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A poesia de Micheliny Verunschk sob a ótica de Octavio Paz Heitor QUIMELLO 1 Marco Túlio De MATTOS 2 Marina Bariani TRAVA 3 Resumo O presente artigo pretende analisar os poemas “O muro” e “Naufrágio” do livro Cartografia da noite (2010), de Micheliny Verunschk, com base na teoria poética de Octavio Paz, partindo, principalmente, de seu ensaio O arco e a lira. Para tanto, faz-se necessário, em primeiro lugar, apresentar brevemente a base teórica de que partimos, ou seja, as concepções de poesia de Octavio Paz. Na sequência, faz-se igualmente necessário apresentar a autora em questão a fim de introduzir as análises crítico- interpretativas dos poemas selecionados, buscando-se pontuar a sua própria concepção de poesia e como esta se apresenta em relação ao poeta e crítico mexicano. Por fim, tecem-se breves considerações acerca das confluências entre a poesia de Micheliny e a teoria poética de Paz. Palavras-chave: Micheliny Verunschk. Octavio Paz. Poesia contemporânea. Abstract This work intends to analyse the poems “O muro” and “Naufrágio” from Micheliny Verunschk’s book Cartografia da noite (2010), based on Octavio Paz’s poetic theory, starting mainly from his essay O arco e a lira. Therefore, it is necessary first to briefly present the theoretical basis from which we started, namely the concepts of poetry by Octavio Paz. Furthermore, it is equally necessary to present the author that we are 1 Graduado em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara (UNESP/FCLAr), CEP: 14800-901, Araraquara/SP, Brasil. [email protected]. 2 Graduado em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara (UNESP/FCLAr), CEP: 14800-901, Araraquara/SP, Brasil. [email protected]. 3 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara (UNESP/FCLAr), CEP: 14800-901, Araraquara/SP, Brasil. [email protected].

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A poesia de Micheliny Verunschk sob a ótica de Octavio Paz

Heitor QUIMELLO1

Marco Túlio De MATTOS2

Marina Bariani TRAVA3

Resumo

O presente artigo pretende analisar os poemas “O muro” e “Naufrágio” do livro

Cartografia da noite (2010), de Micheliny Verunschk, com base na teoria poética de

Octavio Paz, partindo, principalmente, de seu ensaio O arco e a lira. Para tanto, faz-se

necessário, em primeiro lugar, apresentar brevemente a base teórica de que partimos, ou

seja, as concepções de poesia de Octavio Paz. Na sequência, faz-se igualmente

necessário apresentar a autora em questão a fim de introduzir as análises crítico-

interpretativas dos poemas selecionados, buscando-se pontuar a sua própria concepção

de poesia e como esta se apresenta em relação ao poeta e crítico mexicano. Por fim,

tecem-se breves considerações acerca das confluências entre a poesia de Micheliny e a

teoria poética de Paz.

Palavras-chave: Micheliny Verunschk. Octavio Paz. Poesia contemporânea.

Abstract

This work intends to analyse the poems “O muro” and “Naufrágio” from Micheliny

Verunschk’s book Cartografia da noite (2010), based on Octavio Paz’s poetic theory,

starting mainly from his essay O arco e a lira. Therefore, it is necessary first to briefly

present the theoretical basis from which we started, namely the concepts of poetry by

Octavio Paz. Furthermore, it is equally necessary to present the author that we are

1 Graduado em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de

Araraquara (UNESP/FCLAr), CEP: 14800-901, Araraquara/SP, Brasil. [email protected].

2 Graduado em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de

Araraquara (UNESP/FCLAr), CEP: 14800-901, Araraquara/SP, Brasil. [email protected].

3 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara (UNESP/FCLAr), CEP: 14800-901, Araraquara/SP,

Brasil. [email protected].

analyzing, searching to point her own conception of poetry and how it presents itself in

relation to the Mexican poet and critic, in order to introduce the critical-interpretative

analysis of the selected poems. Finally, we make brief remarks about the confluences

between Micheliny’s poetry and Paz’s poetic theory.

Keywords: Micheliny Verunschk. Octavio Paz. Contemporary poetry.

1. A teoria poética de Octavio Paz*

A poesia, na concepção que Octavio Paz** traz em seu ensaio O arco e a lira

(1982), é a expressão plena do ritmo e da sucessão de imagens. Enquanto a prosa segue

uma linearidade, ligada ao fluxo de ideias, pensamento racional e silogismos, a poesia é

guiada por uma ordem natural da linguagem, ligada à atração e repulsão de palavras, ou

seja, por correspondências. A poesia também estaria ligada à forma do círculo, pois é

um universo fechado e autossuficiente, uma unidade de assimilação e imagem, e esta

unidade é a ordem, o ritmo. A matéria essencial da poesia é a palavra, a linguagem,

matéria esta que se manifesta plenamente sem perder seus aspectos primitivos e

essenciais: o ritmo e a imagem. Ademais, a poesia também suscita metáforas e

analogias. Segundo Paz, em seu outro ensaio denominado Os filhos do Barro (1984):

[...] a analogia [...] concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde

porque tudo ritma e rima. A analogia não só é uma sintaxe cósmica, é

também uma prosódia. Se o universo é um texto ou um tecido de

signos, a rotação desses signos é regida pelo ritmo. O mundo é um

poema; o poema, por sua vez, é um mundo de ritmos e símbolos.

Correspondência e analogia não são mais do que nomes do ritmo

universal. (PAZ, 1984, p. 88-89).

A poesia, aliás, não é somente a manifestação pura de sua matéria, mas se utiliza

da própria linguagem para transcendê-la. Tal acepção de transcendência está ligada ao

* O presente artigo é fruto de um trabalho para a disciplina de graduação Teorias da poesia, responsável

pela Prof. Dra. Fabiane Renata Borsato. Gostaríamos de agradecer, portanto, imensamente à professora

pela oportunidade oferecida e por ter-nos apresentado à poesia de Micheliny Verunschk.

** Octavio Paz (1914-1998) foi um poeta nascido na Cidade do México, que residiu, ao longo de sua vida,

em diferentes países, como Estados Unidos, França, Espanha, Índia (como embaixador) e Japão.

Diplomata, foi sua atuação na França que lhe proporcionou forte contato com o Movimento Surrealista,

uma vez que, em Paris, conheceu e foi influenciado pelo poeta André Breton, um dos principais teóricos

dessa corrente. Tradutor e ensaísta, Octavio Paz publica O arco e a lira em 1956, ensaio que explora as

características e natureza da poesia. O poeta morreu na Cidade do México em 1998, aos 84 anos.

sentido de “ir para algum lugar”, um romper temporal, um ir além dos múltiplos

significados das palavras e encontrar a imagem-unidade do poema. Tais palavras se

combinam, se repelem e formam imagens, nas quais o leitor sente o “tempo

transbordar”. Podemos dizer que tal concepção de transcendência se atrela ao caráter

único e irredutível, particular de toda poesia, pois ela traz consigo uma concepção de

tempo que não está vinculado à cronologia, mas a um tempo ligado a um momento

único e indeterminado cronologicamente. O momento da transcendência não é algo da

poesia, mas sim a própria poesia, assim como ela também é ritmo: “A poesia não é nada

senão tempo, ritmo perpetuamente criador” (PAZ, 1982, p. 31).

Já no que diz respeito à inspiração poética, Octávio Paz, ainda em O arco e a

lira, apresenta uma crítica sobre a maneira como a inspiração foi tratada ao longo da

história pela humanidade, e pelos poetas em específico. O autor discorda do ponto de

vista moderno de que o trabalho poético é um fazer puramente consciente, pois, para

ele, essa é uma maneira que o homem da modernidade encontrou de negar a existência

de uma misteriosa força natural que está acima dele e de sua razão. Paz ainda afirma

que simplesmente negar a existência da inspiração não é condição para que ela deixe de

operar sobre o fazer poético, ao mesmo tempo em que discorda daqueles que acreditam

que a inspiração é algo que vem somente de dentro do poeta:

No caso do poeta reflexivo, tropeçamos numa misteriosa colaboração

alheia, com a aparição não invocada de outra voz. No caso do

romântico deparamos com a não menos inexplicável presença de uma

vontade que faz do murmúrio um todo arranjado e dono de uma

obscura premeditação. (PAZ, 1982, p. 193-194).

Essa voz outra e misteriosa não brota do vazio, nem o poeta a extrai, somente, de

dentro de si. Ou seja, mesmo que se admita o peso do contexto histórico do mundo

exterior em que o poeta está inserido, não é simplesmente da realidade externa que essa

voz aparece, e também esta não é somente a voz subjetiva do poeta. Assim, a fim de

resolver a questão da inspiração e o embate entre mundo externo objetivo e a realidade

subjetiva, Octavio Paz evoca o Surrealismo, que surge na modernidade não só como um

defensor da inspiração, mas também como uma tentativa de resolver essa dualidade:

“Sujeito e objeto se dissolvem em benefício da inspiração” (PAZ, 1982, p. 204).

A inspiração é, portanto, uma voz outra que coloca a voz do poeta sempre em

diálogo, e isso faz com que o homem seja sujeito criador e objeto criado de sua própria

arte poética. É exatamente com essa “outridade” que aparece o constante diálogo de

vozes que traz a unidade indivíduo-mundo. Octavio Paz esclarece que não há uma

separação certa dessas vozes, assim o poema não pode ser simplesmente uma produção

externa ou totalmente interna do poeta, isto é, tanto o leitor quanto aquele que escreveu

o poema estão em uma relação de diálogo com a obra poética e, por consequência, com

eles próprios: “O poema não é apenas uma realidade verbal: é também um ato. O poeta

diz e, ao dizer, faz. [...] O leitor, por sua vez, repete a experiência da autocriação do

poeta e assim a poesia encarna-se na história” (PAZ, 1984, p. 85).A poesia de

Micheliny Verunschk: confluências com Paz

Poetisa nascida em Recife, Pernambuco, Micheliny Verunschk Pinto Machado

(1972) é uma das vozes mais singulares da poesia contemporânea brasileira. Formada

em História, foi finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2004, e recebeu

o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015, na categoria “Melhor livro de romance do

ano – autor estreante com mais de 40 anos”. É autora das obras O observador e o nada

(2003), Geografia íntima do deserto (2003), A cartografia da noite (2010) e Nossa

teresa – vida e morte de uma santa suicida (2014). Sua dissertação de mestrado elegeu

a poesia de João Cabral de Melo Neto e de Sophia de Mello Breyner Andresen como

objeto de estudo. Atualmente, a autora concluiu a tese de doutorado em Comunicação e

Semiótica, denominada “Eu matei a santa: devoções populares e multimediações”.

Micheliny Verunschk e Octavio Paz parecem convergir parcialmente em suas

opiniões a respeito do que se denomina a inspiração poética. Em O gosto pelo rigor:

entrevista com Micheliny Verunschk, entrevista concedida a Solange Fiuza Yokozawa e

Antônio Donizeti Pires, a poetisa concorda com o fato de a inspiração ser,

eventualmente, fruto de ação do inconsciente, mas afirma que o trabalho e o resultado

de um poema é sobretudo da “mente criadora”:

Acredito que o que se chama de inspiração é, na verdade, o resultado

de um processo de maturação. Não acredito na inspiração como um

sopro divino, mas penso que a mente criadora trabalha

incessantemente, às vezes de modo consciente, às vezes por vias

inconscientes. Então, o que se pensa ser um poema inspirado é fruto

de um longo trabalho. (YOKOZAWA; PIRES, 2007, p. 6).

Além disso, a poetisa também comenta sobre as influências de seu trabalho

poético, destacando que Casimiro de Abreu e João Cabral de Melo Neto foram os

primeiros poetas com quem travou conhecimento. De Casimiro, a poetisa diz ter

herdado um olhar mais pessimista e um ponto de vista peculiar sobre a morte, enquanto

que, de João Cabral, afirma: “Cabral me deu o gosto pela exatidão, pela palavra

empregada com rigor” (YOKOZAWA; PIRES, 2007, p. 6). E tal qual os poemas de

João Cabral, o poema “O muro” pode ser considerado bastante sucinto e metalinguístico

(VERUNSCHK, 2010, p. 40):

O Muro

No muro de pedra

a pedra

o lodo

a hera.

o muro:

um ovo que se quebra

um touro na arena

um livro contra a tarde.

o muro:

a pedra contra a face.

O poema é constituído de duas estrofes de três versos intercaladas por estrofes

de verso único – exceto pela última estrofe. Este formato de poema sugere uma ideia de

“emparedamento”, uma vez que os versos solitários são justamente aqueles que trazem

a imagem do muro. As estrofes “emparedadas”, posicionadas uma de cada lado de um

muro, constituem uma oposição: os versos da segunda estrofe do poema são

substantivos introduzidos por artigos definidos “a pedra / o lodo / a hera”; enquanto que

os versos da quarta estrofe são sentenças introduzidas por artigos indefinidos “um ovo

que se quebra / um touro na arena / um livro contra a tarde”. A primeira e a segunda

estrofes apresentam elementos concretos constitutivos do muro, enquanto a quarta e a

sexta apresentam metáforas suscitadas a partir da imagem do muro.

As duas primeiras estrofes, que tratam da constituição do muro de pedra,

apresentam, portanto, um elemento que efetivamente faz parte do muro – a pedra – e

dois outros elementos que não fazem necessariamente parte do muro – o lodo e a hera.

A pedra, em um primeiro momento, significa o mesmo que o muro: parede sólida que

bloqueia a passagem, que sustenta, que protege. Já o muro nada mais é do que um

conjunto de pedras que, postas umas sobre as outras, garantem as referidas funções de

um muro. Porém, além de pedra, o muro contém o lodo e a hera, que ao longo do tempo

naturalmente sujeitam-se ao muro exposto.

Da mesma forma, assim como o poema é uma organização espacial um tanto

quanto fixa das palavras, significações inesperadas podem surgir a partir delas. Essa

relação do muro com o próprio fazer poético, esse caráter do não intencional que surge

do muro de pedra – o lodo e a hera – podem ser entendidos como um dos aspectos

metalinguísticos do poema. A palavra transformada pelo poema é o próprio muro

transformado, que rompe e é rompido pelas coisas. De acordo com Octavio Paz:

Na criação poética não há vitória sobre a matéria ou sobre os

instrumentos [...] mas um colocar em liberdade a matéria. Palavras,

sons, cores a outros materiais sofrem uma transmutação mal

ingressam no círculo da poesia. Sem deixarem de ser instrumentos de

significação e de comunicação, convertem-se em “outra coisa”. Essa

mudança - ao contrário do que ocorre na técnica - não consiste em

abandonar sua natureza original, mas em voltar a ela. Ser “outra

coisa” quer dizer ser a “mesma coisa”: a coisa mesma, aquilo que real

e primitivamente são. (PAZ, 1982, p. 26).

Esse estado poético das palavras, apontado por Paz, é a manifestação pura delas;

na poesia, as palavras não abandonam seu aspecto de comunicação e significação, mas o

transcendem para se manifestarem como unidade plena da palavra, um estado outro e

natural. Assim, tomando-se o muro do poema, temos também uma “outridade”, um

espaço que impede a passagem total e que é transbordado, porém, não só pelo lodo e

pela hera, mas pela própria contenção que ele causa. Dessa forma, se pensarmos a

poesia como um todo circular fechado em si, a palavra é o que dá limite, mas também o

que possibilita a sua própria transcendência; e assim, pensando na metalinguagem,

podemos pensar o muro. Ainda de acordo com Paz:

Por outro lado, a pedra da estátua, o vermelho do quadro, a palavra do

poema, não são pura e simplesmente pedra, cor, palavra: encarnam

algo que os transcende e ultrapassa. Sem perder seus valores

primários, seu peso original, são também como pontes que nos levam

à outra margem, portas que se abrem para outro mundo de

significados impossíveis de serem ditos pela mera linguagem. Ser

ambivalente, a palavra poética é plenamente o que é - ritmo, cor,

significado - e, ainda assim, é outra coisa: imagem. A poesia converte

a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. E essa segunda

característica, o fato de serem imagens, e o estranho poder de

suscitarem no ouvinte ou no espectador constelações de imagens,

transforma em poemas todas as obras de arte. (PAZ, 1982, p. 26-27).

No poema, podemos perceber algo que se assemelha fortemente a essa ideia: a

primeira estrofe “No muro de pedra” é seguida, na segunda estrofe, por elementos

materiais do próprio muro, antecedidos por artigos definidos – a pedra, o lodo, a hera –

materialidade do muro fortemente presente. Já a segunda estrofe é iniciada apenas por

“No muro”: os três versos seguintes (terceira estrofe) vão suscitar imagens que têm o

muro como origem, e desta vez os versos serão precedidos de artigos indefinidos.

Assim, o muro é a própria ponte para outra margem, além do impedimento e

delimitação, é a partir do muro que se rompem as sucessões de imagens, a própria

contenção é o transbordar das fronteiras. Assim, dentro do que nos fala Octavio Paz,

podemos interpretar o muro como metáfora da palavra, do caráter paradoxal de limitar e

se transbordar em imagens.

Na terceira e na quarta estrofe, há uma dicotomia entre interior e exterior (dentro

e fora), simbolizando respectivamente um espaço de libertação – ovo do qual irrompe a

vida, touro que é símbolo de força e potência, livro que proporciona fuga e liberdade – e

espaço de contenção – a quebra do ovo, que é interrupção, a arena que cerceia o animal,

a tarde que entedia e aprisiona. Octavio Paz, ao discorrer sobre a poesia, tece

observações sobre o seu caráter libertador:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz

de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por

natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A

poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento

maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal.

Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo

com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo

desespero. (PAZ, 1982, p. 15).

Assim, da mesma forma que o muro, no poema, se estabelece como espaço de

contenção que foi rompido, o próprio poema constitui-se também, para o leitor, de um

espaço de libertação, de rompimento. O muro é antes de tudo uma defesa, um voltar-se

para a interioridade, a fim de sustentá-la, protegê-la. Entretanto, no contexto do poema,

o muro assume um rompimento com o interior para abrir-se ao exterior. Assim é

também a produção poética que é, inicialmente, fruto da interioridade de um poeta, mas

que logo ao ser escrita revela-se para o mundo.

Por fim, na quinta e na última estrofe do poema, há novamente a dicotomia

interior x exterior. Entretanto, há uma ressignificação da palavra “pedra”, uma vez que,

nas duas primeiras estrofes, a pedra é um elemento constitutivo do muro e, portanto,

espaço de contenção. Mas, no fim do poema, cria-se a imagem da pedra que, uma vez

extraída do muro, é atirada contra a face, tornando-se movimento e, consequentemente,

espaço de libertação. A face, metonímia do sujeito, veículo de expressão de

pensamentos e emoções, assume a natureza de um novo muro, alvo de violência da

pedra, mas passível de se moldar ao impacto. Retomando as discussões de Paz:

A operação transmutadora consiste no seguinte: os materiais

abandonam o mundo cego da natureza para ingressar no das obras,

isto é, no mundo das significações. O que ocorre então com a matéria

pedra empregada pelo homem para esculpir uma estátua e construir

uma escada? Ainda que a pedra da estátua não seja diferente da pedra

da escada, e ambas sejam referentes a um mesmo sistema de

significações [...] a transformação que a pedra sofreu na escultura é de

natureza diversa da que a converteu em escada. O destino da

linguagem nas mãos de [...] poetas nos faz vislumbrar o sentido dessa

diferença. (PAZ, 1982, p. 24-25).

Ainda refletindo sobre a imagem da pedra, que constitui o muro apresentado

pelo poema, pode-se resgatar “A Educação pela Pedra” (1966), de João Cabral de Melo

Neto. Neste poema, o autor cita dois movimentos de ação da pedra, um de fora para

dentro e outro de dentro para fora. Já no poema de Verunschk, podemos pressupor que o

movimento de ação da pedra – constituindo o muro – acontece de fora para dentro.

Considera-se, portanto, que assim como a pedra da citação, a pedra no muro se

transforma na totalidade. Também podemos relacionar, de forma metalinguística, a

pedra e o muro com a palavra e a poesia. O muro, assim como a própria poesia, é o

limite do entendimento e, ao mesmo tempo, o transbordar da própria impossibilidade

imposta pela linguagem. Assim, podemos vislumbrar, a partir do “Muro”, como essas

imagens e sentidos levam à transcendência do próprio muro: “O poema transcende a

linguagem. [...] Nascido da palavra, o poema desemboca em algo que o ultrapassa”

(PAZ, 1982, p. 135).

Já no poema “Naufrágio” (VERUNSCHK, 2010, p. 20), podemos observar, de

certo modo, a visão peculiar sobre a morte a que Micheliny se refere na entrevista

supracitada. Como desde sempre a morte representa um dos grandes mistérios da vida,

poder-se-ia perguntar, seguindo os passos de Octavio Paz (quando discorre sobre o

mistério da inspiração): esse tema seria, também, um mistério ou um problema? O fato

é que o tema da morte sempre esteve presente na poesia, uma vez que “[...] a morte é

inseparável de nós. Não está fora: a morte é nós. Viver é morrer” (PAZ, 1982, p. 182), e

a poesia reflete senão a própria substância humana:

Naufrágio

Silêncio,

agora me destroço,

mastro retorcido,

casco arrebentado.

Meu nome encontra

o rosto da sereia cega

e decepada.

Meu nome encontra o nome

desse país provisório

entre a vida e a água.

Vértebras.

Pele furada.

Olho de baleia.

Agora é a minha deixa.

Coluna dolorida

tocando o abismo

desse céu inverso.

Incisão de agulhas de tricô.

Silêncio.

Agora me atravessam

pregos,

travessões.

Silêncio,

agora começou.

A morte, descrita metaforicamente pelo naufrágio de uma embarcação no poema

de Verunschk, é sintetizada aqui em uma única palavra: silêncio. É interessante

pensarmos em como esse silêncio é extremamente significativo, um silêncio

polissêmico que perpassa todo o poema. Esse silêncio representa não apenas o silêncio

da transgressão para o tempo eterno após a morte, mas a própria imagem (nos termos de

Octavio Paz) que é construída para a morte (e pela morte), que está em processo de

construção durante todo o poema:

Por uma via que, a seu modo, também é negativa, o poeta chega à

margem da linguagem. E essa margem se chama silêncio, página em

branco. Um silêncio que é como um lago, uma superfície lisa e

compacta. Dentro, submersas, as palavras aguardam. E é preciso

descer, ir ao fundo, calar, esperar. A esterilidade precede a inspiração,

como o vazio precede a plenitude. A palavra poética brota depois de

eras de seca. Mas qualquer que seja seu conteúdo expresso, sua

significação concreta, a palavra poética afirma a vida desta vida. [...] a

palavra poética é ritmo, temporalidade manando-se e reengendrando-

se sem cessar. E, sendo ritmo, é imagem que abraça os opostos, vida e

morte num só dizer. (PAZ, 1982, p. 180).

Outra categoria fundamental a ser analisada na construção dessa imagem é o

tempo, pois todo o processo do naufrágio é sentido no presente, no agora (palavra

fundamental no poema), que se reatualiza e se ressignifica a todo instante, imprimindo

ainda um aspecto dramático. O poema também é repleto de simbologias e imagens

pertencentes majoritariamente ao universo marinho, como o próprio título sugere. Por

meio da sonoridade e da assimilação de palavras dentro do contexto semântico do mar,

cria-se o ritmo do poema. A aliteração da sibilante [s] e das nasais [m] e [n] remete, por

exemplo, ao barulho de ondas do mar, conferindo uma imagética marítima ao poema.

Logo na primeira estrofe já temos a identificação do eu-lírico com a embarcação

que passa a naufragar: “Silêncio, / agora me destroço”. A imagem do naufrágio da

embarcação coloca-se como um processo violento de destruição da própria vida. Ainda

na primeira estrofe, temos o mastro que se retorce, o casco que se arrebenta. A segunda

estrofe continua com a caracterização dos primeiros momentos de impacto que sofre a

embarcação, ou seja, o sentimento consciente de impotência perante a morte. Para tanto,

é criada uma imagem extremamente poética e, assim, rítmica do desfazer-se da

embarcação, com a queda da cabeça da estátua de sereia que se choca contra o casco,

onde está escrito o nome do barco. À medida que o corpo afunda e se apaga, os nomes e

os seres vão se encontrando (“Meu nome encontra o nome”):

Como uma água profunda brotando, como o mar banhando a praia, as

presenças voltam à superfície. [...] Nada está oculto, tudo está

presente, pleno de si mesmo. Maré do ser. [...] O mundo desaparece.

Não há nada nem ninguém: as coisas e seus nomes e seus números e

seus signos caem a nossos pés. Já estamos despidos de palavras.

Esquecemos nossos nomes e nossos sobrenomes se confundem e se

enlaçam. Caímos, agarrados em nós mesmos, enquanto fluem e se

perdem os nomes e as formas. Rio abaixo, rio acima, teu rosto foge.

[...] Abro os olhos: um corpo alheio. (PAZ, 1982, p. 185)

Na terceira estrofe, é anunciado o início do afundamento da embarcação na

água, ou seja, o início do “afogamento”, o início da perda da consciência. Ao enunciar

“entre a vida e a água” temos uma recuperação metonímica do enunciado “entre a vida e

a morte”, e a água passa então a constituir uma metáfora da morte, especialmente ao se

ligar à realidade do naufrágio. Como a imagem da baleia suscita uma simbologia

significativa, evoca-se aqui um de seus símbolos, de acordo com Jean Chevalier:

[...] divindade do mar, a baleia guia as barcas dos pescadores e salva-

os dos naufrágios. Por simples extensão, o espírito-baleia apresenta-se

também como um espírito bom e prestativo na passagem que leva à

morada dos imortais. A baleia, portanto, parece desempenhar neste

caso um papel de psicopompo [...]. (CHEVALIER, 1995, p. 117).

Segundo a mitologia antiga, psicopompo é o condutor das almas dos mortos, o

que pode significar a gradual passagem do eu-lírico da vida para a morte: “Olho de

baleia / Agora é minha deixa”. No poema, porém, não há a figura do psicopompo na

íntegra, mas de uma parte dele, representada pelo olho, numa relação mais uma vez

metonímica. Tal imagem do olho da baleia traz em si, também, elementos ligados à

duração da vida. O abrir e fechar dos olhos são símbolos demarcadores dos estágios de

nascimento e morte de um ser vivo, sendo então a visão um elemento chave e simbólico

da consciência e da percepção do ser – por ser um dos cinco sentidos com os quais

interage-se com o ambiente. Chevalier também observa, sobre a baleia:

[...] símbolo do continente e, conforme seu conteúdo, símbolo do

tesouro escondido ou às vezes também da desgraça ameaçadora, a

baleia contém sempre em si a polivalência do desconhecido e do

interior invisível; é o centro de todos os opostos que podem vir a

existir. Por essa razão, também já se comparou sua massa ovóide à

conjunção dos dois arcos de círculo que simbolizam o mundo do alto

e o mundo de baixo – o céu e a terra. (CHEVALIER, 1995, p. 117).

A conjunção entre o mundo superior e o inferior simbolizada pela “massa

ovóide” transparece na correlação “abismo” e “céu inverso”. A imagem da baleia

pairando na superfície marinha, com suas “vértebras” e “coluna dolorida”, é o limiar

entre o céu e o abismo, dividido em dois arcos idênticos, céu e mar (abismo). Quanto

mais se aprofunda no abismo marinho, ou quanto mais se eleva ao céu infinito, mais

escuro fica, até que se chega à escuridão total, às trevas; e morrer é mergulhar nas trevas

do abismo.

A imagem da perfuração da pele aparece duas vezes no poema; a primeira, no

verso “Pele furada”; e a segunda, concretizada pelo substantivo “incisão”. As baleias

respiram por meio de um buraco posicionado no alto de suas cabeças denominado

espiráculo, cuja função é a de garantir a vida do animal no ambiente submarino. O verso

“Pele furada” posiciona-se logo acima do verso “Olho de baleia”, como o espiráculo no

corpo do animal, acima dos olhos em seu dorso. O furo da pele da baleia é, portanto, o

que lhe garante a vida; enquanto que os objetos perfurantes (“agulhas de tricô”,

“pregos” e “travessões”, remetendo ao ato de apunhalar), podem eventualmente

representar a ação de se tirar uma vida.

O poema se encerra com um verso construído de modo similar ao que o inicia:

“Silêncio, / agora começou.” A anáfora do silêncio e do agora reitera o tempo presente,

o simultâneo, ao mesmo tempo em que o paralelismo entre os versos iniciais e finais

imprimem um efeito cíclico ao poema: de transcendência do ser, de renovação pela

morte. A morte surge como o silenciar da vida e, o silêncio, como o prenúncio da morte.

Porém, se nascer é morrer, morrer é também uma forma de renascer – e nisso reside o

olhar sobre a morte de Micheliny:

Viver é ir para diante, avançar para o desconhecido e esse avançar é

um ir ao encontro de nós mesmos. Portanto, viver é enfrentar a morte.

Nada mais afirmativo que esse dar de cara com a morte, esse contínuo

sair de nós ao encontro do desconhecido. A morte é o vazio, o espaço

aberto, que permite o passo para adiante. O viver consiste em termos

sido jogados para o morrer, mas esse morrer só se cumpre no viver e

pelo viver. Se o nascer envolve o morrer, também o morrer envolve o

nascer [...]. Diz-se que estamos rodeados de morte, não se pode dizer

que estamos rodeados de vida? (PAZ, 1982, p. 182).

2. Considerações finais

Procurou-se analisar, neste trabalho, os poemas “Naufrágio” e “O muro” de

Micheliny Verunschk sob a ótica de Octavio Paz; para tanto, pesquisou-se sobre a teoria

de Paz e sobre a sua concepção de poesia, relacionando-a com os poemas selecionados.

Para o teórico mexicano, a poesia é o que converte o material, a palavra, o significado e

o som em imagens. Não deixando de ser ritmo, cor e som, a poesia é o que converge

nessa “outra coisa”, que transborda as fronteiras do próprio poema. Nesse sentido, tanto

“Naufrágio” quanto “O Muro” são poemas fortemente imagéticos, suscitando

assimilações e imagens diversas, que puderam ser esclarecidas à luz das ideias contidas

em O arco e a lira. Mas, mais do que isso, ao mergulhar em uma morte simbólica e se

deixar romper ao mundo externo, a poesia de Micheliny luta contra a natureza das

palavras e, por meio da própria linguagem, a transcende – e, segundo Octavio Paz:

[...] um poema que não lutasse contra a natureza das palavras,

obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus significados

relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível,

permaneceria simples manipulação verbal. O que caracteriza o poema

é sua necessária dependência da palavra tanto como por sua luta por

transcendê-la. (PAZ, 1982, p. 225).

Portanto, ao transcender o plano da linguagem, a poesia de Micheliny nos

oferece o exercício e a possibilidade de afirmarmos a nossa identidade, e de nos

reconhecermos e nos identificarmos com a “outridade” adormecida em nós, posto que

“a experiência [poética] pode adotar esta ou aquela forma, mas é sempre um ir além de

si, um romper os muros temporais, para ser outro” (PAZ, 1982, p. 30). Além disso, a

experiência do ato poético é, assim como a morte e a transcendência – simbolizadas,

respectivamente, pelo naufrágio e pelo rompimento do muro nos poemas de Micheliny

–, uma experiência limítrofe, capaz de dar significado à vida humana: “[...] aquilo que o

homem toca se tinge de intencionalidade: é um ir em direção a... O mundo do homem é

o mundo do sentido. Tolera a ambiguidade, a contradição [...], não a carência de

sentido” (PAZ, 1984, p. 27). Assim, Micheliny é justamente capaz, por meio de sua

poesia, de possibilitar o leitor a compreender melhor a si e ao mundo, revelando novos

sentidos para a existência.

Referências bibliográficas

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,

figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva et al. 9ª ed. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1995.

MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do

Autor, 1966.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1982.

______. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Tradução de Olga Savary.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

PIRES, Antônio Donizeti; YOKOZAWA, Solange Fiuza Cardoso. “Entrevista com

Micheliny Verunschk”. In: Revista Texto Poético. Volume 8 (1º semestre de 2010), p.

6-10. Disponível em:

http://www.textopoetico.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=95:

o-gosto-pelo-rigor-entrevista-com-micheliny-

verunschk&catid=19:entrevistas&Itemid=33. Último acesso em: 20 de abril de 2016.

VERUNSCHK, Micheliny. Cartografia da noite. São Paulo: Lumme Editor, 2010.