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RESUMO O tema “A pirataria marítima. O seu regime jurídico e problemas actuais” expõe a fragilidade do actual regime jurídico, internacional e nacional, face ao crime de pirataria marítima, revelando também as vá- rias indefinições a propósito deste crime na comunidade internacional. Nesse sentido, começamos por expor conceitos pertinentes no âmbi- to do Direito Internacional face ao tema em análise, explicando, desde logo, porque razão a pirataria marítima deve ser distinguida de outras figuras afins, seguindo-se uma breve análise da evolução histórica da pirataria marítima, uma vez que o passado será sempre um alicerce do presente. A partir do actual regime jurídico são analisadas as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar referentes à pi- rataria (fazendo, contudo, uma breve notícia do anterior regime jurídico do mar), mencionando os esforços da Organização das Nações Unidas, da Organização Marítima Internacional (e de outras organizações), as- sim como das forças militares e policiais, no sentido de ajudar os países na prevenção e supressão de tais actos criminosos. A concreta situação verificada na Somália, e os moldes em que é le- gitimado o recurso à força armada, não deixa de ser referida, deixando- -se expressa a necessidade de constante atenção ao imperativo princípio da prevenção por parte dos comandantes, e respectivas tripulações, dos navios que navegam em águas mais sujeitas a este tipo de criminalidade. Explicando ainda o modo como o princípio da jurisdição universal e a máxima aut dedere aut judicare se aplicam ao tema, terminamos o nosso trabalho abordando a responsabilização dos autores dos actos de pirataria, a nível internacional e nacional, e os moldes em que podem ser julgados.

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RESUMO

O tema “A pirataria marítima. O seu regime jurídico e problemas actuais” expõe a fragilidade do actual regime jurídico, internacional e nacional, face ao crime de pirataria marítima, revelando também as vá-rias indefinições a propósito deste crime na comunidade internacional.

Nesse sentido, começamos por expor conceitos pertinentes no âmbi-to do Direito Internacional face ao tema em análise, explicando, desde logo, porque razão a pirataria marítima deve ser distinguida de outras figuras afins, seguindo-se uma breve análise da evolução histórica da pirataria marítima, uma vez que o passado será sempre um alicerce do presente.

A partir do actual regime jurídico são analisadas as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar referentes à pi-rataria (fazendo, contudo, uma breve notícia do anterior regime jurídico do mar), mencionando os esforços da Organização das Nações Unidas, da Organização Marítima Internacional (e de outras organizações), as-sim como das forças militares e policiais, no sentido de ajudar os países na prevenção e supressão de tais actos criminosos.

A concreta situação verificada na Somália, e os moldes em que é le-gitimado o recurso à força armada, não deixa de ser referida, deixando--se expressa a necessidade de constante atenção ao imperativo princípio da prevenção por parte dos comandantes, e respectivas tripulações, dos navios que navegam em águas mais sujeitas a este tipo de criminalidade.

Explicando ainda o modo como o princípio da jurisdição universal e a máxima aut dedere aut judicare se aplicam ao tema, terminamos o nosso trabalho abordando a responsabilização dos autores dos actos de pirataria, a nível internacional e nacional, e os moldes em que podem ser julgados.

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NOTA PRÉVIA

O texto que agora se publica corresponde à dissertação de Mestra-do em Direitos Humanos que foi defendida publicamente na Escola de Direito da Universidade do Minho no dia 16 de Dezembro de 2011, perante o júri constituído pelo Senhor Professor Doutor Pedro Bacelar de Vasconcelos, na qualidade de presidente, pelo Senhor Professor Dou-tor Wladimir Augusto Correia Brito, a quem agradeço todas as críticas construtivas e sugestões que me dirigiu enquanto arguente, e pela Se-nhora Professora Doutora Maria de Assunção do Vale Pereira, a quem especialmente deixo expresso o meu reconhecimento pela orientação deste trabalho, pela sua permanente disponibilidade, colaboração e con-selhos imprescindíveis.

Foram várias as fontes de informação na elaboração deste trabalho, mas pela valiosa colaboração dada, entendemos deixar aqui expressa uma palavra de gratidão referida à Biblioteca da Universidade de San-tiago de Compostela, à Marinha Portuguesa, na pessoa do Senhor Capi-tão-de-fragata António Neves Correia, e ao Centro de Documentação da Polícia Judiciária.

Apesar da presente dissertação em suporte papel conter os vários sítios da internet utilizados, com a devida referência às datas das respec-tivas consultas possibilitando a actualização da informação transmitida e salvaguardando as situações em que deixa de ser possível aceder ao sítio da internet de onde se retirou a informação, uma vez que alguns distribuidores não aceitam links na publicação em eBook, determinou que a referência aos sítios da internet utilizados fossem retirados das

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notas de rodapé da presente dissertação. Mais se informa que a imagem da capa deste eBook foi retirada do motor de busca Google e que não se conhece a autoria da mesma.

Contudo, podemos, desde já, referir que o tempo que decorreu desde a entrega da dissertação até à presente publicação fez com que surgis-sem novas resoluções por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas no que diz respeito à situação na Somália (descrita no Capítu-lo IV deste trabalho), sendo a Resolução S/RES/2142 (2014), de 5 de Março, a mais recente. Por seu turno, e ainda no que toca à condenação dos actos de pirataria marítima e roubo à mão armada contra navios nas águas ao largo da costa da Somália, a Organização Marítima In-ternacional publicou a sua mais recente Resolução A. 1044 (27), de 30 de Novembro de 2011, revogando a Resolução A. 1026 (26), de 2 de Dezembro de 2009.

Na verdade, quando concluímos o nosso trabalho, em Agosto de 2011, referimos que, com elevada probabilidade, iriam surgir novas re-soluções da ONU e/ou da OMI, ao mesmo tempo que se publicariam os constantes relatórios da Agência Marítima Internacional sobre ataques a navios em todo o mundo.

Todavia, o importante é referir que no tempo passado desde a con-clusão deste trabalho não houve alterações significativas, continuando por isso a manter a sua actualidade e a expor a fragilidade do actual regime jurídico, internacional e nacional, face ao crime de pirataria ma-rítima, revelando também as várias indefinições a propósito deste crime na comunidade internacional.

Nesse sentido, começamos por expor conceitos pertinentes no âmbi-to do Direito Internacional face ao tema em análise, explicando, desde logo, porque razão a pirataria marítima deve ser distinguida de outras figuras afins, seguindo-se uma breve análise da evolução histórica da pirataria marítima, uma vez que o passado será sempre um alicerce do presente.

A partir do actual regime jurídico são analisadas as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar referentes à pi-rataria (fazendo, contudo, uma breve notícia do anterior regime jurídico do mar), mencionando os esforços da Organização das Nações Unidas, da Organização Marítima Internacional (e de outras organizações), as-sim como das forças militares e policiais, no sentido de ajudar os países

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na prevenção e supressão de tais actos criminosos. A concreta situação verificada na Somália, e os moldes em que é le-

gitimado o recurso à força armada, não deixa de ser referida, deixando--se expressa a necessidade de constante atenção ao imperativo princípio da prevenção por parte dos comandantes, e respectivas tripulações, dos navios que navegam em águas mais sujeitas a este tipo de criminalidade.

Explicando ainda o modo como o princípio da jurisdição universal e a máxima aut dedere aut judicare se aplicam ao tema, terminamos o nosso trabalho abordando a responsabilização dos autores dos actos de pirataria, a nível internacional e nacional, e os moldes em que podem ser julgados.

Braga, 10 de Maio de 2014

DAVID VASQUEZ BARROS

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LISTA DE ABREVIATURAS

a.C. Antes de Cristo

AG Assembleia Geral

AJIL American Journal of International Law

AMACN Assaltos à Mão Armada contra Navios

AMISOM African Union Military Mission on Somalia

CC Código Civil

CNU Carta das Nações Unidas

CNUDM Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar

CTF Combined Task Force

Code ISPS International Ship and Port Facility Security Code

Convenção SOLAS 74 Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar de 1974

Convenção SUA Convenção para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Seguran-ça da Navegação Marítima

CP Código Penal

CPP Código de Processo Penal

CRP Constituição da República Portuguesa

CS Conselho de Segurança

DB Abreviatura de [decibel]

DUDH Declaração Universal dos Direitos do Homem

EJIL European Journal of International Law

EMP Empresas Militares Privadas

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EU European Union

EUA Estados Unidos da América

EUROPOL European Law Enforcement Agency

GFT Governo Federal de Transição

GNT Governo Nacional Transitório

ICC International Chamber of Commerce

IMB International Maritime Bureau

INTERPOL International Criminal Police Organization

LLAR Low-Level Armed Robbery

LRAD Long Range Acoustic Device

MCHJ Major Criminal Hijack

MEPC Maritime Environment Protection Committee

MLAAR Medium Level Armed Assault and Robbery

MP Ministério Público

MSC Maritime Security Council

MSC-HOA Maritime Security Centre – Horn of Africa

NATO North Atlantic Treaty Organization

NU Nações Unidas

OMA Organização Mundial de Alfândegas

OMI Organização Marítima Internacional

ONU Organização das Nações Unidas

OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte

P.P. Previsto e Punido

PESC Política Externa e de Segurança Comum

PRC Piracy Reporting Centre / 24hour IMB Piracy Reporting Centre

RCSNUs Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas

REEI Revista Electrónica de Estudios Internacionales

ROE Rules of Engagement

RPG Rocket Propelled Grenade

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SASS Ship Security Alert System

SNM Somali National Movement

SPL Sound Pressure Level

SPM Somali Patriotic Movement

TIJ Tribunal Internacional de Justiça

TPI Tribunal Penal Internacional

UE NAVFOR European Union Naval Force

UNITAF United Task Force

UNOSOM United Nations Operation in Somalia

USC United Somali Congress

VHF Very High Frequency

ZEE Zona Económica Exclusiva

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INTRODUÇÃO

1. Actualidade do tema, oportunidade do seu tratamento, e objectivos

A escolha do tema da pirataria marítima como objecto da presente dissertação, justifica-se pela forte motivação pessoal, pelo interesse e pela actualidade do tema no Mundo Contemporâneo.

Parte-se do pressuposto de que só um trabalho interdisciplinar – ana-lisando o Direito Internacional e o Direito interno –, poderá proporcio-nar um estudo adequado perante a complexidade do tema, mas o interes-se pessoal e a convicção que o assunto não mereceu, ainda, tratamento específico na doutrina portuguesa levou à decisão de se propor o supra referido tema.

A pirataria era vista, até há relativamente pouco tempo, como algo do passado, mais destinado a inspirar livros de romance ou filmes de Hollywood do que a merecer a atenção de juristas.

No entanto, os ataques verificados sobretudo na costa da Somália – embora também no Sudeste Asiático e subcontinente Indiano, na Améri-ca do Sul e América Central, assim como no Mar Vermelho e em vários outros países de África – revelam a incorrecção daquela ideia, trazendo a matéria novamente à luz da ribalta. A estes ataques aparecem associa-dos fenómenos como a manutenção de pessoas em situação de reféns, uma criminalidade marcada por uma forte organização e mobilidade.

A verdade é que a pirataria tem actualmente vários motivos. No caso de haver pedido de resgate, as vantagens económicas obtidas podem ser distribuídas por outros que não os autores materiais ou executores do facto ilícito, como sejam associações criminosas ou grupos operacionais ligados a organizações de carácter terrorista (com motivações políticas ou outras).

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Torna-se, portanto, pertinente um estudo sobre a pirataria, começan-do por apurar a noção em causa, analisando a forma de lhe fazer frente – tornando-se, a propósito, relevante a análise da possibilidade, à luz do Direito Internacional, da sua repressão por recurso à força armada, bem como da responsabilização dos seus autores.

Propomo-nos, portanto, em atenção à actualidade do tema, bem como ao facto de ele ainda não ter merecido, por parte da doutrina por-tuguesa, qualquer estudo aprofundado, fazer uma análise das normas pertinentes de Direito Internacional, quer de âmbito universal, quer de âmbito regional, que possa conduzir-nos ao apuramento da noção de pirataria, do regime jurídico-internacional a que fica sujeita, bem como à determinação dos termos em que os seus autores podem ser julgados por tribunais internacionais.

Cremos que este estudo nos confrontará com algumas lacunas que pretendemos assinalar e, se for o caso, propor o sentido em que deverão ser colmatadas. Além disso, preocupar-nos-emos em analisar o Direito estadual – principalmente, o Direito português – para vermos em que medida a matéria da pirataria está, ou não, nele prevista e em que termos poderão, ou não, os seus autores ser julgados em tribunais nacionais.

2. Metodologia de Investigação

A metodologia de investigação passou necessariamente pela análise documental e bibliográfica na Biblioteca da Universidade do Minho, na Biblioteca da Universidade de Santiago de Compostela, e noutras Bibliotecas, bem como consulta de sítios na internet, nomeadamente, da Organização das Nações Unidas, da Organização Marítima Interna-cional, da Câmara de Comércio Internacional, da Agência Marítima In-ternacional, de Revistas electrónicas, de Jornais electrónicos, etc. Para além disso, o contacto com a Marinha Portuguesa e com o Centro de Documentação da Polícia Judiciária foi imprescindível.

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CAPÍTULO I A PIRATARIA MARÍTIMA. DEFINIÇÃO DE CONCEITOS E DISTINÇÃO DE FIGURAS

AFINS

1. Conceitos introdutórios

A pirataria marítima é um dos primeiros crimes reconhecidos pelo Direito Internacional, reflexo do consenso entre os Estados sobre a na-tureza e alcance do crime de pirataria e expressão de um costume bem consolidado1.

Sendo certo que a pirataria é considerada como crime, os seus con-tornos nem sempre são de fácil definição. Desde logo, porque surge fre-quentemente associada ao roubo, a pilhagens, ao tráfico de pessoas, ao sequestro ou a outro acto de violência ou depredação, praticado no mar, por um navio contra outro e com um fim privado2, factores que não ajudam a definição dos seus contornos e tornam ainda mais complexo o modo de deter, julgar e prender presumíveis piratas3.

1 Cf. JOSÉ LUIS RODRÍGUEZ-VILLASANTE Y PRIETO, «Aspectos jurídico-penales del crimen internacional de piratería», La persecución de los actos de piratería en las Costas Somalíes (Raquel Castillejo Manzanares (coord.), Valencia: Tirant Lo Blanch, 2011, p. 116. 2 Cf. IVAN SHEARER, «Piracy», Max Planck Encyclopedia of Public International Law, Oxford: Oxford University Press, parágrafo 1.3 O artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem reza: “1 – Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas; 2 – Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido”. Assim, sublinhe-se, que mesmo em prisão preventiva deve vigorar

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Nesse sentido, o conceito de pirataria marítima encontra-se, actual-mente, previsto no artigo 101º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar4, de 1982, conhecida também como sendo a Convenção de Montego Bay5, aprovada sob o impulso da Organização das Nações Unidas6, que substituiu o artigo 15º7 da Convenção de Genebra de 1958 sobre o alto mar8, não obstante, o conceito ter permanecido inalterado. o princípio da presunção de inocência. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, abreviadamente designada por DUDH, foi aprovada pela Resolução 217-A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de Dezembro de 1948 e publicada em Diário da República, I Série A, nº 57/78, de 9 de Março de 1978, mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros. 4 Doravante designada CNUDM cujo acrónimo, em inglês, é UNCLOS (United Nations Convention on the Law of the Sea). 5 Aberta para assinatura em Montego Bay, Jamaica, no dia 10 de Dezembro de 1982, entrou em vigor na ordem jurídica internacional no dia 16 de Novembro de 1994. Em Portugal, foi ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 67-A/97, entrando em vigor no dia 3 de Dezembro de 1997. O texto do tratado foi aprovado durante a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que se realizou em Nova Iorque. 6 A ONU é uma organização internacional fundada em 1945, em São Francisco, após a Segunda Guerra Mundial, por 51 países com o principal objectivo de manter a paz e a segurança internacionais, promovendo a amizade e o progresso social das Nações, assim como, melhores padrões de vida e o respeito pelos direitos humanos. Segundo a Carta das Nações Unidas, a ONU pode pronunciar-se sobre um vasto leque de matérias. Embora associada a operações de manutenção da paz, consolidação da paz, prevenção de conflitos e assistência humanitária, existem muitas outras competências que a ONU e o seu sistema – agências especializadas, fundos e programas – possuem com a pretensão de tornar o mundo um lugar melhor. A ONU preocupa-se com uma ampla gama de questões fundamentais, nomeadamente: desenvolvimento sustentável; ambiente; protecção dos refugiados; ajuda humanitária; desarmamento; combate ao terrorismo; não proliferação de armas de destruição maciça; promoção da democracia e dos direitos humanos, etc. Tem sede nos Estados Unidos da América, em Nova Iorque. O actual Secretário-Geral da ONU é Ban Kimoon.7 Era o seguinte o texto dessa disposição: “Constituem pirataria os actos a seguir enumerados:1) Todo o acto ilegítimo de violência, de detenção ou toda a depredação cometida para fins pessoais pela tripulação ou passageiros de um navio privado ou de uma aeronave privada, e dirigidos:a) No alto mar, contra um outro navio ou aeronave, ou contra pessoas e bens a seu bordo;b) Contra um navio ou aeronave, pessoas ou bens, em local fora da jurisdição de qualquer Estado.2) Todos os actos de participação voluntária para utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que os comete tem conhecimento de factos que conferem a este navio ou a esta aeronave o carácter de navio ou aeronave pirata.3) Toda a acção tendo por fim incitar a cometer os actos definidos nas alíneas 1) e 2) do presente artigo ou empreendida com a intenção de os facilitar.8 Devido a factores económicos, estratégicos e tecnológicos, a referida Convenção ficou

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Segundo o mencionado artigo 101º da CNUDM: “[c]onstituem pira-taria quaisquer dos seguintes actos:

a) Todo o acto ilícito de violência ou de detenção ou todo o acto de depredação cometidos, para fins privados, pela tripulação ou pelos pas-sageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra:

i) Um navio ou uma aeronave em alto mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos;

ii) Um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar não sub-metido à jurisdição de algum Estado;

b) Todo o acto de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica tenha conhecimento de factos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o carácter de navio ou aeronave pirata;

c) Toda a acção que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos actos enunciados na alínea a) ou b)”.

Importa referir que, para efeito de determinação do respectivo regi-me jurídico internacional9, os navios classificam-se em públicos e pri-vados10. Os primeiros, podem ser militares ou civis11. Os navios públicos militares, comandados por um militar, desempenham uma função de carácter militar e são compostos por uma tripulação sujeita às leis e às desactualizada tendo sido necessária substituí-la bem como as demais que, na mesma data, haviam sido celebradas – sobre o mar territorial e zona contígua e sobre a plataforma continental – optando-se por uma única Convenção que abordasse a utilização das diferentes zonas do Mar.9 Como veremos, o regime jurídico internacional dos navios define-se em função da sua categoria e da sua localização, no alto mar ou nas águas territoriais. No primeiro caso, os navios estão exclusivamente sujeitos ao poder político e às leis dos Estados de que são nacionais. Todos os factos ocorridos a bordo se regem pela ordem jurídica estadual (esta regra só conhece os limites que resultam do Direito Internacional consuetudinário sobre fiscalização e polícia do alto mar). Se os navios se encontram em águas territoriais, é necessário distinguir as hipóteses de se tratar de águas territoriais nacionais ou de águas territoriais estrangeiras. No primeiro caso, o navio está sujeito à jurisdição das autoridades estaduais e rege-se pelo Direito nacional; no segundo, é necessário distinguir entre navios públicos e navios particulares – os navios públicos militares, mesmo em águas territoriais estrangeiras, continuam sujeitos às autoridades e às leis do Estado de que são nacionais; os navios particulares estão sujeitos à jurisdição das autoridades territoriais e às leis locais.10 São navios públicos os que estão afectos a um serviço público, ou seja, um serviço através do qual se exercem atribuições essenciais do Estado, isto é, se exerce uma parcela do poder do Estado. São navios privados todos os restantes.11 Cf. JOAQUIM MOREIRA DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual de Direito Internacional Público, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2004, p. 634.

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autoridades militares12. Ao contrário, os navios públicos civis estão afec-tos a um serviço público não militar ou civil13.

Apesar de, actualmente, o alvo dos piratas ser “o navio”14, o conceito do que seja “um navio” não é consensual, uma vez que “não existe uma definição universalmente aceite de “navio”. Assim, cada Convenção que diga respeito a navios dá uma definição de acordo com a necessida-de daquele particular instrumento”15.

Nessa medida, a definição é muito variada, dependendo do tipo de Convenção que estejamos a analisar porque, por exemplo, a Convenção para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Navegação 12 Integram-se nesta categoria não só os navios de combate, mas também os que desempenham funções militares acessórias (por exemplo, navios-hospitais, navios-tanques, navios de transporte, navios escola).13 Entre outros, os navios de fiscalização aduaneira e os navios de fiscalização policial.14 Para a finalidade desta dissertação, vamos considerar “navio” num sentido lato, englobando, assim, todas as categorias de embarcações marítimas, sublinhando, todavia, que em termos jurídicos, existe uma grande distinção entre os navios mercantes e os navios de guerra. Nessa medida, para além dos navios de grande dimensão (navio de carga, navio de cruzeiro, navio porta-contentores, navio de vela, navio petroleiro, navio porta-aviões e porta-helicópteros, navio quebra-gelo, navio-rebocador, entre outros) e dos de pequena dimensão (como as lanchas rápidas, os ferries-boats, os barcos, etc.), consideramos ainda os submarinos como navios. Contudo, existe dúvida na doutrina no sentido de saber se as plataformas de águas profundas e as plataformas petrolíferas fixas devem ou não ser consideradas navios. Entendidas ou não como navios, aplicam-se-lhes também regras marítimas. Enquanto não há definições universalmente aceites dos tipos de navios, são usados descrições específicas e designações nos tratados e Convenções da Organização Marítima Internacional. Existe uma lista de tipos de navios, não exaustiva, definida em instrumentos da OMI, segundo a qual:1. Um navio de passageiros é um navio que transporte mais de doze passageiros – Regra 2, alínea f), do Capítulo I da Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar de 1974 [conhecida também como a Convenção SOLAS 74];2. Um navio de carga é um navio que não transporte passageiros – Regra 2, alínea g), do Capítulo I da Convenção SOLAS 74;3. Um navio de pesca é uma embarcação utilizada na captura de peixes, baleias, focas, morsas ou outros recursos vivos do mar – Regra 2, alínea i), do Capítulo I da Convenção SOLAS 74;4. Um navio nuclear é um navio provido de uma instalação de energia nuclear – Regra 2, alínea j), do Capítulo I da Convenção SOLAS 74; 5. Unidade móvel de perfuração marítima é um navio capaz de efectuar operações de perfuração para a exploração ou explotação de recursos abaixo do leito do mar, tais como, hidrocarbonetos líquidos ou gasosos, enxofre ou sal – Regra 1, ponto 7, do Capítulo IX da Convenção SOLAS 74;15 TULLIO TREVES, «The Rome Convention for the Suppression of Unlawful Acts Against the Safety of Maritime Navigation», in N. Ronzitti (ed.), Maritime Terrorism and International Law, Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1990, p. 72.

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Marítima, doravante referida como Convenção SUA16, define, no seu ar-tigo 1º, o navio como “uma embarcação de qualquer tipo que não esteja ligada de forma permanente ao fundo do mar e abrange as embarcações de sustentação hidrodinâmica, submersíveis ou quaisquer outras estru-turas flutuantes”.

A Convenção Internacional sobre a Prevenção, Actuação e Coope-ração no Combate à Poluição por Hidrocarbonetos, de 199017, define no seu artigo 2º, nº 3, o navio como “uma embarcação de qualquer tipo que opere no meio marinho, incluindo embarcações de sustentação hi-drodinâmica, veículos de sustentação por ar, submersíveis e estruturas flutuantes de qualquer tipo”.

A CNUDM dá uma definição de navio de guerra. Reza o seu artigo 29º que se trata de “qualquer navio pertencente às forças armadas de um Estado, que ostente sinais exteriores próprios de navios de guerra da sua nacionalidade, sob o comando de um oficial devidamente designado pelo Estado cujo nome figure na correspondente lista de oficiais ou seu equivalente e cuja tripulação esteja submetida às regras da disciplina militar”.

Porém, para quem entenda que “navio” se distingue de plataformas fixas18, pode encontrar apoio, por exemplo, na Convenção Internacional sobre a Prevenção, Actuação e Cooperação no Combate à Poluição por Hidrocarbonetos, já referida, que no artigo 2º, nº 4, dispõe: “«Unidade offshore» significa toda a instalação ou estrutura offshore fixa ou flu-tuante destinada a actividades de prospecção, exploração ou produção de gás ou de hidrocarbonetos ou à carga ou descarga de hidrocarbone-tos”, definindo o “navio” no nº 3 do mesmo artigo.

Em termos distintos, a Convenção para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste19 também contribui com uma noção de instalações 16 Designada, com base no acrónimo em inglês, SUA (Convention) – conhecida também como a Convenção de Roma de 1988 – e o Protocolo Adicional para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Segurança das Plataformas Fixas localizadas na Plataforma Continental, foram concluídos em Roma no dia 10 de Março de 1988, entrando em vigor na ordem jurídica internacional no dia 1 de Março de 1992. Em Portugal, foi publicada em Diário da República, I Série A, nº 186, de 12 de Agosto de 1994.17 Concluída em Londres no dia 30 de Novembro de 1990, começou a vigorar na ordem jurídica internacional no dia 13 de Maio de 1995. Foi publicada em Diário da República I-B, nº 7, de 10 de Janeiro de 2006.18 As Plataformas Fixas localizadas na Plataforma Continental são abrangidas pelo Protocolo Adicional da Convenção SUA.19 Concluída em Paris no dia 22 de Setembro de 1992, começou a vigorar na ordem

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off-shore, ao dispor, na alínea l) do nº 2 do artigo 1º: “[e]ntende-se por instalações «off-shore» toda e qualquer estrutura artificial, instalação ou navio, ou partes dos mesmos, quer flutue quer esteja fixa no fundo do mar e colocada na zona marítima para o exercício de actividades «offshore» ”. A alínea n) do nº 2 do mesmo artigo, por seu turno, reza que “[e]ntende-se por «navios ou aeronaves» as embarcações de mar ou os aparelhos aéreos de qualquer tipo, bem como partes dos mesmos ou outros equipamentos dos mesmos. Esta expressão engloba aparelhos que se desloquem sobre almofada de ar, aparelhos flutuantes com ou sem motor, bem como outras estruturas artificiais que se encontrem na zona marítima, incluindo ainda os seus equipamentos respectivos, mas não engloba as instalações e canalizações offshore”.

Para efeitos do presente trabalho, perfilhamos da opinião de que o navio é um engenho flutuante apto a navegar no mar e, nessa medida, ele é mais do que uma simples coisa, uma vez que é um centro de im-putação de normas jurídicas, já que está subordinado a leis nacionais e internacionais para que possa navegar, sendo também um bem móvel sujeito a registo.

Na lei interna, o navio é uma coisa à luz do artigo 202º do Código Civil20.

Nos termos do Código de Processo Civil21, o navio tem personali-dade judiciária para certos efeitos como, por exemplo, para efeitos de notificações. Para além disso, pode ser arrestado nos termos do artigo 409º22 deste diploma.

Todo o navio deve ser registado e tem um porto de registo23. O regis-to permite a identificação do navio através da matrícula24, sendo o navio jurídica internacional e em Portugal no dia 25 de Março de 1998. A Convenção criou uma Comissão encarregada de fiscalizar a sua aplicação [artigo 10º].20 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344/66, de 25 de Novembro, com a última alteração, introduzida pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto. O seu artigo 202º dispõe: “1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas. (…) ”.21 Aprovado pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com a última alteração, introduzida pelo DL nº 52/2011, de 13 de Abril.22 “Arresto de navios e sua carga1 – Tratando-se de arresto em navio ou na sua carga, incumbe ao requerente demonstrar, para além do preenchimento dos requisitos gerais, que a penhora é admissível, atenta a natureza do crédito. (…) ”.23 Domicílio. É ele que atribui a nacionalidade do navio.24 Um navio pode ter um pavilhão de um Estado diferente daquele em que está matriculado. Pense-se naqueles países que não têm costa, uma vez que o registo deve ser

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considerado uma pessoa colectiva. O navio também tem um nome e tem uma nacionalidade25.

Nesse sentido, o artigo 90º da CNUDM dispõe que “[t]odos os Es-tados, quer costeiros quer sem litoral, têm o direito de fazer navegar no alto mar navios que arvorem a sua bandeira”, e o artigo 91º do mesmo diploma, respeitante à nacionalidade dos navios, acrescenta, no seu nº 1, que “[t]odo o Estado deve estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade a navios, para o registo de navios no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira. Os navios possuem a nacionalidade do Estado cuja bandeira estejam autorizados a arvorar. Deve existir um vínculo substancial entre o Estado e o navio”. O nº 2 do mesmo artigo dispõe que “[t]odo o Estado deve fornecer aos navios a que tenha concedido o direito de arvorar a sua bandeira os documentos pertinentes”.

Portanto, o navio deve ter um pavilhão, sendo que é o Estado de pavilhão que impõe os deveres e direitos ao navio. Contudo, essa é uma causa pela qual acontecem regularmente situações em que não existe qualquer relação entre o Estado de bandeira, o proprietário do navio e as tripulações (compostas normalmente por pessoas de várias nacionalidades)26. Muitos proprietários de navios, por razões económi-cas e políticas, preferem arvorar a bandeira de outro país, uma vez que têm essa liberdade27.

Daqui deriva que muitos proprietários de navios façam o registo sob bandeiras de conveniência sendo que, apesar de não haver uma noção consensual de “bandeira de conveniência”, podem enunciar-se alguns critérios, que, de acordo com o relatório britânico “Rochdale”, traduzem aspectos comuns a estas bandeiras, a saber: o país de registo permite que o navio seja controlado por estrangeiros; o acesso ao registo é fácil e não existe uma restrição relativamente à opção do proprietário em transferir o registo; os impostos sobre as receitas de tais navios, ou não são cobra-dos, ou são baixos; normalmente os únicos encargos cobrados são a taxa de registo e uma taxa anual, com base na arqueação; o país de registo é

feito num porto de mar.25 Atribui o foro e determina qual a lei competente para resolver litígios.26 Cf. JOHN N. K. MANSELL, Flag State Responsibility. Historical Development and Contemporary Issues, Berlin: Springer, 2009, p. 91.27 Cf. JOHN N. K. MANSELL, Flag State Responsibility. Historical Development and Contemporary Issues, cit., p. 92.

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uma pequena potência, sem qualquer tipo de exigência a nível nacional relativamente aos navios registados, mas as receitas provenientes dos impostos muito reduzidos cobrados sobre uma grande arqueação, pode ter um efeito considerável sobre a economia nacional; é livremente per-mitida a tripulação dos navios por estrangeiros; o país de registo não tem a capacidade para impor regulamentos internacionais, nem o desejo ou o poder de controlar as empresas que operam no ramo28.

Daqui decorre que a grande motivação para optar por bandeiras de conveniência é “minimizar os custos e maximizar as receitas”29. Num mercado altamente competitivo, a possibilidade do registo sob uma bandeira de conveniência permite que alguns proprietários de navios se mantenham na actividade. Isto é uma das principais razões que levam ao chamado flagging out30, que corresponde a uma operação jurídica de retirada de um registo de um país (à partida, o da nacionalidade do pro-prietário do navio) para proceder ao seu registo num outro país, passan-do a arvorar uma bandeira de conveniência.

Atente-se ao artigo 92º da CNUDM, respeitante ao estatuto dos na-vios, uma vez que, no nº 1, menciona que “[o]s navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado. Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira, a não ser no caso de transferência efectiva da propriedade ou de mudança de registo”; e o nº 2 do artigo referido acrescenta que “[u]m navio que navegue sob a bandeira de dois ou mais Estados, utili-zando-as segundo as suas conveniências, não pode reivindicar qualquer dessas nacionalidades perante um terceiro Estado e pode ser considera-do como um navio sem nacionalidade”. Do que decorre a obrigatorieda-de e a importância de um navio ter uma nacionalidade.

No entanto, e no que diz respeito ao tema em análise, obviamente, o uso de bandeiras de conveniência de Estados sem grandes capacidades de reacção e sem um nexo entre esses Estados e o proprietário ou a tripu-

28 Cf. DORIS KÖNIG, «Flags of Convenience», Max Planck Encyclopedia of Public International Law, Oxford: Oxford University Press, parágrafo 1.29 DORIS KÖNIG, «Flags of Convenience», cit., parágrafo 1.30 É uma prática que já se verificava em séculos passados, e foi muito comum no século XVIII, no Mar Mediterrâneo, devido a restrições que se verificaram a nível do comércio e a nível político.

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lação do navio não permite esperar que, desses Estados, provenha uma actuação decisiva e efectiva na protecção de tais navios contra actos de pirataria marítima.

Refira-se, por outro lado, que actualmente qualquer navio que nave-gue do alto mar em direcção a um porto de um país ou percorra a rota inversa, passa, necessariamente, por vários espaços marítimos que são medidos em milhas marítimas31.

Assim, é de importância para o nosso tema referir o conceito e ex-tensão dos vários espaços marítimos, até porque o facto de estar a atra-vessar um ou outro desses espaços é relevante para a própria definição do crime de pirataria. Deste modo, poderemos dizer que existem, actual-mente, sete espaços marítimos. São eles:

1. As águas interiores, que fazem parte do domínio marítimo do Es-tado costeiro e se encontram sob sua jurisdição, representam a porção de água salgada imediatamente adjacente à sua costa, sendo o seu limite interior constituído pela linha da máxima praia-mar, durante as marés vivas equinociais e o seu limite exterior definido conjuntamente com o limite interior do mar territorial, natural ou artificialmente traçado32.

2. O mar territorial é uma zona de mar adjacente ao território, além das águas interiores e, no caso do Estado Arquipélago, das suas arqui-pelágicas, sobre a qual se estende a soberania do Estado costeiro. O seu limite interior é fixado, automaticamente, pelo limite exterior das águas interiores. Será normalmente a linha de baixa-mar, embora possam ser fixados outros limites. O seu limite exterior é fixado por uma linha pa-ralela à que estabelece o limite interior.

Outros métodos de fixação destes limites são indicados nos artigos 69º e seguintes da CNUDM, atendendo a particulares características geomorfológicas. De acordo com o artigo 3º da CNUDM, a largura do mar territorial pode ser fixada até um limite que não ultrapasse as 12 milhas marítimas, medidas a partir de linhas de base determinadas em conformidade com a CNUDM33.

31 Uma milha marítima, equivale a 1.852 metros ou 6.080 pés – Regra 2, alínea m), do Capítulo I da Convenção SOLAS 74.32 Cf. Artigo 8º da CNUDM.33 Cf. Artigo 5º da CNUDM. A soberania do Estado é exercida não apenas sobre o mar territorial, mas também sobre o espaço aéreo, o leito e o subsolo desse mar. O navio de qualquer bandeira tem o direito de passagem inocente, direito esse previsto nos artigos 17º a 21º e artigo 45º e 52º da CNUDM.

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Refira-se que a Convenção sobre o mar territorial e a zona contígua, aprovada na Conferência de Genebra de 1958, viera já dar uma orien-tação acerca da extensão do mar territorial, na medida em que, no seu artigo 24º, se admitiu que a largura total do mar territorial e da zona contígua não deveria exceder as 12 milhas. Antes dessa Conferência, “não havia qualquer regra geral que a definisse e, por isso, na prática, essa medida variava de Estado para Estado. Com base numa passagem do De Jure Belli ac Pacis, em que Grócio justificava a jurisdição dos Estados sobre o mar adjacente às costas pela possibilidade de sobre ele ser exercido um domínio efectivo, Bynkershoek sustentou que o domí-nio da terra (sobre o mar) cessa onde cessa o poder das armas (imperium terrae finitur ubi finitur armorum potestas)”34. Assim, a extensão do mar territorial, com origem neste princípio, era medido pelo alcance máximo da artilharia a partir da costa35.

3. A zona contígua é a zona do mar adjacente ao limite exterior do mar territorial36, em que o Estado ribeirinho poderá exercer certas com-petências rigorosamente especializadas (em matéria aduaneira, fiscal, de imigração ou sanitária), com vista à protecção mediata do seu território. Não pode estender-se além de 24 milhas marítimas “contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial”37, tendo nela o Estado costeiro o direito de adoptar medidas em matéria de fiscalização e punição, no âmbito das matérias referidas.

Com a CNUDM, fixou-se uma nova largura da zona contígua para 24 milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial, em consequência de se ter fixado a largura total do mar territorial em 12 milhas marítimas, já que, como supra referido, a Convenção de Genebra de 1958 sobre o mar territorial e a zona contígua consagrou a sua admissão, no seu artigo 24º, com a extensão da zona contígua a 12 milhas marítimas38.34 JOAQUIM MOREIRA DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual de Direito Internacional Público, cit., p. 599.35 Atendendo à distância percorrida de um tiro de canhão, começou por haver um consenso na definição dessa distância em 3 milhas marítimas. 36 Fazendo, portanto, parte do alto mar.37 Artigo 33º, nº 2 da CNUDM.38 O artigo 24º dispõe: “1. O Estado ribeirinho pode exercer a fiscalização necessária sobre uma zona do alto mar contígua ao seu mar territorial, para os seguintes fins:a) Prevenir infracções às suas leis de polícia aduaneira, fiscal ou sanitária ou de emigração sobre o seu território ou no seu mar territorial.

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4. A zona económica exclusiva39 é “uma zona situada além do mar territorial e a este adjacente”40, que se estende até 200 milhas marítimas, contadas a partir “das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial”41.

Nessa área, qualquer Estado goza do direito de navegação e sobre-voo, cabendo-lhe ainda a liberdade de instalação de cabos e condutas submarinos. Os Estados costeiros têm o direito de exercer a sua sobe-rania para fins de exploração e aproveitamento dos recursos biológi-cos e minerais existentes no leito e subsolo do mar e nas suas águas sobrejacentes, devendo a pesca fazer-se dentro dos limites de captura exigidos para a preservação das espécies, cuja reprodução esteja grave-mente ameaçada. Pertence ainda, ao Estado costeiro, na ZEE, o direito de exploração dos minerais encontrados no solo e subsolo marinhos, direito esse que se estende à produção de energia derivada da água, das correntes e dos ventos, para além de abranger a jurisdição para o estabe-lecimento e a utilização de ilhas artificiais, instalações e estruturas, para a investigação científica marinha e para a protecção e preservação do meio ambiente marinho.

Contudo, se por um lado, a ZEE não faz parte do mar territorial do Estado ribeirinho, por outro lado, não se lhe aplica também o regime do alto mar, pelo que a sua natureza jurídica não é fácil de determinar, havendo quem a considere uma categoria nova de espaço marítimo, com carácter sui generis, qualificando-a como “zona de transição”42.

5. A plataforma continental pode ser designada como “a zona do fundo do mar adjacente às terras emersas e que se considera, do ponto

b) Reprimir as infracções às mesmas leis, praticadas no seu território ou no seu mar territorial.2. A zona contígua não pode estender-se para além de 12 milhas a partir da linha de base que serve de ponto de partida para medir a largura do mar territorial.3. Quando as costas de dois Estados são opostas ou adjacentes, nenhum destes dois Estados terá o direito, salvo acordo em contrário entre eles, de estender a sua zona contígua para além da linha mediana em que cada ponto é equidistante dos pontos mais próximos das linhas de base a partir das quais é medida a largura do mar territorial de cada um dos Estados”.39 Doravante designada ZEE. 40 Artigo 55º da CNUDM.41 Artigo 57º da CNUDM.42 Cf. JEAN-PIERRE QUENEUDEC, cit. apud JOAQUIM MOREIRA DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual de Direito Internacional Público, cit., p. 618.

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de vista geológico, como seu prolongamento”43. Essa zona “compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial, em toda a extensão do prolongamento natural do terri-tório terrestre, até ao bordo exterior da margem continental ou até uma distância de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância”44.

A plataforma continental pode interessar aos Estados costeiros por motivos de segurança militar e utilidade económica, como acontece com o fundo do mar e do subsolo correspondentes às águas territoriais45.

6. O alto mar compreende todas as partes do mar não incluídas na ZEE, no mar territorial ou nas águas interiores de um Estado, nem nas águas arquipelágicas de um Estado Arquipelágico. Está “aberto a todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral”46.

7. A “área” ou “zona” dos fundos marinhos, é uma parte do mar definida como os fundos marinhos oceânicos e o seu subsolo além dos limites da jurisdição nacional47, não abrangendo, portanto os fundos ma-rinhos e subsolo correspondente, coberto pelas águas do mar territorial, da plataforma continental e da ZEE.

A “área” ou “zona” assim definida e seus recursos constituem Patri-mónio Comum da Humanidade48, mas o seu regime não afecta o regime jurídico das águas suprajacentes, nem o do espaço aéreo correspondente. Assim, nesta parte do mar nenhum Estado pode reivindicar ou exercer soberania ou direitos soberanos, pertencendo os recursos nela existen-tes à Humanidade em geral, em cujo nome actuará a “Autoridade”49. As

43 MOREIRA DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual de Direito Internacional Público, cit., p. 611.44 Artigo 76º da CNUDM. A plataforma continental encontra-se em fase de alargamento. Refira-se que Portugal entregou no dia 11 de Maio de 2009, a Hariharan Pakshi Rajan, Secretário da Comissão de Limites da Plataforma Continental, em representação do Secretário-Geral das Nações Unidas, uma proposta de extensão da sua plataforma continental para além das 200 milhas marítimas. 45 Foi com base nestes motivos, mas, sobretudo, na utilidade económica derivada da existência de jazigos petrolíferos, que certos Estados, mais directamente interessados no aproveitamento dos mencionados recursos, procuraram reservar as plataformas continentais correspondentes para a sua exclusiva jurisdição, como foi o caso dos EUA.46 Artigo 87º da CNUDM, onde se encontra previsto o princípio da liberdade dos mares.47 Cf. Artigo 1º, nº 1 da CNUDM.48 Vide artigo 136º da CNUDM.49 Artigo 137º, nº 1 e 2 da CNUDM. Esta (A Autoridade Internacional dos Fundos