te perscruto (HATHERLY, 2004, p. 250) Para Ana Hatherly o processo de criação poética da poesia experimental é sem

dúvida alguma a insistente experimentação, e através das tentativas de acerto e erro do

poeta é que esse processo se torna sistemático. Para a autora, a criação é um ato lúdico

usado pelo poeta de forma consciente, a partir de regras criadas por ele e cujo resultado é o

poema.

Falando sobre a poesia concreta, Ana Hatherly proporciona uma reveladora

contribuição da consciência do uso e do desgaste das formas de comunicação verbal,

destacando o esgotamento de mensagens comunicadas e comunicáveis e já apontando para

novos caminhos, direções e modelos:

A utilização de linguagens não verbais em sobreposição (ou não) à linguagem verbal veio alargar notavelmente o campo da leitura para fora dos âmbitos geralmente aceitos pela tradição. (HATHERLY, 1979, p. 110)

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O caminho de pesquisa privilegiado por Ana Hatherly pauta-se pela experimentação

e pela investigação discutindo o papel das textualidades na conformação do espaço textual

de suas criações. Buscando em suas releituras, atualizar temas, a autora não deixa todavia

de apontar conseqüências importantes advindas desses "perturbantes paralelos", afirmando

que esse tipo de texto do passado "convida a uma confrontação expressa com a experiência

do presente" (HATHERLY, 1995, p. 106) e para explicar a natureza e também o

funcionamento dos labirintos barrocos , ela diz:

torna-se por vezes bastante evidente a espécie de repetição ordenada que o ciclo da invenção parece percorrer e em que está sempre presente o conceito de jogo: a noção de rigor implícita no risco.(HATHERLY, 1995, p. 106)

Com a redescoberta do barroco e da surpreendente afinidade técnica no trabalho

com a palavra, feita através do jogo lúdico, Ana Hatherly está à procura do bem dizer,

eliminando assim a discursividade rebuscada e prolixa em favor da síntese, fazendo a

aproximação com o modernismo. Com isso, a autora parece colocar em cena um elemento

importante na história da literatura, isto é, a possibilidade de uma abordagem cíclica da

renovação literária. No caso, em tais momentos, as restrições construtivas da literatura

assumiriam ainda mais evidentemente sua face lúdica.

Segundo Ana Hatherly, somente modernamente começou-se a pensar o problema da

leitura como uma experiência semelhante à atividade do tradutor, a questão da transferência

do significado e sua aproximação da mensagem original, que é o intuito da tradução,

sempre se deturpa ou ao menos se altera na comunicação. As linguagens, bem como as

línguas, apesar de funcionarem em circuito fechado, formam um circuito tão labiríntico e

vasto que na transposição, na tradução, de palavra para figura, de uma língua para outra, do

texto para o leitor, apresentam vastíssimas possibilidades combinatórias.

Quando comenta After Babel17, de George Steiner, Ana Hatherly observa que “os

aspectos da inevitabilidade histórica da comunicação” (HATHERLY, 1979, p. 108) advêm de

17 – Nessa obra, Steiner trata do problema da tradução ou decodificação da leitura, chegando mesmo a definir significado como “uma função do antecedente sócio-histórico e da resposta partilhada”. (STEINER, 1975).

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modelos que possibilitam um ponto de contato possível, promovendo a identificação entre

épocas, povos e culturas e constituindo um padrão de sensibilidade ao qual nos

identificamos podendo-se ainda negar as estruturas particulares nossas ou de nossa

civilização. Daí podermos concluir que a história da civilização “é a história da

imaginação dos povos, ela é também e sobretudo a história do seu vocabulário”

(HATHERLY, 1979, p. 108), como diz Ana Hatherly citando Steiner, uma história de

modelos e formulários aperfeiçoados, modificados, repetidos e esgotados pelas inúmeras

reinterpretações.

Devido à multiplicidade da natureza dos signos empregados, à maneira como são

dispostos, as cores usadas (que permitem leituras várias), a leitura final de um poema visual

pode, às vezes, ser pouco acessível. No entanto, percebe-se que, com o uso de uma certa

tradição da narração, com o uso de figuras de fácil reconhecimento, há uma facilitação da

leitura, levando a uma eficácia desta leitura.

Essa dupla visão da leitura decorre da diversidade de interpretação e decodificação,

pois os elementos precisam ser plenamente entendidos e recriados para serem totalmente

fruídos, e essa recriação dá-se a cada novo contato do leitor com o texto, sem prejuízo de

um dado núcleo comum um tanto cristalizado.

2.3 – Poesia visual como jogo

A principal tendência da poesia experimental, incluindo aí a poesia visual, consiste

em explorar ao máximo as possibilidades estruturais de um dado material artístico

independentemente de qualquer intenção significativa, implicando numa renovação do

texto, o que para Ana Hatherly essa subversão é o jogo que os poetas utilizam para jogar

com os múltiplos elementos da comunicação.

Através dos poemas visuais, Ana Hatherly busca cumprir um dos pressupostos da

Poesia Experimental, que é uma proposição de significação a partir da visualidade do texto,

trabalhando o espaço poético de forma concreta, isto é, ocupando-o com imagens, sejam

elas desenhos ou letras. A poesia experimental portuguesa trabalha no nível da intervenção

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política – vide a obra O Escritor18, composta numa época de censura rigorosa – juntando a

economia da frase e da experimentação gráfica no poema como forma de fazer a crítica do

contexto social.

Ao explicar O Escritor, uma de suas obras-ícone de poesia visual, Ana Hatherly diz

que a leitura desse texto visual deveria ser feita segundo normas nele propostas, sem que

seja necessário “traduzi-lo”, pois essas poesias visuais continham a possibilidade de

inúmeras leituras. Apesar de desejar uma interpretação livre para a obra, numa entrevista a

um programa transmitido pela RTP [Rádio e Televisão Portuguesas], Ana Hatherly sugeriu

que a narrativa poderia ser dividida em quatro capítulos, quais sejam: o nascimento do

texto, os problemas da escrita refletindo os problemas do autor, a solidão do escritor e a

lápide ou estrela funerária dos modelos da cultura.

Ainda falando sobre O Escritor, há nele um fio de meada a ser seguido, pois em

suas diferentes partes narrativas observa-se um visualismo que poderíamos chamar de

didático, que guia obra, mantendo o sentido tradicional, com letras e figuras facilmente

reconhecíveis. É um trabalho em que Ana Hatherly, através do resultado da sua

experiência, retratar um percurso e a petrificação no texto, onde o discurso e a linguagem

imperam pondo lado a lado signos variados e liberdade. A respeito desse trabalho, a autora

explica:

O Escritor, elaborado entre 1967 e 1972, pode-se dizer particularmente característico da fase difícil que atravessaram alguns escritores portugueses da geração da autora em que o desânimo e a descrença e, por outro lado, a revolta e a repulsa, ao mesmo tempo que os impelia a prosseguir minavam o seu trabalho. Nesse aspecto é também uma representação necessária dum estado de repressão prolongado. (HATHERLY, 1975, p. 75)

No tocante a isso, outra emblemática obra, Mapas da imaginação e da memória,

pode ser considerada uma síntese do movimento de Poesia Experimental. Criada a partir de

uma investigação sobre escrita arcaica chinesa, “interiorizando-a como gesto que se auto-

18 – O Escritor datando dos anos sessenta, só foi publicado em 1975, depois da queda da ditadura salazarista, e como diz a autora é “uma narrativa visual em vinte e seta fases, onde cada imagem é um pictograma (...) cujo significado é posto em movimento pela leitura”, assim é que essa associação de imagens-signos associa-se a uma reinvenção da leitura.

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conceptualiza – ou, como então eu disse, até a minha mão se tornar inteligente”

(HATHERLY, 2004, p. 108), a autora procura conceitualizar sua busca, uma conceitualização

feita dentro dos modos de agir no âmbito da linguagem, para enfim transferir a

aprendizagem para a escrita ocidental. Com isso, Ana Hatherly, buscou apropriar-se do

modo chinês arcaico, que percebe e registra o mundo através da “escrita” ideogramática, o

que contrasta com o modo ocidental, gráfico e não ideográfico. Um processo cheio de

riscos, que poderia ser bem sucedido ou não, e que se justifica, porque “para o

experimentalismo o processo, o percurso da experimentação é já um valor em si”

(HATHERLY, 2004, p.108).

Ao dominar esse modo de escrita, Ana Hatherly fez combinações da lógica do modo

de escrita chinesa arcaica com a do modo ocidental. E isso, a seu ver, desautomatizou seu

agir perceptivo, escritural e poético, dando-lhe liberdade para experimentação, assim Ana

Hatherly se diz “livre para utilizar ou não qualquer dos seus elementos constituintes, de

uma forma prevista ou não nos códigos vigentes” (HATHERLY, 2004, p. 108). E as duas

alternativas, “utilizar ou não”, “prevista ou não”, sugerem a liberdade buscada pela autora

em sua poesia.

O estilo experimental da poesia de Ana Hatherly é desenvolvido principalmente, em

seus textos visuais, onde se encontram jogos combinatórios e permutacionais, que segundo

a autora, já apareciam nos antigos anagramas e labirintos do barroco. Nos textos visuais, o

que está em jogo é, a escrita como objeto, a quebra do vínculo tradicional entre significante

e significado, o jogo lúdico.

Vemos que a obra visual de Ana Hatherly é marcada por um caminho muito

próprio, onde escrita, escritor, artista e objeto visual se encontram, se fundem ou se

desconstroem, (re)inventando e (re)criando universos, códigos e linguagens. Devido à sua

apurada formação musical, seus poemas, sejam ou não visuais, têm a marca da

musicalidade19, tal como preconizado por Mallarmé.

Sobe o sabor do saber Acima da indiferença

19 – Essa marca da musicalidade deve-se a seus estudos de música barroca, que lhe ensinaram disciplina e rigor. Como a própria autora diz: “Ao assimilar-se o rigor, está-se livre para brincar ou não” (HATHERLY, 2004, p. 149).

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Por onde passa o saber passa o sabor da diferença (HATHERLY, 2004, p.263)

A partir do movimento Experimental, Ana Hatherly foi levada a uma investigação

histórica do texto-visual, quando então pôde comprovar a surpreendente afinidade técnica

entre algumas de suas criações literárias dos anos 1960 e algumas composições medievais e

barrocas, períodos que serviram de inspiração para suas releituras. Deve-se destacar que,

como fenômeno europeu, e até mesmo mundial, a poesia visual antiga era pouco conhecida

e estudada. A motivação que levou Ana Hatherly a pesquisar essa poesia, não foi como

poderia parecer um desejo de justificar a poesia visual do século XX por ela praticada, mas

desejar conhecer suas raízes.

Em suas reflexões sobre o ato poético, pensado à luz do experimentalismo, algumas

das regras básicas do experimentalismo dos movimentos de vanguarda poderiam

perfeitamente ser aplicadas aos movimentos do passado, principalmente se pensarmos que

a marca da poesia contemporânea é o “neo-arcaico”, que ganha estatuto de gosto de ser

atual e capaz de promover uma experiência contemporânea.

Diferentemente de muitos autores europeus e mesmo norte-americanos, que nas

décadas de 1960 e 1970 faziam poesia–visual como imitação de textos barrocos, medievais

e até mesmo alexandrinos, para Hatherly o conhecimento destes textos e sua

disponibilidade no horizonte poético podem tornar-se o ponto de partida para que sejam

trazidos ao convívio da poesia contemporânea, reinventados, reinterpretados e renovados.

A tradição, que é forte marca da cultura portuguesa, também pode ser vista como

um continuum memorial, através da fusão da tradição existente, de um aprofundamento da

memória o poeta integrado ao momento histórico–cultural transmite de forma peremptória

o que está implícito em sua relação com o mundo. A proposta estética da poesia espacial ou

visual é o reconhecimento de que a condição da arte é um estado conceitual e clama a

particularidade de assentimento em ser vanguarda, o que transforma a qualidade da arte

poética experimental numa experiência, e mais do que qualquer outra coisa, “indica não ter

ela perdido entre os portugueses a posição de outsider” (MOTTA, 2004, p. 18).

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Essa aceitação está diretamente ancorada numa possível apreensão do movimento

do ato experimental como busca de conceituação da opção estética através de uma certa

relevância satisfatória, onde o gosto de ser vanguarda postula: “isto é arte portuguesa”

(MOTTA, 2004, p. 14), mesmo que se saiba que o pioneirismo alardeado é uma constante na

cultura portuguesa.

Num texto publicado em Lisboa no Diário Popular de 25-5-67, e posteriormente

incluído na coletânea de textos PO.EX., com o título Estrutura, Código, Mensagem, a

autora afirma:

O poeta define-se pela atividade criadora, a qual se define a si própria

como ato lúdico. O poeta joga com o código jogando-se nele. Toda a criação é um jogo cuja utilidade nem sempre é imediatamente apreensível, dadas as limitações do código. (HATHERLY, 1981, p.137)

Ao aceitar o poeta como um criador de mensagens, Ana Hatherly também o aceita

como o criador, ao qual cabe o papel de conscientizar, de despertar a comunidade, pois a

arte é sempre uma reflexão sobre o código, um “metacódigo” que chama a tenção para a

automatização deste.

A autora diz aceitar o estruturalismo de modo incondicional. Mas o que surpreende

é que ela, ao atribuir ao poeta um labor lúdico, num processo de utilidade, dentro dos

limites estabelecidos pelo código de linguagem, está demonstrando um sentido contrário ao

que preconiza. Isto é, a poesia não precisa ser pensada em relação à perda da sua evidência

lúdica anterior, através de modificações de jogadas criadoras feitas pelo sujeito de acordo

com as possibilidades concretas de comportamento e dos procedimentos dados ao seu

discurso.

No ato lúdico, essa promessa de uma atividade criadora deixa à margem a força que

o ato artístico desencadeia contra seu próprio conceito, isto é, de que a poesia seja poesia. E

aí é que se encontra o que escapa à poesia Experimental Portuguesa, a questão da

visualidade do espaço poético e o predomínio da temática sobre as estratégias de

composição, apesar de saber, ou parecer que sabe, dos múltiplos experimentos no domínio

da arte.

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Simuladora, a poesia dá ares de pertencer à ação lúdica, consolidando a idéia de que

carece de explicação em outros saberes, como se houvesse alguma possibilidade de evitar o

seu saber ou adiar o reconhecimento da herança literária da modernidade: a poesia é a sua

própria teoria, joga sem jogador.

A Poesia Experimental afirma que o sujeito criador é passível de reverter a perda do

seu domínio poético, a partir de um impulso lúdico que se integra no ponto de partida

subjetivo para o mundo da informação. Mas ao pensar nos experimentos de Mallarmé,

apesar dos procedimentos experimentais, eles se encontram organizados subjetivamente,

colocando por terra a crença de que a poesia se esquivaria através daqueles procedimentos à

subjetividade do criador e de que a poesia não faz mais do que blefar.

Ainda assim, a poesia depois de Mallarmé, saiu da fortaleza que era sua forma,

deixou a estabilidade representada pelo tempo histórico, para ingressar na instabilidade do

espaço a poesia saiu do discurso para virar constelação, como diz Ana Hatherly em seu

texto Algures – O espaço da significação:

A palavra agora circula no espaço da página, desliga-se do cordão umbilical do tempo, progride na imponderabilidade perigosa (où rien ne pèse ni pose), mergulha no seu próprio espaço de dissolução e nascença. (HATHERLY, 1979, p. 49)

E é aí que a categoria de jogo usada por Hatherly enuncia que o objeto funcional, a

poesia visual, tem origem no objeto mágico. No entanto, essa categoria traz por vezes

equívocos, pois como diz a autora tudo na vida é jogo, no sentido metafísico.

Essa questão do novo, para uma cultura tão afeita à categoria do gosto, brota

forçosamente do próprio objeto artístico. Isto quer dizer que a feitichização do novo

exprime o paradoxo de toda arte desde o início da modernidade, que a poesia realizada deve

ser feita por si mesma. Mas esse paradoxo se desfaz ao se observar as múltiplas investidas,

ainda românticas, da apreensão subjetiva da atividade criadora. Essa dicotomia entre o fazer

e o pensar é evidente em um texto de Ana Hatherly na Casa das Musas, que diz:

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Pela variedade de modos como tem sido posta em prática pelos

diferentes experimentalistas de todo o mundo, a Poesia Visual viu o âmbito de tal maneira alargado que hoje engloba a produção dum vasto grupo de textos e/ou objetos que, nem sempre tendo a ver com poesia de tipo tradicional (dependente de certas regras rítmicas e certos recursos retóricos), sempre tem a ver com o discurso, mesmo quando este deixa de ser verbal. (HATHERLY, 1995, p. 68)

Quando, em Texto e visualidade, de 1979, a escritora discute a dificuldade de

estabelecer o início e o término do poema visual historicamente, ela a compara à

dificuldade de se estabelecer também historicamente o começo e o fim da obra poética, e a

isso deveria se juntar também a questão do que é ou não escrita, do que é ou não

reinvenção, do que é ou não leitura. Essa questão é mais um ponto de convergência entre os

textos–visuais do experimentalismo do século XX e do Barroco, e a “identificação

progressiva entre o texto literário e o texto visual torna-se cada vez mais acentuada”

(HATHERLY, 1979, p. 96), observando-se um continuum que promove uma ligação entre o

novo e o velho, o antigo e o moderno, reconhecendo-se e identificando-se como de uma

mesma família. E, para Ana Hatherly, esse continuum faz parte do jogo, como o afirma na

Casa das Musas:

“O continuum que eu descobri era o continuum do ato criador como

processo, de que é preciso tomar-se consciência a fim de se jogar eficazmente”.(HATHERLY, 1995, p. 73.).

Quando falamos da ruptura que o Movimento Experimental trouxe para a poesia do

século XX, temos que levar em conta que esta ruptura nos cânones poéticos e sintagmáticos

não foi igual, e sequer do mesmo nível da empreendida pelo Futurismo, o qual postulando

um desligamento total com o passado, sobrevalorizava o futuro. O Experimentalismo, ao

assumir e intervir no presente contesta no passado o que ele tem de acadêmico e de

imobilizante:

Durante esse período, o Movimento da Poesia Experimental

Portuguesa foi assumido por aqueles poucos poetas que tiveram a coragem

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de por seu talento e sua energia ao serviço dessa causa ingrata, e ingrata porque em parte se destinou a funcionar como campanha de desmistificação dum discurso retrógrado que então parecia querer dominar um largo setor das nossas letras, em reflexo dum meio que vivia ancorado na acomodação e no marasmo. (HATHERLY, 1995, p. 98)

Ao fazer esta afirmação, em A casa das musas, Ana Hatherly, corrobora a idéia de

que era preciso a chegada do novo, mesmo que como um simulacro de novo, para despertar

da letargia a cena cultural portuguesa, onde a poesia estava a declinar o sentimento de sua

impotência latente. Ao usar a categoria de jogo, a poeta atribui a origem da poesia concreta

ao objeto mágico. Mas, se colocarmos na categoria de jogo o poeta contemporâneo,

moderno, barroco ou medieval, ele é aquele que destrói o instante nas compulsões da

jogada, sem que se possa dizer que ele é um jogador. E “quanto mais hermeticamente

fechado na jogada, sem a feição de que é ele quem joga, mais sua poesia se reduz à

subsistência do sublime ordinário” (MOTTA, 2004, p. 21).

Alguns textos representativos do estilo barroco português tardio, incluídos num

antigo tipo de poesia laudatória visual, e que supostamente tem origem no Panegírico a

Constantino Magno, composto durante o século VI, podem ser incluídos na categoria dos

Labirintos, uma vez que representam possibilidades de leituras múltiplas, num jogo de

visualidade, independentemente do assunto tratado. Tal como nos poemas visuais de Ana

Hatherly, essas obras apresentam letras dispostas de forma técnica na tentativa de facilitar a

apreensão do texto. Há também os que apresentam em forma de pirâmide, cujo conteúdo

está disposto graficamente a fim de construir uma figura designada por Pirâmide Literária,

que apresenta uma leitura diferente para cada tipo de intenção, uma simbologia própria e

pode ter como tema louvar a vida, celebrar o nascimento de um príncipe, lastimar a ruína e

a morte ou laudatória, em intenção a algum santo.

Quando se conhece o funcionamento das bases teóricas dos labirintos e anagramas,

bem como em textos onde era usado o processo combinatório, percebe-se a importância

dada ao cumprimento de um programa de composição, o que constituía um valor por si

mesmo. Algumas das características desses textos, como recursos de técnica de combinação

e de permuta os aproxima do Movimento Experimental do século XX.

Embora trouxessem em si o desejo de comunicação imediata com o leitor, os textos

experimentais e visuais, em alguns casos, tornaram a poesia verdadeiramente ilegível. No

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entanto, com o passar do tempo e com a sua constante divulgação, a aceitação do texto-

imagem passou a integrar antologias em que os autores eram levados a, além de publicarem

suas obras, repensarem-nas escolhendo-as e selecionando-as como que a fazer uma crítica

histórica de sua própria obra.

A fragmentação ou a cegueira é o castigo para o atrevimento que a palavra atualiza.

O poeta não domina a linguagem sendo antes dominado por ela. Ao consagrar-se à palavra

ele oficia a sua rendição. Não está aqui a explicação para o inebriamento que acomete o

poeta no instante da possessão pela palavra? Neste sentido, a poesia é o mais radical dos

jogos (em especial a poesia experimental), abeira-se do aniquilamento para que a palavra

renasça com um ímpeto insuspeito. Ao subverter a mortalidade, o poeta incorre no maior

dos perigos com a inocente perfídia de um jogador compulsivo.

o poeta é um guardador guarda a indiferença guarda da indiferença no incerto

guarda a certeza da voz (HATHERLY, 2004, p. 264) 2. 4 – Texto, leitura e experimentação O texto é um objeto empírico, inacabado, com estrutura em permanente mutação, é

um complexo de significação. O significado de um texto é guiado por linhas de força que

dão o curso do significado. Quando um autor cria um texto, seja ele em prosa ou verso, ele

recorrer a uma seleção de vocábulos, dentro da língua.

Para Ana Hatherly, o criador é sempre um experimentador, já que ela considera que

ela considera que experiência e experimentação são indissociáveis num processo criativo.

Através da experimentação o artista explora novos territórios que vão lhe proporcionar

novas descobertas, e isso a autora procura fazer em seus textos poéticos.

Quando Ana Hatherly fala da necessidade que todo artista tem de criar, ela descreve

sobre sua própria experiência na poesia experimental, onde ela se coloca como “poeta-

pintora ou pintora-poeta” (Hatherly, 2004, p. 103), como disse na palestra. As imagens das

palavras e as palavras das imagens. Essa referência é uma clara alusão à sua atividade de

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poeta, criadora de imagens, pois o poeta projeta-se através da linguagem, e esta se

apresenta em duas vertentes: a linguagem da fala e a linguagem da escrita, que juntas

compõem o texto.

Para Ana Hatherly a escrita é uma fala muda que desperta o imaginário, evocando

no leitor uma infinidade de imagens. Assim, juntos, escritor e leitor apóiam-se na força da

imaginação para operar a codificação/ decodificação das imagens, que podem ser

apresentadas através de todo e qualquer tipo de escrita, visual, sonora ou gestual, e havendo

a decodificação a comunicação se estabelece, “mesmo que essa comunicação deseje

comunicar a sua incomunicabilidade”. (HATHERLY, 2004, p.104).

No trabalho da autora, o desenho surge como a pura evidência do processo criativo

nos seus automatismos, imediatismos e surpresas são mapas de sinais com uma existência

paralinguística que propõe uma maneira impressionante de trilhar os caminhos da poesia

experimental. As técnicas utilizadas por Ana Hatherly na composição de seus poemas

apresentam uma prática de escrita com uma perspectiva globalizante, isto quer dizer que,

além de transformar os significados já fixados a priori em significantes que produzem

novos sentidos, ela defende que sua obra pretende mostrar as diversas modulações do

grafismo.

Sua poesia é feita de percursos, nos quais nada é linear e ao pretender romper com o

imobilismo, “apoiada num espírito experimental baseado no princípio do acerto e do erro

que permite avançar para o desconhecido” (HATHERLY, 2004, p.108), é que Ana Hatherly

investiga, improvisa e cria:

perseguindo uma forma de pensamento que corresponde a uma ascese, uma forma de pensamento que obriga o experimentador que eu sou, a manter-se sempre vigilante. (HATHERLY, 2004, p. 108).

Isso quer dizer que a experimentação poderá produzir em seus leitores uma intensa

emoção, e com seu pendor ao jogo de palavras, a exploração de certos tipos de sonoridade,

dão indícios do lúdico que Ana Hatherly costuma explorar em suas composições. Ao

investigar os limites da escrita, a autora procura por à prova as diferentes facetas icônicas e

plásticas que compõem os elementos da escrita, e ao intervir nesse território, atinge as áreas

da plasticidade, ultrapassando as fronteiras tradicionais, principalmente no que se refere à

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questão dos códigos das mensagens. Em suas próprias palavras, “foi o que me propus e

proponho ainda fazer com as minhas pinturas verbais” (HATHERLY, 2004, p.108).

um primeiro um após um primórdio um primário um primícia um preceito um proposta um receio um resposta um retido todos : tudo : sobre o destruído (HATHERLY, 2001, p.350)

Essa experiência com as palavras surge para violar as leis e regras previamente

estabelecidas, provocando a ilegibilidade transgressora, em exercícios diários feitos pelo

poeta para arriscar-se na singularidade dos textos criativos.

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O poeta não quer duplicar o mundo

não quer fazer dele uma cópia: Luta com a palavra como Jacob lutou com o anjo mas a escada que ele sobe conduz a outras alturas a outras planuras É assim que o poeta palavra por palavra como pedra sobre pedra constrói o edifício do poema E a sua mão robótico instrumento comandado pela algébrica lógica do sentido oculto produz deve produzir o que o mundo não tem o que o mundo não diz o que o mundo não é

(HATHERLY, 1998)

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3 – A produção Poética

Para examinar a produção poética de Ana Hatherly, a opção foi por um recorte em

sua obra, uma escolha dentre inúmeras opções, de que resultou a análise, bastante

impressionista, de três poesias que considero mais representativas do seu engajamento com

a Poesia Experimental, e de sua pesquisa sobre do conceito de escrita. Quando se fala de

escrita no sentido gráfico visual, obviamente estamos nos referindo a um estágio já bem

avançado da história da escrita. Em relação a isso, a autora comenta:

A nossa escrita de hoje, mesmo a produzida eletronicamente, continua a ser uma forma de aprisionar a voz – é uma escrita da voz – mas o desenho-pintura-de-signos que a escrita fisicamente é revela e transmite todo um mundo que excede o da fala, uma vez que os elementos que a constituem são formas, formas-objetos, e não apenas representações inertes de coisas, idéias, sensações, etc. (HATHERLY, 2004, p. 99).

Portanto, o trabalho de pesquisa de Ana Hatherly, com formas antigas de escritas, a

levou ao experimentalismo gráfico, que é a marca de sua poesia visual, e que expressa o

caráter de um complexo pensamento. Este, exigindo um código para ser decifrado põe em

prática a função de reinvenção da leitura, que reconhece ser o leitor também um criador,

mesmo que de outro ângulo. Discorrendo sobre isso, Ana Hatherly nos diz:

Quando o poeta não apenas escreve mas pensa a escrita, penetra no âmago da sua própria criação, e o leitor, refazendo esse percurso, torna-se também, de certa maneira, um criador, repondo no texto a presença do autor que a escrita oblitera. (HATHERLY, 2004, p.101).

Assim sendo, a poesia de Ana Hatherly está sempre propondo ao leitor novas

descobertas e significações. Acreditando que a poesia é sempre experimental porque busca

conotações insuspeitadas, o experimentalismo de Ana Hatherly a coloca no fio da espada,

quer dizer, mesmo quando faz poesia com palavras, e não com imagens, ela as trabalha para

obter um efeito visual, colocando palavras soltas na página como se dançassem um ritmo

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ditado por Mallarmé. Essas palavras ora dialogam com Álvaro de Campos, o heterônimo

pessoano comprometido com a modernidade, ora reproduzem um mote camoniano,

desenvolvendo variações que funcionam como processos de permutação, tão caros ao

experimentalismo.

A criatividade de Ana Hatherly está assentada em um complexo de apreensões de

sucessivas descobertas. Seu trabalho resulta de uma meditação sobre a escrita e o ato

criador interessando-lhe especialmente o mistério da criatividade:

A criatividade surge, assim, como uma forma de reinvenção, de

remanipulação, algo que tem por detrás todo um saber herdado, ou se quisermos, mesmo uma arqueologia do saber, inclusive do “saber fazer”, a que dantes se chamou arte e hoje geralmente se chama cultura, ofício, metier, técnica, mas também todo um saber ver, um saber sentir e um saber entregar-se. (HATHERLY, 2004, p. 93).

Em seus textos poéticos, no tocante à escrita e à criação literária, a intertextualidade

se realiza através da busca por uma interlocução com o passado, que a leva a releituras e

diálogos, extraindo da literatura portuguesa o que há de mais simbólico, a modernidade de

Fernando Pessoa e a tradição representada por Camões.

As poesias escolhidas são: Eros Frenético, Noite Canto-te Noite e Leonorana. Esses

são poemas do livro Eros Frenético, que foi publicado em Lisboa em 1968. Mais tarde

esses poemas integram a coletânea Um calculador de improbabilidades, 2001.

Dois desses poemas, Noite Canto-te Noite e Leonorana, têm como característica

comum o princípio de tema e variações, usando processos combinatórios e técnicas de

composição musical com o material verbo-visual.

Ao se dizer uma poetisa experimental, Ana Hatherly escreve uma série de textos

teóricos para tentar definir o que é experimentalismo poético. Entretanto, é óbvio, que essa

insistência em querer teorizar para dar conta do processo de criação não esgota as questões

e as interpretações de suas poesias. Pois não parece haver dados para dizer que um autor,

um poeta possa realizar-se por inteiro na sua teoria poética, assim como também não creio

que consiga explicar sua composição poética inteiramente pela teoria.

Mudar o mundo através da linguagem é sempre utópico. Ana Hatherly parece

buscar essa utopia experimentando diferentes formas de dizer, convocando diferentes vozes

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de diferentes épocas, para diferentes práticas poéticas, experimentando diferentes

possibilidades de expressão. O convite para que vozes de poetas de diferentes épocas, como

Camões e de Fernando Pessoa, venham dialogar, engendra dois procedimentos: um em

relação à forma (sintaxe) e o outro em relação ao sentido (semântico), a partir da

experimentação, valendo-se de artifícios ela cria poemas metalingüísticos, onde explora as

possibilidades expressivas e o valor atribuído as palavras.

Ao fazer um trabalho intertextual, Ana Hatherly se apropria de um poema

sensacionista de Álvaro de Campos e de um mote usado por Camões para fazer uma leitura

moderna. Isso é experimentalismo. Reproduzir ou mesmo reescrever, produzindo assim

uma nova significação. E ao glosar motes alheios, que já foram glosados pelos poetas do

século XVI, Ana Hatherly usa a intertextualidade para promover um diálogo que pela via

da escrita, quebra as barreiras do tempo.

3.1 – “Noite Canto-te Noite” – “Vem Noite Antiqüíssima e Idêntica”

Fernando Pessoa tinha profunda consciência das diversas personalidades que

habitavam dentro dele, chegando mesmo a dizer que os vários heterônimos o faziam sentir-

se plural:

Por qualquer motivo temperamental que não me proponho analisar,

nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria (PESSOA, 1976, p.87).

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. (PESSOA, 1976, p. 81).

Álvaro de Campos, o criador de Vem, Noite antiqüíssima e idêntica é um poeta que

admira a inovação e a criação. Em estilo modernista privilegiando a sensação e o

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movimento, ele implora a chegada da noite para lhe dirigir a eterna pergunta do homem:

“–Tu que me conheces – / quem eu sou...” (PESSOA, 1977, p. 314).

Sem dúvida, a figura da noite propicia múltiplas sensações. A violenta diminuição

dos sinais externos de vida; o império da solidão; a suspeita da inconsciência do sono; a

perda de definição das formas pela escuridão; a impenetrável rede dos sonhos que coloca

em cena vivos e mortos, próximos e distantes, ansiados e indesejáveis; o aleatório das

digressões noturnas, onde o que se persegue é a procura da verdade, tudo parece liberto da

transitória presença das formas diurnas.

Desse manancial de sentimentos e sensações que inspiraram todas as literaturas,

Fernando Pessoa dá seu testemunho:

Vem, Noite antiqüíssima e idêntica, Noite Rainha nascida destronada, Noite igual por dentro ao silêncio, Noite Com as estrelas lantejoulas rápidas No teu vestido franjado de Infinito (PESSOA, 1977, p. 311)

Na poesia de Fernando Pessoa, alguns dos altos momentos de lirismo são aqueles

em que o poeta canta a noite. Operando a fusão entre o objetivo e o subjetivo, fazendo com

que a noite se torne o ponto de partida para o sonho e para a libertação. Mas a noite é

também enigma sem decifração. É pela noite que o poeta ultrapassa a noção do objetivo. A

noite realiza a unidade entre a realidade e a fantasia. Tudo perde as arestas e as cores. A

noite é o espaço privilegiado do sonho, oferecendo um mundo onírico que é próprio da

transcendência. Noite é uma das palavras mágicas da língua portuguesa.

A noite se reveste de incerteza, tornando-se símbolo de vida e morte. Assim a noite

simboliza simultaneamente o nascimento e a morte, a criação e a destruição. Através da

poesia da noite, as imagens são o caminho dos sonhos vividos em espírito, descrevendo

trajetórias de movimento da alma, numa perpétua oscilação das exaltações líricas.

Ana Hatherly também explora a noite em seu poema Noite Canto-te Noite. Três

versões da poesia são apresentadas. A autora organiza o texto como se fosse uma partitura

musical, uma sinfonia, uma clara alusão à poesia criada e difundida por Mallarmé. A

presença do silêncio, como esclarece a autora, se faz pelas lacunas que o texto cria, e que

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vão aumentando gradualmente, até que na terceira versão, apenas a palavra noite é

proferida, a eliminação de todo o texto que a envolve, funciona como suporte para a

emoção poética.

O poema Noite Canto-te Noite, vem precedido de um programa em que a autora

apresenta e explica o texto, dando algumas direções para a leitura. Esse programa funciona

como um roteiro elucidativo que visa mostrar a relação entre teoria e prática. Ou seja, uma

relação entre criação e leitura. O roteiro não só indica uma leitura, mas também aponta para

o desejo da autora ser compreendida pelos leitores. Essa atitude corrobora a teoria de que o

poeta experimental reinventa e recria a leitura por desejar ser entendido pelos leitores, ainda

que para isso tenha de “orienta-los”.

Ana Hatherly explora os múltiplos sentidos da “noite”, levando em conta os

significados que essa figura tem nas culturas do ocidente e também do oriente. Trata-se de

um poema rico e complexo, onde a “noite” se apresenta como símbolo do mistério

insondável da existência humana. Usar o tema “noite”, não é novidade e foi feito por

inúmeros poetas, Ana Hatherly utiliza a mesma referência simbólica de Fernando Pessoa,

quer dizer, a “noite” como metáfora dos mistérios do mundo, a noite pura magia, noite

como partida para o sonho, noite do oriente e do ocidente. Enquanto, na poesia de Pessoa, a

noite evocada é “antiqüíssima e idêntica”, quer dizer, é uma noite que se inscreve no tempo

e, justamente por isso, tem história. Mas também é uma noite que está aquém e além da

história, porque se apresenta como idêntica a si mesma. Assim, mudando-se a maneira de

ver a noite, os sentidos se alteram, mas o referente, a noite como objeto, permanece fixa.

O título do poema Noite Canto-te Noite apresenta as aliterações de /t/, que são secas

e afirmativas. Aqui, o canto, que se faz escrita, que cria a noite como conceito.

Noite Canto-te para que tu definitivamente existas (HATHERLY, 2001, p.135)

“Existir”, esse é o sinônimo de criar. Logo é preciso nomear a “noite” para que ela

possa realmente ser, existir.

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“Canto o teu nome porque só as coisas cantadas” – a relação entre cantar/criar e

existir remete para a própria origem da poesia, pois na há verbo mais poético do que o

verbo cantar. E a própria poesia nasce do canto dos bardos, dos menestréis, do cantor ritual

em tribos perdidas no tempo.

“realmente são e só o nome pronunciado” –a constante reafirmação de que é preciso

pronunciar o nome para que a noite possa definitivamente existir, remetendo para a função

criadora da palavra. Ou seja: segundo Jacques Lacan, “faz surgir a coisa mesma, que não é

nada senão o conceito” (LACAN, 1979, p. 275)

“inicia a mágica corrente” – o que é a “mágica corrente” senão o mais-além que

sustenta a palavra? E o que seria esse mais além?

Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções,

envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca esgotado. (LACAN, 1979, p. 275)

Repare-se que até aqui, a autora usou vocábulos e idéias de criação através da

palavra dita, da palavra proferida, para que a “noite” fosse criada, para que ela existisse,

remetendo à função do poeta, criar o mundo através da palavra. Com isso, Ana Hatherly

nos diz com todas as letras que a palavra se inscreve no universo semântico, que é o da

linguagem. Podemos também pensar no sagrado, na palavra divina, na criação do mundo,

feita por Deus por meio da palavra substantiva, do verbo ativo do sopro divino como está

dito nas Sagradas Escrituras cristãs. Logo, o poeta cria a sua matéria como um deus, usando

a palavra criadora, ordenando a criação através dela, e a poesia é o universo do poeta e o

universo criado pelo poeta.

Ana Hatherly mostra que, só a partir da existência da palavra, a noite como metáfora

se torna símbolo dos mistérios do mundo (e que por isso mesmo nunca será apreendida por

completo), seja ela em termos de linguagem poética ou não poética, permanece indefinida,

justamente porque o ser humano nunca esgota o seu verdadeiro sentido.

No mundo das metáforas, a noite pode ser ao mesmo tempo sinônimo de ente e do

tempo. Ana Hatherly percebe a noite como um ente, como uma criatura, relembrando

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outras noites. A autora o faz convocando outras vozes que cantaram a noite. Isto quer dizer

que, apesar do muito que se fala da noite, ela continua complexa. Assim, cada vez que se

canta a noite, aumenta não só a complexidade da própria noite, mas também aponta para

alguma coisa para além do próprio canto.

A palavra, bem como o desejo, deixa sempre um resto para tudo de novo começar.

E mesmo muito explorada, a linguagem poética, nunca realiza de todo o sentido que se

pretende, “pois o desejo que nunca se realiza por completo” (SOBRAL, 2003, p. 323). Ana

Hatherly mostra essa não apreensão como características do ser humano, em sua

diversidade e limitação. Dizer tudo é impossível. E essa impossibilidade, essa restrição

como marca do ser humano quanto a tudo compreender, a autora evidencia como questão

essencial, e se faz presente nas sucessivas repetições de “noite”, até o uso do “além”, a

última palavra do poema, sinalizando para algo que está completamente fora do seu alcance

e compreensão.

Canto o teu nome como o homem antigo fazia eclodir o fogo do atrito das pedras (HATHERLY, 2001, p.135)

O homem antigo, mitológico, que criava o fogo é Prometeu, mas é também o

homem primitivo assumindo o mundo, participando do processo da criação de algo novo e

que transforma sua vida.

Canto o teu nome como o feiticeiro invoca A magia do remédio (HATHERLY, 2001, p.135)

Nesses versos, Ana Hatherly trata da invocação da noite como algo misterioso e a

que se devem respeito e veneração.

Como os animais pequenos bebem nos regatos depois Das grandes feras – a idéia de respeito ainda permanece.

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Canto-te noite E tu definitivamente existes nos meus olhos (HATHERLY, 2001, p.135)

Aqui há uma retomada, pois a autora dirige-se novamente à “noite” e temos todo o

efeito do ato poético, porque, depois de ser cantada, agora, a noite existe realmente aos

olhos de quem a invocou e a canta.

“sempre abertos porque é sempre noite e os meus olhos” – a noite com o sentido de

mistério, desconhecido, trevas.

“são os olhos da criança que somos nós sempre” – os olhos de criança aqui como

sinônimo de curiosidade tanto do poeta, quanto a curiosidade de todos nós, a curiosidade

que inspira a criação poética.

“diante da imensidão do teu espaço” – a imensidão é a volta ao cosmos, ao sagrado,

mas é também um plano opressor, pois é inapreensível.

“e os meus olhos sempre abertos são a pergunta” – a expressão, “sempre abertos”,

retira o sentido de curiosidade, como indagação, pergunta, mistério.

Ana Hatherly busca alterar o referente ao evocar uma multiplicidade de noites.

Explorando mais o som do /t/, oclusiva alveolar surda, como se vê no título: “Noite Canto-

te Noite”. E assim ela reduz a dolência, explorando um sentido mais ativo e ao mesmo

tempo de difícil realização. O que há de sui generis na carga semântica de noite, é o

mistério, o desconhecido, a divindade como sua habitante. E o mistério e o desconhecido

são os sentidos que mais se destacam da palavra noite, e Ana Hatherly explora tudo isso e

conclui o poema com o sintagma “definitivamente além”.

Em Ana Hatherly assim, o lirismo é mais tênue, ao contrário de Álvaro de Campos,

porque ao explorar a expressividade, ela destaca os procedimentos com que o faz: as

repetições e as afonias personificando a noite, os versos meta-poéticos, e insere esse lírico

na história, ao invocar, por exemplo, Oriente e Ocidente. Ela vê a noite de modo complexo,

quase personificada, e ao mesmo tempo como construção poética, como por exemplo, em:

de nunca mais haver noite e nada mais haver que noite

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Noite Noite Oh tu noite definitivamente além (HATHERLY, 2001, p.138)

A última frase do poema é antecedida por duas negativas; a oclusiva, ativa, forte, /t/

se destaca, e “além” quebra mais ainda o ditongo /oi/, destacando o /t/. Ana Hatherly traz os

habitantes da noite, fera, mito, espíritos, etc. A magia da noite vem pela união entre

mistério e conhecimento, entre o eu e os outros, noite coisa, noite palavra comum, noite

poesia, noite sempre inapreensível. É assim que a palavra, a posse da palavra pelo poeta,

aproxima-o dos deuses. A associação da palavra à criação é o sinal da revolta humana face

ao esquecimento e a morte, e pela palavra o poeta usurpa o futuro aos deuses (mas nunca

definitivamente).

Nesse sentido, a poesia é o mais radical dos jogos e, como tal, aproxima-se tanto do

aniquilamento quanto da criação, para que a palavra renasça com um ímpeto insuspeito.

Certo de ascender ao mistério do mundo, o poeta faz unidade com ela, a ela adere, e,

subjugado por seu poder de criar e destruir sentidos, lança a palavra em vôo, como um

pássaro liberto ou como uma seta sem destino.

É pela experimentação que Ana Hatherly extrai novos sentidos, novos modos de ver

o mundo e a linguagem. Isto ela faz ao recorrer a tantos meios para mostrar a complexidade

da noite, na vida em seu tratamento poético. E ela repete no final que, apesar de tudo, a

noite, concreta e poética, sempre escapa à apreensão completa. A noite então se torna

metáfora da própria condição humana: o inacabamento, a incompletude, a falta, a carência,

a limitação, mas essa não apreensão da noite, não apaga os esforços poéticos do ser

humano.

3 .2 – Eros Frenético

Ler o poema Eros Frenético propõe uma impressiva maneira de perceber como a

expressão poética, a partir de uma interpretação pessoal da realidade, transforma os

significados socialmente fixados pelo código em significantes produtores de outros sentidos

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que, num aparente paradoxo, retornam mediante a leitura do próprio ambiente social. Há

uma prática de escrita que se inscreve no corpo, trata-se de uma escrita íntima, sexual. Um

corpo assim, eros frenético, assim movido e assinalado às avessas, é um corpo em estado de

alarme.

Numa zona, antes ambivalente e agora pluralizada, esse poema se apropria e requer

para si uma área de transição, que é, no fundo, a expressão mais feliz que Ana Hatherly

encontra para falar – e ao dizer, instaurá-lo – do prazer do sexo com o outro. É nessa zona a

um só tempo fatal e vital, local do encontro do sujeito consigo mesmo, com o outro e com

os discursos que interpretam o mundo e lhe são acessíveis, que a poesia de Ana Hatherly

inscreve uma revolução nos instrumentos de estilo e composição, ditando à sua maneira a

moda que lhe é contemporânea: ler o escrito e escrever o lido através de uma

intertextualidade.

No século XX, os movimentos que promovem a aproximação entre palavra e

imagem, imagem plástica e escrita são a tentativa de criar um discurso que seja a síntese da

nova imagem do humano. Eros Frenético está no limiar desse encontro.

Trata-se de um poema narrativo que, de fato, introduz a questão da desumanização e

da técnica. Sua composição lembra o roteiro de um moderno filme de ficção científica, e

até evoca imagens de um tal filme, embora nele estejam reunidos e vivos para sempre,

versos perfeitamente burilados, harmoniosamente irregulares, com uma musicalidade

intensa, marcos da presença irredutível do humano. Marcos também da pintura capaz de

conciliar os contrários, e que verdadeiramente assume o indizível, onde o mistério da cor e

da luz dão forma ao pensamento da autora. A imagem poética e a imagem plástica são

portadoras de múltiplos sentidos que podem ser encarados como representação do visível,

ou aceitação do visível no invisível.

Se a máquina induz ao desumano, o humano que dela fala a reinstaura em seu

devido lugar: aos pés do eros, do frenesi humano inadministrável que o poema apresenta

com sua curiosa construção. Em Eros Frenético, Ana Hatherly faz uma crítica às

representações conformistas da desumanização e um trabalho de linguagem e estruturação

que mostra aspectos que a linguagem automatizada não consegue mostrar.

Na noite absolutamente não se via nada na terra

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e no céu um só satélite. (HATHERLY, 2001, p.130)

Fazendo um jogo de palavras, a autora nos convida a entrar em um labirinto, onde

os sentidos codificados se confundem nesse encontro entre amantes, num clima de

estranhamento.

As máquinas dormiam. Suas bocas caladas exalavam o cheiro acre do combustível muito quieto aguardando as próximas violentas combustões. As máquinas repousavam suas válvulas escuras (HATHERLY, 2001, p.130)

Os termos usados trazem ao leitor a lembrança de máquinas, a tal ponto que em uma

primeira leitura custa-se a perceber que se trata de um casal de humanos, ou seja, pessoas

transformadas em máquinas.

Eles estavam sentados em cadeiras e apoiavam seus braços sobre o tampo da mesa placa de madeira que assentava na extrema fragilidade das suas quatro patas provisórias. Eles estavam sentados em cadeiras placas de madeira assentando em igualmente provisórias patas que singularmente davam origem a uma excrescência vertical e rendilhada uma espécie de cauda aberta rígida que aqui se chamava singularmente costas. (HATHERLY, 2001, p.130)

Essa combinação de termos, transformando significados mediante o uso de

metáforas, essa reflexão a respeito do corpo que em um momento se confunde

cauda/costas, conduzem o leitor a um estado de imaginação e de transição onde tudo é

possível. A realidade nem sempre é o que está escrito/mostrado.

Seus motores internos tinham ali sido colocados com o fim específico de darem notícia do que encontrassem em sua trajectória no tempo espacial nunca esquecendo

que interesse significa distância. (HATHERLY, 2001, p.131)

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Ao descrever um encontro amoroso entre seres humanos como se estes fossem

máquinas, robôs, Ana Hatherly toca num ponto nevrálgico do mundo contemporâneo: a

robotização dos humanos e a “individualização” da máquina, sua inteligência artificial,

tornando-a quase humana, enquanto o ser humano se torna maquinal.

Eles cumpriam seu ciclo evolutivo seu ciclo do carbono que se acumulava brilhantemente negro nas camadas mais fundas da terra onde as florestas agora esperam o momento de voltarem a superfície em forma de chama e renovarem seu ciclo evolutivo gráfico e frenético. (HATHERLY, 2001, p.131)

Usando palavras da biologia para narrar esse embate amoroso, a autora faz uma

reflexão a respeito do ciclo da vida, do amor e da condenação humana à reprodução.

Na noite absolutamente não se via nada na terra

... Ergue-se a noite do seu leito de não se ver (HATHERLY, 2001, p.130-133)

Entre esses dois versos desenrola-se uma história de amor e sexo, em que a autora

procura transmitir a emoção frenética dos corpos dos amantes, através de um discurso

igualmente frenético, de modo intencional.

Novamente temos a evocação da noite, como símbolo de libertação do mundo e de

si próprio, como um processo de catarse, facilmente encontrado na fluência da linguagem

poética, mas visível, sobretudo na noite. Não só pelo poder sugestivo da sua componente

fônica, a que a dolência do ditongo /oi/ não é alheia, como também pela ambivalência sui

generis da sua carga semântica, é que há magia na palavra “noite”.

No primeiro verso, a noite, traz uma conotação de paz, de descanso, mas a

proporção que o ritmo da poesia, e as reações corpóreas tornam-se frenéticas, a noite passa

a não ter nada de pacificadora nem de protetora. Ana Hatherly, nesse poema, procura

transmitir uma intensa emoção recorrendo a um discurso, aparentemente, alucinado, usando

termos científicos para descrever as reações do corpo, entendido como mecanizado, aos

estímulos eróticos. Alma e corpo conduzidos por uma nova ponte. Trata-se de uma poética

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de provocação de si mesma, de desafiar-se a chafurdar no lodaçal da própria existência,

desafiar-se a mostrar onde se ocultam o mistério e o erotismo que anunciam as imagens que

saltam magicamente de seus versos, repletos de evocações e sensações, jogando com

palavras que pulsam intensamente, envolvidos por uma mescla de sentimentos não

limitados pelas convenções do tempo-espaço. Este poema, apesar de erótico, trata o corpo

como se ele fosse realmente uma máquina, mas uma máquina que sofre e que enfrenta a

solidão porque deseja.

E eles estavam ali em frente um do outro no silêncio de sua morte ocupando diferentes espaços (HATHERLY, 2001, p. 133)

Ana Hatherly usa sua erudição e domínio do vocabulário para brincar com as

palavras, para falar do ser humano como robô, criando uma obra poética como ficção

científica, dando-nos a sensação de que as pessoas estão se transformando em máquinas, e

propondo ao mesmo tempo a exposição dessa exposição como forma de a isso resistir.

4.3 – Leonorana

Descalça vai para a fonte

Leonor pela verdura Vai formosa não segura

CAMÕES

O poema Leonorana é constituído por trinta e uma variações temáticas a partir de

um mote encontrado em um poema de Luís de Camões. De certa forma, a referência a

Camões é uma maneira de resgatar um diálogo com vozes do passado, mas tão presentes

em nossos corações e mentes.

Ao escolher dialogar com a poesia camoniana, e transformar em poema

experimental o mote medieval, Ana Hatherly corrobora as premissas do concretismo, que

pregam um retorno às origens e aos clássicos. A leitura para ela é uma questão de

intertextualidade e de intersubjetividade. Assim, a autora cita, evoca, remete, dialoga,

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mostrando que sempre se lê a partir de uma dada posição. Ana Hatherly busca resgatar pela

escrita a interlocução oral perdida, trazendo para o presente vozes do passado. A busca da

oralidade perdida e do interlocutor perdido é uma busca só, a da ressonância do eu no outro.

Com isso, Ana Hatherly, parece estar dialogando ao mesmo tempo com as

possibilidades de sentido que o texto camoniano admite para uma leitora-autora como ela,

em sua posição específica hoje, e explorando as possibilidades expressivas da língua

portuguesa, do século XV, época de Camões, até os dias de hoje. A autora não desconstrói

o mote camoniano diretamente, mas o constrói a partir desse diálogo, de interpretações que

o texto admite e outras que o texto, ao ser lido hoje, permite, mas sempre respeitando o que

de fato está escrito. Estabelecendo esse diálogo, Ana Hatherly, não só resgata Camões

como interlocutor, mas também lhe confere atualidade. Partir da época de Camões e de sua

própria época, construindo possibilidades e enriquecendo o texto de Camões, é uma forma

de valorizá-lo, além de dialogar com a forma literária daquela época, propondo a

reinterpretação de uma forma clássica, no âmbito da poesia experimental.

As variações fazem “eco de processos combinatórios barrocos” (HATHERLY, 2001,

p. 19), com a musicalidade aprendida com Mallarmé e com as técnicas da poesia visual,

alcançando dessa forma uma série de leitores/interlocutores em diferentes níveis. Por outro

lado, a forma estética apurada busca desautomatizar as percepções, fazendo com que o

leitor comum, aquele não iniciado, certamente sinta impacto.

Nessas variações, o aspecto lúdico da poesia se faz presente em uma brincadeira, a

autora conecta o nome da donzela do mote camoniano, Leonor, ao seu, Ana, fazendo um

jogo com as duas palavras e explorando a sonoridade daí resultante. Em Leonorana, o que

está em jogo são experimentos de uma escrita que toma a outra escrita como objeto. Assim

não só se explicita a quebra do laço entre significado e significante, estabelecido pelo

código da língua, mas também se lança mão do jogo lúdico com a palavra, a qual é

explorada em todas as suas dimensões: imagem, som e sentido.

Esse conjunto de composições revela uma autora com voz própria, singular e

inquieta. Utilizando-se de recursos vários, dialogando com o passado, Ana Hatherly

realizou uma fusão onde ficam evidentes imagens sonoras e visuais, que não raro

perturbam, dissolvendo o sentido aparente em curiosas associações de termos, muitos

trazidos, muitos deles, do passado mais remoto. O trabalho de Ana Hatherly é exemplo de

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uma relação entre escrita e imagem, que desde o início do século XX, tem redefinido a

condição da poesia, como obra de arte. A letra, a palavra, a frase e o texto, freqüentemente

espacializados liberam a escrita do princípio da linearidade do signo verbal.

Das trinta e uma variações compostas de diferentes formas, algumas foram

escolhidas para serem lidas com mais atenção, uma vez que o tema apresenta inúmeros

desdobramentos e inúmeras leituras.

A Variação I é apresentada como o primeiro desenvolvimento do tema. Nela, Ana

Hatherly conta a história de Leonor, desenvolvendo o mote, em versos sem rimas,

apresentando um encadeamento como se fosse uma prosa. Ao conceber esse poema, a

autora apropria-se de certos processos combinatórios do barroco bem como de técnicas de

composição musical. Um poema relativamente longo, sem pontuação, necessita que o leitor

estabeleça, ele mesmo, o ritmo, criando assim para cada leitura/leitor um ritmo diferente, e

conseqüentemente um poema “diferente”. Por se tratar de um discurso sem interferência, a

tensão provocada tem a ver com a necessidade de desmontar o mito Camões, ao expor o

erotismo existente no singelo mote:

e leonor treme e seus nervos estremecem até o registro das sensações e a mensagem da verdura está na origem de seus nervos motores transmitirem ordens por seu corpo e os belos músculos flectem em sua perna para trás em sua coxa para cima em seu ventre para dentro em seus ombros para diante e em sua cabeça para baixo e os músculos orbiculares recebem a mensagem da verdura e quase cerram as suas belas pálpebras e sua pupila se contrai e um arrepio em seus seios endurece a rosada floração de seus mamilos (HATHERLY, 2001, p. 197)

Esse erotismo visa deliberadamente causar estranheza no leitor, já que se trata de

transportar para a atualidade um tema tratado pelo trovadorismo.

A variação II é composta por versos cujos vocábulos lembram ironicamente a

tradição. O jogo de palavras põe em destaque duas palavras constantes: “verdura” e

“formosura”. A insistente rima com terminação “ura”, além de explorar o lúdico, introduz a

derrisão da aura do amor, o que não deixa de ser cômico.

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quando Leonor pela manhã estava nua acorda e sente essa verdura irmã da formosura das fontes e da verdura estende o pé e pisa o chão descalça e treme de verdura pela formosura da (HATHERLY, 2001, p.198)

Ao fazer uso repetidamente das palavras “verdura” e “formosura”, Ana Hatherly nos

faz pensar nas rígidas formas de versificação parnasiana que, por tanto tempo, estiveram

vigentes, bem como sugere uma pobreza de vocabulário e de recursos. Mas, ao mesmo

tempo, o efeito criado sugere que a autora brinca com as palavras, brinca como a criança

brinca com seus objetos, mudando-os de lugar, de acordo com uma lógica toda própria do

universo infantil.

Na variação V, a criatividade e a experimentação da poesia de vanguarda levam a

autora a fazer uma síntese das variações anteriores, com economia e justaposição das

palavras, criando e explorando as possibilidades da língua portuguesa. Com isso, os três

versos, que dançam na página, resumem todos os elementos do tema. Ou seja, a relação

entre tradição e invenção está claramente ilustrada nessa Variação.

Ao romper com a tradição, destruindo para criar, e por isso de fato sem apagar a

tradição, Ana Hatherly apresenta na Variação VI a fragmentação temática e formal do mote

camoniano, ou seja, ela está re-inventando um tema já há muito conhecido, e esse re-

nascimento implica uma ruptura, uma mudança do sistema de valores. O deslocamento dos

vocábulos na organização desse poema, substituindo a forma anteriormente estabelecida do

mote, almeja a renovação do discurso ultrapassado a fim de substitui-lo por uma nova

ordem.

A Variação XII e a Variação XIII permitem inúmeras leituras:

Variação XII

leonor pela verdura não a fonte vai descalça não formosa para segura pela formosa

e não vai não para a fonte vai Leonor

pela e não (HATHERLY, 2001, p.208)

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Variação XIII

vai fonte d para

e leonor s a

c verdura a pela

l formosa ç e

segura a não vai (HATHERLY, 2001, p.209)

A princípio, devido a complexidade dessas variações, poderíamos por a síntese em

oposição á discursividade. O segmento central que aparece na Variação XII reunido aos

outros segmentos, tanto vertical como horizontal, junto com todas as combinações verbais e

visuais, resume um processo de desconstrução de Leonor, da poesia, da visualidade, do ato

de criação no existir do mundo. Cada coluna vertical produz sentidos em si e em

combinação, o mesmo acontece no plano horizontal, em que são criados sentidos diversos,

mas que combinam entre si. Dessa maneira, os segmentos vertical e horizontal acabam por

combinar tanto visual como semanticamente.

Nas duas variações, as palavras dispostas na página, criam sentidos que vão além da

linearidade do verbal, bem como da disposição dos elementos gráficos verbais evocando

formas visuais que vão além de colunas e linhas, sugerindo desenhos, criando um sentido

lúcido. O trecho final do poema apresenta um dado curioso, nele, a desconstrução final é

expressa justamente por um segmento que parece ser mais verbal que visual, sendo mais

fechado, compacto, mas que, na verdade, exprime um paralelismo verbal e visual, com a

repetição de palavras e estruturas, dispostas simetricamente umas sobre as outras, unindo os

dois planos, horizontal e vertical.

vai para a não formosa para a não descalça para a não verdura para a não fonte

para a não leonor (HATHERLY, 2001, p. 209)

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Nessa desconstrução final, há uma forte carga de erotismo: a força das palavras do

segmento central vertical pode ser entendida como um orgasmo, em que Leonor se desfaz

em todas as suas negativas.

Na Variação XIII o arranjo e a combinação entre as palavras do tema proporcionam

um forte apelo visual, lembrando igualmente uma forte tensão sexual, que aparece

destacada pelo segmento vertical.

A Variação XV tem como principal característica a visualidade pelo uso de cores, e

o desenho em forma de seta mostra a condição erótica do poema. As cores do texto, a

disposição geral dos elementos da Variação, o tipo e o tamanho da letra são utilizados para

produzir inúmeros efeitos de leitura.

A composição poética começa com LIANOR em estado normal, com sua escrita

tradicional, depois passa por vários estágios de excitação, até chegar ao orgasmo. Então há

uma recomposição do elemento vocabular que volta a ser LIANOR, para a seguir continuar

com sua decomposição até acabar num orgasmo com igual intensidade à da excitação

inicial. E mais uma vez há a recomposição agora já fundida com o orgasmo, através da

sucessão de letras “a a”, que se transformam em “a n”, sugerindo mais intensidade. Por

outro lado, a montagem ANOR parece sugerida por ANA, que é a combinação criada pelo

“a” e pelo “n”, que aparece em alguns momentos do poema. As cores que destacam o clima

orgástico, aparecem circundadas pelos “a a” que sugerem a entrega de Lianor a esse clima,

embora mantenha o controle da situação, aparecendo composta no início, meio e fim do

poema, como é apercebido pelas letras maiúsculas e em tamanho maior com que a autora

escreve o nome Lianor.

À primeira vista, a Variação XVI parece um amontoado de letras totalmente

desconexo. Mas a “semantização visual” , como é chamada pela autora essa Variação,

apresenta os vocábulos do mote totalmente reformulados e fragmentados, destacando-se as

letras desses vocábulos, sem as quais o poema seria totalmente incompreensível. Nele Ana

Hatherly utiliza-se de meios extralingüísticos para sua realização, e através da composição

visual procura cativar o leitor. O agrupamento das letras segue uma lei plástica, parte de

uma forma geométrica simples, quer dizer, a autora partindo do nome Leonor, o decompõe,

fracionando-o de acordo com as leis gráficas, obtendo assim, na página em branco, uma

síntese visual do mote que provoca ou sugere uma pluralidade de leituras.

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O silêncio, representado na variação XVII, considerado pela autora como um

“afastamento por imagem absoluta”, mostra que a palavra poética obstinadamente

convocada é levada a sua total anulação. Isso nos leva a pensar na concepção de “silêncio

do mistério” expressa por Ana Hatherly:

A escrita é uma fala muda, reproduz o silêncio do mistério que o iniciado penetra através da leitura. Os antigos compreenderam o significado profundo desse processo e por isso equipararam o entendimento do mundo a leitura de um livro, cuja interpretação competia aos iniciados que deveriam empenhar-se tanto na descoberta como na preservação dos seus enigmáticos segredos. (HATHERLY, 2004, p. 101).

E são esses enigmas do passado que a autora quer resguardar, deixando que a

donzela cantada por Camões, permaneça acessível apenas para os iniciados, guardando no

silêncio da página em branco seus enigmáticos segredos.

A Variação XIX e a Variação XX apresentam a letra como traço de escrita, isso

quer dizer que Ana Hatherly faz uma investigação da escrita, no sentido de síntese, apoiada

num espírito experimental. Desse modo, a ininteligibilidade por semantização precisa ser

interpretada de acordo com determinadas regras e, nesse caso, as variantes usadas foram

apenas o nome Leonor escrito de modo ilegível, mas identificável. O fenômeno poético,

assim, tenta escapar ao rigor da linguagem, tornando-se um objeto independente que

proporciona uma multiplicidade de possibilidades perspectivas. No entanto, quanto mais

depurada a escrita, mais rigorosa e autônoma ela se torna, oferecendo ao leitor variadas

percepções de leitura.

Como investigação de escrita, Ana Hatherly trabalha utilizando a desconstrução dos

elementos constituintes, quer dizer, ela usa o processo da experimentação, onde as

variações caligráficas passam a constituir algumas das possíveis reelaborações do nome

Leonor. Essas variações pressupõem não um rompimento com o tema, mas uma contínua

releitura dele, com o firme propósito de manter a inventividade na poesia. O que se

encontra nessas variações é o trabalho de investigação desenvolvido por Ana Hatherly no

campo teórico. Este trabalho funciona como suplemento do seu trabalho poético. Ao falar

da sua experiência no campo da pesquisa histórica das raízes da poesia visual ela diz:

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crer que a revelação desse passado pode desempenhar um papel importante numa fase de renovação do texto, pois a pesquisa histórica vem trazer de novo para o conhecimento geral uma enorme variedade de formas e de concepções do funcionamento da escrita criativa que abrirão certamente, para muitos, perspectivas até agora insuspeitadas. (HATHERLY, 1995, p.115).

Essa releitura do nome Leonor e a atomização do experimentalismo poético

demonstram, na poesia, essa abertura de perspectivas, a qual a autora se refere. Essas duas

variações fazem parte da sua investigação das estruturas poéticas, que apresentam um alto

grau de radicalização.

As variações XXVII, XXVIII e XXIX apresentam permutas sistemáticas sobre a

palavra-chave do tema, com propostas inovadoras de leitura. Mas o rigor construtivista e o

ludismo dessas variações, dispostas na página formando desenhos, apresentam uma forma

visual cujo enunciado já é o próprio mecanismo de leitura. Com isso, Ana Hatherly nos

possibilita a configuração de uma poesia em aberto, quer dizer, as linhas programáticas

estabelecidas a priori pela autora, não funcionam como uma camisa de força para essas

Variações.

Variação XXVII

LEO nor LEN oor LON eor EON lor OLO ren NER olo ELO nor ELN oor OLN eor OEN lor LOO ren ENR olo LOE nor LNE oor LNO eor ENO lor OOL ren NRE olo OLE nor NLE oor NLO eor NEO lor OOL ren RNE olo EOL nor ENL oor ONL eor ONE lor LOO ren ERN olo OEL nor NEL oor NOL eor NOE lor OLO ren REN olo

Variação XXVIII

o o e L n r l o e N o r n o o R e l o e o L n r o l e N o r o n o R e l e o o L n r e o l N o r o o n R o e r o o L e n r l o N e o l n o R o e o r o L e n l r o N e o n l o R o e o o r L e n o l r N e o o n l R o e n o o L r e o l o N r e e n o R l o o n o L r e l o o N r e n e o R l o o o n L r e o o l N r e o n e R l o

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Variação XXIX

Leonor eLonor eoLnor eonLor eonoLr eonorL

Numa perspectiva temporalmente distanciada, observamos que Ana Hatherly é

capaz de “esconder”, revelando, uma palavra no poema. Essas variações podem ser lidas e

funcionam como um registro da sua atividade criadora, através dos quais, podemos

vislumbrar o interesse da autora pelas possibilidades da lógica combinatória, que

permearam tanto o barroco como o estruturalismo dos anos 1960 e 1970.

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I O pavão negro da escrita Abre um leque de opções Exibe o luxo Do seu traje-cárcere Babel silente No vazio da página Prende o tumulto da voz Fixa o assalto da mão Última instância rebelde É jogo Luta Luto Grito calado (HATHERLY, 2004)

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Conclusão

O trabalho do artista contemporâneo, em especial do poeta, está ligado ao do

teorizador, já que ele é levado a avaliar as implicações e os aspectos do seu trabalho.

Ao situar o movimento da Poesia Experimental no contexto histórico da segunda

metade do século XX, compreende-se que lutar foi a posição escolhida pela maioria dos

artistas, já que esse movimento pretendia romper o imobilismo principalmente em um país

retrógrado como Portugal. Quando Ana Hatherly diz em A casa das musas, que:

O poeta vê, ouve, sente, pensa, imagina e depois recria o que experimentou. Mas o objeto produzido, quando lido, cria a sua própria realidade. (HATHERLY, 1995, p. 53).

Ela expressa o que foi constatado em nosso estudo sobre o movimento da Poesia

Experimental em Portugal. Ao refletir sobre a poesia de Ana Hatherly, compreendi que o

pressuposto fundamental da sua obra é a idéia de que a poesia se desenvolve ao nível da

experimentação e da leitura. Diz a autora:

O espírito experimental será, portanto, estimulado por uma

esperançosa confiança numa receptividade desconhecida, essencialmente utópica. (HATHERLY, 2004, p.109).

Os poemas escolhidos, Noite Canto-te Noite, Eros Frenético e Leonorana (apenas

algumas variações) mostram que a procura da origem se faz presente, uma vez que ela

estabelece um diálogo com os dois mais emblemáticos poetas lusitanos: Luís de Camões e

Fernando Pessoa. Essa escolha resgata uma interlocução perdida. O estudo um pouco mais

detalhado de alguns poemas tornou-se um procedimento necessário, já que o objetivo é

justamente assinalar o quanto da teoria difundida por Ana Hatherly aparece corroborado em

sua produção poética. Os poemas escolhidos, que pertencem ao período do

experimentalismo, indicam que o trabalho com a espacialização e com a visualização,

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libertando a palavra do verso, cria uma sintaxe e uma semântica que inauguram uma nova

estrutura, onde o leitor é convidado pelo autor a participar do processo de criação.

Ao traçar um panorama dos movimentos de vanguarda durante o século passado e

mais especificamente na segunda metade do século XX, observa-se que a escrita lírica se

manteve como matriz das poesias, apesar da convulsão e do emaranhado de idéias

vanguardistas.

O experimentalismo propôs explorar possibilidades de libertação da palavra.

Quando Mallarmé usou a página em branco para conceber o poema como um jogo de

dados, demonstrou que esses dados nunca esgotam as possibilidades do acaso, da vida e do

autor. E sendo cada poema um retorno ao começo é também um trabalho de reinvenção do

mundo. De fato a poesia concreta, que surgiu como um modo diferente de realização do

poético, pretendia operar essa reinvenção através de imagens, de símbolos e de metáforas

que se equilibravam lado a lado a uma corrente sonora de ritmos, de rimas, de melodias e

de séries de sons. É um tipo de poesia que não é apenas para ser lida e ouvida, mas também

ser vista.

Num processo de mutação, onde o descritivo foi substituído pelo plástico e o

auditivo pelo visual, o poema visual inaugurou uma nova forma de inserção da poesia na

cultura numa tendência que vem de longe, a poesia concreta incorporou elementos da

cultura popular, da linguagem dos jornais, das histórias em quadrinhos, da publicidade,

enfim das inúmeras técnicas de meios de comunicação de massa à tradição erudita, fazendo

com que os objetos e as atividades que fazem parte do cotidiano fossem incorporados ao

seu universo, fazendo com que a poesia, e mais genericamente a obra de arte,

redescobrissem o mundo.

Uma das tendências da poesia de vanguarda é a discussão que se implantou ao

longo do seu desenvolvimento sobre a distinção entre “leitura” e “interpretação”. A leitura

deve ser compreendida como uma apresentação inicial, que tem como função a descoberta.

A interpretação é o que a ultrapassa essa leitura, trabalho a ser realizado pelo leitor que é

convidado a participar de todo o processo criativo. É nesse sentido que Ana Hatherly

trabalha, buscando e convidando o leitor para uma aproximação. Essa interação entre autor

e leitor visa também a dessacralização da aura do artista e da obra de arte.

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Ana Hatherly fala em seus textos teóricos reiteradamente do lúdico como uma das

formas de escrever, e isso se evidencia em algumas variações que compõem o poema

Leonorana, onde a autora brinca com a disposição das palavras na página, como num jogo

de dados. Para a autora, “o mundo da escrita é o mundo do silêncio que a leitura anima”

(HATHERLY, 2004, p. 101). Esse silêncio aparece em inúmeros de seus poemas como o

espaço que ela obrigatoriamente usa, seja pela supressão de palavras, seja pela ordenação

delas.

A poesia experimental portuguesa não era de todo novidade, pois o

experimentalismo já vinha sendo feito em outras artes desde o início do século XX. Mas ele

só explodiu com o que se chama de vida moderna, sinônimo de velocidade, de imediatismo,

de superficialidade. A cara da poesia experimental é a transgressão, buscando a velocidade

da comunicação imediata, mas é também criadora e investigativa. Como diz Ana Hatherly,

“As manifestações de vanguarda têm que ser diferentes em diferentes épocas.” (HATHERLY,

2004, p.140)

A poesia concreta/experimental foi, sem dúvida, um marco na literatura ocidental,

conquistando uma liberdade que rompeu as fronteiras entre as artes, permitindo ao artista

transitar em vários campos, tais como artes plásticas e o cinema, oportunidade essa

aproveitada por Ana Hatherly que se inscreve no universo multimídia, por participar de

exposições de desenhos e pinturas, cartazes e filmes.

Da “poesia-desenho”, Ana Hatherly chega ao que se poderia denominar “imagem-

poesia”, “som-poesia”, uma síntese entre modernidade e tradição, experimentação e

pesquisa, um intenso esforço de superar a automatização das leituras e interpretações que

mostra o novo onde só se percebia o corriqueiro.

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Fonte iconográfica Red circle square – Ana Hatherly Mapas da imaginação e da memória – 1973 – Ana Hatherly A bigger splash – David Hockney Angelus novus – Paul Klee Inédito – 1971 – Ana Hatherly

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I –Noite Canto-te Noite

Noite Canto-te noite para que tu definitivamente existas Canto o teu nome porque só as coisas cantadas realmente são e só o nome pronunciado inicia a mágica corrente Canto o teu nome como o homem antigo fazia eclodir o fogo do atrito das pedras Canto o teu nome como o feiticeiro invoca a magia do remédio Canto o teu nome como um animal uiva de noite Como os animais pequenos bebem nos regatos depois das grandes feras Canto-te noite e tu definitivamente existes nos meus olhos sempre abertos porque é sempre noite e os meus olhos são os olhos da criança que nós somos sempre diante da imensidão do teu espaço noite Canto-te noite e os meus olhos sempre abertos são a pergunta instante pendente de eu te interrogar noite e interrogo as coisas em seu ser nocturno em seu estar sombriamente presentes na tua claridade obscura E como é sempre noite meus olhos abertos perscrutam-te noite símbolo de tudo o que me foge como apertar o ar dentro das mãos e querer agarrar-te noite oh substância Canto-te noite com a fragilidade de tudo o que existe perante uma eternidade demasiado nocturna para os nossos olhos infantis perante a tua antiguidade futura E a nossa voz é uma pequena onda no dorso de teu oceano de matéria Um leve arrepio apenas na espantosa espessura de teu éter

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Ah no ar é que tudo acontece no ar nocturno das idades esquecidas que previamente desconheceremos No espaço é que tudo acontece e o espaço é uma grande noite muito quieta onde os nossos olhos penetram no não sabermos até onde ali além no além onde tudo acontece Oh noite oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável e sermos nós a respiração da noite teu bafo ritmado imperceptível distância Oh noite augusta majestática dignidade do silêncio Oh impassibilidade da tua mecânica celeste Oh organismo primeiro de todos os fins secretos da compreensão das coisas Oh inorgânico organismo dos seres que se devoram Oh noite diz a quem servimos nós de pasto Canto-te noite como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome Canto-te e grito para que a poeira que se infiltra em todas as coisas se erga de ti como um plâncton Oh Madre matriz das criaturas inferiores que rastejam a teus pés cobertas de pó esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos Noite Noite Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó Oh noite que desintegras tudo e tudo tu constróis Ah noite com nós lambemos tuas duras mãos Oh noite que fustigas nossos olhos com tua sombra enorme Oh noite Noite que deixas tanto espaço para o silêncio Noite das mil pétalas Noite dos mil braços esplendorosos em seu abandono Noite dos murmúrios Noite dos afagos Noite sangue derramado sobre o mundo Oh noite noite

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Porque és sempre tão premente? Porque sempre estás ausentemente longe na tua constância em todas as coisas? Noite Oh sono Oh noite morte tão desejada e longa Noite mágica povoada de átomos milhões de espírito enchem o teu sopro E penetras em nós como uma bala E tudo morre quando tu chegas E tudo se dilui e se transforma em ti Noite alada presciência de tudo acontecer tão longe de nós e tão antigamente de tudo nos ultrapassar com soberana indiferença ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume Oh noite Brilha para dentro de mim Acende teus luzeiros em meus olhos Ergue teus braços oh noite prenhe de tudo Oh vaso Oh via Láctea de nos amamentares com teu leite de sombra Oh noite úbere e pródiga Aleita tua ninhada faminta Noite Noite Grande fera luzidia Grande mito Grande deus antigo Oh noite urna onde todos dormimos Oh noite Meus olhos choram já de tanto perscrutar-te noite E canto-te Canto-te Para que tu existas E eu não veja mais nada além de ti E nada mais deseje senão que venhas outra vez levar-me para dentro do teu ventre de nunca mais haver noite e nada mais haver que noite Noite Noite Oh tu noite definitivamente além

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Eros Frenético Na noite absolutamente não se via nada na terra e no céu um só satélite. As máquinas dormiam. Suas bocas caladas exalavam o cheiro acre do combustível muito quieto aguardando as próximas violentas combustões. As máquinas repousavam suas válvulas escuras e os lubrificantes cumpriam seu trabalho lento de estarem ali nos interstícios da matéria sinóvia escorregadia macia e totalmente aderente. Eles estavam sentados em cadeiras e apoiavam seus braços sobre o tampo da mesa placa de madeira que assentava na extrema fragilidade das suas quatro patas provisórias. Eles estavam sentados em cadeiras placas de madeira assentando em igualmente provisórias patas que singularmente davam origem a uma excrescência vertical e rendilhada uma espécie de cauda aberta rígida que aqui se chamava singularmente costas. Sobre o tampo da mesa eles apoiavam seus braços mutação provisória das barbatanas peitorais que tendo talvez passado pela fase da membrana alar eram agora obsoletos meios de locomoção. Suas pernas poisavam sobre o chão provisórias patas muito bem arrumadas junto das patas das cadeiras e o todo formava um curioso engenho de dezasseis patas assentando na terra onde não se via nada porque a noite estava absolutamente sem satélites e as galáxias digo as gala áxias estavam todas com suas cabeças escondidas debaixo das asas. Todas as máquinas estavam dormindo o que é o mesmo que dizer que estavam em seu ser aparente em seu estar entretanto enquanto a entropia esperava lambendo o focinho. Eles estavam ali sentados em frente um do outro e no silêncio dos xilemas do tampo da mesa alimentavam a provisória vida dos seus corpos aparentes cuja particularidade trágica consiste em não lhes ser possível ocupar simultaneamente o mesmo espaço. Seus corpos mecanicamente equivaliam os satélites que certamente percorriam o espaço. Seus motores internos tinham ali sido colocados com o fim específico de darem notícia do que encontrassem em sua trajectória no tempo espacial nunca esquecendo que interesse significa distância.

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O seu interesse era avaliar a distância que separa todos os corpos e todas as coisas umas das outras de modo que o espaço deixando de ser o incomensurável pudesse tornar-se mensuravelmente fasto para as interessadas trocas gasosas digo frenéticas etimologicamente espirituais ou etéreas. Eles estavam ali sentados em frente um do outro e suas trocas gasosas se cumpriam regularmente. Digo freneticamente. Porque era de noite e como o processo da fotossíntese estava suspenso em todos os organismos vegetais havia sobre a terra uma exalação acre de dióxido de carbono de todas as máquinas em seu trabalho nocturno de repouso da luz. Eles cumpriam seu ciclo evolutivo seu ciclo do carbono que se acumulava brilhantemente negro nas camadas mais fundas da terra onde as florestas agora esperam o momento de voltarem a superfície em forma de chama e renovarem seu ciclo evolutivo gráfico e frenético. Eles estavam ali aparentemente sentados em frente um do outro e seus corações trabalhavam bem. Seus ventres estremeciam regularmente aos movimentos peristálticos das suas digestões e os seus milhares de células abriam e fechavam suas ignoradas bocas. Seu sangue percorria o mapa das veias sem nenhum engano e tudo se passava absolutamente de uma forma nocturna em que não se via nada. Eles estavam ali como dois corpos porções delimitadas de matéria frenética sentados em frente um do outro e entre eles estava só a noite sob forma de espaço onde não se via absolutamente nada enquanto a entropia sacudia uma pata. Eles estavam ali absolutamente suspensos de seus corpos distintos na noite demasiado indistinta das formas acabadas prontas para a consumação do fim único absoluto da indistinção do espaço onde a entropia é um animal incompleto a que falta tudo o que está pra ser no oceano das partículas negativas de toda a criação provisória. Estavam em frente um do outro. Sobre a mesa apoiavam seus braços. Estendem agora suas mãos que se tocam e sente-se uma pausa brusca no movimento da circulação da noite. Alguma coisa se suspende instante para logo iniciar um movimento rápido uma aceleração de válvulas de

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combustíveis uma aceleração de bocas ingurgitadas um entumescimento de fibras um tremor de membranas. Suas mãos agora juntas apertam-se convulsas seus peitos se aproximam suas bocas entreabertas projectam-se ao encontro do beijo em sua escuridão húmida. Seus corpos vão-se enleando a mesa cai sobre o flanco. Suas patas voltam-se emaranhadas nas patas das cadeiras emaranhadas nas patas provisórias dos corpos caídos sobre o flanco enquanto ressoa o trabalho nocturno das ondas do oceano material correndo para a praia de nunca haver limite para a voracidade de dois corpos quererem ocupar o mesmo espaço dentro da máquina do corpo do outro onde tudo é noite e as línguas se confundem e os braços e as pernas confundidos sobre o flanco escancarado dos corpos freneticamente esquecidos da entropia que se prepara para abrir a boca e dar uma gargalhada enorme quando os corpos se encontram julgando perder a propriedade mágica da coesão da matéria na vertigem de entrarem no turbilhão do espaço totalmente ocupado pelo hálito acre dos ilimites da grande máquina da noite. Eles estão ali caídos sobre a terra sacudidos pelo estertor do encontro e enquanto seus corpos se confundem por dentro freneticamente devorando dentro de cada um o espaço escuro da noite de vivermos separados Ergue-se a noite do seu leito de não se ver absolutamente nada e de repente acordam todas as máquinas e nesse instante Eles estavam ali sentados apoiando seus braços sobre o tampo da mesa E eles estavam ali em frente um do outro no silêncio da sua morte ocupando diferentes espaços

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Vem, Noite Antiqüíssima e Idêntica

Fernando Pessoa Vem, Noite antiqüíssima e idêntica, Noite Rainha nascida destronada, Noite igual por dentro ao silêncio, Noite Com as estrelas lentejoulas rápidas No teu vestido franjado de Infinito. Vem, vagamente Vem, levemente Vem sozinha, solene, com as mãos caídas Ao teu lado, vem E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas, Funde num campo teu todos os campos que vejo, Faze da montanha um bloco só do teu corpo, Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo, Todas as estradas que a sobem, Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe. Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores, E deixa só uma luz e outra luz e mais outra, Na distância imprecisa e vagamente perturbadora, Na distância subitamente impossível de percorrer. Nossa Senhora Das coisas impossíveis que procuramos em vão, Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela, Dos propósitos que nos acariciam Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto, E que doem por saber que nunca os realizaremos... Vem, e embala-nos, Vem e afaga-nos. Beija-nos silenciosamente na fronte, Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam Senão por uma diferença na alma. E um vago soluço partindo melodiosamente Do antiqüíssimo de nós Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida. Vem soleníssima, Soleníssima e cheia De uma oculta vontade de soluçar, Talvez porque a alma é grande e a vida é pequena,

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E todos os gestos não saem do nosso corpo E só alcançamos onde o nosso braço chega, E só vemos até onde chega o nosso olhar Vem, dolorosa, Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, Turris-Erburnea das Tristezas dos Desprezados, Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes, Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. Vem, lá do fundo Do horizonte lívido, Vem e arranca-me Do solo de angústia e de inutilidade Onde vicejo. Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, Folha a folha lê em mim não sei que sina E desfolha-me para teu agrado, Para teu agrado silencioso e fresco. Uma folha de mim lança para o Norte, Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei; Outra folha de mim se lança para o sul, Onde estão os mares que os Navegadores abriram; Outra folha minha atira ao Ocidente, Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro, Que eu se conhecer adoro; E a outra, as outras, o resto de mim Atira ao Oriente, Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, Ao Oriente pomposos e fanático e quente, Ao Oriente excessivo que eu nunca verei, Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta, Ao oriente que tudo o que nós não temos, Que tudo o que nós não somos, Ao oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva, Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo... Vem sobre os mares, Sobre os mares maiores, sobre os mares sem horizontes precisos, Vem e passa a mão pelo dorso da fera, E acalma-o misteriosamente, Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito! Vem, cuidadosa, Vem, maternal, Pé ante pé enfermeira antiqüíssima, que te sentaste À cabeceira dos deuses das fés já perdidas, E que viste nascer Jeová e Júpiter,

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E sorriste porque tudo te é falso e inútil. Vem, noite silenciosa e estática Vem envolver na noite manto branco O meu coração... Serenamente como uma brisa na tarde leve, Tranq6uilamente como um gesto materno afagando. Com as estrelas luzindo nas tuas mãos E a lua máscara maravilhosa sobre a tua face. Todos os sons soam de outra maneira Quando tu vens. Quando tu entras baixam todas as vozes, Ninguém te vê entrar. Ninguém sabe quando entraste, Senão de repente, vendo que tudo se recolhe, Que tudo perde as arestas e as cores, E que no alto céu ainda claramente azul Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem. A lua começa a ser real.

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Descalça vai para a fonte Luís de Camões Descalça vai para a fonte Lianor pela verdura; Vai fermosa, e não segura. Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata, Cinta de fina escarlata, Sainho de chamelote; Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura. Vai fermosa e não segura. Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entrançado Fita de cor de encarnado, Tão linda que o mundo espanta. Chove nela graça tanta, Que dá graça à fermosura. Vai fermosa e não segura.

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