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A PENA DE CAMÕES, A ESPADA E A CALDEIRINHA 1 Eduardo Alberto Correia Ribeiro GPTUI, RAEM-RPChina [email protected] Resumo: O presente trabalho é mais um produto das investigações do Autor durante e após a elaboração do seu livro Camões em Macau: uma certeza histórica, recentemente publicado (Macau, 2007b). Tendo, embora, ficado sem dúvidas sobre a presença do Vate «nas partes da China», na altura já Macau (Labirintos, nº 3), o Autor quis ir mais longe e, sem nunca perder de vista o que interessasse para a defesa do seu entendimento quanto a Camões em Macau, faz aqui um levantamento, segundo as fontes consultadas, do que Luís Vaz de Camões terá visto, feito e pensado face aos sucessos e insucessos do País nos últimos anos de vida após o retorno ao Reino, em 1570. À chegada, veio encontrar o rei-donzel D. Sebastião no trono, num reinado «de colusão entre a espada e a caldeirinha», em que já «estava no choco a grande e louca aventura» (como Aquilino Ribeiro escreveu) que havia de levar à perda da independência de Portugal por 60 anos. Palavras-chave: Camões em Macau; D. Sebastião. Abstract: The present work is the outcome of a continuous research carried out for the publication of Camoes in Macau - A historical fact’ (Macau, 2007b). Having already given sufficient evidence of the presence of “The Poet” in Macau, the author keeps in mind the importance of providing accurate examination of the available sources about Macau (China) and presents his views on what Luis Vaz de Camoens would have observed, considered or pondered when returning to Portugal (1570) and confronting the country‟s successes and failures in a reign, that of King dom Sebastião, of collusion between the sword and the aspersorium” (as Aquilino Ribeiro has written) and was already “in the early stages of an insane and hazardous enterprise” which eventually would lead to the loss of the country‟s independence for the next 60 years. Keywords: Camoens in Macao; King Sebastian. Nũa mão sempre a espada, e noutra a pena (Lusíadas, VII, 79) 1. PRÓLOGO Numa recente investigação do autor sobre os indícios históricos do testemunho de Camões dos alvores do estabelecimento português de Macau em 1562-65 (RIBEIRO, 2006; 2007a; 2007b; 2008), houve muita bibliografia lida, ou simplesmente consultada, durante a 1 Pena = Camões; Espada = D. Sebastião; Caldeirinha = os irmãos Câmara

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Page 1: A PENA DE CAMÕES, - uefs.br · consultadas, do que Luís Vaz de Camões terá visto, feito e pensado face aos sucessos e insucessos do País nos últimos anos de vida após o retorno

A PENA DE CAMÕES, A ESPADA E A CALDEIRINHA1

Eduardo Alberto Correia Ribeiro

GPTUI, RAEM-RPChina

[email protected]

Resumo: O presente trabalho é mais um produto das investigações do Autor durante e após a elaboração

do seu livro Camões em Macau: uma certeza histórica, recentemente publicado (Macau, 2007b). Tendo,

embora, ficado sem dúvidas sobre a presença do Vate «nas partes da China», na altura já Macau

(Labirintos, nº 3), o Autor quis ir mais longe e, sem nunca perder de vista o que interessasse para a defesa

do seu entendimento quanto a Camões em Macau, faz aqui um levantamento, segundo as fontes

consultadas, do que Luís Vaz de Camões terá visto, feito e pensado face aos sucessos e insucessos do País

nos últimos anos de vida após o retorno ao Reino, em 1570. À chegada, veio encontrar o rei-donzel D.

Sebastião no trono, num reinado «de colusão entre a espada e a caldeirinha», em que já «estava no choco a

grande e louca aventura» (como Aquilino Ribeiro escreveu) que havia de levar à perda da independência

de Portugal por 60 anos.

Palavras-chave: Camões em Macau; D. Sebastião.

Abstract: The present work is the outcome of a continuous research carried out for the publication of

Camoes in Macau - A historical fact’ (Macau, 2007b). Having already given sufficient evidence of the

presence of “The Poet” in Macau, the author keeps in mind the importance of providing accurate

examination of the available sources about Macau (China) and presents his views on what Luis Vaz de

Camoens would have observed, considered or pondered when returning to Portugal (1570) and

confronting the country‟s successes and failures in a reign, that of King dom Sebastião, “of collusion

between the sword and the aspersorium” (as Aquilino Ribeiro has written) and was already “in the early

stages of an insane and hazardous enterprise” which eventually would lead to the loss of the country‟s

independence for the next 60 years.

Keywords: Camoens in Macao; King Sebastian.

Nũa mão sempre a espada, e noutra a pena

(Lusíadas, VII, 79)

1. PRÓLOGO

Numa recente investigação do autor sobre os indícios históricos do testemunho de

Camões dos alvores do estabelecimento português de Macau em 1562-65 (RIBEIRO, 2006;

2007a; 2007b; 2008), houve muita bibliografia lida, ou simplesmente consultada, durante a

1 Pena = Camões; Espada = D. Sebastião; Caldeirinha = os irmãos Câmara

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escrita e já depois do lançamento da obra, sem outro propósito que não fosse o de me imbuír do

ar da época: os factos, os costumes, os ambientes, as tensões, as personagens, as relações sociais,

tudo com o propósito de tudo melhor entender. Era uma pena não registar essas impressões e não

partilhá-las com os leitores.

Por isso, assim como no livro (2007b) me fiz embarcar (e aos leitores) numa nau de

imaginação até ao cais do primevo bairro macaense dos anos 1560 (p.107), resolvi através dessas

leituras e prevalecendo-me dos elementos recolhidos, fazer mais uma viagem no tempo, ao tempo

de Camões, quando ele, já no Reino, após a sua chegada em Abril de 1570, «envelhecido, doente

e pobre», «encontra uma atmosfera religiosa, moral, cultural e política bem diferente daquela em

que vivera a sua juventude» (SILVA, 1994, p. 236) e teria começado a «reconhecer» locais,

amigos, familiares (mãe, pelo menos), num país que havia deixado havia 17 anos e no qual,

durante a sua ausência, «se acentua e desenvolve» a «viragem antropológica e cultural» da

Europa, «carregada entre nós por inquisitoriais peripécias» (MOURA, 1985, pp. 55-6).

O presente trabalho é o resultado dessa pesquisa, advertindo desde já o leitor que o tema é

tão apaixonante que o autor não hesitou em usar, também, de escritos de ficcionistas que foram

sensíveis aos aspectos aqui tratados. Julgo, contudo, que não será difícil perceber isso com a

leitura do que se segue. Ou porque claro, ou porque facilmente intuído.

2. ESPADA E OFÍCIO NOVO

Fralda, trono e Marte – Reinava agora D. Sebastião, que aos 14 anos, em 1568 (20 de Janeiro),

havia sido investido no cargo de rei no Palácio dos Estaus, residência d‟el-rei e da rainha sua avó.

Infelizmente, “D. Sebastião fez-se rei antes de saber que coisa era ser homem” (Francisco de

Sales Mascarenhas Loureiro apud BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 78). E o rapazola, que aparentava

mais idade do que a que tinha, “não só pelo desenvolvimento do seu corpo como também pela

sua atitude decidida, a dignidade dos seus modos e o controlo dos gestos” (BAÑOS-GARCIA,

cit.), desde cedo demonstrou que não era brincadeira aquele seu desejo de criança de ir imitar

algures, para além-mar, os seus antepassados. Era no longínquo Oriente que ele pensava. O

regresso, em 1571, de D. Luís de Ataíde, o célebre vice-rei da Índia (que havia resistido a oito

meses de cerco a Goa e cujos sucessos militares o reizinho desejava imitar) veio reavivar-lhe o

sonho. Mas depois, a Natureza interveio: a destruição total da armada (que para tal fora

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preparada) por violentíssima tempestade, na noite de 13 de Setembro de 1572, acabou-lhe com o

sonho de ir à Índia. Nessa altura, já Os Lusíadas haviam começado a circular.

Depois disso e obsessivamente, virou os olhos para «Marrocos» (BAÑOS-GARCIA, p.

143-45)]. Era aí, «junto contigo», que se encontrava o inimigo «Ismaelita... com quem sempre

terás guerras sobejas», na fala do Velho do Restelo à partida da primeira armada para a Índia, que

exortava a pelejar contra quem «segue» «do Arábio a lei maldita», para não deixar «criar às

portas o inimigo» (Lus., IV, 100-101) (RAMALHO, 1992, p. 99). Em 1572, à data da impressão

do poema épico, a «experta voz do Velho, situada no palco histórico manuelino de 1497, soa com

toda a amargura de um desengano nacional quanto ao empreendimento de ir para as Índias»

(LOPES, 1980), por isso o nosso vate «já se pergunta, através do ancião, se o lisonjeiro título de

“senhor, com larga cópia / Da Índia, Arábia e Etiópia” seria suficientemente compensatória para

o abandono das praças do Norte de África, perante a ameaça muçulmana, que apenas a batalha de

Lepanto, oito meses antes do alvará e primeira tença régios concedidos para publicação de Os

Lusíadas, pareceu de momento conjurar» (idem). «As confrontações de partido que dividiam a

opinião pública – “política tradicional” (norte-africanismo) versus política nova (orientalismo) –

está bem patente no espírito do Poeta» (DIAS, 1988, p. 83).

Nesse mesmo ano em que, justamente, sai a obra ímpar das letras portuguesas, futuro

«breviário da identidade nacional durante a dominação filipina» (MOURA, 2000, p. 115), já

«estava no choco a grande e louca aventura» (RIBEIRO, 1974, II, p. 232 e 216). Havia de ser

esse tantã guerreiro que justificaria, nos anos subsequentes, o «mutismo à volta dos Lusíadas» do

ciclo de poetas contemporâneos que, usualmente, eram tão solícitos, tão propensos à simpatia

humana, ao «tiroteio de flores uns para os outros», excepto para Luís Vaz.... O rufar dos tambores

e não só: estava-se «naquela época de pimenta a entrar pelo nariz dentro, de gozo desaforado» (p.

218), em que os valores intelectuais valiam menos que um real. Desde o início da gesta dos

Descobrimentos que outro valor mais alto se levantava: a pimenta2.

Mas a preparação do regresso a África, no reinado de D. Sebastião, vem a destempo e ao

arrepio da política de abandono das praças africanas iniciada em 1542 no tempo de seu avô D.

2 A pimenta constituiu, desde a chegada dos portugueses ao Oriente, a mais apetecível mercadoria, porque era a que

tornava rentável o trato da Índia (BRANCO, 2006, p. 148), passando por isso a ser monopólio régio. O debate sobre

as vantagens e desvantagens do monopólio régio iniciou-se em 1545 (THOMAZ, 1998, p. 116 ss.). O monopólio

estatal «irá durar até 1560» (ALBUQUERQUE, 1994, II, p. 902). À época de Camões, já estava, portanto, o

comércio da pimenta privatizado.

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João III (ALBUQUERQUE, I, 1994, p. 558) e continuada prudentemente pelas regências de sua

avó e tio-avô, quer pela perda de vidas quer de fazenda. Era o regresso à política «velha». Mas,

como veremos umas páginas mais adiante, não era de todo desajustada: na verdade, «o recuo dos

Portugueses (1541-52)» em Marrocos e a «reunificação [aí] operada pelos Saádidas (1545)»,

havia feito avançar o corso muçulmano em direcção ao Atlântico (alimentado por «arrenegados

gregos e balcânicos» e outros europeus, «que viam nas repúblicas corsárias hipóteses de

medrarem socialmente e prosperarem que não viam nos seus países») desde que, em 1518, em

Argel, foi criada «a primeira república corsária do Mediterrâneo sob a suserania da Porta»

(THOMAZ, 1993, p. 549).

Espada em riste, pena triste – Neste quadro, quem queria saber da pena, sobretudo se não fosse

da camarilha louvaminhas e comprometida com o poder? Não foi, para alguns, a tença atribuída a

Camões dada em consideração dos serviços prestados à Majestade pelo soldado da Índia, e não

pelo feito canoro? As razões que a abonam residem precisamente nesse fundamento, pois «era de

uso em semelhantes casos conferir destas benesses. «Equivalia à reforma militar de hoje»,

segundo Aquilino, acrescentando que só «acessoriamente alude o diploma ao engenho, habilidade

e suficiência que o contemplado mostrou no livro que fez das cousas da Índia» (1974, II, p. 159).

E diz mais: que “este príncipe não lia, não raciocinava, não abria a consciência a outra coisa que

não fossem os seus fantasmas bélicos e gloriosos” (p. 79)3.

Não lia e, muito menos, uma obra comprida e de leitura difícil como Os Lusíadas, com a

«hostilidade dum idioma novo e civilizado» (p. 155), onde os neologismos excediam a centena;

tampouco, ou sobretudo, cuidaria o jovem rei da obra de um homem «inválido», «pobre, triste e

feio, estigmas de inferioridade no meio corrupto e artificioso», num tempo em que «o que reinava

era a impetuosa e irreflectida mocidade» (p. 157). Sim, acreditamos; ainda hoje é um pouco

3 O rei lia, pelo menos, romances de cavalaria e crónicas de batalhas, como o livro de Carlos V. Mas se o rei «não lia,

não raciocinava», a verdade é que houve quem logo tivesse reconhecido mérito ao Poema épico. Para além do facto

de a tença corresponder «ao vencimento de muito cargo público da época», «aquilo de que nos admiramos não é da

exiguidade da tença: é antes da sua própria existência. Houve um dia um homem que foi oficialmente amparado na

velhice por ter sido escritor. Não é admirável isto? E, sobretudo, não é admirável que o reconhecimento oficial do

seu „‟engenho, habilidade e suficiência‟‟ (como diz o alvará) tenha precedido o dos próprios leitores?». E ainda: «A

data da concessão da tença é 28 de Julho desse mesmo ano (1572) e traz esta coisa de espanto: que a data para início

de processamento do pagamento se retrotraía para o dia já bem anterior de 12 de Março, o que equivale ao

pagamento de quatro meses e meio já passados. Não é admirável tudo isto? Está claro que a tença não foi grande;

mas não será admirável que lhe tenha sido dada e renovada e mantida até à morte e ainda transferida para a mãe

depois disso?» (JÚNIOR, 1963, p. LIV).

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assim. Já José Gomes Ferreira escreveu que a divisão necessária de orações continua a influenciar

e a servir de álibi para muitos leitores a quem os pais e os professores não ensinaram o prazer da

leitura:

Mas nunca me deixo de perguntar como se poderia gozar uma obra-prima como

Os Lusíadas sem uma análise gramatical e não apenas gramatical, mas

descobrindo-lhe outras estruturas só acessíveis aos olhos interiores treinados em

ler e reler versos como este, por exemplo: maravilha fatal da nossa

idade»(FERREIRA, 1980)4.

África! A atracção da guerra era invencível no ânimo de D. Sebastião: pelejar com os

mouros, entrar em combate, assombrar os seus soldados com a sua fortaleza e vigor e, nesse

caldo, «a monomania africanista, alimentada por fervores de cruzado e galhardias de campeão,

tinha-se apoderado do débil cérebro do rei» (Féliz de Llanos y Torriglia apud BAÑOS-GARCIA,

p. 231 e 228).

Enfim, emular os seus antepassados e, mais contemporaneamente, seu avô, o imperador

«romano» Carlos V, o conquistador de Tunes (1535). Tanto acalentava a sério esse sonho, que

condicionou mesmo a essa quimera o seu reinado, a vida dos seus súbditos e o destino da Pátria.

Apesar, mesmo, das tentativas de Filipe II de o demover por todos os meios do seu louco intento

(Queirós Veloso apud BAÑOS-GARCIA, cit., p. 236).

Primeiro, a apalpar o terreno, o mesmo é dizer, o ânimo dos que o rodeavam, com o

acanhamento e o temor reverencial de quem é adolescente e está há pouco tempo no «ofício

novo»: pesavam ainda as figuras da avó, a Rainha viúva D. Catarina de Áustria, e a do tio-avô,

cardeal D. Henrique, que debalde tentavam dissuadir El-Rei de tão insana empresa, sem que, ao

menos, arranjasse noiva e assegurasse descendência (naquela constante política das monarquias

de pôr o amor ao serviço da preservação da independência dos Estados). Mas depois, mais afoito,

com o sabor do poder a entranhar-se na cabeça oca, cansado das advertências do cardeal e da

chata avó. Aquele tão desgostoso que se afastou da corte e foi para Évora, esta, insistente ainda

no leito de morte, quiçá a ver o desastre que se avizinhava. Ambos, que haviam regido com a

devida prudência os negócios do Reino até à sua maioridade (1557-62 uma; 1562-1568, o outro),

viam, preocupados, o desinteresse do neto pelos negócios do reino e procuravam em vão chamá-

lo aos deveres de monarca: que se deixasse de caçadas e se interessasse pela res publica, que não

4 «Isto é, a maravilha propiciada pelo destino – que o monarca, dedicatário do poema, representava para a

Cristandade» (SILVA, cit., p. 156).

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desse livre rédea aos irmãos Câmaras5 e que arranjasse noiva. Mas, sobretudo, não viam com

bons olhos a empresa africana.

Ao jovem, só lhe interessando a montaria, os exercícios de equitação e a lide dos touros,

para se adestrar e robustecer sempre com o pensamento na guerra, cansava ouvir os velhos, com

as suas constantes chamadas da razão às razões de Estado e, deixando de viver com a avó, foi

viver para o Paço de Alcáçova, no alto da colina do Castelo de S. Jorge e, por vezes, no Palácio

de Santos-o-Velho. No seu leito de morte, em agonia, no Palácio de Xabregas, rodeada por D.

Sebastião, pelo cardeal D. Henrique, pelas suas damas e por muitos membros da sua casa e corte»

(BUESCU, 2007, p. 433), a avó faz ainda um último apelo desesperado ao neto, antes de morrer:

«Oh, não passe Sua Alteza em nenhum modo a Berberia, aconselhem-lhe que não passe, que o

mesmo fiz eu sempre e faço agora. Oh, não passe, que não convém!»

Mas já era tarde. Na mente do obcecado Bastião só existia uma palavra: Combater!

Combater! Combater! e um sonho: fazer-se coroar imperador de África!6

3. DUAS CONCEPÇÕES DE ÉPICA DA PÁTRIA

De 1568 ao desastre de 1578 em Marrocos decorreram dez anos: um reinado de «colusão

entre a espada e a caldeirinha». Desde que retornou ao Reino em 1570, até à morte em 1580,

também Camões viveu dez anos, oito dos quais nesse ambiente de «vigilância e punição», em que

«toda a dinâmica real, desconcertada ou de acinte, convergia para o sector da guerra e da

clerezia» (RIBEIRO, 1974, II, p. 107).

Que coisas se terão passado nesse tempo que tenham sido apercebidas pelas gentes e

registadas pelos cronistas ou pelo nosso Poeta? O que terão pensado os lusíadas desse tempo, eles

5 A «absoluta animosidade de D. Catarina pelos irmãos Câmara, em particular pelo confessor do rei, e as suas

frustradas tentativas de o afastar, teriam na sua base o conhecimento ou pelo menos a intuição por parte da rainha dos

abusos de natureza sexual de que o rei seria alvo desde a infância» (BUESCU, 2007, p. 379, fazendo-se eco de

«interpretação recentemente vinda à luz», in CRUZ, 2006). 6 Também já D. João II havia tido «um projecto imperial à maneira medieval», embora «estendido a um quadro

geográfico que ultrapassa largamente os horizontes da Idade Média» (THOMAZ, 1994, p. 165) e D. Manuel I se

havia prendido «à ideia de se tornar imperador, pretendendo muito provavelmente assumir o título depois de

Jerusalém cair nas suas mãos» (idem, p.196). Embora não fosse «tão viva em D. João II a obsessão da conquista de

Jerusalém, nem a ideia de se tornar de facto e em título Imperador do Oriente», «o projecto político e estratégico de

D. Manuel, considerado na sua materialidade, parece pouco inovar em relação às concepções joaninas» (idem, p.

167). Só com D. João III se começa «a cuidar da soberania mais que suserania» e o projecto imperial «a volver-se em

projecto colonial» (idem, ibidem).

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que tanto haviam Desejado aquele príncipe herdeiro, ao irem assistindo no decurso daqueles anos

a cada vez maiores motivos de preocupação sobre a independência do Reino? Que coisas se

passaram que pudessem ter perturbado quem não podia deixar de ver o caminho para o abismo?

Que terá visto, sabido, e disso pensado, o nosso Vate durante esse período? Nesses dez anos de

vida no Reino (1570-80), Luís Vaz sai do anonimato de um qualquer «veterano da Índia» que

regressa a salvo à Pátria, para a glória devida a quem tinha reflectido em perfeição, na sua épica,

«o sonho ideal do Homem Português e da Identidade Nacional», no dizer de Miguel Real (2007,

p. 28).

Interessava-me imaginar o que o Vate terá pensado dos eventos desses anos, do rumo

tenebroso que tomavam os acontecimentos pátrios, apreciar reconstituições de momentos

marcantes dessa época e refletir sobre o partido que ele tivesse tomado. Ponderar,

inclusivamente, as aparentes contradições do Poeta: era opositor da investida contra o «Ismaelita»

ou a favor?

A pena e o incenso – É um facto, por exemplo, que o nosso bardo incensa o rei n‟ Os Lusíadas,

publicado em 1572. Quer logo no princípio do poema épico:

E vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade

e não menos certíssima esperança

de aumento da pequena Cristandade (I, 6),

quer no fim da obra

Por isso vós, ó rei, que por divino

Conselho estais no régio sólio posto (X, 146).

Se «Camões sonhou, desde muito jovem, ser o Virgílio da sua pátria», como e porque não

imitar o romano e não dedicar o seu poema «ao jovem príncipe que presidia aos destinos de

Portugal», tal como Virgílio exaltara «o princeps de Roma, Octavio César Augusto»?

(RAMALHO, 1992. p. 93-4).

Por isso, se o cumprimento da praxe do séc. XVI, de se dedicar a edição a real figura,

príncipe ou fidalgo, que apadrinhasse a circulação do livro, «arvorada quase em rito», não

acontece no poema épico (não foi dedicado a D. Sebastião nem a ninguém), isso não quer dizer

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que não estivesse nos propósitos do Poeta fazê-lo, devendo a razão ser outra, segundo Aquilino:

para os cortesãos do rei aquela «insulsíssima versalhada» «não fariam honra à Majestade» (II, p.

154-55).

Além disso, como observou Américo da Costa Ramalho (1992, p. 96), embora Camões

cante o povo português, não é o soberano reinante que no poema épico ocupa a posição central,

como Augusto indubitavelmente ocupa na Eneida, sendo mais um ponto em que «Camões foi

pelas circunstâncias forçado (...) a diferir de Virgílio, com quem sempre sonhou comparar-se»

(id., ib., p. 108). O que, se não é de surpreender, já que «D. Sebastião não averbava ainda a seu

crédito qualquer façanha militar à data da publicação do poema», sendo sob esse aspecto Os

Lusíadas «um poema de mera expectativa» (MOURA, 2000, p. 106), não deixa apesar disso de

ser «um herói épico porque, enquanto detentor da coroa», «representava, mais do que a sucessão

de todos os reis de Portugal, „a perpetuidade da cabeça do rei e o conceito de um rex qui

nunquam moritur‟» (idem). «Este entusiasmo panegírico está em consonância com a atitude

típica dos poetas e dos humanistas de Quinhentos nos textos de dedicatória ou homenagem aos

grandes senhores e monarcas» (LOPES, 1980).

Por isso, enquanto o apoia e incentiva no apoio ao Turco, qualifica-lhe as façanhas já

praticadas („a haver‟) «pela cadeia de antecessores que ele representa no plano político,

metafísico e místico»: “As verdadeiras vossas são tamanhas /Que excedem as sonhadas,

fabulosas” (Lus., I, 11) (MOURA, p. 107). As dos antepassados, não as dele! Ao incensar D.

Sebastião, sem façanhas no activo mas com esperanças no imaginário, Camões incensa o «herói

colectivo» que «a ele se articula», como caput reipublicae e enquanto representante da «realidade

do Estado e da nação» (id., ib).

É certo, ainda, que o nosso Vate se arroja a dirigir ao rei observações de mestre na escola

da vida, de experiência feita:

A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando (Lus., X, 153, vv. 5-8)

e incita ainda o rei, em 1575, à guerra santa em África naquelas oitavas que assim começam

[JÚNIOR, R1, V, 2]:

Mui alto Rei, a quem os Céus em sorte

deram o nome augusto e sublimado (vv. 1-2),

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quando diz:

Presságio temos, e esperança clara

que sereis braço forte e soberano

contra o soberbo gládio mauritano» [idem, ib., (v. 14-16)].

Mas não era o Turco, à época, uma ameaça real? Não eram ainda frequentes os ataques da

pirataria muçulmana na nossa costa e não punham em risco certas frotas portuguesas mesmo para

cá do estreito de Gibraltar? Na verdade, a aliança de Marrocos com os turcos otomanos era uma

preocupação ibérica e europeia desse tempo, que mobilizava ainda a estratégia militar e as

movimentações diplomáticas dos reis europeus, depois de os turcos terem estado às portas de

Viena (1529) e apesar de terem perdido uma importante e decisiva batalha naval em Lepanto

(1571), aquela em que o ilustre Cervantes perdeu o uso do braço e da mão esquerdos.

Em 1571, a cristandade rejubilou com a vitória de Lepanto, mas em 1574 os

Turcos reapossavam-se de Tunes e em 1576 sentavam, finalmente, no trono

marroquino um seu aliado. Se Marrocos se tornasse então num sólido aliado dos

Otomanos, Portugal ficaria sob uma grave ameaça: a nova situação veio ao

encontro dos sonhos de glória e das preocupações estratégicas de D. Sebastião

[...] (ALBUQUERQUE, 1994, II, p. 1050-51).

A passagem do «corso turco-barbaresco» do Mediterrâneo para o Atlântico «lograria

atingir a Terra Nova, a Islândia e mesmo algumas vezes o Brasil» (THOMAZ, 1993, p. 550). Era

por isso situação grave. E tão grave que trouxe para a agenda política portuguesa a «discussão

recorrente sobre a oportunidade de abandonar a Índia e recolher aos mares do Ocidente onde tudo

começara» (idem). Além disso, os turcos afligiam ainda as frotas portuguesas no Oriente,

principalmente no mar Vermelho (ALBUQUERQUE, 1994, I, p. 202; BAÑOS-GARCIA, p.

123). Sendo, pois, «o reinado de D. Sebastião marcado por um misto de excitação religiosa e de

terror do infiel», que «explica, em boa parte, as hesitações da sua política, a braços com a ameaça

turca no Índico e em Marrocos» (THOMAZ, 1993, p. 559), não parece desadequada de todo a

política de «regresso a África», como medida de defesa da costa portuguesa, das rotas comerciais

do Atlântico, de descompressão da pressão do Turco no Índico.

É nesse ambiente que se passa «à ofensiva na Índia, ocupando uma série de portos no

Canará, que se editam duas vezes os Comentários de Afonso de Albuquerque, redigidos por seu

próprio filho, que Diogo do Couto redige o Soldado Prático e que Camões compõe Os Lusíadas,

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pintando toda a história nacional como uma imensa cruzada contra o infiel» (THOMAZ, 1993, p.

559).

Ou seja, Camões revela-se como um homem do seu tempo, ciente dos perigos que

ameaçam a cristandade e o seu país, comungando das preocupações dos seus contemporâneos,

não parecendo poder embarcar num pacifismo irrealista e até suicida, completamente fora do

contexto político-militar do seu tempo.

Não deve, pois, surpreender que ele advogue usar a pena mas sem largar a espada. “Pera

servir-vos, braço às armas feito /Pera cantar-vos, mente às Musas dada” (Lus., X, 155, 1-2): o

vero ideal do homem do seu tempo, se queria ganhar fama e nome eterno, como salientou Maria

Celeste Moniz.

Também no episódio do Catual (canto VIII, 1-44), o Poeta assume, pela boca de Paulo da

Gama, «uma atitude de demonstração da força cristã contra o Islão, não colocando a questão do

triunfo de uma religião sobre a outra senão pela acção das armas». O Catual, representando a

„seita de Mafoma‟, «é levado à persuasão de uma forma directa, segundo o pensamento do poeta,

pelos exemplos de Afonso Henriques, de Fuas Roupinho, de Henrique, o cruzado alemão, de S.

Teotónio, prior de Coimbra, de Mem Moniz, de Geraldo Sem Pavor», etc. (MARKL, 1980). Que

é isto senão um incentivo às armas?

Por outro lado, e isto é importante, porque contrapeso daqueles incentivos de combate ao

Infiel, também «não é menos verdade que todos os que exortavam o rei a tal política não

esperavam vê-lo passar às areias de África em pessoa», antes «contavam naturalmente que ele

dirigisse a guerra santa contra o Islão, mantendo-se em Portugal, sobretudo enquanto não tivesse

descendentes masculinos que assegurassem a sucessão do trono». (RAMALHO, ib., p. 105).

Camões não pensaria de modo diferente:

O Épico, como quase todos os intelectuais do seu tempo, não só considera

legítima a cruzada (em contradição com a escola erasmiana), mas incita a

realeza a prossegui-la. A cruzada (repressão militar do Infiel) surge aos seus

olhos como uma guerra justa (VII, 2) (DIAS, 1988, p. 82)7.

Que se combatesse, mas se assegurasse a continuidade da grei, não se expondo a pessoa

do rei. Mas qual quê! Ele não tinha outro objectivo nobre que não o de pelejar pessoalmente com

os mouros, porque, «se a expedição fosse comandada por outro, são as suas próprias palavras,

7 «O tema da guerra justa (VII, 8; VIII, 17; Oitavas III, ed. Cidade, II, 187) não foi inventado em Portugal e nem

mesmo no Renascimento. Vem da Idade Média [...]» (DIAS, 1988, ibidem).

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mais valia não ir – antes a suspendera, que cometê-la a outrem» (BANÕS-GARCIA, 2006, p.

231). Não admira, «D. Sebastião parece possuir o brio de quem necessita o confronto para

experimentar a sensação da vitória» (id., p. 146). Chega mesmo a afastar para a Índia D. Luís de

Ataíde, nomeando-o, pela segunda vez, em 1577, vice-rei da Índia (a primeira em 1568-71),

afastando da corte quem pudesse disputar-lhe a honra de comandar a expedição, como toda a

gente lhe recomendava, do Conselho Régio à avó e ao tio-avô, até ao tio e rei espanhol Filipe II.

Havia de ir ele em pessoa a comandar a expedição. A comandá-la e a dar o exemplo na frente de

combate, como se viu. Com o ímpeto juvenil e os calores da aventura devia achar os conselhos

que ouvia como disparates e as atitudes prudentes daqueles como cobardia. Não teve ele o arrojo,

em Guadalupe, na presença de Filipe II, cansado de ouvir tantos juízos adversos, de perguntar ao

duque de Alba: De que cor é o medo? «Ao que o encanecido general, com circunspecção e

serenidade, respondeu impassível: Senhor, da cor da prudência» (BAÑOS-GARCIA, cit., p.

214). Em 1577, apesar da vitória de Lepanto, comandada por D. João de Áustria, meio irmão de

Filipe II, o rei espanhol tinha encetado a via do diálogo e entrado em negociações de paz com o

sultão otomano, pelo que estava interessado em tudo menos em aventuras ou novas cruzadas.

A espada e a pena – D. Sebastião era não só um «herói épico», pelas razões apontadas por

Vasco Graça Moura, como tinha, «como o insigne Camões, uma concepção épica da pátria»

(Carlos Malheiro Dias apud BAÑOS-GARCIA, p. 64).

Mas não era, seguramente, a mesma concepção. Enquanto a do rei era a do alargamento

do império à espadeirada com a benção do Céu, contra até as razões de estado, a do poeta era a da

conquista de uma «república de homens sábios e sensíveis que numa mão tivessem a espada e na

outra a pena» (MONIZ, 2004). “Nũa mão sempre a espada, e noutra a pena”, é a consagrada

fórmula camoniana (Lus., VII, 79) ou, noutras palavras, mas ainda com o mesmo sentido: „Nǔa

mão a pena e noutra a lança‟ (Lus.,V, 96, 3) ou, ainda, N'huma mão livros, noutra ferro e aço:

A hua rege e ensina e outra fere (tercetos de Camões dedicados a D. Lionis Pereira) (JÚNIOR,

R1, IV, 3).

De facto, glória das armas e glória das letras foram as duas grandes aspirações

dos homens que, nesta época, buscavam renome e fama eternos. [...] a

consciência da imortalidade conferida pela obra do escritor parece ter sido

comum a todo o humanismo europeu (MONIZ, 2004, p. 85)

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O rei vivia para a exaltação da sua glória pessoal e desprovida de conteúdo, «embriagado

pelas futuras vitórias e disposto a ser coroado como imperador de África», e não houve ninguém

que tivesse podido convencer o donzel do contrário. Houve mesmo um prelado, Fernando da

Silva, que «levou textos escritos laboriosamente preparados para serem lidos nas cerimónias da

sua coroação como imperador de toda a África» (BAÑOS-GARCIA, p. 153, 247-8). Por isso, foi

com esta disposição empolgantemente bélica que rei e cortesãos encararam o «divino zarolho» e

a sua obra, ressaltando-lhes aos olhos apenas o clamor, a exaltação e a glória. Ora, ao contrário,

uma sua leitura atenta faz-nos ver que o Poeta discordava dos rumos que a política régia e

eclesiástica imprimiam à nação e propõe outro Portugal, outro rumo, outra ética, onde os valores

fossem o saber sobre o poder, o génio sobre os privilégios de sangue, da liberdade sobre as

convenções. É o sentido desta exortação ao rei:

Os mais experimentados levantai-os,

Se, com a experiência, têm bondade

Pera vosso conselho, pois que sabem

O como, o quando, e onde as cousas cabem.

Todos favorecei em seus ofícios,

Segundo têm das vidas o talento (Lus., X, 149, 5-8; X, 150, 1-2).

A experiência, o saber, o talento é o que deve ser levantado e favorecido, segundo o

Poeta, não a condição de nascimento. Mas a «monomania africanista» do moço, de que atrás se

falou, não lhe deixavam espaço para muito mais.

Pena, ecumenismo e paz – No epopeia encontramos o Poeta a usar a apologética das viagens e

das batalhas, como lhe competia segundo a tradição épica, celebratória, mas não deixou de se

prevalecer da tradição pastoril para fazer a glorificação da paz e a aceitação do Outro (RIBEIRO,

2007b, p. 256 e 116-17). Na verdade, a Lusitânia de Camões era a que revelou à Europa que «o

homem é feito de muitos homens, muitas raças, muitas cores, credos, hábitos, quebrando a visão

unicitarista medieval e alargando e aprofundando a visão renascentista italiana do homem»

(REAL, 2007, p. 62).

Era esta crítica atitude a de Camões e dos seus correlegionários, numa aliás já longa

tradição no Reino, de que são exemplo

o espírito satírico do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, herdeiro, ele

também, da tradição trovadoresca; a poesia de frustração de Sá de Miranda ou de

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António Ferreira; o vigor da crítica vicentina às várias camadas sociais,

sobretudo ao clero e aos fidalgos (MONIZ, 2004, p. 24).

A pena e a farpa – Mas, enquanto incensa e incentiva o rei, não é menos certo que aparecem já

nos Lusíadas críticas à governação dos irmãos Câmara, esses que, de «hábito honesto e grave»,

regem os negócios do reino entretendo-se «a despir e roubar o pobre povo», «por contentar o rei

no ofício novo». (VII, 85, 5-8). Deve-se a eles, certamente, a famigerada lei «sobre os livros de

hereges & defesos» de 26 de Junho de 1571, de que falaremos adiante.

Nem é menos verdade que, ainda nos Lusíadas, mesmo o rei não escapa à farpa afiada do

Vate, naquela estância 26 do Canto IX, «em que, sob a figura de Actéon, Camões censurou ao rei

os excessos venatórios» (RAMALHO, 1992, p. 29 ss), obviamente porque enquanto se entretinha

na montaria, descurava os interesses da res publica.

Para o Poeta, ainda agora chegado do Oriente, já era claro que Actéon (Sebastião), por

causa da caça, fugia da bela forma humana, ou seja, da convivência feminil, esquivando-se aos

deveres de rei: “na caça tão austero /de cego na alegria bruta, insana, /que, por seguir um feio

animal fero, /foge da gente e bela forma humana” (Lus., IX, 26, 2-4). É evidente que se o Poeta

logo soube disso, é porque já estava na boca do povo a displicência do rei-donzel e pode Camões

ter-se limitado a dar voz às preocupações populares.

Camões, tão preocupado como todo o reino por esta misoginia, endereça ao

monarca um grave aviso, lembrando como Actéon acabou por ser despedaçado

pelos seus próprios cães (cães que, numa interpretação alegórica admissível

neste contexto, figurarão os áulicos do soberano) (SILVA, 1994, p. 137)

E o rei a tudo isso? Terá sabido ou percebido este «aviso»? E os leitores? Terão os leitores

do poema épico captado esta mensagem?

Parece que sim: há um passo (Da sombra de seus cornos não se espanta /Actéon na água

cristalina e bela, IX, 63, 3-4) que foi «parodiado por Diogo Bernardes, quatro anos depois da

publicação de Os Lusíadas, sinal de que não passou despercebido aos contemporâneos». E,

segundo RAMALHO (1992, p. 106-07), a aplicação do mito de Actéon a D. Sebastião em Os

Lusíadas ganha (ainda) mais força de uma ode de André Falcão de Resende, escrita certamente

depois da publicação do poema, ou, pelo menos, sob a influência do passo de Camões.

Se assim é, mais uma boa razão para o rei não querer o nosso Vate na expedição a África,

em 1578, e optar antes pelo «hábil videirinho» Diogo Bernardes (AQUILINO, p. 217) que Costa

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Ramalho não considera (nem Aquilino) amigo «sincero» de Camões (ib., p. 36n), e com razão:

Bernardes parodia aquela e outras passagens de Os Lusíadas, não testemunhando com isso

«disposições muito amigáveis para com o poeta» do poema épico, preparando-se, já em 1576,

«para ser o Camões da expedição militar de D. Sebastião ao Norte de África, dois anos mais

tarde» (RAMALHO, 1992, p. 43). Feito prisioneiro em África e resgatado três anos depois,

passou então à fase de encomiador de Camões e,

em 1595, quando foi publicado o livro das Rhythmas camonianas, Diogo

Bernardes não negou o seu testimonium de apreço literário, no soneto que

começa: “Quem louvará Camões que ele não seja? /Quem não vê que cansa em

vão engenho e arte? /Ele se louva a si só, em toda a parte, /E toda parte, ele só

enche d‟inveja” (RAMALHO, 1992, 44).

É claro que Bernardes sabe do que fala: ele terá sido um dos que recebeu a publicação de

Os Lusíadas com «uma certa indiferença, quando não inveja ou intriga», «que tudo indica só

terem sido apreciados num círculo restrito, nos anos que se seguiram à publicação» (MOURA,

1989, II, p. 48).

Mas voltando atrás. Quem percebeu o tom crítico do poema? Percebeu o rei e, se não ele,

os cortesãos veneradores que rapidamente lhe deram conhecimento do despautério canoro do zé-

ninguém; e seguramente os Câmaras, cuja ira estará por detrás da proibição de nova tiragem do

poema épico.

E se Camões se atreveu a criticar a fratria que detinha o poder (Canto VII) e o próprio rei

(IX, 26), não é surpreendente que apareça, logo a seguir, a criticar a pirâmide social de cima

abaixo (RAMALHO, ib., pp. 103-04): os nobres na est. 27 (“E vê do mundo todo os principais

/Que nenhum no bem público imagina”), o clero na est. 28 (“Vê que aqueles que devem à pobreza

/Amor divino e ao povo caridade, /Amam somente mandos e riqueza, /Simulando justiça e

integridade”) e o povo em geral na est. 29 (“Vê, emfim, que ninguém ama o que deve, /Senão o

que somente mal deseja”).

Sempre vivo e acutilante, é o «espírito crítico de homem preocupado com o bem

público», «que alguns aborrecimentos lhe há-de ter custado no Oriente» (RAMALHO, id., p. 16).

No mesmo sentido SILVA (1994, p. 137):

As estâncias 27, 28 e 29 desenvolvem a análise do desconcerto do mundo,

revelando um moralista de alta coragem, que indignadamente denuncia os

desmandos, a corrupção e os atropelos à justiça verificados na corte e na

governação do povo.

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Ninguém escapa. Para Miguel Torga, para quem Os Lusíadas é «a bíblia de todo o

português», é-lhe também um espelho implacável:

Risonha ou severamente, os vícios que o envilecem vão a par com as virtudes

que o dignificam. Pasma-se de tanta clarividência e arrojo num tempo de

inquisições e censuras. Grandes e pequenos, senhores ou servis, são passados à

fieira dum juízo equânime mas impiedoso. Raramente um intelectual terá sido

tão ferozmente livre de espírito e fiel à sua missão (Opúsculo Camões, Coimbra,

1987)8.

No canto IX, estâncias 92-95, estabelece mesmo aquilo que para Jorge de Sena é «um

regimento para ministros, para conselheiros, para governadores ultramarinos, para chefes de

exército e de armada», traçando aquilo que para Camões é uma «moralidade heróica, para uso e

guia de altos funcionários», (apud ALBUQUERQUE, 1988, p. 200), num ideal de justiça levado

tão longe que, por vezes, chega a constituir uma forma de crítica severa (id., p. 202).

Não há dúvidas! Eram severas as críticas e tinham a sua razão de ser. As dirigidas ao rei,

em particular. Cedo, na verdade, o rei se revelara destro e forte no manejo de armas, nos jogos

das canas e em torneios com os companheiros da chacotada e os seus criados e, com 11 anos, já

matara o seu primeiro javali nas coutadas de Almeirim, perante o olhar orgulhoso do aio, o velho

D. Aleixo de Meneses (BARROQUEIRO, 2007, p. 106-7 e 116). E ainda o moço não tinha 20

anos já era claro, aos olhos da avó, do tio-avô, e até do povo, que ele afagava a ideia do celibato e

que, com a mesma intensidade, só pensava em levar a guerra ao terreno do Crescente

muçulmano. (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 68).

Escreveu ele numa dedicatória de um livro religioso que ofereceu a uns padres da

Companhia de Jesus: “Padres, rogai a Deus que me faça muito casto e muito zeloso de dilatar a

Sua santa fé por todas as partes do mundo”.

Instruía ele o novo vice-rei da Índia, D. Luís de Ataíde, o primeiro por ele nomeado em

1568: “Fazei muita cristandade, fazei justiça, conquistai tudo quanto puderdes...”

A este vice-rei, que foi substituir D. Antão de Noronha, o do injusto mando, dedica

Camões um soneto: “Que vençais no Oriente tantos reis, /que de novo nos deis da Índia o estado,

8 Contém o discurso de evocação do Épico proferido por Torga, esse outro poeta, «padrão telúrico e cívico expoente

da própria Pátria» (nas palavras de David Mourão-Ferreira), no Salão Nobre do Leal Senado, Macau, em 9 de Junho

de 1987, a que o autor destas linhas teve a honra de estar presente, num reencontro pessoal com o «telúrico», com

quem já se tinha encontrado em Moçâmedes (actual Namibe), em 1973. Curiosamente, nas duas primeiras (e únicas)

viagens do escritor, quer a Angola (a África, ao que julgo) quer a Macau.

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/que escureçais a fama que ganhado /tinham os que a ganharam a infiéis”, cujo v. 2 pode ser uma

crítica ao anterior governador (SARAIVA, 1990, p. 197). Devem ter-se cruzado, ou ainda em

Goa, ou quando o Vate há havia chegado a Moçambique.

Espada, doença, casamento e falatório – Também é verdade que já havia caído na boca do

povo essa sua propensão para descuidar os interesses do reino e, a partir do início da puberdade

(11 anos, no caso dele), a notícia dessa estranha doença (espermatorreia) (idem, p. 93) que tanto o

apoquentava que «tinha uma certa sensação de vergonha do seu mal e desejava mantê-lo secreto»

(idem, p. 95) e que será causa não só de ele votar ao insucesso todos os projectos de casamento,

como dos rumores que corriam de que era impróprio para procriar e garantir herdeiro.

O facto é que o embaixador espanhol em Lisboa, D. Juan de Borja, «afirmava com ironia

que o facto era tão conhecido que em todas as tabernas de Lisboa se discutia a doença do rei»

(id., p. 94-5). Ora, sendo por essa altura na capital duzentas as «portas com loureiro», o falatório

não era pequeno.

Hoje, claro, associa-se a pouca apetência do Bastião ao género oposto com uma hipotética

orientação invertida; mas não é o que se detecta nem em Baños-Garcia nem em Deana

Barroqueiro. A doença do jovem, que o levava a frequentes desmaios e o mergulhava na tristeza,

era suficientemente apoquentadora, obrigando-o a tratamentos diários com emplastros e sangrias

e ao adiamento contínuo de compromissos conjugais que, a realizarem-se, o colocariam numa

situação de vergonha e humilhação perante a consorte. «A aceitação do seu mal pode ter sido a

pesada carga da sua vida» (BAÑOS-GARCIA, p. 91).

Deana Barroqueiro, a propósito, descreve mesmo duas cenas eróticas no seu premiado

livro, revelando a destreza adquirida com a «extraordinária pintura da alma feminina» que são os

seus Contos Eróticos (2003) e Novos Contos Eróticos do Velho Testamento (Livros Horizonte,

2004) onde, ao arrancar das páginas da Bíblia duas mãos cheias dessas mulheres, as revela, num

mundo de homens e de deuses, na sua sensualidade ardilosa, bravia, rude e corajosa.

A primeira dessas cenas é a endiabrada e sensual dança da galharda que, por ser das raras

ocasiões em que homens e mulheres se podiam tocar e abraçar estreitamente, sob os olhos do

mundo, sem ninguém se escandalizar ou desembainhar a espada em defesa da honra ferida, era

olhada com desconfiança pelas donas mais velhas, quando o jovem rei volteia com o seu par e, no

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passo principal da dança, la volta, que exigia grande perícia e força de homem, com a dama

suspensa nos braços à máxima altura, descreve:

Para uns membros exercitados sem descanso no jogo das canas, no manejo das

armas e na montaria, como os de Sebastião, erguer no ar Joana de Castro era

tarefa leve e doce, donde jamais esperaria perigo ou dano. Porém, o homem põe

e Deus dispõe, e assim, ao sentir o corpo da donzela a deslizar como uma onda

macia, quente e fragrante contra o seu, a suave tremura da carne que o

movimento ou a emoção lhe imprimiam, a turvação d‟ el-rei foi tão violenta que

se tornou visível a toda a assistência, quando o coração latejou desordenado

como em esforçada corrida e o sangue lhe subiu ao rosto, tingindo-o de

vermelho vivo, enquanto o pequeno monstro de carne que tanto temia despertava

com inesperada violência, pulsando e soltando-se num fluxo quente e

apaziguador, no momento em que terminava o último compasso da volta,

desequilibrando-se a ponto de quase fazer cair a igualmente perturbada Joana de

Castro (BARROQUEIRO, 2007, p. 136, 140-42)9.

A outra, não menos erótica, mas também ficcionada, é a descrição da iniciação sexual de

Bastião, aos 11 anos, numa estalagem da Real Montaria em Almeirim por Luna Diaz, uma «puta

castelhana» que, conhecendo «melhor do que ninguém o seu mester», consegue, com

«brincadeiras de inocente lascívia», ir provocando o rapazola, qual «Actéon de entremez», que se

foi entregando à experiente castelhana (pp. 303-07). Está relacionado com este ficcionado

encontro o nó górdio da trama tecida pela autora, pois terá saído dele o rei-donzel com o achaque

de madre, causa permanente do mal de que, aqui sim, na verdade, padeceu toda a vida a partir do

início da puberdade, aspecto da intriga bem achado, não obstante não haver registos históricos de

«uma iniciação sexual por serva ou dama do paço de mais soltos costumes»10

. Mas remeto o

leitor para o romance onde, sublinhe-se, e fora isso, se nota a preocupação constante pelo rigor

histórico.

Mas não terá sido apenas os seus cuidados com a doença e o sofrimento que lhe causaria a

expectativa de dificuldades numa relação sexual normal no casamento o que terá estado na

origem das contínuas dilações aos projectos de conúbio. As razões seriam estariam enredadas

com a aura mística e religiosa em que fora educado e vivia. Basta atentar no seguinte episódio:

9 A cena é pura ficção. De fonte segura sabe-se que D. Sebastião dançou apenas uma vez no baile do casamento da

prima Maria com o duque Farnésio (explicação da autora).

10 Mas é verdade que os embaixadores em Lisboa diziam que era gonorreia e isso só acontecia por contaminação. O

embaixador francês, por exemplo, nas cartas para Catarina de Médicis, escrevia que o reizinho sofria de "gonorrée"

(explicação da autora).

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Rui de Sousa Carvalho, herói do cerco de Mazagão em 1562, que deveu ao facto a nomeação

para governador de Tânger, decidiu casar-se e, acto contínuo, recebeu del-rei

uma carta a censurá-lo por isso, insinuando que os prazeres do matrimónio o

distrairiam do exercício das armas. A resposta do cavaleiro foi atirar-se sozinho

sobre um numeroso esquadrão inimigo e fazer-se matar depois de uma luta

furiosa (SARAIVA, 1995, p. 404),

facto ocorrido em 1573. Corria abertamente em Lisboa a acusação de ter sido o rei o responsável

pelo acto desesperado do governador de Tânger e foi logo a seguir que D. Sebastião embarcou

para África, na primeira expedição. O impacto público deve ter sido grande, pois «as proezas que

dele se contavam eram sem dúvida impressionantes» e até Camões se refere ao episódio:

Praza a Deus que o triste e duro Fado /de tamanhos desastres se contente, /que

sempre um grande mal inopinado /é mais do que o espera a incauta gente; /que

vejo este carvalho que, queimado /tão gravemente foi do raio ardente, /não seja

ora prodígio que declare /que o bárbaro cultor meus campos are.

(Écloga Que grande variedade vão fazendo, JÚNIOR, R1, VI, 8).

Na estrofe seguinte, «o outro pastor, com a jactância do heroísmo fácil, responde-lhe que

enquanto os portugueses tiverem nas mãos um cajado, ninguém os dominará». A écloga, segundo

SARAIVA (id., p. 403), resulta de uma montagem de textos de datas de redacção diferentes,

sendo de 1574 a oitava transcrita e que se referirá ao governador Rui de Sousa Carvalho e

quererão dizer «o raio ardente destruiu um carvalho: oxalá o facto não seja o augúrio de desastres

maiores, como seria o da perda da independência».

Se assim for, mais uma vez deparamos com um Camões atento aos sucessos do seu tempo

e preocupado com o rumo dos acontecimentos do seu país: «a verificação de um desastre (o

carvalho fendido pelo raio), a condenação da temeridade, e o risco em que estava a independência

nacional» (id., p. 404).

Espada, Universidade e pateada – Mas, continuando, não foi o rei, ainda, pateado pelos

estudantes numa visita à Universidade de Coimbra em Outubro de 1570?

O afastamento de D. Catarina, aliado ao domínio dos irmãos Câmara, fizera

perigar a boa imagem d‟ el-rei entre as gentes mais esclarecidas do reino,

sobretudo académicos e estudantes, de modo que o Conselho de Estado

recomendou com muita insistência uma visita de cortesia de Sua Alteza a

Coimbra, onde os ânimos andavam mais alvoraçados (BARROQUEIRO, 2007,

p. 227).

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E tão enorme foi a pateada, à entrada da aula magna (noutra versão, “sempre que ele

entrava numa das salas de aula”, RAMALHO, 1992, p. 30), que o rei se perturbou tanto que

deitou a mão à espada e tiveram de o tranquilizar, mentindo, que aquilo se tratava de aplauso

escolástico. Pateada e pasquinada:

A censura ou crítica pública dos estudantes universitários a um jovem rei, mais

novo do que eles, parece clara. E como se isso não fosse suficiente, circularam

na cidade, durante a sua estadia, uns pasquins que explicavam com ironia, e até

com mordacidade, a causa daquela censura, que não era outra senão o excessivo

protagonismo dos jesuítas nos assuntos do governo e inclusivamente na vida

pessoal de D. Sebastião (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 139-40).

Que diziam os pasquins? Ora vejamos: «Um mancebo sem experiência /E um velho sem

saber, /Dois irmãos sem consciência /Deitam o reino a perder».

E também: “El-rei Nosso Senhor por fazer mercê a Luís Gonçalves e a Martim Gonçalves

e aos padres da Companhia , há por bem de não casar estes quatro anos, e de estar com eles

abarregado” (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 140; BARROQUEIRO, 2007, p. 229).

Mas não era só nos meios universitários que a contestação da autoridade política dos

irmãos Câmaras chegou.

Num escrito distribuído por essa época em Lisboa dizia-se: “O Senhor Martim

Gonçalves (da Câmara) governa tão isento e absoluto, quanto nunca se viu nesta

terra nem fora dela; a linguagem da gente mais grave é terem um rei cativo de

dois irmãos, que pouco a pouco o vão fazendo outro rei de Ormuz”. O rei de

Ormuz era o símbolo da incapacidade e da impotência, popularizado nas

Décadas de João de Barros: “Rei moço e quase uma estátua, sem ter eleição de

querer”, escrevera na Década II. (SARAIVA, 1995, p. 411).

Mas a contestação à intolerância dos jesuítas não era de agora. Se haviam começado a

«ensinar latim de graça, quando chegaram» ao Reino, «açambarcando o ensino em Portugal,

afastando os mestres laicos e impondo as regras e práticas da Companhia de Jesus como únicas e

verdadeiras», «levavam agora mil cruzados pelas lições!», pelo que «os procuradores dos

concelhos» às Cortes «buscavam minorar a influência e poder dos jesuítas no Ensino, criticando

os seus privilégios» (BARROQUEIRO, 2007, p. 85 e 247).

Se, pois, na obra de Camões detectamos sinais de crítica, pessimismo e contestação, como

terá sido o reinado de D. Sebastião? Ao que terá assistido, o que terá ouvido Camões? De que

terá sido testemunha o nosso vate?

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4. O CORTEJO REAL EM DIRECÇÃO A ALCÁCER-QUIBIR

Missa e benção na Sé – Considere-se, por exemplo, o dia do embarque das tropas com destino

ao desastre, 14 de Junho de 1578 (a largada só se fará a 25). Às 7 da manhã, cortejo d´el Rei do

paço para a Sé, missa e benção da bandeira. Multidão de curiosos nas ruas e praças circundantes,

infinidade de tendas, mesas e tabuleiros para vender tudo o que o dinheiro podia comprar,

montadas desde o início dos preparativos para a jornada.

Camões não viveria longe destes lugares: à chegada do Oriente foi viver para um «quartel,

junto à igreja de Santa Ana»; a mãe, que havia vivido na Mouraria, terá para aí mudado depois da

«peste grande» de Maio de 1569-71, tantas foram «as casas devolutas depois da mortandade que

desinçou a urbe» (RIBEIRO, II, 1974). Dos cem mil lisboetas, ceifou sessenta mil.

Até esse ano, de que eventos terá o nosso Poeta sido contemporâneo e, eventualmente,

assistido? Vamos ver.

Retrospectos:

a) Lápis azul – Já antes não terá gostado nada, e sentir-lhe-ia os efeitos, da terrível lei de

D. Sebastião de 26 de Junho de 1571 «sobre os livros de hereges & defesos» (MOURA, 1985, p.

89), assunto a que voltaremos mais adiante.

b) Purificação – Terá assistido anos antes à procissão solene da Saúde que se realizou em

20 de Abril de 1571, «quando Lisboa era dada por limpa e se celebrava com toda a espécie de

regozijos, danças, momos e arruídos de vária ordem», com «estrondo dos morteiros e

sacabuchas». E o rei, que era esperado para a festividade? Que fez ele? «Limitou-se a descer de

Vila Franca para os Jerónimos, então arrabalde, através do rio, cujo lençol de água, isolador, o

preservaria do andaço» (id., p. 107).

c) Rios per urbem – Já terá sido testemunha, com estupefacção geral, das enxurradas de

Março e Abril de 1573 de que nos dá conta o Memorial de Pero Roiz Soares, «tam espantosa

chea» que fez transbordar o Tejo de tal modo que as águas cobriram toda a Rua da Misericórdia

«que podiam nadar por ella grandes barcas» (apud MOURA, 1985, p. 82). Este autor, aliás,

defendendo a tese de que as redondilhas «Sôbolos rios» foram escritas por Luís Vaz de Camões

em Lisboa, sugere que terá sido quando ali houve «rios per urbem», em 1573/74. Mas se em 1575

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houve outro mau tempo semelhante, idem, porque 1573/74? Porque, «se os 365 versos do poema

correspondem aos dias do ano», «é naturalmente lógico que as 73 quintilhas que os agrupam

correspondam aos anos do século decorridos até ao tempo da sua feitura» (idem, p. 325). Não

deixa de ser um argumento curioso da sua tese, a par de outros, mas o certo é que, para a tese de

Camões em Macau, o que retenho é que a data defendida é bem posterior ao naufrágio, que terá

ocorrido em 1564 ou 1565 (RIBEIRO, 2006; 2007b) e, por isso, compatíveis.

d) S. Bartolomeu e tença – Terá também Camões torcido o nariz com as manifestações

de regozijo nacionais, oficial e popular, com a chegada ao Reino da notícia do massacre de Saint-

Barthélemy na trágica noite de 24 de Agosto de 1572 durante as festas de casamento de

Margarida de Valois com o huguenote Henrique de Navarra, por mandado d‟ el-rei de França:

dois mil mortos em Paris, trinta mil em todo o reino (id., p. 275). O contentamento foi tão grande

que «um copeiro de El-rei, só porque trouxe de França a notícia [...], foi agraciado, a título de

alvíssaras, com a tença anual de de 20.000 réis» (RIBEIRO, II, p. 161).

Compare-se com a tença atribuída no mesmo ano a Camões, ao «soldado da Índia»:

15.000. E ao poeta emérito, cantor de feitos tamanhos? Enquanto tal, nada consta. Nem o rei terá

ouvido mais do que lhe leram (certamente só as passagens laudatórias e incensórias), nem «a

maneira como no alvará se fala do poema (“livro das cousas da Índia”) leva a entender que algum

dos oficiais que o lavrou, nem que o mandou lavrar, bem como aqueles de cuja autoridade se

prevalecia, sabiam o que eram os Lusíadas» (id, p. 159). Digamos, portanto, que a atitude

hodierna de desprezar ou ignorar a épica camoniana tem os seus remotos mas ilustres

antecedentes. A «glória das armas» à frente da «glória das letras». Na colusão entre a santíssima

trindade constituída pela espada, a caldeirinha e a pimenta, quem havia de ser prejudicada senão a

pena? E se o acolhimento dado a Minerva era mau, pior ainda o dado a Pégaso!

e) Autos de fé – Já terá podido assistir ao auto de fé de 31 de Janeiro de 1574 em Lisboa e

sabido dos de Coimbra de Outubro de 1571 e 7 de de Junho de 1573 e do de Évora em 14 de

Dezembro de 1572 11

. Terá começado deveras a ficar preocupado com a prisão de um seu amigo,

o Senhor Cascais, em 1572, «por denúncia cuja falsidade veio a ser reconhecida» (MOURA,

1985, p. 90). Terá franzido o cenho com a prisão de Damião de Góis em 4 de Abril de 1571,

realizada a mando dos Inquisidores (MOURA, 2000, p. 125), julgado por herético um ano depois

11

D. Sebastião assistiu a um único auto de fé em toda a sua vida, o de Évora, e não há nenhuma indicação de que

tivesse tido prazer nisso (ao contrário de D. João III e dos Filipes), embora tenha aparecido com o estandarte real a

oficializar o evento, porque lho preparara o tio Cardeal (explicação da escritora Deana Barroqueiro).

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e «morto em princípios de 1574 em circunstâncias nada claras e pouco depois de concluído o seu

processo na Inquisição» (id., p. 128).

Fidalgos de antigas famílias e grandes casas tinham-se sentido agravados com as

verdades ditas na crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel e o tesoureiro do rei

Luís de Castro, que era genro do velho cronista e andava em litígio com um dos

seus filhos, foi incitado a denunciar o sogro à Inquisição (BARROQUEIRO,

2007, p. 294).

Uma dessas casas é a de Bragança. A denúncia de Damião de Góis à Inquisição, feita por

Pêro de Andrade Caminha em 1571, «parece ser consequência da consolidação da posição dos

Braganças junto do trono, em detrimento do poder do Cardeal, cuja regência terminara em 1568»

(MOURA, 2000, p. 137-38), pois a Damião de Góis não se perdoava a «admiração» que ele

«tinha e nunca deixou de manifestar pela figura de D. João II», «a quem não era perdoada, na

corte de D. Sebastião, a perseguição dos Braganças» (idem, p. 58-9)12

.

f) Sangue e touros – Relacionada com os autos de fé, com o que os portugueses se

revelariam «insensíveis e cruéis», está a lide de touros, como Sampaio Bruno nos lembra,

quando, ao contemporizador comentário de Geddes, nos seus Miscellaneous Tracts, de que a

«ferocidade» do português seria «exclusiva do capítulo religioso», recorda, justamente, o seu

«espectáculo nacional, o das corridas de touros» onde, inclusivamente, «resistia capciosamente às

proibições que vinham de fora» (1983, p. 268). Na verdade, proibida por Pio V (1566-1572),

«por cousa bárbara e imprópria de gente cristã» (BARROQUEIRO, ob. cit., p. 344), vem a ser

autorizada, a pedido do Desejado, por Gregório XIII (1572-1585), porque o rei não só era

aficionado como, ao que parece, gostava de lidar touros a cavalo e cravar-lhes os ferros (idem).

Mas a autorização foi dada com duas condições restritivas: a de não serem corridos touros em

pontas, com as «pontas cerradas», portanto, o que o jovem rei considerava «cousa sem graça e até

vergonhosa cobardia» (idem), e a de só se poderem correr na presença d‟el-rei (BRUNO, id.,

BARROQUEIRO, id.). Para além do facto de nos interrogarmos como é que Sua Santidade sabia

se o defeso era cumprido, interessar-me-ia saber sobre o que Camões disto pensaria, ele que

poderá ter assistido em Lisboa às corridas de touros que a Câmara de Lisboa fazia

constantemente, numa tentativa de prender o rei na capital, onde ele parava pouquíssimo. Aliás,

em todos os lugares onde passava algum tempo, as populações ofereciam-lhe touradas e, em

12

Mas a denúncia é bem mais remota. «No ano de 1545 era denunciado à Inquisição por um antigo companheiro de

estudos, o padre Simão Rodrigues de Azevedo, mas só 26 anos mais tarde (1571) seria preso e iniciado o seu

processo» (ALBUQUERQUE, 1994, I, p. 466).

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Lisboa, em quase todas as festas havia corridas de touros, para o que se preparava o Terreiro do

Paço e outras praças de Lisboa 13

.

g) Necrofilia – Em plena cidade devastada pela peste, cujo pico havia sido já atingido

mas que se havia de prolongar até o ano seguinte (1571), terá ainda Camões ouvido falar das

tendências necrófilas do rei quando, em Outubro de 1570, na Batalha, manda abrir a sepultura de

D. João II, o rei que soubera fazer a guerra ao Infiel em África e se batera ardorosamente em

Arzila. E, encontrando o corpo incorrupto e as vestes que o cobriam intactas, fica imobilizado de

assombro e estupefacto e toma a decisão macabra de ordenar que o ponham de pé. Pegando ele

então, directamente, na espada do morto, diz com ênfase: “Senhores, este foi o melhor oficial que

houve do nosso ofício”. Na verdade, já no Verão de 1569, em Alcobaça, havia mandado abrir os

túmulos de D. Afonso II e D. Afonso III (ambos com feitos provados na luta contra os mouros) e

respectivas consortes D. Urraca e D. Beatriz, entretendo-se o jovem nestes jogos infantis (ou

rebates de loucura), denotando uma fixação no passado, uma desmesurada avaliação da sua

grandeza, um ofuscado sentido da realidade (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 133 e 138).

Como se vê, se um ou outro destes retrospectos são anódinos, outros dão, por demais,

sinais evidentes de que entrava no Reino, a passos largos, a política do «vigiar e punir» de que

fala Miguel Real, em substituição da que nos atirara para o primeiro lugar dentre as mais

civilizadas do Mundo: «descobrir e inovar».

As cores tropicais da populaça (ao som do fado)

Naquele dia 14 de Junho de 1578 o nosso Vate, trôpego e alquebrado, apoiado na muleta,

poderá ter estado entre a multidão basbaque da «raça dos iberos e godos» matizada de todas as

cores tropicais (RIBEIRO, 1974, II, 97-8) desde que os primeiros 4 ou 5 africanos resgataram o

capturado filho de um chefe azenegue no longínquo ano de 1443 e foram trazidos pela expedição

de Antão Gonçalves (THOMAZ, 1994, p. 32, notas).

13

Camões menciona os touros em pelo menos dois cantos dos Lusíadas: X: 43, 6 e 147, 2; VI: 84, 2. Em

http://www.secrel.com.br/jpoesia/camoes94.html dei com um epigrama com esta epígrafe: De Luís de Camões a el-

rei D. Sebastião, saindo aos touros.

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Mas, agora, estavam a chegar aos milhares ao Reino e, só num ano, 22.000 (!), os quais,

sem «escrúpulo», eram admitidos «a toda a ordem de trabalhos, desde a horta à copa» (RIBEIRO,

id., p. 98); e, obviamente, à alcova.

Sem «escrúpulo», estamos de acordo, mas certamente com preconceito (racial/social),

esse mais difícil de vencer, como ainda na primeira metade do séc. XX se detectava no Extremo

oriental do Império, na sociedade macaense, relativamente a Camilo Pessanha, que embora

recebido e ouvido pelo Governador e admitido no seio de importantes famílias locais, a sua

mancebia com uma concubina chinesa, Ngan-Ieng (Águia de Prata), de quem teve um filho, era

olhada com desconfiança, tendo-lhe sobrevivido algum do «ódio activo» dos seus

contemporâneos pelas suas «extravagâncias», como foi o caso do «padre Manuel Teixeira», que

«não mediu esforços, ao longo da vida, para denegrir o poeta maçon, ateu e amoral»

(FRANCHETTI, 2008, p. 16 e 88).

Mas também já do longínquo Oriente chegavam vagas de escravos: «os japões,

inteligentes, aplicavam-se com facilidade a toda a casta de mesteres; os chins, que não lhes

ficavam atrás no tocante a intelecto, eram principalmente excelentes cozinheiros». Os míseros

que vinham da Índia, esses, eram principalmente «maometanos ou negros gentios» (RIBEIRO,

idem).

A viagem de retorno das naus manuelinas era suprida com centenas de escravos

para colmatar as perdas de vida dos portugueses falecidos por doença, em peleja

ou em naufrágios, mas vinham também abusivamente muitos como pessoal

doméstico barato. Quando entraram em serviço as naus da carreira da Índia, com

o dobro da tonelagem das naus manuelinas, então sim, vinham carregados de

escravos. Só o galeão de Manuel de Sousa Sepúlveda [Outro também virá, de

honrada fama...(Lusíadas, V, 46)], que se perdeu em 1552, trazia 180

portugueses e e 300 escravos; a nau de Fernão Álvares Cabral, que se afundou

dois anos depois, trazia 142 portugueses e 324 escravos (BRANCO, 2006, p.

78).

Vinham todos juntar-se no amassamento «do português», em cuja «receita» já haviam

entrado «islâmicos e judeus sefarditas», aglutinados naturalmente e «interagindo sem culpas»

(MENEZES, 2007, p. 19). As «estatísticas» feitas em Lisboa no ano de 1551 referem que «os

escravos reresentam um décimo da população total, ou seja, cerca de dez mil. Cada família nobre

possui vinte ou trinta escravos, por vezes mais». (COUTO, 2003, p. 135). O exemplo, como

sempre, vinha do alto: «na frota de 1510, o governador mandou para Portugal vinte e quatro

escravas destinadas à rainha» (BRANCO, cit., p. 123). Mas muitos iam para o Reino para suprir a

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falta de recursos humanos, como se diria hoje. Era a explicação de D. Francisco de Almeida, em

1508, por carta ao rei, quando este reclamara contra o exagerado número de escravos que se

mandavam nas naus de retorno. Se muitos (portugueses) iam, poucos voltavam. E as naus

precisavam, por exemplo, de quem manejasse as bombas «numa luta extenuante e mortífera

contra a água que entrava nos porões» (BRANCO, id., p. 223-24). Iam e por lá ficavam, sem

opção. Assim, pode dizer-se que a troca de genes se fazia nos dois sentidos, no Reino como nas

novas terras «achadas».

Mas Lisboa adiantava-se, por essa altura, àquilo que no Brasil havia de ser designado por

luso-tropicalismo: «a influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à

vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande

população brancarana...» (FREYRE, 2005, p. 66). À vida sexual, pois!

A saga do Império arrasta consigo a sangria da população masculina, num país

que, no início das Descobertas, conta somente com um milhão de habitantes,

sendo frequentíssimo, por isso, o adultério e a leviandade das mulheres que já

havia sido um dos temas do teatro de Gil Vicente no princípio do século

(COUTO, 2003, p. 138).

Também na música, certamente, se há-de ter manifestado, desde logo, esse cruzamento de

três continentes: quantos «fados» não terão acompanhado as violas e guitarras achadas nos

despojos do campo de Alcácer Quibir nos dias e meses que antecederam o fatídico último dia da

gesta portuguesa? Quantos fados não terá ouvido Camões dedilhar e cantar no Mal Cozinhado,

que ele frequentava? «O escritor lusitano Luís Moita assegura que o termo fado, posto em

circulação por diversos escritores dos séculos XVI e XVII, foi tão usado pelo poeta Bocage que

acabou por entrar em grande voga» (CAMPOS, 2007). Ora, se posto em circulação o termo, e

pelos despojos de Quibir podemos imaginar porquê, é porque era cantado e acompanhado o fado,

provavelmente, claro, um antepassado do que hoje identificamos como fado, mas «fado». em

todo o caso, conforme o termo que circulava por «diversos escritores» já no século XVI. E se no

século XVI, cá temos o nosso vate a ouvir a dolência do fado, quiçá a fornecer-lhe as letras de

temática amorosa (paixões, ciúmes, posse, ausência), de que ele foi exímio cultor e sofrido

apaixonado, para o cantarem.

E, se assim parece ter sido, não admira que também o fado tenha embarcado nas caravelas

e naus portuguesas dos Descobrimentos e tenha dado origem a tantas formas de expressão

musical por esse mundo fora. «A música brasileira», por exemplo, «é fruto de uma verdadeira

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mistura cultural, tornando-se única. Esta miscigenação musical vem dos índios, portugueses,

espanhóis, franceses, alemães, poloneses e escravos africanos, que desembarcaram em 1538 na

capitania de São Vicente, hoje localizada no estado de São Paulo, atuando de forma definitiva»

(idem). E ainda: «O fado brasileiro, segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, já estaria

divulgado entre o povo quando a corte portuguesa se estabeleceu no Brasil em 1808» e,

devolvendo o que havia recebido, «de acordo, ainda, com Luís Moita, o “fado deve ter sido

batido em Portugal, pela primeira vez, por bolieiros e fidalgos, por ciganos, arrieiros e marujos da

rota do Brasil”.

A miscigenização em todo o seu fulgor. Havia razão, portanto, para as «cores tropicais»

das múltiplas e desvairadas gentes na amálgama da multidão que se aglomerava pelas vielas e

praças da cosmopolita Lisboa ao longo do cortejo real naquele dia soalhento de Junho de 1578.

Uns no vai-vém dos afazeres e obrigações domésticos, outros para fazer mercancia, outros,

simplesmente, levados pela curiosidade, para ver os protagonistas e o fausto do cortejo real.

A pena, a muleta e o jau – Misturado nessa multidão matizada poderia estar o seu escravo

javanês, a contas com o peditório para o Poeta. Se Camões chegou «envelhecido, doente e

pobre», mais envelhecido e doente estava agora, e rico nunca ficou: em 1575 dirige um soneto a

agradecer ao Senhor D. Duarte14

a oferta de vestuário e o pedido de que tal oferta seja

completada com o chapéu e as calças (“Descalço, e sem chapéu Apolo louro”) (SARAIVA, 1995,

p. 251); também em 1580, no provavelmente seu último soneto, ainda Camões anda à procura de

um mecenas, que ele pensava poder encontrar em D. António Pinheiro, bispo de Miranda,

principal confidente e colaborador do rei (Cardeal D. Henrique), único que nas cortes de

Almeirim de Janeiro de 1580 lhe tem acesso e a quem aquele transmite as suas instruções

(“Depois que viu Cibele o corpo humano”) (SARAIVA, 1995, p. 299.)

Se chegou ao Reino pobre, rico não morreu. E o jau que o terá acompanhado nos últimos

meses ou anos da sua vida não o terá trazido, certamente, consigo do Oriente. «Embora

custassem pouco mais do que um carneiro os de medíocre qualidade» e, «no geral», não ficassem

«mais caros do que uma vaca», tanto que «quem voltava a Portugal sem um escravo era o último

14

Condestável do reino, filho de um outro Infante D. Duarte (bastardo de D. João III), acompanhou D. Sebastião a

Tânger em 1574; morreu em 1576 e teria sido o herdeiro do trono, se fosse vivo, por morte de D. Sebastião

(Barroqueiro, cit., p. 633).

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dos miseráveis» (RIBEIRO, cit., p. 98), não me parece que Camões tivesse onde cair morto

[expressão coutiana, muito curiosa, usada na Década VIII (CRUZ, 1994, II, p. 293)] para trazer

consigo um escravo, por muito barato que fosse. Muito provavelmente ter-lhe-á sido oferecido

por um dos seus protectores, apiedado do estado de miséria e degradação física do Poeta, quando

a velhice e a doença se agudizaram e o obrigavam a amparar-se na muleta.

A espada e o escudo de Afonso Henriques – Mas regressemos ao desfile. A cavalgar na frente,

o alferes-mor, D. Luís de Meneses, atravessando o Terreiro do Paço e avançando para o Cais da

Rainha, abrindo com a bandeira caminho a el-rei.

O Desejado, vestido de gala, com veludo carmesim e chapéu de plumas brancas, num

soberbo corcel, ricamente ajaezado, empunhando orgulhosamente a espada e o escudo de D.

Afonso Henriques, mandada vir do túmulo no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, acena à

multidão, com D. António, o Prior do Crato, à sua direita, e à mão esquerda o duque de Aveiro,

seguido de várias centenas de fidalgos, sumptuosamente trajados, com as suas coortes de pajens e

lacaios que lhes transportavam as armas e lhes levavam os cavalos à brida, ricamente ajaezados

de ouro, prata e veludo, e cujas librés ostentam as cores das casas dos seus senhores, por ordem

de qualidade e estado. Demonstrações de vaidade, fatuidade, símbolos de poder. Além da espada

e do escudo do nosso primeiro rei, não conseguiu ele, do tio espanhol Filipe II, que lhe mandasse,

já cerca do campo africano de batalha, o elmo com que o imperador Carlos V, seu avô, entrara

vitorioso em Tunes?

Sim, o povo também gosta de exaltação e exulta e contempla, com assombro e inveja, as

jóias e os trajos dos expedicionários, tudo feito de brocados, telas e sedas, com guarnições de

ouro, prata e preciosa pedraria. Por momentos estoira de riso, ao ver passar o bando de bobos,

anões e chocarreiros que o rei leva consigo para se desenfadar em África, nas pausas dos

combates.

Mas logo se assombra de novo ao olhar os brasões de família com as suas divisas em

latim, donde reverberam as ondas azuis e prata dos Távoras, a águia vermelha dos Aguires, as

flores-de-lis douradas em campo verde dos Motas, os lobos negros dos Lopos, os castelos de ouro

em fundo vermelho dos Mouras, o leão vermelho em campo de prata dos Silvas, os besantes

azuis nos Castros e dourados nos Almeidas e tantos outros...

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Ouvem-se os comentários do povo:

– Mas é esta a fardagem que a nossa gente vai levar para a guerra? Não vejo

cotas, nem armaduras! – diz um.

– Com tais aparatos e superficialidades, cuidarão estes mimosos que nos

esperam bodas ou bailes de corte nos aduares de África? – e outro.

– Até os librés dos seus criados são dez vezes mais ricas do que as nossas

vestimentas. – e outro.

– E os feitios, as mil invenções deles, cada uma mais rara e cara do que as

outras? – observa uma mulher.

– Poucos vão aí que não tenham destruído ou empenhado para toda a vida, assim

como seus filhos e netos, pois venderam casas, herdades, quintas e casais por

dois ceitis, empenharam comendas e morgados, para haverem dinheiro

d‟antemão e poderem fazer esses vestidos tão custosos quanto aí se podem ver. -

um mercador, obviamente conhecedor do assunto, e continuando:

– Alguns fidalgos fretaram naus e galés com descomunal despesa da sua

fazenda e vão carregados de grandes riquezas, mas também de muitas dívidas,

pelo que, na volta (e queira Deus não percam na batalha o seu e o alheio), serão

forçados, para remirem essas dívidas, sobre elas fazerem outras maiores.

Tudo isto faz lembrar aquele delicioso conto de Hans Christian Andersen em que, em

pleno desfile real, o menino grita a verdade: O Rei vai nu! Aqui, a caminho das naus, toda a gente

sabe que o rei vai «nu», só ele é que, impante, rodeado de pompa, circunstância e pretensão, não

se apercebe da fatuidade daquilo tudo. Não estaria o nosso Vate a pensar também em Sebastião,

quando a propósito de D. Fernando I diz «Que um fraco Rei faz fraca a forte gente» (III, 138, 8)?

É que dá-se o caso de D. Fernando ter sido quem, por não ter deixado descendência varonil, deu

origem à crise nacional de 1383-85! E se Actéon pertence à mitologia, D. Fernando era um

verdadeiro rei, e português, parecendo neste caso mais evidente o recado. Mensagem que, é claro,

não chega a quem não lê e muito menos a quem não preza esse seu antecessor dinástico. Pois não

afrontou ele a memória de D. Pedro, em Alcobaça (quando o contrariaram na abertura do

sepulcro, com o pretexto do dano permanente do lavor da pedra), ao dizer: «Deixai-o, então.

Também nada fez senão correr atrás de barregãs». (BARROQUEIRO, id., p. 200). Ora, se isto

disse de D. Pedro I, de D. Fernando não diria nem menos nem de modo diferente.

A pena e o pincel – Até o nosso Poeta, que se faz acompanhar do amigo Fernão Gomes (ou

Hernán Gomez), pintor estremenho «que lhe andava a pintar um retrato na sua oficina da Calçada

do Combro (por encomenda de um misterioso patrono, ou patrona)», não se coíbe de comentar:

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- Achareis rafeiro velho, /que se quer vender por galgo... /Diz que o dinheiro é

fidalgo, /que o sangue todo é vermelho 15

.

Como podes ver, Fernão Gomes, nenhum destes tafuis, mesmo sem meios de

fortuna, quis ficar atrás dos outros em mimos e enfeites!

- En buen hora, que não tenho tido mãos a medir com as encomendas dos

retratos, sea de los galantes guerreros pera que queden en su lugar, sea de suas

amadas para eles levarem a la guerra junto al corazón ou no aconchego das suas

bolsas de veludo e brocado – responde o outro.

Podia ter sido assim, não podia? É assim que Deana Barroqueiro imagina o desfile de

embarque em direcção a África (p. 497 e ss.). Estas reconstituições, não passando de ficção, têm,

contudo, antecedentes históricos, desde pelo menos a época das Descobertas, quando Jerónimo

Osório, ao escrever meio século depois dos acontecimentos (D. Manuel, I, 108), relata na íntegra

o que ele imaginava ter sido o discurso que terá proferido o porta-voz dos mouros junto do

Samorim em Calecute, para o convencer que não teria nenhum proveito em negociar com «estes

hóspedes facinorosos, desalmados, que há pouco aqui chegaram» mas já com «ânsia de

dominar». Esclarece a autora:

Indirectamente, o cronista transmitia dessa forma o que ele próprio pensava, ou

sabia, ter sido dito e pensado por alguma parte da opinião pública do seu tempo.

E, muito provavelmente, também a sua (BRANCO, 2006, pp. 115-16).

Vivendo por ali, «bem conhecido na Mouraria, frequentador das tascas da Ribeira e do

Mal Cozinhado à beira do Tejo, onde há vinho e sardinhas assadas» (COUTO, 2003, p. 166), e

fado, como vimos, Camões não pode ter deixado de ir ver até que ponto havia chegado a

insanidade daquela gente que se atirava irresponsavelmente, impreparada, mal apetrechada, para

a «louca aventura». Terá chegado ao conhecimento do nosso Poeta «a desordem administrativa e

a mais vergonhosa arbitrariedade e relativismo moral» com que «o recrutamento das forças

nacionais portuguesas» havia sido feito? Uma vez que a «corrupção estava tão difundida que

aqueles que pagassem um resgate combinado ficavam livres», terá ele sabido como se havia

«convertido num negócio» tão grande que «só os miseráveis, que não podiam comprar a sua

liberdade, eram obrigados a servir nas fileiras»? (BAÑOS-GARCIA, cit., p. 244).

Cristão-novo como Camões parece ter sido16

, não deve ter gostado do recurso aos

cristãos-novos para financiar a expedição: 240 mil cruzados contra a promulgação de um breve

do papa «em que fosse suprimida, durante um período de dez anos, a confiscação de bens quando

15 Luís de Camões, Disparates seus na Índia (JÚNIOR., R1, VII, 27). 16

Contra, vd. Martim Albuquerque, 1988, p. 89 - 108.

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eles fossem presos pelo Santo Ofício» (idem, p. 222), não obstante, ao que parece, essa vontade

do rei em querer perdoar os cristãos-novos e receber os seus subsídios, irritar e zangar o

Inquisidor geral.

Fernão Gomes (1548-1612), que pinta entre 1573 e 1576 um retrato de Camões

(SERRÃO, 1989; MOURA, 1989), tinha, em 1578, ano em que faz o aportuguesamento

definitivo do seu nome (SERRÃO, id., p. 17), os seus 30 anos.

O que se conhece desse retrato do nosso vate é uma cópia (MARKL, 1974, p. 25 e ss., 39

e ss., SERRÃO, 1989; MOURA, 1989), feita a pedido do 3º duque de Lafões, executada por Luís

José Pereira de Resende (1760-1847) entre 1819 e 1844, a partir do original que foi encontrado

num saco de seda verde nos escombros do incêndio do «magnifico e grandioso palacio dos

Ex.mos Condes da Ericeira, Marqueses de Louriçal, junto da Annunciada» e que entretanto

desapareceu. Vítor Serrão «imagina» «o desenho original transposto em chapa de cobre e

enriquecendo uma das primeiras edições de Os Lusíadas lançadas pelo impressor António

Gonçalves a partir de 1574» e acalenta «o desejo de que venham um dia a ser encontrados, não só

essa perdida edição do poema épico com a gravura impressa sob debuxo de Fernão Gomes, como

também o próprio original do desenho, felizmente reproduzido com a máxima fidelidade por Luís

José Pereira de Resende no segundo quartel do séc. XIX» (id., p. 17). É uma «fidelíssima cópia»

(MOURA, 1989, I, p. 36), que foi posta à venda em 1977 num antiquário do Brasil (SARAIVA,

1995, p. 465) e que, pelas

dimensões restritas do desenho, a textura da sanguínea, criando manchas de

distribuição dos valores, o rigor dos contornos e a definição dos planos

contrastrados, o neutro reticulado que harmoniza o fundo e faz ressaltar o busto

do retratado, o tipo da barra envolvente nos limites da qual corre em baixo a

esclarecedora assinatura, enfim, o aparato simbólico da imagem, captada em

pose de ilustração gráfica de livro,

«se devia destinar à abertura de uma gravura a buril sobre chapa cúprica», «para ilustração de

uma das primeiras edições de Os Lusíadas». (SERRÃO, id., p. 17 e 18). É «o único e precioso

documento fidedigno de que dispomos para conhecer as feições do épico, retratado em vida por

um pintor profissional» (MOURA, id., p. 36).

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Pode ter sido a este retrato 17

, lisonjeiro para o poeta, que Camões, numa das várias

incursões pela pintura 18

, reage com as redondilhas “Retrato vós não sois meu” (R2, VII, 135)

que dizem:

[...] Inda que em vós a arte vença /O que o natural tem dado, /Não fostes bem

retratado, /Que há em vós mais diferença /Que do vivo ao pintado. [...] O que em

mi é principal, /Muito em ambos se enganaram. /Se por mi vos retrataram,

/Retrataram-vos mui mal [...]

O pintor, nascido em Albuquerque, que virá a ser nomeado «pintor régio» por Filipe II

(1594) e é representante do maneirismo em Portugal (da escola de Delft, na oficina de Anthonie

Blocklandt, entre 1570 e 1572), veio muito cedo para o nosso país, «sob o mecenato dos

Vimiosos» e «o retrato deve ter sido encomendado por encomenda de D. Afonso, 2º conde de

Vimioso, na opinião do prof. Gonçalves Rodrigues» (MARKL, cit., p. 38 e 30) ou «outro conde do

mesmo título» (MOURA, cit., p. 38).

Pode ter sido. Mas é associado ao Convento da Anunciada que o pintor está: foi o autor da

pintura do Capítulo do Mosteiro da Anunciada (MARKL, id., p. 26) e de outras, na época em que

ali se fizeram grandes obras, custeadas por D. Joana de Noronha (a segunda com este nome),

filha de Violante de Andrade (a musa de Camões) e conservadora das memórias e antiguidades

17

«O humor amargo de que o autor dá mostras na composição tem sempre presente esse lugar que beneficia, protege,

guarda, é invejado, e que não é pessoalmente o seu. Ora, tudo isto só parece poder aplicar-se a um dos retratos

conhecidos de Camões, o único, aliás, que há a certeza de ter sido feito em sua vida, e que é o desenho de Fernão

Gomes, que, repito, creio não ser anterior a 1573» (MOURA, 1989, p. 47). 18

N‟Os Lusíadas, detectam-se várias descrições de uma obra pictórica, revelando o conhecimento de Luís Vaz em

relação à pintura do seu tempo. A primeira, desde sempre apontada, era a descrição em pormenor de um painel

representando o «Pentecostes» no canto II, estância 11. As outras são as seguintes: a descrição de «Tritão de uma

maneira que nos recorda a arte maneirista do pintor Giuseppe Arcimboldo nas pinturas que executou em Praga, para

a corte imperial de Rudolfo II, entre 1561 e 1587» (canto VI, estâncias 17 e 18) e a descrição que faz, na «verdadeira

visita guiada» de Paulo Gama ao Catual, que no poema representa a «seita de Mafoma», das «figuras de heróis

pintadas em diversas bandeiras expostas no convés da nau, propositadamente engalanada», desde Afonso Henriques

a Fuas Roupinho, passando por Mem Moniz e Geraldo Sem Pavor, até D. Pedro e D. Duarte de Meneses, quase todos

chefes militares e só um rei (canto VII, est. 74 e ss. e canto VIII). É na parte final deste último «que se situa o

momento elevado de crítica camoniana», que «atinge de forma clara os poderosos do seu tempo» e «assinala todos

aqueles cujas obras foram alvo do esquecimento premeditado dos privilegiados do seu tempo: “Outros muitos verias,

que os pintores / Aqui por certo pintariam; /Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores: /Honra, prémio, favor, que as artes

criam, /Culpa dos viciosos sucessores / Que degeneram, certo, e se desviam /Do lustre e do valor dos seus passados,

/Em gostos e vaidades atolados» (VIII, 39). Era um tempo em que os privilegiados, que tinham dinheiro para

encomendar retratos, só estavam interessados em glorificar as próprias obras, suas ou dos antepassados, alcançadas

pela acção das armas. (MARKL, 1980). Vasco Graça MOURA fala também da possibilidade de Camões ter usado,

para «a descrição das novas paragens a que havíamos chegado», «algumas folhas desenhadas pelo cartógrafo Fernão

Vaz Dourado, com «muitas probabilidades» de se terem conhecido pessoalmente «nos círculos cultivados de Goa», e

alude à aproximação que é sempre tentado a fazer entre a cena descrita nas estâncias 77 e 79 do canto X com um

quadro de Ticiano, a alegoria do Marquês de Avalos (...) (2000, p. 69-71)

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da família (SARAIVA, 1995, p. 465). Acresce que, se o que chegou aos dias de hoje foi a cópia

do retrato do vate, a verdade é que o original, conservadas num saco de seda verde com outras

relíquias do vate, «encontrava-se no Palácio da Anunciada, que, na altura em que o retrato foi

executado, estava na posse de Álvaro Peres de Andrade, irmão de Violante, e depois ficou

sempre na família, até que o terramoto de 1755 o destruiu» (idem, ibidem).

A pena e os amos – Ora, em 1570, quando Camões regressa ao Reino, ainda são vivos os seus

antigos amos, D. Francisco de Noronha, que morre em 1573 (com 70 anos) e D. Violante, que

vem a morrer em 17 de Outubro de 1605, com 83 anos (id., p. 439). No amor e no ódio, foram a

única família que Camões afinal teve. E, se de D. Francisco se sabe da sua «vida ascética»,

vivendo «como religioso», fazendo «deserto da corte» e vivendo «no corpo como isento dele», ou

seja, em castidade (História de S. Domingos apud SARAIVA, cit., p. 415), de Violante sabemos

que teve uma «longevidade maternal» até tarde, conjugando mal o ascetismo daquele com a

«prenhada terra» desta... Um dos filhos, Luís, formado em Coimbra em 1593 (portanto nascido já

depois do regresso de Camões ao Reino), e outras duas, Maria e Catarina, nascidas depois dele,

parecem dar razão a Frei Luís de Sousa que dela não gostava e dela nunca faz menção,

parecendo, com o seu eloquente silêncio, condenar os aparentes adultérios de Violante (id., pp.

471, 433). Há inclusivamente na Biblioteca da Ajuda, de sua autoria, uns «apontamentos

genealógicos manuscritos» onde «há uma referência à condessa D. Violante, mas a mesma mão

voltou atrás e riscou condessa. Nem do título a achava merecedora» (id, p. 416)19

.

Camões terá, certamente, contactado ambos. A D. Violante, que ele amou desde a

adolescência, ainda consagrava versos no fim da vida. E a D. Francisco pede perdão: na elegia 6

(R2, IV), escrita em 1573 [provavelmente na Semana Santa, poucos meses antes da morte de D.

Francisco (id., p. 472)], Camões dirige-se ao antigo amo num soneto dedicatório que precede a

elegia “A ti, Senhor, a quem as sacras Musas /nutrem e cibam de poção divina” e pede-lhe perdão

pelo atrevimento do «breve sonho que teve com a filha de D. Francisco» (SARAIVA, 1995, p.

467-68): “daqui peço perdão pelo atrevimento” (v. 13 da dedicatória).

Na elegia, de 349 versos (não contados os do soneto dedicatório), o Poeta, na

interpretação de Saraiva, começa por evocar «os tempos já muito distantes em que conheceu D.

19

Na verdade, na sua História de S. Domingos, há muitas páginas dedicadas ao seu marido e às filhas, mas nem uma

palavra alude à condessa (ap. id., pp. 415-16), que teve 15 filhos, dos quais sete raparigas (id., p. 186 e ss., 423 e ss.).

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Francisco, quando ele ensinava as Ninfas e pastores os caminhos do amor. São reminiscências

dos felizes tempos vividos junto das serenas águas do Mondego [...]». E, nessa divagação pelo

passado, «recorda os momentos mais dramáticos da vida: o regresso de França, a morte trágica da

filha Joana (a primeira desse nome), a morte do filho primogénito nos campos de Ceuta» e, não

menor causa de dor e tristeza, a «incorrigível infidelidade de Violante...» (id., ib.), a sua

«longevidade maternal», com «filhos até tarde» (p. 471):

Se a dor que manifesta e mostra à gente /desta causa procede, mais parece /que

outra pena maior é a que sente, /pois a prenhada terra brota e crece, /de mil

flores enchendo os verdes prados, /e tarda bem o tempo que anoitece (vv.49-54).

Esses os versos com que começa a descrição em que «o mundo parece desabar» (vv.49-

87) (JÚNIOR, 1963, p. 868), no que parece ser a menção do adultério da mulher que traz triste o

destinatário da elegia.

Terá o velho e orgulhoso fidalgo perdoado ao Poeta? Talvez nunca se venha a saber. Mas

a conversão de Camões, pela mão do seu confessor e amigo Manuel Correia, ia fazendo o seu

caminho e o primeiro passo para a redenção é o arrependimento (que pessupõe o reconhecimento

da culpa) e a obtenção do perdão. Se do pedido de perdão deixou rasto na lírica, não menos

deixou do reconhecimento da culpa, como por exemplo na esparsa Ao desconcerto do mundo

(JÚNIOR, R1, VII, 46), onde confessa: “Fui mau, mas fui castigado...” (v.8).

De qualquer forma, não é só o retrato de Camões pintado pelo pintor que relaciona o

Poeta com o convento da Anunciada. Antigo convento de Santo Antão, passou a chamar-se da

Anunciada quando umas freiras (quase todas fidalgas professas) se passaram para essas

instalações e o poderoso tesoureiro-mor Fernão de Álvares de Andrade (pai de Violante), que ali

construiu o seu novo palácio, lhes pagou obras novas. «Em paga, as freiras deram-lhe a capela-

mor da Igreja para se enterrar a ele e a quantos ele quisesse». Aí professou uma das filhas do

tesoureiro-mor e o palácio adjacente passou a ser o solar da família. Tendo passado para o

primogénito Álvaro Peres de Andrade, aí viveu a filha Isabel de Castro e Andrade, relacionada a

Camões pela obra poética e pelo facto de ser sobrinha de Violante. Era também sobrinha de D.

Lionis, o herói de Malaca, amigo de Camões, e casada com D. Fernando de Meneses, a quem o

Poeta dedica um soneto (“Ilustre e digno ramo dos Meneses”), onde o incentiva a dar “nova causa

[o sangue dos turcos] à cor do árabo estreito [Mar Vermelho] /; assim que o roxo mar, daqui em

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diante /o seja só co‟o sangue de Turquia” (SARAIVA, 1995, p. 118, 108; SARAIVA, 1990, p.

281 e 273).

Finalmente, já o dissemos, foi aí que se conservou o original do retrato de Camões, até ao

seu desparecimento em 1755, no solar dos Andrades que, à época do terramoto, pertencia à sua

descendência, aos condes da Ericeira. A actual Rua dos Condes (para onde o palácio tinha virada

a fachada), a Rua das Portas de Santo Antão e o Largo da Anunciada aí estão ainda na toponímia

da cidade como vestígios desse tempo.

Se, pois, o que ficou documentado é que foi o conde de Vimioso quem encomendou o

retrato, a verdade é que, pelo exposto, não pode deixar de ter um peso considerável a ligação

desse retrato de Camões à família da sua antiga ama, a mulher cujos amores traçaram

tragicamente o destino do Poeta.

A espada e o combate – Se em 17 de Agosto de 1574 havia ido para África às escondidas, agora

vai Bastião abertamente para a guerra, apresenta-se impante ao povo, em gesto de afirmação e

desafio. Não, como anos antes, a coberto da dissimulação pueril, quando, sob o pretexto de um

passeio de recreio por mar, embarca em Cascais com amplo séquito, incluindo numerosos nobres,

que ficam estupefactos quando o rei expressa o seu resoluto propósito de desembarcar em África,

algo que não comunicara antes (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 157). Bastião quedava-se ainda,

nessa altura, nos jogos infantis em que fora criado, dissimulando inutilmente factos públicos e

envergonhando a avó com argúcias improcedentes. Quis ir para África, e foi. Esteve em Ceuta,

em Tânger, e depois de muitos apelos de toda a gente para regressar, lá se dignou fazê-lo, mas

contrariado por não ter defrontado a Mourama. Aportou a Lisboa em 30 de Novembro do mesmo

ano, onde veio encontrar uma opinião geral tão adversa da viagem que sentiu necessidade de se

justificar numa «penosa» Relação (id., p. 167) que, como todos os seus escritos (id., p. 230-31),

confusa quanto baste. Mas o seu regresso forçado, como sabemos, não foi uma renúncia, mas um

adiamento.

Se Camões assistiu ao desfile impante para o embarque, em 1578, deve ter

apreensivamente meditado em como um poderoso império fica de repente fragilizado se a cabeça

que o dirige é a de um pretensioso, vaidoso e narcisista, com difusa compreensão da realidade e

ideias confusas, e pode ter dito o que disse a Fernão Gomes, ou bem pior, no romance de Deana

Barroqueiro. Onde pode um fraco rei conduzir a forte gente! Se em 1572 n‟Os Lusíadas era em

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D. Sebastião que pensava quando fala em D. Fernando, agora é em D. Fernando que pensa

quando vê este fraco mas emproado rei atirar-se para o abismo e com ele toda a elite dirigente do

Reino, pensando quão profético havia sido na epopeia.

Bastião, a brincar às guerras, para flautista de Hamelin só lhe faltava a flauta. Talvez por

isso a tenha feito substituir pela espada do nosso primeiro rei. E Camões, provavelmente não

desconhecendo a lenda germânica do séc XIII que os irmãos Grimm haveriam de popularizar três

séculos mais tarde, apoiado na muleta e cofiando a ruiva barba, abanou a cabeça e, ajeitando a

venda do olho vazado, pôs-se a pensar:

Quanta incerta esperança, quanto engano! /Quanto viver de falsos pensamentos,

/Pois todos vão fazer seus fundamentos /Só no mesmo em que está seu próprio

dano! (SARAIVA, 1990, p. 292; JÚNIOR, R2, I, 179)

Mas «nos ouvidos» do impetuoso Capitão de Deus, «quando se afastava de terra para

cumprir os seus sonhos, deviam (antes) ressoar (estoutros) versos de Camões, mas com sabor a

carícia» (BARROQUEIRO, cit, p. 254):

Dareis matéria a nunca ouvido canto. /Comecem a sentir o peso grosso /(Que

pelo mundo todo faça espanto) /De exércitos e feitos singulares /De África as

terras e do Oriente os Mares (I, 15, 5-8).

A pena e o pesar – Ocorrida a Batalha dos Três Reis em 4 de Agosto, o que não terá pensado

Camões quando a notícia da morte do rei chegou com a armada em 24 de Agosto?

Tendo sido amigo de D. Lionis Pereira20

, capitão e governador de Ceuta aquando dos

infaustos acontecimentos, Camões pode ter sabido em pormenor da morte do rei, da localização

do corpo [por um jovem cativo, Sebastião de Resende, “moço de guarda-roupa real”21

], do

transporte do corpo completamente despido para a tenda de Muley Ahmed (coberto com uma

manta de campanha), da presença dos nobres portugueses que estavam prisioneiros (D. Duarte de

Meneses, António Azevedo, Belchior do Amaral, D. Constantino de Bragança, D. Jorge de

Meneses, D. Nuno Mascarenhas e outros), chamados por Ahmed, e do reconhecimento do

cadáver feito por esses fidalgos, tudo isto ainda nas imediações do campo da batalha e perante o

espanto e estupefacção dos seus companheiros de armas; e, depois, do transporte do real cadáver

20

Vd. adiante Pena, livros, ferro e aço. 21

Porquê o moço de guarda-roupa real e não um dos companheiros de armas? É Luís Cabrera de Córdova, destacado

biógrafo de Filipe II, quem nos esclarece: «...e ninguém o afirmou de vista, porque era infâmia onde o seu rei caía

morto, ficar cavaleiro vivo que pudesse referir a perda» (apud BAÑOS-GARCIA, cit., p. 311).

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numas andas 22

, coberto de cal, para Alcácer-Quibir, onde foi enterrado na própria casa do

alcaide, numa cave, na presença de Belchior do Amaral (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 314-15); da

exumação do corpo e cortejo fúnebre até Ceuta, sempre acompanhado de fidalgos portugueses (e

no qual se incorporou o embaixador espanhol em Lisboa, D. João da Silva); da entrega oficial do

corpo, em 10 de Dezembro de 1578, a D. Lionis Pereira, governador da praça de Ceuta, lavrada

em auto assinado por este último, por D. Rodrigo de Meneses e frei Roque do Espírito Santo, em

representação do reino de Portugal e Espanha e pelos quatro fidalgos que tinham acompanhado o

féretro; e, finalmente, do depósito dos restos mortais na capela de S. Tiago da igreja da Trindade

e quase logo trasladados para a capela-mor da Sé da cidade de Ceuta (pp. 321-22). A entrega do

corpo a D. Lionis Pereira é abonada também por Queirós Velloso (D. Sebastião, 3 ed., Lisboa,

Empresa Nacional de Publicidade, 1945, p. 415, apud MOURA, 2000, p. 132n).

Existe, de facto, o auto de entrega oficial do corpo: “Nós, Dom Lionis Pereira, capitão e

governador de Ceuta [...]” (BAÑOS-GARCIA, p. 322). E «o primeiro «boletim de informação»

sobre os acontecimentos é um texto de D. Duarte de Meneses, escrito poucos dias depois, onde se

confirma a morte do rei» (id., p. 369).

Sim, Camões pode ter sabido, pesaroso, nos quase dois anos que lhe restam de vida, pelas

amizades que tinha, pelo ambiente cultural em que se movia, dos detalhes da expedição, uns mais

propalados que outros, como o daquele acto de valentia do garoto de 10 anos, o 6º duque de

Bragança, que, desobedecendo às ordens reais, se meteu a batalhar, foi ferido e feito prisioneiro,

acontecimento que teve retumbância na época23

. Resgatado e retido em Espanha, entrou em

Portugal em 15 de Março de 1580, recebido com grandes festejos e provas de júbilo (SARAIVA,

1990, p. 301), dois meses após a morte do cardeal-rei, quando já se «esperava a decisão dos cinco

governadores sobre quem seria o novo rei de Portugal», e a duquesa de Bragança perfilava-se

para defender o seu direito (p. 477). É a ele que Camões dedica o seu provavelmente último

22

As andas eram as do velho fidalgo Jorge Silva, que teimou em ir na expedição e aí morreu, encontradas entre os

destroços da bagagem; é o mesmo que participava nas discussões teologais em S. Domingos com o revedor de Os

Lusíadas Pe. Bartolomeu Ferreira e que veio a ser por este denunciado por heresia e estar preso no Limoeiro

(SARAIVA, 1995, p. 111-12). No meio dos destroços foi encontrado, também, segundo algumas fontes, numeroso

conjunto de «violas e guitarras», que os portugueses levaram para folgar no intervalo dos combates (BAÑOS-

GARCIA, id., p. 250). 23

A verdade é que D. Teodósio não foi ferido nem entrou na batalha: D. Sebastião obrigou-o a recolher-se no coche

real, muito contrariado e quase choroso. O rei havia-lhe prometido que o deixaria participar na batalha e por isso ele

aparece equipado para a guerra, mas o rei obriga-o a recolher-se. É feito prisioneiro no final da batalha, mas Muley

Ahmed acolhe-o principescamente na sua tenda, como hóspede, e depois entrega-o sem pedir resgate, numa mostra

de generosidade e respeito (informação gentilmente prestada pela escritora-investigadora Deana Barroqueiro).

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soneto Os reinos e os impérios poderosos, pois foi o garoto braganção quem praticou feitos

«maiores que a idade»: «E em vós, grão sucessor e novo herdeiro /do braganção estado, há mil

extremos /iguais ao sangue, e mores que a idade». Nesta tomada de posição «ministra indícios

que permitem supor qual a atitude do Poeta na crise dinástica de 1580»: o partido de D. Catarina

de Bragança (SARAIVA, 1990, p. 302).

Mas os outros detalhes, menos jubilosos, menos propalados mas mais macabros, do fim

do rei e da pátria, terá o Poeta ouvido no círculo de amigos que frequentava; pesaroso não tanto

pelo fim do pobre e triste rei, mas mais por comprovar o triste fim do forte peito lusitano que ele

cantara, a nação portuguesa, esse herói colectivo da sua epopeia, de que D. Sebastião era o caput

reipublicae.

E ter-se-á lembrado, provavelmente, do pensamento de Maquiavel segundo o qual «numa

cidade corrupta, as repúblicas não podem manter-se nem recriar-se», por isso que, para o

desenvolver e se ocupar no seu exílio toscano, o antigo Secretário da Segunda Chancelaria da

República de Florença, usando a «única força que tem ao seu dispor - escrever - e a única forma

como o sabe fazer - a ironia», tendo «a pena» como «sua companhia» e «a necessidade como

única virtude», «terá escrito O Príncipe» e aí, sentindo-se abandonado pela «política que servira»

mas «não o quer», confirma o «essencial da sua filosofia e que faz dele, séculos volvidos, o

mestre observador da arte política: a bondade, a generosidade, a tibieza, o escrúpulo moral são,

na política, instrumentos inúteis» (BARREIROS, 2008).

Se leu O Príncipe (não terá ignorado, pelo menos, a crítica formulada por Jerónimo

Osório, em 1542, contra o paganismo de Maquiavel), Camões terá sido um dos que o entendeu,

embora não partilhando do seu cinismo24

. Com uns 2 ou 3 anos quando Maquiavel morreu (21 de

Junho de 1527), partilhou de um destino semelhante, não obstante «uma diferenciação do mundo

e da vida» e «uma diversidade de espíritos» que os opunham e que separam o «cunho ético» de

Os Lusíadas «da doutrina utilitarista, amoral, de Maquiavel» (ALBUQUERQUE, 1988, p. 202).

Na verdade, para o mesmo autor,

24 Apesar da «possível sombra» (Pedro Calmon), do «paralelismo» (Celso Lafer) ou mesmo de «influência»

(Giacinto Manuppella) de Maquiavel n‟Os Lusíadas, de que nos fala Martim Albuquerque em muito interessante

capítulo de obra sua (1988, p. 179-203), este ilustre Professor assinala a distância que vai da «função social e moral

inconfundível» do cortesão camoniano, citando Sena, e do seu ideal de justiça, ao aventureirismo utilitarista de

Maquiavel (ibidem), rebatendo com credíveis e entusiasmantes argumentos as ideias daqueles autores. Os

argumentos do ilustre Professor são reiterados em obra recentemente dada à estampa (2007, p. 30-50), sublinhando

quanto «é fácil chamar a terreiro versos de Camões ilustrativos de uma concepção política e moral completamente

oposta à de Il Principe» (p. 49).

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se tanto Maquiavel como o nosso Poeta possuíram uma larga cultura clássica, as

experiências foram tão difrentes quanto as suas vidas. [...] Pouco havia de

comum entre a realidade que se resumia na política astuciosa dos pequenos

tiranos da Itália renascentista, e a realidade traduzida numa política missional.

Entre a Itália de Quinhentos e o mundo português dessa época...

Ambos os génios olharam com desgosto a situação das respectivas pátrias, mas,

certamente, a apagada e vil tristeza que fazia sofrer a alma do nosso Poeta nada

tinha de comum com a desgraça da Itália:

«Contigo Italia fallo, já sumersa

Em vicios mil, e de ti mesmo adversa» (ALBUQUERQUE, 2007, p. 34).

Também Maquiavel foi cultor das letras, teve larga cultura clássica, teve por única

companhia a pena, sofreu a penúria, o confinamento, o desemprego e suplica por «qualche cose»

que lhe dê o pão; como ele foi sujeito à prisão e à tortura, aos ferros e correntes, não tendo,

porém, vivido o suficiente para ver dado à estampa a obra que o imortalizou, apenas publicada

em 1532, para logo passar a ser incluída nas sucessivas versões do Index do Livros Proibidos

(BARREIROS, ob. cit.).

Para o nosso Poeta, no seu fim de vida, o fim da pátria adivinhava-se e, com ele, o fim de

uma república de homens sábios e sensíveis, que numa mão tivessem a espada e

na outra a pena», que «pretendiam erguer-se acima das misérias humanas e das

paixões mesquinhas, atingindo a vivência e a fruição das mais altas virtudes e

recompensas destinadas aos que conseguem ascender, por mérito próprio mais

do que pela herança do sangue, à dádiva divina da imortalidade (MONIZ, 2004,

p. 39).

Para Maquiavel, «angustiado por ver a sua Itália dividida em principados, repúblicas,

estados papais, e territórios de potências estrangeiras» (Jorge de Sena apud. BARREIROS), e

desiludido como estava dos estadistas do seu tempo, não se poderia dizer menos nem diferente.

Sofrido o cárcere, lançado ao desprezo, do seu exílio de «pobreza rural» responde com redobrado

desprezo e lança à cara dos seus contemporâneos a sua obra-prima, tornada «paradigma do

cinismo na acção, a mofa uma forma de mentir com a verdade, de confundir o mal que aconselha

com a maldade de que parece mero observador» (idem).

Se Maquiavel nos legou «uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza», de Camões

poderíamos dizer o mesmo, cada um deles traumatizado «por sonhos de glória passada»

(BARREIROS, cit.). Também de Maquiavel se poderia dizer o que foi dito de Camões: «os

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valores que o Poeta defende foram um projecto que pode ter-se frustrado historicamente, mas que

ele, poeticamente, cumpriu» (NÓBREGA, 2003, p. 113).

O sonho de ambos só foi fantasioso para a pátria que cada um amava, mas que cada um

realizou à sua maneira naquilo que nos legou.

A pena e o pasmo – Mas terá sido com pasmo que assistiu, nascido do nacionalismo exacerbado

e inconformismo com a perda da independência, à crença das camadas humildes da população de

que o rei podia estar vivo, algures, prestes a regressar. Em vida pouco popular, na morte

reabilitado e mitificado! Incapaz em vida de se ver coroado imperador de África, depois da morte

metamorfoseado em Monarca mítico de um Império não menos mítico (BESSELAAR, 1987, p.

75). «Nascido da dor, alimentado da esperança, está para a história como a saudade para a poesia

– uma característica indissociável da alma portuguesa» (Oliveira Martins apud COUTO, cit., p.

165). Sebastianismo e messianismo, a crença no regresso do rei legítimo e a fé no papel

messiânico do povo português. As causas são muitas e, se começou nas camadas humildes, logo

alastrou às outras classes da sociedade, que começavam a julgar o domínio estrangeiro

insuportável (BESSELAAR, ib). Tudo, curiosamente, com mais do que provável origem em

rumores nascidos de um episódio anedótico, se assim se pode dizer, bem documentado e ocorrido

na própria noite da batalha (BAÑOS-GARCIA, p. 369). Mas o certo é que houve morte e «parece

que nenhum autor sério a nega, nem sequer a põe em dúvida» (id., p. 311). Mas se a houve no

planos dos factos, não na mente dos lusíadas: Portugal «não morrera, porque o seu símbolo vivo

não morrera também; a sua encarnação histórica conseguira salvar-se, afinal, da desesperação

sanguinosa da batalha perdida» (BRUNO, 1983, p. 127). Felizmente para Portugal e para bem

dos portugueses, nem toda a gente se revê nestas ideias.

Mas, como o descanso «definitivo» do rei insane, em território pátrio, só se dá em Agosto

de 1582, Camões já nada pôde ter presenciado, dito, pensado ou escrito. Nesse ano fez-se a

exumação do corpo e sua trasladação para Portugal: chegado a Faro nas galeras da Sicília, é daí

conduzido com muita pompa até Lisboa, passando por Tavira, Beja, Évora e, finalmente,

recebido em 11 de Dezembro pelo novo rei, D. Filipe I, e toda a corte, no mais rigoroso luto para

assistir às honras fúnebres e depositado numa das capelas laterais do cruzeiro da igreja de Santa

Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos (Baños-Garcia, p. 323).

Camões já não estava vivo e se estivesse, teria preferido não estar. Como escreveu Robért

Brechon (Les Lusiades de Camões, le mythe fondateur du Portugal, Clio 2007), Portugal havia

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caído às mãos dos dois mais encarniçados adversários de sempre: os castelhanos e os mouros.

Seria demasiado para o nosso épico imortal; imortal, sim, porque, não estando vivo, já da

lei da morte se libertara.

O nosso Poeta, para quem o povo português era o protagonista principal de Os Lusíadas,

teve a «premonição da morte moral e política desse povo» «pela corrupção, pela intriga, por toda

a espécie de vícios que verbera nos seus contemporâneos», como contraponto, «em mais do que

um passo da Ilíada», «ao anúncio da morte de Aquiles», numa aproximação analógica entre «a

nação portuguesa, enquanto entidade colectiva, do paradigma de Aquiles, em que avulta a força

heróica como nota característica» (MOURA, 2000, p. 105-6).

Mas terá ele tido, nessa manhã de Junho de 1578, ao olhar para o cortejo real, a

premonição de que o seu «Aquiles colectivo» iria, “experimentando a fúria rara de Marte [que, no

caso dele, cos olhos quis que logo /visse e tocasse o acerbo fruto seu” (Canção X)] encontrar no

campo marroquino a interrupção de séculos de gloriosa história?

Talvez sim, pois entre 1573 e 1576 é como o retrata Fernão Gomes: «uma vaga tristeza,

dir-se-ia que profética da agonia que adivinhava na Pátria que o ignorava, em troca dos sonhos

impossíveis de um rei-cavaleiro» (MARKL, cit., p.42).

5. O ENTORSE MENTAL DA GREI

Nessa manhã de 14 de Junho de 1578, com efeito, já Camões há muito percebera que o

Reino, «submetido aos ditames eclesiásticos da vertente do cristianismo ligada à Igreja Católica

contra-reformista», e em alto risco de ser centripetado para os interesses espanhóis por via de

uma mente régia insana, «sofre o entorse de um bloqueio mental ou, melhor, sofre uma

cristalização da sua evolução histórica». Portugal, que estava na origem do novo mundo, da

Europa civilizada, «mercantilista, liberal, científica e politicamente regalista, prenúncio da futura

soberania dos parlamentos e senados», via-o o Poeta cada vez mais ligado à Igreja Católica

contra-reformista. Sim,

as duas palavras científicas que haviam feito o Portugal dos Descobrimentos –

descobrir e inovar – desaparecem do léxico português, substituídas por outras

duas inspiradas pela Igreja: vigiar e punir (REAL, 2007, pp. 39-40).

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Camões cedo se apercebe de tudo isso. Não admira que, embora não saindo da capital do

Reino, sentindo-se frustrado e desiludido, cada vez mais se imponha um exílio interior. Se, no

Oriente, ele e os seus correlegionários (Diogo do Couto, Luís Franco Correia, Heitor da Silveira,

Garcia de Orta, Gaspar Correia, Tomé Dias Caiado, Gândavo, e outros) já se haviam dado conta

da «podridão espiritual prevalecente na zona oriental do Império», e alguns sobre ela escrevam,

rapidamente Camões perde as ilusões e cedo se apercebe que era do Reino que vinha o exemplo

(Lus., X, 145, 6-8), «...metida /no gosto da cobiça e na rudeza /duma austera, apagada e vil

tristeza».

Espada, caldeirinha e palmatória – Pouco depois da chegada ao Reino (1570), cedo se dá conta

que uma «teocracia pura» se instalara na corte em «colusão entre a espada e a caldeirinha»

(RIBEIRO, 1974, p. 108): o poder está nas mãos dos clérigos, designadamente dos irmãos

Câmaras, ambos jesuítas. Um deles, Martim Gonçalves, de grande ambição política, escrivão da

puridade do Reino desde 1569, era quem detinha o poder. O outro, Luís Gonçalves, foi mandado

vir de Roma, onde era exercia o cargo de assistente de Portugal, Índia e Brasil e de reitor do

Colégio Germânico, para se ocupar da educação e instrução do rei-menino quando este chegasse

à idade de seis anos (BARROQUEIRO, 2007, p. 61). Mas, além de instrutor, foi confessor, tendo

logrado, apesar da fealdade, zarolho e gago, graças ao dom da palavra e da persuasão, obter

«tamanho poderio e influência no espírito e vontade do rei de quinze anos, a ponto de este lhe

confessar os mais íntimos pensamentos ou desejos e quase não dar um passo sem o consultar»

(id., p. 163). Talvez não tivesse diminuto papel nessa influência a «menina dos cinco olhos»,

vinda «de remotos tempos, como no-lo imbuem as passagens dos poetas romanos Juvenal e

Horácio», até há bem poucas décadas ainda em uso, «nos costumes portugueses», desmentindo

«a tão apregoada brandura desses costumes», «como ceptro da nossa ciência e troféu da nossa

bondade», «no regímen da escola primária»; na verdade, Sampaio Bruno dá-nos conta de que,

«quando el-rei D. Sebastião, em sua meninice, vinha à aula de seu preceptor, no próprio paço,

previamente sobre a mesa da lição se colocava, para o mestre e em áspero prol do aluno, uma

palmatória de marfim» (1983, p. 270-71). Apesar disso, quando Luís Gonçalves morreu aos 57

anos (1575), Sebastião, que recebeu a notícia em Évora, ficou numa grande tristeza, encerrando-

se no mosteiro de Nossa Senhora do Espinheiro de 22 a 30 de Março com grande desgosto e

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vestiu-se de luto rigoroso, tendo sido a primeira vez que se viu o rei a chorar em público.

(BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 175-76).

Um outro jesuíta, o padre Amador Rebelo, foi encarregado de iniciar Bastião nos

mistérios da leitura e da escrita desde os seus 6 anos, mester o dele (mestre de leitura) de pouca

procura em Lisboa, «que se contentava com trinta e quatro mestres de leitura e sete mestres de

gramática para toda a população que, por outro lado, podia contar com os florescentes serviços

dos seus duzentos taverneiros». E jesuíta era também Gaspar Maurício, «provido para o lugar de

professor dos moços fidalgos que moravam no Paço e eram da chacotada de el-rei, os

companheiros das suas brincadeiras» (BARROQUEIRO, cit., p. 62-3).

A espada e o nónio – Excepção, diga-se, eram as Matemáticas, aprendidas com Pedro Nunes,

especialista em Astronomia e matemático, a quem se deveu o aperfeiçoamento científico da

navegação marítima. E era com o cosmógrafo-mor, pela prática das Ciências e do xadrês que

Sebastião aprendia o tratado da esfera e outras coisas que não a história das conquistas, as artes

da guerra e da montaria ou altanaria e o subtraía um pouco dos padres devotos que lhe metiam na

cabeça «a cisma da castidade» e o transformavam num «papa-missas», num «beato supersticioso

e visionário, que já aos oito anos comungava e ouvia missa todos os dias, convencido de que só

assim Deus o escolheria para Seu capitão». Órfão de pai antes de nascer e apartado da mãe meses

depois, Pedro Nunes constituiria para o Capitão de Deus uma referência e teria um ascendente

que o reizinho respeitava e ouvia, apesar de tudo (BARROQUEIRO, 2007, pp. 100-02).

Apesar, por exemplo, da intensa devoção e fervor religioso que demonstrava em todos os

actos e no seu dia a dia. A primeira coisa que fazia ao entrar em qualquer lugar era ir à Igreja,

antes de ver as suas acomodações, e não dispensava a missa diária. Uma vez, apanhado em êxtase

místico em frente a um crucifixo pelo aio, limitou-se a responder: “Estava pedindo a Deus que,

assim como a outros príncipes havia concedido vitórias, impérios e monarquias, lhe concedesse a

ele somente o ser seu capitão” (BAÑOS-GARCIA, 2006, p. 68). O Capitão de Deus! Que

pensaria disto o cristão-novo e cientista Pedro Nunes? Aliás, como se sentiria o nosso cientista no

meio de tudo isto? Provavelmente nada disto terá sido alheio à sua decisão de ir para Coimbra,

onde foi professor e morreu em 1578.

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Chegada ao Reino dos primeiros inacianos – A actuação desta «teocracia» nos negócios do

reino ia minando a credibilidade que a Companhia de Jesus havia granjeado em Portugal desde

que aí chegara em 1540.

Os enviados de Inácio de Loyola (Francisco Xavier e Simão Rodrigues), ao

chegarem a Lisboa, seriam certamente os homens certos no momento certo. Por

um lado, representavam um projecto religioso inovador, na sua orgânica, na sua

militância e, sobretudo, na sua erudição livresca. Em oposição à imagem

paradigmática do clérigo português, que fora estigmatizado por alguma literatura

satírica, os jesuítas apresentavam-se como homens de cultura superior e de

robusta formação moral (LOUREIRO, 2007, p. 36).

Deste duo jesuíta, um embarcou para o Oriente em 1541, a bordo de uma das naus da

carreira das Índias desse ano, em direcção à santidade (morreu em 1552, depois de lançar as

bases da primeira experiência intercultural da humanidade), o outro permaneceu em território

português para organizar a província lusitana da Companhia, a primeira a ser fundada. De

sucesso em sucesso, a sua influência foi crescendo até serem convidados em 1551 pelo cardeal

dom Henrique para abrir uma universidade em Évora e, em 1555, D. João III transfere o controlo

do Colégio das Artes, importante estabelecimento de ensino superior em Coimbra, para as suas

mãos; e outros colégios seriam sucessivamente inaugurados no Porto, em Braga, em Bragança,

no Funchal, em Angra do Heroísmo e em Ponta Delgada (idem, p. 37).

À «teocracia» dominicana que havia levado à instauração da Inquisição em 1536 «como

modo oficial de filtrar e eliminar as doutrinas exteriores à oficialidade eclesial católica» (REAL,

2007, p. 51) (que acelerou, aliás, o grande êxodo de cristãos-novos para o Brasil e o Oriente),

havia sucedido uma nova vaga teocrática, desta vez jesuíta, que não se contenta com a sua

«revolução humanística» no ensino (LOUREIRO, 2007, p. 15), na província lusitana e no

Oriente, valendo-se para isso do seu «organismo verdadeiramente multinacional» (id, p. 23), mas

se apossa agora das rédeas da governação:

D. João III isolou o país de qualquer influência externa favorecendo a

Companhia de Jesus e levando a cabo uma política muito estrita de Contra-

Reforma (BAÑOS-GARCIA, cit., p. 341).

Eram realmente tempos em que se fazia a defesa da «cidadela da fé em todos os campos»,

e «a Península não deixaria de fazê-lo também no da política». Não foi por acaso que o

maquiavelismo, como «expressão máxima da política nova, realista e pagã», foi combatido pelas

nações peninsulares, como «bandeira intemporal de um exército que ainda hoje se não desbaratou

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(...). Desse exército faziam parte, «da segunda parte do séc. XVI e por todo o séc. XVII», uma

«legião da rosa-dos-ventos do saber: teólogos, canonistas, filósofos, políticos, juristas,

diplomatas, clérigos, laicos, nobres e plebeus» (BARREIROS, 2008).

Nô-mais! Nô-mais! – Não admira, assim, que rapidamente o nosso Poeta se dê conta de tudo

isso. Tão depressa que em 1572, quando a epopeia é dada à estampa, já lá está a crítica aos

Câmaras que haviam tomado de assalto o poder (VII, est. 85, 5-8):

Nem, Camenas, também cuideis que cante

Quem, com hábito honesto e grave, veio,

Por contentar o Rei, no ofício novo,

A despir e roubar o pobre povo!

A hostilidade à Companhia de Jesus, em geral (VII, 84; IX, 28; X, 119, 150),

«relacionava-se, verosimilmente, com o apoio dos Câmaras à „política tradicional‟ em desfavor

da política nova». Continuando a «repudiar o dilema africanismo ou orientalismo», «admitia a

instrumentalização do primeiro ao serviço do segundo (I, 8 e 15) (DIAS, 1988, p. 83).

E o ódio aos irmãos madeirenses seria tanto que terá mesmo, segundo alguns (J. H.

Saraiva, por exemplo), mencionado «a grande Ilha da Madeira», «mais célebre por nome que

por fama» (Lus., V, 5), como sendo uma forma subliminar de manifestar desagrado pelos

madeirenses que exerceriam a governação do Reino tão mal que de fama nada tinham.

Correcta ou não a interpretação, a verdade é que Camões estava mesmo farto. E é por isso

que grita (Lus., X, 145):

Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Dũa austera, apagada e vil tristeza

Como diz Salgado Júnior,

o Poeta despede-se do seu poema, dizendo-se cansado, não do canto, mas de

cantar a quem o não ouve. E, como não o ouvem, também nada fazem para que

se lhe mantenha aceso o engenho. Não admira: a Pátria „‟está metida no gosto

da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza‟‟.

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Tudo, diz Camões nas estâncias seguintes, apesar de

o Rei só ter vassalos excelentes, que a tudo se sacrificam. Remédio estaria em

libertá-los das rigorosas leis, em favorecê-los e alegrá-los com presença e

afabilidade, em procurar entre eles os que a experiência tornou competentes para

orientar (JÚNIOR, guia interpretativo d‟ Os Lusíadas, pp. 840-1). Et caetera.

6. PENA, EMPENHOS E EMPENOS

Os empenhos de Diogo do Couto – Aquando da chegada em Abril de 1570, lançado o ferro em

Cascais e de quarentena (a peste que grassava a isso levava, por precaução), Diogo do Couto,

escolhido para a missão, despede-se dos seus matalotes e dirige-se para Almeirim, onde estava a

Corte, e é recebido pelo rei, a quem entrega as cartas de que era portador, nos termos do

regimento d‟el-rei, «pera saber novas da Índia» (LOUREIRO, 1998, p. 61 e 284) e donde voltou

com a «cédula de barra franca» (RIBEIRO, II, 1974, p. 105)25

. Na verdade,

Quando algum cavaleiro regressava da Índia e vinha em busca de repouso e

desenfadamento a Almeirim, Sebastião dava-lhe audiência no Paço Real com

todas as honras ou levava-o numa caçada, ansioso por ouvir contar os feitos de

armas dos seus homens no Oriente, as batalhas contra os mouros e gentios, os

sacrifícios e as vitórias dos portugueses (BARROQUEIRO, 2007, p. 106).

Couto conviveu com o Poeta em Goa (MOURA, 1985, p. 71; RAMALHO, 1992, p. 17).

Tendo tornado a conviver com ele durante um ano, em Moçambique e na viagem dali para o

Reino, ouviu dele todos os duros trabalhos por que passou desde que, vindo das «partes da

China», naufragou e foi preso pela perda dos bens «das partes». Por isso, não deve ter silenciado

esses duros trabalhos na entrevista com o rei, a quem também seja provável «tivesse desde logo

solicitado as mercês régias a que se achava com direito após a década de serviço ultramarino»

(LOUREIRO, 1998, p. 61). Também não se terá esquecido de falar ao rei da obra épica que o

Poeta trazia no seu saquitel de vagabundo e a «capitulação» que sobre ele recaía por causa do

«das partes». Se, no pouco tempo que esteve no Reino, teve a preocupação de indagar pelo

25

Couto levaria também consigo a primeira versão redigida do seu Diálogo do soldado prático português, com a

qual pretendia atrair o favor régio para as suas pretensões, no qual mostra ser já um homem sabido e vivido,

preocupado com o Estado da Índia (LOUREIRO, 1998, p. 58). «O manuscrito, contudo, teria desaparecido, não

estando ainda apurado se Diogo do Couto chegou efectivamente a apresentá-lo a el-rei D. Sebastião. Anos mais

tarde, o autor das Décadas haveria de preparar uma segunda e alargada versão desta obra de juventude, mais

complexa e também menos optimista» (id. 58-9).

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Parnaso de Camões, que havia desaparecido, como ele diz, e não o encontrou (CRUZ, 1994, pp.

472-73), é porque não esqueceu Camões.

Depois de ter lido a obra épica do nosso Vate (senão não teria podido cumprir o

prometido ao Poeta de fazer um Comentário aos Lusíadas), só não o levou a termo porque teve

de deitar mãos a encomenda do rei D. Filipe I, “a História da Índia”; isso, portanto, muito mais

tarde, e é ele mesmo que o diz e mais: que ainda chegou a comentar quatro cantos (CRUZ, p.

472; LOUREIRO, 1998, p. 60).

Diogo do Couto, nascido em 1542, filho de „‟pessoas nobres‟‟, cujo pai havia sido criado

do infante D. Luís, entrou com dez anos (1552) ao serviço deste infante, em cuja casa desfrutou

de um ambiente requintado do ponto de vista cultural, «não sendo impossível ter adoptado a

figura do irmão de el-rei D. João III, como modelo de homem de armas que não desdenhava o

cultivo das letras» e teve «por condiscípulo „‟o Senhor D. António‟‟, filho do infante D. Luís»,

futuro Prior do Crato, nas aulas do convento de S. Domingos de Benfica (LOUREIRO, 1998, p.

55-6). Terá ali sido aluno de Frei Bartolomeu dos Mártires (MONIZ, 2004, p. 87n; LOUREIRO,

ob. cit.) e moço de câmara de D. João III antes da partida para o Oriente26

.

Se tudo isto é verdade, parece óbvio ter pertencido à chacotada dos infantes, até ao seu

embarque para a Índia, em 1559, com 17 anos. Ao apresentar-se em Almeirim, ele sente-se,

portanto, no seu meio e, atrevido como era, consciente do seu valor e confiante de si mesmo,

então nos seus 28 anos, não deve ter deixado de falar, na audiência com o rei, de Camões, do

poema épico e das circunstâncias em que o conseguira salvar de um naufrágio que tivera lá pelos

mares da China. Não era a sua missão dar «novas da Índia» a el-rei? Não era ao que ia?

Tendo embarcado para o Oriente em 1559, com os seus 17 anos, já portanto durante a

regência da Rainha D. Catarina (1557-1562), não deve ter deixado de ir apresentar cumprimentos

à Rainha no Palácio de Xabregas 27

nesse ano de 1570, à chegada, ou antes de regressar ao

26

Do círculo intelectual do Infante D. Luís faz parte o humanista D. Jerónimo Osório, secretário da corte, «com um

longo período de estudos no estrangeiro» (LOUREIRO, 2000, p. 447), autor do De Gloria Libriquinque, com «a

primeira informação impressa latina sobre a dimensão cultural» da «civilização chinesa» e onde associa «a novidade

informativa sobra a China à expansão marítima dos portugueses» (BARRETO, 2006, p. 253) e João de Barros, que

desde 1535 reúne em Lisboa a sua colecção de livros e mapas chineses e obtém a ajuda de um letrado chinês para a

compreensão dos mesmos (idem, pp. 253-55). Jerónimo Osório [que em ALBUQUERQUE (1994, II, p. 839) é dado

como nascido e morto em 1506-1586], desaconselhou mais de uma vez D. Sebastião da sua desastrosa aventura

africana (idem). Em LOUREIRO aquelas datas são n. 1514-m.1580 (2000, p. 447e 459 n 14). 27

Foi também neste paço que a Rainha recebeu em Dezembro de 1571 o legado do papa Pio V. «Fruto da vontade de

D. João III no ocaso do seu reinado, as obras para a edificação de um sumptuoso palácio real longe do bulício da

Lisboa cosmopolita e mercadora, que contaram com o desenho e o contributo de Francisco de Holanda, foram

interrompidas com a morte do rei e nunca retomadas», daí a exortação que Holanda, «sempre nostálgico das

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Oriente, no princípio de 1571. Ainda recentemente, quando os meios de comunicação terrestres e

via satélite não eram tão rápidos e cómodos como agora, era assim que se procedia quando

alguém ia daqui, donde escrevo (Macau) a Portugal, não deixando de ir apresentar cumprimentos

ou dar um abraço a velho amigo, ou condiscípulo, ou a quem se devesse vénia, fosse por que

motivo fosse, que não tinha outro propósito senão o de trocar notícias sobre as gentes e os

acontecimentos.

Ora, já aí residia no Paço de Enxobregas o desembargador do Paço Cristóvão Borges, que

em 1567 havia vindo de Mirandela, onde era juiz dos órfãos. Não é improvável que tenha entrado

à fala com o conselheiro régio, a cujas mãos terá sido entregue o pedido de perdão para Camões.

Na verdade, a rapidez com que a obra épica do nosso Vate é publicada faz desconfiar que houve

muitos empenhos para que rapidamente ficasse limpo e livre das acusações com que vinha do

Oriente. Esta ideia também perpassou pela mente da ficcionista-investigadora quando, ao

imaginar a despedida de Diogo do Couto dos seus matalotes, Camões incluído, antes de ir para

Almeirim «a fim de solicitar a el-rei licença para a nau poder entrar no Tejo e nos portos de

Lisboa encerrados por causa da peste», coloca na boca do futuro cronista-mor da Ásia esta deixa:

– Terás de te quedar em Lisboa, apesar da peste, enquanto esperas pelo

julgamento – lembrou Couto, preocupado. – Trataremos de mover influências

para que se faça depressa justiça e te vejas quanto antes absolvido e livre dessas

falsas acusações (BARROQUEIRO, 2007, p. 208).

Absolvido? Ou antes perdoado? Isto o mais provável. Como já foi notado, a rapidez com

que a obra épica do Poeta vai à impressão, inculca a ideia do caso judiciário ter subido ao

Desembargo do Paço e aí ter obtido o perdão. A concessão de perdões vinha em primeiro lugar

no elenco das cartas de privilégio do Desembargo do Paço (HESPANHA, 1982, p. 357), como

mais desenvolvidamente apresentámos (RIBEIRO, 2006; 2007b, p. 56-9), não tendo nada de

excepcional: já em 1553 Camões havia obtido carta de perdão assinada em nome de D. João III

por dois dos desembargadores do Paço pelo desacato do Rossio (JÚNIOR, 1963, p. XLIII).

Mover influências! – este lema, de ontem e hoje, deve ter começado, desde a primeira hora, com

Diogo do Couto: junto do rei e de Cristóvão Borges.

grandezas romanas e ansioso por trazer um pouco de magestade até Lisboa», «fazia a D. Sebastião, justamente em

1571» (BUESCU, 2007, p. 380-81).

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A pena e a balança: o magistrado que sabia! – Cristóvão Borges era magistrado do

Desembargo do Paço, aí terá tido directo conhecimento do caso judiciário de Camões, aonde o

caso subiu e terá sido perdoado (ao abrigo de uma das mais importantes tarefas desse órgão) e, no

Palácio de Xabregas, onde vivia, terá ouvido da boca da Rainha D. Catarina a história do

envolvimento de amores entre as nobres damas Noronha e um seu criado. Não admira que, tendo

compilado poemas do Vate, ainda em sua vida (lançou esse facto no cartapácio exarando: «feito

em lixª nos paços de enxobregas a 24 de dezº de 1578 annos»), tenha epigrafado as redondilhas

Sôbolos rios que vão com a seguinte anotação: De L. de C. a sua perdição na China, numa

possível alusão ao naufrágio no regresso da China mas seguramente ao caso judiciário que o vice-

rei da Índia, D. Antão de Noronha, lhe inventou e que Borges, pelas funções que exercia, não

podia ignorar (RIBEIRO, 2006; 2007b, p. 50 e ss.).

Vasco Graça Moura, muito sagazmente, fez notar que, aparecendo as célebres redondilhas

na parte inicial do manuscrito (vindo em 23º lugar numa compilação que abrange 196

composições), e ocupando de fls. 12 r. a fls. 16 r. num caderno com perto de 110 páginas, fez

notar, dizia, que isso faz recuar a data da transcrição de 1578 bem mais lá para trás, pois um

cancioneiro levava possivelmente meses ou anos a compilar (MOURA, 1985, p. 86-7).

Não importa: Cristóvão Borges estava ao corrente da situação de vida amorosa passada do

Poeta e da sua vida acidentada na China onde se «perdeu». Mas não só.

Amante das letras, mas conselheiro régio, deveria também estar por dentro da trama

tecida em redor da publicação acelerada de Os Lusíadas pelo cardeal D. Henrique, o inquisidor-

geral do Santo Ofício que deu luz verde para o imprimatur da epopeia:

Na verdade, segundo o alvará de privilégio da publicação de Os Lusíadas em

1572, a obra antes de ser posta à venda devia ir à mesa do despacho do

Desembargo do Paço para lhe porem o preço, que devia ser impresso na primeira

folha. Não figurando na capa da 1ª edição da obra qualquer preço, foi ou não a

obra ao D.P.? Pode não ter ido, pois este era presidido, em representação do Rei,

por um dos irmãos Câmara, que detinham efectivamente o poder, numa época

em que o rei, com 18 anos, detestava Lisboa, só pensava em caça e andava

entregue às suas quimeras heróicas. Ora, numa época de luta pelo poder, de um

lado os Câmaras, validos do rei, e do outro, preocupado com o rumo que as

coisas tomavam, o Cardeal D. Henrique, Inquisidor-Geral (que viabiliza a

publicação da obra por isso que ela continha enérgicos e eloquentes protestos

contra os «louvadores» que rodeavam o rei), quem, no D.P. (presidido,

justamente, por desses «louvadores»), se atreveria a deixar correr as estrofes que

injuriavam o seu presidente? (J. Hermano SARAIVA, Vida Ignorada, p. 454 e

ss). Tendo ido ou não à mesa do despacho do D.P., é mais um elo que acentua a

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obrigatoriedade de Cristóvão Borges não poder desconhecer Camões.

(RIBEIRO, 2007b, p. 59, 65n).

Relacionado com as justiças do reino está a circunstância, até hoje inexplicada, da

aparente intimidade do poeta com o mais alto magistrado judicial do país, o regedor das justiças,

conforme se pode ver numas oitavas que ele lhe dirige a interceder por uma D. Catarina que

estava presa no Limoeiro e que ia ser degredada porque se entregara à prostituição por vital

necessidade (“Espírito valeroso, cujo estado /O alto Deus prospere e acrescente, /Regendo o fiel

Reino descansado...”) (JÚNIOR, R2, V). Mas, nesta altura, já a epopeia estaria publicada e

conhecida de espíritos cultos como eram estes magistrados deste tempo, ou seja, já teria iniciado

seu curso e estava consolidada a «reabilitação social» do nosso soldado, escudeiro e vate.

O amado Couto: pedra chave para China, Macau – Mas voltando à interrogação de um tudo-

nada atrás: perdoado ou absolvido, é curioso como houve quem estivesse atento à evidência de

ter havido, necessariamente, alguém a mover influências para acelerar a máquina lenta da justiça

e, sobretudo, que tenha tido a intuição mais do que verosímil de ter sido o próprio Couto o

primeiro a interessar-se por dar esse empurrão.

Couto, o «amado Couto» do soneto com que foi recebido à sua chegada a Moçambique

por Camões; Couto, que mobilizou os fidalgos portugueses que com ele vinham da Índia e se

fintaram para pagar a viagem ao Poeta; Couto, que esteve 1 (um) ano com o Poeta em convívio

contínuo e diário de Abril de 1569 a Abril de 1570; Couto, que já conhecia o Poeta de Goa, onde

terão sido «„‟matalotes muitos tempos de casa e meza‟‟, isto é, que tinham navegado juntos e

partilhado a mesma habitação e as mesmas refeições muitas vezes» (MOURA, 1985, p. 71) e que,

ainda, ao que tudo indica, tenha sido possível que «nalgum dos colégios ou estabelecimentos

religiosos de Goa (jesuítas, dominicanos) tenham frequentado prelecções e/ou estudos que a

apetência cultural de ambos, não obstante a diferença de idades, os faria procurar» (idem, ib.).

Couto, com quem Camões e outros amigos terão vivido modestamente, em Goa, «numa

dessas repúblicas em que [...] era costume associarem-se os reinóis» (RAMALHO, 1992, p. 17).

Couto, a quem o Poeta mostrou o manuscrito de Os Lusíadas e lhe pediu um Comentário

(desaparecido) aos mesmos, de que ainda chegou a fazer a 4 dos cantos. Couto, que é quem nos

dá notícia do Parnaso de Luís de Camões que, obviamente, não deixou de ler. Couto, que nos

conta o que de mais importante há do Poeta relativamente à sua ida à China: que esteve lá como

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provedor dos defuntos, veio de lá com uma moça china, naufragou e se perdeu, mas escaparam

Os Lusíadas (RIBEIRO, 2007b; RIBEIRO, 2008, Labirintos, nº3).

Faz por isso todo o sentido que a movida de influências para aligeirar a carga dos duros

trabalhos do Poeta tenha começado logo à chegada e justamente com Diogo do Couto e, como

disse, muito provavelmente logo nessa primeira audiência com o rei em Almeirim. Uma

excelente intuição da premiada autora. Porque de Diogo do Couto, homem de primor e honra,

que vituperou nas Décadas o egoísmo e a ingratidão, dentre outras misérias dos seus

contemporâneos, não era de esperar outra coisa.

Pena, livros, ferro e aço – E porque falámos de Diogo do Couto e de Macau, é este o local ideal

para falar de um outro personagem que tem também a ver com Camões, com Couto e,

eventualmente, com Macau: D. Lionis Pereira. Mas porque a sua vida, feita de ferro e aço numa

mão, mas de livros na outra, se entrelaça com a de Camões e doutros dois, que também o

conheceram, vamos também abordar a vida dos seguintes homens de letras: Gândavo, o latinista

historiador, e Góis, o humanista guarda-mor do Tombo.

Tri-dedicatário – É a D. Lionis que o nosso Vate dedica duas composições poéticas que, épica à

parte, com a ode dedicada a D. Francisco Coutinho nos Colóquios de Garcia de Orta (Goa, 1563),

são publicadas ainda em sua vida (Lisboa, 1576). E, como salienta António Salgado Júnior (ob.

cit., p. 897), «em idênticas circunstâncias, isto é, nas páginas preliminares dum amigo». Num

caso, nas do amigo Orta, noutro caso nas do amigo Pêro de Magalhães Gândavo, na sua História

da Província Santa Cruz28

. E mais ainda: que das três, logo duas sejam publicadas numa obra

sobre o Brasil, cujo descobrimento «quase não encontrou eco na obra camoniana» (DIAS, 1988,

p. 40) e impressas pela mesma oficina, a de António Gonçalves, que imprimiu a epopeia! E mais:

28 A História figura como o primeiro texto centrado na descrição do Brasil que foi impresso em Portugal, em 1576,

e configura-se como versão revista da compilação de dois textos anteriores, Tratado da terra do Brasil e Tratado da

Província do Brasil que, no entanto, permaneceram inéditos até os séculos XIX e XX, respectivamente» (Júlia

Monnerat BARBOSA, O modo como tínhamos ou víamos: maravilhoso cristão no Brasil embrionário, p. 6), que

pode ser consultado em http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/julia_barbosa.pdf). Vasco Graça

Moura vai mais longe. Perante a «pelo menos duas dezenas de pontos de contacto entre as duas obras», referindo-se

à História de Gândavo e à Crónica do felicíssimo rei D. Manuel, de Damião de Góis (saída em 1566/1567, mas

começada em 1558), encara a hipótese de Gândavo, ao reingressar na Torre do Tombo nos anos que antecederam

1576, ali «ter encontrado os livros e outros elementos de que manifestamente se serviu entre papéis acumulados por

Damião de Góis e por ele deixados na Torre do Tombo quando foi encarcerado em 4 de Abril de 1571» (2000, pp.

125-29).

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que nessa obra não só apareçam os tercetos (RI, IV, 3) e o soneto (RI, 1, 99) dedicados a D.

Lionis pelo Poeta, como seja a própria obra, ela mesma, dedicada ao ilustre fidalgo pelo próprio

autor.

Dum amigo, diz Salgado Júnior, referindo-se aos dois casos, subentendendo o ilustre

Professor que Camões e Gândavo se conheciam. E é, na realidade, em consonância com essa

amizade intuída, e bem, que Gândavo dirige palavras elogiosas ao Poeta na sua História: «vede

as obras do nosso famoso poeta Luís de Camões de cuja fama o tempo nunca triunfará»29

. E di-lo

numa nítida contextura de pertença, de proximidade, de amizade recíproca, que é para onde

aponta aquele «nosso».

Porque se, a D. Lionis, Camões dedica poemas publicados no antelóquio do livro de

Gândavo, e este o próprio livro; e se Gândavo fala de Camões e este daquele em termos de

amizade, não há dúvidas que parece haver aqui uma triangulação de recíproco conhecimento e

amizade. Vemo-los, portanto, associados, um em prosa e o outro em verso, na homenagem e

enaltecimento do herói de Malaca (1568), naquilo que terá sido um «alerta» «para a importância

do saber letrado» nas «tomadas de decisões políticas ajuizadas e prudentes», apresentando D.

Lionis como um «exemplo para autoridades administrativas do Império Ultramarino como um

todo» e sendo convidadas, assim, «à leitura atenta daqueles textos capazes de trazer à vista os

modelos de virtude que compõem o “móvel superior” dos grandes feitos, associados, por sua vez,

aos sucessos militares e às ações bélicas que fazem parte da manutenção e ampliação dos

domínios ultramarinos» (LUZ, 2005, p. 9).

Qual o propósito dessa «associação» encomiasta?

O latinista historiador, por saber a «particular afeição» que D. Lionis tem «às coisas do

engenho» e que, «por esta causa, não será menos aceito o exercício das escrituras que o das

armas».

O Poeta, repetindo o tema das „‟letras e armas‟‟ usado noutros versos, aliás tão caro aos

humanistas italianos desde o séc. XV, mas surgido em Portugal no séc. XVI, assim explicitada na

elegia:

N‟huma mão livros, noutra ferro e aço:

A hua rege e ensina e outra fere

Mais c’o saber se vence que co‟o braço (JÚNIOR, R1, IV, 3).

29 Referindo-se «expressamente ao „‟verso heróico‟‟ e portanto a Os Lusíadas como exemplaridade desse aspecto»,

num contexto de defesa da língua (MOURA, 2000, p. 130).

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Isto é o que eles dizem. Mas terá sido só por isso?

Amizade antiga – Autor, portanto, dessa primeira história do Brasil, natural de Braga e moço da

câmara del-rei, Gândavo parece ter estado no Brasil, embora não se saiba quando (MOURA,

2000, p. 117), mas estaria no Reino no ano da publicação da sua obra (1576), tendo sido nomeado

provedor da fazenda em S. Salvador da Baía nesse mesmo ano por alvará de 29 de Agosto.

Também já estaria no Reino, por essa altura, o próprio fidalgo dedicatário da obra, segundo supõe

Vasco Graça Moura (2000, p. 131). Se já se conheciam, trata-se, pois, de um reencontro dos três,

não só nas páginas da obra publicada mas também na própria Pátria.

D. Lionis é, pois, como se disse, «dado às armas e às letras, sabe arte e estima-a»

(MOURA, 2000, p. 131). E são esses os valores que os outros dois defendem. E se, defendendo

isto, dizem aquilo, é porque o conhecem. A dedicatória da obra é dirigida a D. Lionis «como

quem preza a arte e os feitos militares, à imagem dos grandes chefes da Antiguidade, ou seja, nas

antípodas da situação verberada em Os Lusíadas (V, 92-100)» (idem). Se falam dele e se com ele

se identificam, é porque as suas vidas se cruzaram algures no passado. E se se cruzaram, a algum

feito, graça ou mercê deve o poeta ao fidalgo, para se redobrar em agradecimentos amigos na

obra doutro amigo. Que terá sido?

Os empenhos de D. Lionis – Camões pode ter conhecido D. Lionis Pereira no Oriente muito

cedo, desde praticamente a chegada à Índia de ambos pela mesma época, D. Lionis no tempo de

D. Afonso de Noronha (1550-1554), o Poeta em 1553.

D. Lionis, «fidalgo da casa do rei», é «nomeado capitão de Malaca» por «carta régia de 26

de Fevereiro de 1564» (SANTOS, 1995, p. 103), embora só venha a ocupar o cargo entre 1567 e

157030

, tendo sido D. Diogo de Meneses «o capitão de Malaca entre 1564 e 1567» (THOMAZ,

1964, pp.139-40). Ou seja, por alturas em que Camões sofreu o naufrágio na latitude do Mecom,

30 A razão estará, conforme teve a gentileza de me explicar o Prof. Rui Manuel Loureiro, na circunstância de a

doação do rei ser assinada em Lisboa e, usualmente, dada em mão ao próprio (mas nem sempre); até o beneficiário

tomar posse, passavam às vezes anos e anos; se houvesse outras pessoas a quem tivesse sido concedida antes a

capitania de Malaca, tinha de ir para a fila e esperar pela vaga. Ou seja, digo eu agora, continuava-se a fazer, no

tempo de D. Sebastião, como nos pioneiros tempos de D. Manuel I, em que «as nomeações para diversos lugares de

alguma importância vinham já atribuídos a partir de Lisboa», enfurecendo os governadores: «Tanto D. Francisco de

Almeida como Afonso de Albuquerque depois dele se queixavam de que não se lhes dava a possibilidade de

gratificar alguém no terreno, já que as nomeações vinham todas preordenadas pelo rei» (BRANCO, ob. cit., p. 178).

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em 1564 (ou 1565), conforme defendo (2007b, p 217)31

, já D. Lionis estava nomeado para

Malaca e, como era costume, o rei concedeu-lhe também a capitania-mor de uma viagem à China

(Lisboa, 20 de Fevereiro de 1562, in Registo da Casa da Índia, I, p.169). Embora não tenha ainda

ocupado o cargo, e não se possa portanto extrair daí nenhuma conclusão (por exemplo: terá sido

ele o capitão-mor que proveu o Poeta no insignificante cargo de provedor dos defuntos na viagem

da China, conforme às instruções de 1562 do Vice-rei D. Francisco Coutinho? poderia o Poeta ter

estado por algum tempo em sossego e sob protecção de D. Lionis em Malaca, depois de ter sido

socorrido, ele e os restantes náufragos, trazido para Patane e depois para Malaca?), certificado

fica que D. Lionis já se move indubitavelmente no circuito oriental por onde se move também o

Poeta, perspectivando-se como carta importante no baralho Camões.

Mas D. Lionis, para além de ser capitão indigitado de Malaca, era cunhado de D. Antão

de Noronha, o vice-rei da Índia, justamente o autor do injusto mando executado de que Camões

se queixa no canto X (128, 6) d‟Os Lusíadas. E isto pode ajudar a explicar a expressão do seu

reconhecimento em dois poemas dedicados à mesma pessoa, publicados ainda em vida e na

mesma obra. Ao conde do Redondo agradeceu-lhe o emprego (R1, VII, 12). A D. Manuel de

Portugal o mecenato (R1, III, ode 3). Ao Senhor D. Duarte a oferta de vestuário (vd. supra: A

pena, a muleta e o jau). Camões não era mal agradecido e esta expressão de reconhecimento a D.

Lionis terá de ter uma explicação. Pode ter sido em Goa a intervenção de D. Lionis junto do

cunhado Vice-rei, em favor do poeta-provedor de defuntos caído em desgraça. Quiçá a da

obtenção da liberdade provisória do vate, em Goa, antes da partida para o Reino, ele que era um

dos fidalgos amantes dos livros, ele que não deixaria de saber da epopeia que Luís Vaz trazia em

mãos há anos.

Apesar de ilegítimo, era filho do 3º conde da Feira, D. Manuel Pereira, cuja filha, D. Inês

de Castro, casou com D. Antão de Noronha. A fidalguia e os laços de parentesco davam-lhe o à-

vontade e o acesso necessário ao Vice-rei e garantiam-lhe o sucesso do empenho. Só um parente,

um seu igual, conseguiria de resto pôr paninhos frios na fervura persecutória da família fidalga

contra o antigo criado de D. Francisco de Noronha. Só, de resto, por ser filho ilegítimo do 3º

conde da Feira [família ilustre, que entroncava nas «casas reais de Portugal e de Espanha, sem

esquecer a casa imperial dos Habsburgos» (MOURA. 2000, p. 25)], D. Lionis Pereira não fizesse

31 Vide resumo da tese defendida nas notas finais (nota final nº 2 infra).

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tanto caso da prosápia familiar e se estivesse nas tintas para a solidariedade familiar em volta do

caso Camões.

O certo é que tanto enaltecimento em volta de D. Lionis faz desconfiar que razões fundas

e subjectivas tenham estado por detrás dos textos poéticos em sua homenagem. E, num dos textos

(na elegia), parece ser o próprio Vate a «acordar» o latinista historiador do Brasil (Acorda,

Magalhães...) e a incentivá-lo a honrar o fidalgo com a sua obra, depois de acalorada competição

entre Marte e Apolo, arbitrada por Mercúrio, que acaba por obter dos Deuses do Olimpo a

decisão sobre o dedicatário do seu livro (para o honrar ou... para dele obter favor e o defender de

algum zoilo que ladrasse...). Alguma coisa terá havido, que justificava tanto empenho, agora, do

Poeta, em direcção àquele que, mais que co’o braço, vence c’o saber. D. Antão de Noronha, à

(própria) mão que assinou o papel injusto, na sequência do injusto mando, achava que o devia

mandar cortar e, efectivamente, mandou cortar o antebraço direito depois de morto (sobre o tema

vd. RIBEIRO, 2007b, p. 63, 175-76) e Camões omite-o das suas estrofes32

. A D. Lionis, que

apesar do ferro e aço de uma mão, usa do saber, por sábio e justo, agradece-lhe com rimas em

dobrado. A grande benesse ou graça de D. Lionis terá devido o nosso Vate tanta vénia!... Se a D.

João Pereira (irmão de D. Lionis, mas filho legítimo do Conde da Feira) terá, provavelmente,

devido o nosso aedo o desprovimento em 1564 do insignificante cargo de provedor de defuntos

de Macau (RIBEIRO, 2007b, p. 219-20), ao Leão fidalgo fica a ter de agradecer algo de peso que

o leva a tanta dedicação.

Sendo uma carta do baralho, D. Lionis pode vir a revelar-se, afinal, como mais um trunfo

no jogo Camões e Macau (a par do Desembargador do Paço Cristóvão Borges, do capitão-mor

Pero Barreto Rolim, do Vice-rei D. Francisco Coutinho e do cronista Diogo do Couto, este como

ás do naipe; e deixando, claro, o nosso Épico à parte, no papel misto de joker e trovador: ao fim e

ao cabo, não era ele de origem humilde? não tinha ele deficiência física? não era ele autor de

versos? não disse ele sempre o que quis, com superioridade, ironia, inteligência, atrevimento, ao

rei, aos senhores e ao povo? não diz ele a verdade no canto X, 131? não diz ele aí, para quem o

quer ouvir, até onde chegou e donde nunca passou?).

32 Com o silêncio, vota-o ao desprezo e a outros do tronco dos Noronhas. Quando os critica, é através do elogio

doutrem que, por contraste, realce o silêncio sobre eles, como por exemplo parece acontecer no soneto Que vençais

no Oriente tantos reis, escrito em 1577, consagrado a D. Luís de Ataíde, que, pela segunda vez, nesse ano, foi

nomeado vice-rei da Índia, em substituição de D. Antão de Noronha, a quem seja possível que, no v. 2, por contraste,

haja uma crítica ao anterior ou anteriores governadores (SARAIVA, 1990, p. 277). Não dizia Píndaro, o mais ilustre

dos poetas líricos gregos, que, muitas vezes, se diz melhor calando do que falando em demasia?

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Porque, recorde-se, há outros elos entre D. Lionis e Camões, como o facto de o Leão

fidalgo ser tio de Isabel de Castro e esta estar relacionada com o Vate não só pela obra poética 33

como pelo facto de ser sobrinha de Violante (SARAIVA, 1990, p. 281); além disso estava casada

com D. Fernando de Meneses, filho do vice-rei D. Afonso de Noronha (1550-1554), a quem o

Poeta dedica um soneto, incitando-o ao combate ao Turco (v. supra A pena e os amos).

As encruzilhadas da vida – Quanto a Gândavo, ter-se-á encontrado com o Épico (e Diogo do

Couto) na ilha de Moçambique, senão já antes, na Índia, em 1567. Mas se esteve na Índia, ter-se-

á encontrado também com D. Lionis, que por ali andou desde o tempo do Vice-rei D. Afonso de

Noronha (1550-1554), o que, recorde-se, fornece-nos mais um elo entre D. Lionis e Camões, que

chegou à Índia portuguesa em 1553 e aumenta as probabilidades de aí se terem conhecido desde

cedo.

Mas, imbrincado na vida de D. Lionis está também o humanista e Guarda-mor da Torre

do Tombo Damião de Góis. Na verdade, este terá estado envolvido, como intermediário, entre

1529 e 1534, nas encomendas, junto do artista flamengo Simão Bening, das «jóias da iluminura

portuguesa» que constituem as Genealogias do Infante D. Fernando (irmão de D. João III) e do 3º

conde da Feira, D. Manuel Pereira, justamente o pai de D. Lionis (MOURA, 2000, pp. 9-29).

Góis quase de certeza conheceu D. Lionis e teve a sua vida cruzada com a de Camões e Gândavo.

Na verdade, Gândavo «(re)ingressa na Torre do Tombo, em princípios da década de 1570»

(id., p. 129), sendo aí copista, onde veio reencontrar Damião de Góis, que desde 1570 era de novo

Guarda-Mor da Torre do Tombo (id., p. 129), como já o tinha sido a partir de 1548

(ALBUQUERQUE, I, 1994, p. 466). Fica explicado porque, quando Góis é preso (1571), é

Gândavo que se virá a «ocupar do treslado de papéis do serviço do rei a que alude o alvará de

1576 (...)» e que virá a utilizar na sua Historia.

Também Camões, se frequentou a Torre do Tombo antes de ir para o Oriente, com alguma

33 Primeira mulher portuguesa a defender teses doutorais (de Filosofia), no convento do Varatojo, diante dos padres

Mestres que lá se reuniram para a examinar. Poetisa de renome, autora de muitos versos que, diz Barbosa Machado,

fariam um bom volume, que viriam a ser inteiramente consumidos pelo fogo no incêndio do palácio dos condes de

Ericeira, em 1755. Entre as raras relíquias que se salvaram (para além da cópia do quadro de Camões executado por

Fernão Gomes, como se referiu), figura um curioso soneto, gravado no frontispício da parede exterior da capela,

transcrito pelo autor da Biblioteca Lusitana, para cujo balanço rítmico Faria e Sousa aponta a semelhança com a

lição de Camões, indo ao ponto de atribuir ao grande poeta a autoria dos sonetos que correm em nome de Isabel de

Castro; a qual, por sua vez, há indícios que autorizam a suspeita de se tratar da famosa Beliza da lírica camoniana

(SARAIVA, 1995, p 118-120).

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assiduidade, nos anos 1541/2-1552, e aí feito traslados das Crónicas do Reino 34

que veio a usar

na epopeia, como sugere Vasco Graça Moura (ib., p. 129-31 e 139-40), conheceu o humanista,

Góis, e aí se contactaram. Obviamente, se nessa época Gândavo já aí trabalhava, também com ele

não deixou de contactar, e o posterior encontro, no Oriente ou em Moçambique, não passa de um

reencontro.

Pena e «lápis azul»: os empenos de Bartolomeu Ferreira – Aludimos já à terrível lei de D.

Sebastião de 26 de Junho de 1571 «sobre os livros de hereges & defesos». Esta lei, que traz a

marca dos dois jesuítas no poder, na linha, pois, das «práticas vigilantes» que levava a Sociedade

de Jesus a «adaptar, reescrever ou expurgar» os textos e leituras de acordo com os seus

«propósitos apostólicos»35

(LOUREIRO, 2007, p. 21), cominava

penas de morte e confisco para autores e encobridores dos crimes de impressão,

transporte, importação, venda, empréstimo, leitura ou simples posse dos livros

reputados heréticos, desde que essa característica lhes fosse conhecida, e penas

mais „suaves‟, como o degredo por cinco anos para o Brasil e a África,

acompanhado de confisco para os casos de detenção ou leitura, sem licença

escrita, de livros não heréticos mas defesos (apud MOURA, 1985, p. 89).

34

Referimo-nos a isto em detalhe em RIBEIRO, 2007b, p. 222-24 e, com citação deste, em RIBEIRO, 2008. 35

Em todo o caso, numa linha mais geral, dimanada do Vaticano, pelo menos a partir de Paulo IV, «que procedeu à

reorganização do Tribunal do Santo Ofício, incumbido da polícia de fé do combate às heresias, criando a

Congregação da Sacra Romana e Universal Inquisição: lançou o Index dos Livros Proibidos, por decreto de 30 de de

Dezembro de 1558» e, mais tarde, em 1564, com o Concílio de Trento, «foi elaborado um segundo catálogo de livros

proibidos [...]” (BARREIROS, 2008). Em 1571, ou seja, no mesmo ano da Lei de D. Sebastião, é publicado novo

Index Librorum Prohibitorum.

Em 1576, Giordano Bruno, devido a um processo religioso que lhe foi intentado por ler autores proibidos, fugiu do

mosteiro e abandona a Ordem dos Dominicanos por oposição à ortodoxia escolástica que ainda preponderava no seu

tempo; como se sabe, O homem de fogo não haveria, em 1600, de conseguir escapar às labaredas do fogo

purificador; nada demais, foi só mais um, dos quinhentos heréticos italianos, defensores da filosofia da luz que, no

séc. XVI, a Inquisição condenou à fogueira. Mas que um! Das labaredas do Campo dei Fiori, em Roma, «regressou

necessariamente o raio ao centro de luz» e, «ao torná-lo num mártir, a Igreja provocou paradoxalmente o triunfo das

teorias que combatia mais duramente» (Francesca Y. Caroutch, Ésquilo, 2004), podendo dizer-se dele que, tendo

vivido fogosamente, a sua morte pelo fogo ateou o fogo das suas ideias.

Mas a tentativa de cortar cerce a «raiz ao pensamento» já vem do fundo dos tempos. Artur WARDEGA, falando da

experiência na sua Polónia natal para trás da Cortina de Ferro, diz-nos: «It was obvious that the regime required all

of us to live without recourse to reading, completely oblivious to creative or vital thinking, wich was available only

to select few. In place of introspection the regime had imposed the word of authority, bereft of any real doubt or

silence; it had given totalitarian expression to a categorical message, one that deafened our inner ears» e, em pé de

página, recorda-nos: «We should recall briefly a few dates from the history of humankind relating to the martyrdom

of reading. In Athens, round about 411 BC, the works of Protagoras were burned. In 213 BC, the Emperor of China,

Qin Shi Huangdi, ordered the burning of all the classical books in his kingdom. In about 168 BC, the uprising of the

Maccabees destroyed the Jewish library of Jerusalem. In 303 AD, Diocletian, condemned all Christians to the stake.

The list might be extended much further» (2007, p. 77-8). Não há dúvidas de que a liberdade nunca é um dado

adquirido, antes resultado de uma luta ou vigilância contínua.

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«O medo à cultura era o medo à mudança por parte dos estratos eclesiásticos e civis

hegemónicos» (DIAS, 1988, p. 17).

Ora Camões, chegado ao Reino em Abril de 1570, e desembaraçado judiciariamente da

«capitulação» com que vinha da Índia, muito passo deve ter dado em direcção à Mesa Censória

até que conseguisse a licença para a impressão e divulgação da sua obra épica, que em Setembro

de 1571 já está na impressão [o alvará de el-rei é de 24 desse mês e ano e o lançamento de 12 de

Março de 1572] (PIMPÃO, 2002).

Um espanto de rapidez, como vários autores anotam. E tanto quanto por essa altura, pelo

menos um outro, Francisco de Holanda, «homem do círculo, altamente condenado, de Vittoria

Colona e Miguel Ângelo», vê o seu livro Da Fabrica que Falece ha Cidade de Lysboa, dedicado

a D. Sebastião e também acabado em 1571, só cinco anos depois com o parecer favorável da

Inquisição, pelo punho, claro, de Frei Bartolomeu Ferreira. Favorável, sim, mas com restrições,

insuficiente portanto para a publicação, que só virá a acontecer no século XX (MARKL, cit., p.

13, 22-23).

Aquilino Ribeiro descreve com mestria os recontros conjecturais do Poeta com o revedor,

o Pe. Bartolomeu Ferreira, na sua luta verso a verso pela integridade dos Lusíadas (II, 1974,

capítulos VIII e IX):

A poder de rasuras, de rectificações, de corrigendas, o trabalho de censura lá ia

avançando, contemporizando e fazendo-se mútuas concessões, à transigência de

um correspondendo a transigência do outro. Em última análise, quem pagava les

pots cassés era Luís de Camões, isto é, a epopeia (p. 133-34).

Umas vezes, «o dedo reboludo do teólogo, com a polpa remolhada de cuspo, está à vista.

Foi ele o vândalo...» (id., p. 144). E ainda: «onde é manifesta a mão sectária do padre é depois da

Ilha dos Amores» (p. 142). Provavelmente recebera ordens para licenciar o Poema, como

dissemos, mas, ainda assim,

poderia ter mandado reduzir a cinzas o manuscrito, e não o fez; podia ter

esfrangalhado estância por estância, e a grande maioria delas, a nosso ver,

deixou-as intactas [...]; podia riscar toda essa écloga voluptuosa da Ilha dos

Amores, e tolerou-a mediante uma declaração tão pueril como deslocada e a

troco da lenda inepta de S. Tomé Apóstolo. Temos que lhe agradecer não o que

fez, que foi péssimo, mas o que deixou de fazer, e podia ter feito... (id., p. 134).

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Bom, em assim sendo, mesmo descontando o facto de o recurso à alegoria pelo autor não

ser impedido pelo «austero espírito da Contra-Reforma, então reinante entre nós» (MARKL,

1973, p. 55) «à condition que la verité qu‟elle communiquait fut en strict accord avec les dogmes

de l‟ Église» (Anthony Blunt no seu livro fundamental La théorie des arts en Italie de 1450 à

1600 apud MARKL, ibidem), não posso deixar de seguir o impulso de agradecer mentalmente ao

Pe. Bartolomeu por essa sua atitude tão indulgente. Indulgência que poderá radicar na

circunstância de revedor e poeta participarem nas mesmas aulas de Teologia Moral em S.

Domingos; talvez o nosso vate não participasse, apenas as «frequentava», como que em

«catequese»; ou «assistia», como prefere Deana BARROQUEIRO (cit., p. 221); era aí, com

efeito, que se reuniam, entre outros, o irmão de Violante (Dr. Diogo Paiva de Andrade), o velho

fidalgo Jorge Silva e o Pe. Bartolomeu Ferreira. Sabe-se, por exemplo, que um dos temas ali

discutidos era o valor espiritual do culto da Paixão de Cristo, assunto que nos últimos anos se

tornou tema predilecto de Camões (v.g. elegias “Se quando contemplamos as secretas e Divino,

almo Pastor”) (SARAIVA, cit., p. 444).

Obrigado, também a ti, Pe. Manuel Correia, por teres apresentado ao censor o teu amigo

Luís Vaz, facto perfeitamente verosímil, sendo Manuel Correia cura da Igreja de S. Sebastião da

Mouraria, muito provavelmente seu confessor e da família e, se não seu confessor, vizinho (II, p.

49), que «se prevalece da intimidade com o poeta» e a quem este terá solicitado (também a ele,

sim) um Comentário aos Lusíadas (I, p. 67 ss.; II, pp. 248-49).

Agradecimento a eles, já que a D. Manuel de Portugal agradeceu o próprio bardo o que

parece ter sido, para autores como Maria de Lurdes Saraiva e Vasco Graça Moura, a ajuda para a

publicação do poema épico (ode “A quem darão de Pindo as moradoras”, JÚNIOR, R1, III, 3).

A pena e a cruz: os empenhos de Manuel Correia – Bartolomeu Ferreira, qualificador do

Santo Ofício, Manuel Correia, examinador sinodial, dois altos funcionários da Igreja, terá sido

difícil numa cidade como Lisboa não se conhecerem (II, p. 115).

Aquele, no ofício desde 1571, de família abastada e abastado, não admira que tivesse,

segundo André Falcão de Resende, uma vasta biblioteca (II, p. 116) e tinha-se, ademais, por

homem douto e superior e um portento em humanidades (II, p. 122). O seu zelo de revedor foi

requintando à medida que aquecia o lugar, e aqueceu durante muitos anos. Estava portanto a

iniciar funções quando pegou nos Lusíadas para o censurar.

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Este, o Pe. Manuel Correia, bem mais velho que o dominicano, versado em línguas

clássicas, tradutor de fama, veio a ser o comentador da edição da epopeia de 1613 e terá colhido

«da boca do poeta a interpretação de passagens dos Lusíadas, as quais sem essa luz viva ficariam

para sempre equívocas e sibilinas» (I, p. 68). Contudo, discreto e «de poucas falas», «terá calado

onde poderia ter deixado evidência» mas, em algumas passagens, é justamente o seu silêncio por

demais revelador, como no caso da referência à Universidade de Coimbra (o valeroso ofício de

Minerva) (Lus., III, 97), cuja glosa não lhe suscitou «trazer à colação Camões, dado que tivesse

sido estudante da Universidade», o que equivale a «falar na Capela Sistina e não nomear Miguel

Ângelo» (I, p. 68 e ss.). Ou seja, para Aquilino a omissão é por demais óbvia: Camões nunca

passou pela Universidade de Coimbra.

A reconstituição conjectural do encontro do épico com o censor da obra mater das letras

portuguesas é um dos momentos altos da obra em dois volumes Luís de Camões, que dá vontade

de ler e reler e que permite perceber porque é Aquilino um mestre das letras portuguesas, autor

não só de romances mas de biografias e crónicas, de ensaios históricos e críticas literárias, de

memórias e cadernos de viagem, sem esquecer o lado de tradutor, nomeadamente de Cervantes

(D. Quixote e Novelas Exemplares), não ficando a sua biografia do vate atrás dos seus outros

retratos biográficos, como O Romance de Camilo ou mesmo do do seu Frei Bartolomeu dos

Mártires.

Bartolomeu Ferreira começou a exercer o ofício de revedor, como disse, em 1571. A lei é

do mesmo ano. Assim sendo, a epopeia começou rapidamente a ser revista por aquele, visto que

já em 24 de Setembro desse ano estava licenciada. Que ligação haverá entre tudo isso? Qual a

relação, a interação, entre revedor no ofício novo, lei da censura e o poema épico de Camões?

Mesmo havendo luz verde do Cardeal D. Henrique para deixar passar a obra, sabemos que ela foi

censurada (reformulada, emendada, rasurada).

O Pe. Manuel Correia pode, efectivamente, ter sido mais um dos amigos de Camões a

mover por ele empenhos. É ele (e Luís Franco Correia) quem nos dá testemunho no seu

Comentário que Camões frequentava o Mosteiro de S. Domingos e Faria e Sousa que o poeta,

«arrimado a uma muleta, ia ouvir a lição de teologia moral, que todos os dias davam no Convento

de S. Domingos, sentado entre os escolares» (RIBEIRO, 1974, II, p. 122), podendo «conjecturar-

se com relativa segurança que o poeta» tomasse «parte em reflexões sobre as coisas»

relacionadas com os «vários processos contra espirituais e místicos da capital» ou «as que foram

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o objecto de denúncia de Jorge Silva ou a vivência religiosa advogada pelo autor do Guia de

Pecadores e a importância por ele atribuída à leitura dos textos sagrados» (MOURA, 1985, p.

91). Também Silva aceita a hipótese, adiantando:

A ortodoxia tridentina [...] exaltava a piedade e a vida religiosa fundadas na

Graça, no amor a Deus, na fé cristológica, na vontade ascética e não no

conhecimento proporcionado pelo intelecto. O naufrágio da razão não era

trágico, porque conduzia ao porto do fideísmo, de que o próprio Erasmo fora um

dos mais influentes advogados (1994, p. 237-38).

Provavelmente terá sido pela mão de Manuel Correia que se iniciou a conversão de

Camões. Amigo e confessor da família, vendo-o doente e frustrado, leva-o para a catequese de S.

Domingos, onde é acolhido e começa a sua caminhada salvífica. Uma coisa leva à outra e terá

tido a liberdade de frequentar a biblioteca do Convento36

.

Correia, cedo reconhecendo o talento do filho da sua velha amiga e paroquiante, leva-o ao

recém-empossado revedor, o qual, soprado de prosápia literária e empáfia pelo ofício novo, mais

novo e provavelmente com vontade de agradar ao mais velho, não esquece também as instruções

que terá recebido do Inquisidor-Geral, apostado em morder as canelas aos Câmaras.

Provavelmente tê-los-á introduzido um ao outro na aula teologal de S. Domingos. O revedor, já

de olho regalado às voltas com Os Lusíadas e com curiosidade de o conhecer pessoalmente;

Camões, interessado em obter bom despacho à epopeia, não deve ter feito nenhuma resistência e

deixou-se conduzir pelo seu orientador espiritual: parte de si mesmo havia ficado espalhada pelo

mundo, de tanto “a Fortuna o trazer peregrinando” (Lus., VII, 79), como ele diz: “Por que ficasse

a vida /Pelo Mundo em pedaços repartida” (JÚNIOR, R1, II, 5). Vinha, portanto, fragilizado. E

«desde que aportara a Lisboa se fizera muito amigo dos frades de S. Domingos para lhe deixarem

passar o poema por limpo e santo, e não suspeitarem dele», segundo Luís Franco Correia, seu

amigo, que com ele e Fernão Mendes Pinto costumava encontrar-se numa «taberna que havia ao

fundo da rua em que morava e o visitei muitas vezes» (COELHO, 1980, p. 35).

36

António Borges COELHO (1980) alude à hipótese de Camões ter «aprendido as primeiras letras numa das 40

escolas lisboetas de ensinar meninos» e de «a familiaridade, no final da vida, com os frades da Ordem de S.

Domingos», favorecer a hipótese de o poeta ter estudado no Colégio desta Ordem, como aconteceria mais tarde com

Diogo do Couto». Não é impossível, dado que só em 1534, com 9 ou 10 anos, Luís Vaz terá ido trabalhar para casa

de D. Francisco de Noronha e de sua mulher D. Violante de Andrade, filha de Fernão d‟Álvares de Andrade, o

poderoso tesoureiro-mor e valido de D. João III, acabados de se casar e que se vêm a fixar, logo a seguir, em São

Martinho do Bispo, sobre o Mondego. E é possível, mesmo que tenha nascido em Chaves de Tâmega, como é

defendido pelo brigadeiro Calvão Borges, pois pode ter vindo cedo para Lisboa a tempo de aí frequentar as primeiras

letras.

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Quando Manuel Correia, a propósito das oitavas do episódio da ilha dos Amores, refere

nos seus Comentários que o poeta as emendou «por conselho dos religiosos de S. Domingos

desta Cidade, com quem tinha grande familiaridade», «fala nos religiosos e não no revedor em

particular», «mas é com Frei Bartolomeu que entende a observação...» (RIBEIRO, 1974, II, p.

124). Claro, faz sentido: o revedor era justamente um desses religiosos.

Frei Bartolomeu, entre o pendor para corrigir tudo o que fosse para além do cânone

doutrinal e o «regalo» com que terá começado a ler a obra literária, terá muitas vezes balanceado

entre a indulgência e a rigidez e, dessa «luta verso a verso entre o poeta e o censor», saiu à

estampa a edição de 1572.

Como já disse, idêntico regalo tem também o leitor moderno em acompanhar Aquilino no

desenho que traça desta luta do poeta pela integridade do Poema épico.

7. EPÍLOGO

A pena e a foice – Com a notícia da morte de D. Sebastião chegada ao Reino e o aproximar do

fim dos seus dias, Camões vê todos os seus piores pesadelos cumprirem-se. Não se cumpria

Portugal nem a res publica por que ele e os seus correlegionários haviam terçado armas, a da

supremacia do saber sobre o poder, da liberdade sobre as convenções. Trento (1545-1563) havia

vencido 37

. Os valores que o poeta defendia, que ele, apesar de tudo, poeticamente cumpriu, eram

um projecto historicamente frustrado (NÓBREGA, 2003, p.113).

E, como se isso não bastasse, via avizinhar-se a perspectiva mais tenebrosa dos seus

pesadelos: a união de Portugal à Coroa espanhola, por via de «um casamento de Espanha».

(RAMALHO, 1980, p. 118). Em 1380 a independência esteve em risco por causa de um

casamento de sangue real. Em 1580 parecia que a história se repetia. Com a chegada ao Reino em

Março de 1580 do «braganção» menino, nessa altura já com 12 anos, recebido festivamente em

Portugal como herói, sobrevivente de Alcácer-Quibir, Camões alinha no júbilo e, com isso,

parece dar a sua adesão ao partido da duquesa de Bragança, na luta desenfreada por esse “Alto

Império onde o Sol, logo em nascendo, vê primeiro; /Vê-o também no meio Hemisfério; /E,

quando desce, o deixa derradeiro” (Lus., I, 8).

37

A Contra-Reforma (que não a simples Reforma Católica) detinha, na verdade, o poder, tanto na sociedade política

como na sociedade civil, desde 1560-1565, mas consolidou duradoiramente a sua implantação vertical e horizontal

em todo o país com a subida de D. Sebastião ao trono (DIAS, 1988, p. 16).

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Alto Império cuja medida orgulhosa os versos de Camões justamente nos davam, talvez

pela primeira vez, na literatura: o de um império onde nunca se punha o Sol, depois tão glosado

pelos encomiastas da Monarquia filipina (SALDANHA, 1997, pp. 286-87).

Mas ele já cá não estaria para ver. Em 10 de Junho de 1580 morre nos braços da velhinha

sua mãe, «que ainda braços teria para o aconchegar ao peito e olhos para lhe ungir o rosto com

derrame de lágrimas amorosamente vertidas». (JÚNIOR, 1963, p. LV). Também já cá não estará

para se escandalizar com a notícia de, em Goa, nesse mesmo ano, terem sido desenterradas e

queimadas em auto de fé as ossadas do seu amigo e correlegionário Garcia de Orta, depois de o

Santo Ofício o ter condenado post-mortem pelo crime de judaísmo (HUE, 2006).

Em 1581, nas cortes de Tomar, Filipe II de Espanha, neto de D. Manuel I, é reconhecido

como rei de Portugal, com o nome de Filipe I, pondo fim à «longa crise dinástica» que, «sem que

verdadeiramente se soubesse», se iniciara no «funesto mês de Janeiro de 1540» com o processo e

as negociações secretas que haviam de conduzir ao casamento da infanta D. Maria com o

príncipe das Astúrias, futuro Filipe II de Espanha (e I de Portugal) e o do irmão, o príncipe D.

João com a princesa espanhola D. Joana (futuros pais de D. Sebastião) 38

. A partir do facto

consumado da união das coroas ibéricas, nunca mais, em Portugal, saiu da boca do povo o

aforismo: „de Espanha nem bom vento nem bom casamento”.

Notas suplementares finais:

1). O contrato de esponsais de Violante de Andrade com D. Francisco de Noronha foi assinado em

1530 (tinha ela 8 anos) e o casamento celebrado em 1534 (12 anos). Deana Barroqueiro, ob. cit., p. 167,

aborda isso na fala de uma das personagens, a propósito do casamento planeado de Isabel de Valois (de

treze anos), com D. Carlos, o herdeiro de Filipe II, que este a tomou para si (apesar dos seus 31 anos), em

vez de a deixar para o filho, tal como o nosso rei D. Manuel havia feito ao filho, príncipe herdeiro e futuro

D. João III, com a princesa D. Leonor, irmã de Carlos V. A fala é esta: «Gostam delas tenrinhas! Isabel

era ainda tão criança que Filipe teve de esperar que lhe aparecessem as regras para consumar o

matrimónio».

As regras! Ora aí está: por isso eram frequentes as bodas celebrarem-se a partir dos 12 anos. Por

isso Violante (a prenhada terra), apesar de prometida desde os 8 anos, se casou, em 1534 (quando já tinha

12 anos, por isso núbil), com D. Francisco de Noronha (então nos seus 30 anos). Fosse o autor destas

linhas mulher e certamente isso teria sido evidente desde a primeira hora.

38

Buescu, 2007, p. 252-62.

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63

Segundo SARAIVA (1995), a que aludo, com mais pormenores, no meu livro (2007b, p. 265), é

também a partir desse ano (1534) que o poderoso Fernão d´Álvares, pai de Violante e cristão-novo,

nomeado fidalgo da casa real em 1529, tesoureiro-mor desde 1531 e conselheiro do rei a partir de 1535,

passa a usar um apelido novo: Andrade, que derivava, segundo ele dizia, de uns nobres condes galegos.

Fernão d‟Álvares foi incumbido de acompanhar a Sevilha a imperatriz, que antes fora a infanta D. Isabel,

e que casou com o imperador Carlos V. Terá sido nessa altura que a filha Violante, então uma menina de 3

anos, recebeu o título de dama da imperatriz.

2). No que concerne à provedoria dos defuntos e ausentes, muito resumidamente, a tese defendida

em RIBEIRO, 2007b, é a de que o Poeta terá sido provido em 1562 pelo capitão-mor da «Viagem da

China» a mando de D. Francisco Coutinho (1561-1564) e terá estanciado em Macau, donde seguramente

não passou (Lus., X, 31), entre 1562 e 1564 (eventualmente 1565), aproveitando o «bojo marítimo de

Macau» (FERREIRA, 1960, p. 113-14).

Na verdade, o provedor-menor não acompanhava o capitão-mor nem a Cantão nem ao Japão. E

este, em embarcações ligeiras rio acima, ia «cerca de seis meses para o trato na feira de Cantão», o que

implicaria um estanciamento em Macau da «Viagem» de dez a doze meses, dependendo:

a). da data da chegada (em Maio ou Junho - mas podendo ser entre Junho e Agosto se retardada

em Malaca por causa da monção);

b). sendo bi-anual a feira de Cantão, a qual das duas feiras iam (Janeiro ou Junho?)

c). do tempo que «os contratos para a carga de seda» levavam a fazer em Cantão e a chegar a «a

seda dali recebida»; e

d). da partida para o Japão, no ano seguinte, entre finais de Junho e início de Agosto (dependendo

da monção do Sudeste) (BOXER, 1968, p. 15; BOXER, 1989, p. 8), «a trocar a seda pela prata» (VELEZ,

1993, p. 10). O regresso do Japão a Macau, por sua vez, dependente da monção do nordeste (que ocorre

entre finais de Outubro e princípios de Novembro) fazia-se no ano seguinte entre Novembro e Março

(BOXER, 1968, p. 16).

Concluindo: «a duração total da viagem poderia ir até três anos como indicou Linschoten, mas

podia ser reduzida a menos de metade se deixasse de fazer escala em Malaca» (BOXER, 1989, p. 8).

Tudo isto levaria o nosso Poeta a estanciar, no mínimo, dois anos em Macau, o que conjuga com

os dois anos que a historiografia macaense do Poeta tradicionalmente lhe atribui no insignificante cargo.

Mas pode ter estado os três, que era o tempo normal de exercício de funções públicas. A divergência do

autor deste trabalho [na esteira de SARAIVA (1995)] com a tradicional historiografia macaense centra-se

na cronologia da presença do Poeta em Macau: em vez de 1557-1559, sujeita, e com razão, a várias

críticas, aponta-se 1562-1564 (1565?).

Adiante-se, finalmente, que o capitão-mor em 1562 foi Pero Barreto Rolim (LOUREIRO, 2000, p.

576); Também Charles BOXER, que abona a mesma informação, acrescenta que Pero Barreto «is entitled

to a modest niche in the hall of Fame, through having been the friend of Luis de Camões and of the

historian Diogo do Couto, with whom he wintered at Mozambique in 1568, on the homeward voyage to

Portugal» (1968, p. 33-4) e que «morreu na viagem de regresso a Portugal, como conta Diogo do Couto

que ia com ele nesta viagem» (1989, p. 27).

Pero Barreto Rolim foi, portanto, quem proveu o Poeta a mando de D. Francisco Coutinho em

1562 e, tendo-se mantido seu amigo, foi, mais tarde, por suas mãos (na sua nau), que Camões sai de

Cochim [em 1567, segundo MORAIS (1997, p.62)] e faz a viagem até Moçambique, onde Barreto foi

ocupar o posto de capitão-mor de Sofala (1567-1569) (idem) para o qual lhe havia sido passada em Lisboa

carta de concessão de 4 de Setembro de 1563 (CRUZ, I, 1993, p. 812), tendo ocupado o cargo (capitania

de Sofala e Moçambique) em fins de 67 ou inícios de 68 (idem, ibidem). Prováveis dívidas ao jogo,

durante a viagem, ou, nas palavras de Pedro Mariz, por não ter pago o dinheiro emprestado por Barreto na

Índia para pagar a matalotagem, fazem com que seja deixado na ilha de Moçambique, onde é encontrado

por Diogo do Couto em Abril de 1569.

Para quem quiser entender um pouco da «confusão» que era a concessão de mercês para os mares

do Sul da China (viagem de capitão-mor para a China pela via de Malaca ou da Índia pera a China) no

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período logo a seguir ao estabelecimento de Macau, tem de ler os Fidalgos... de Rui Manuel Loureiro

(2000, p. 574-77): A „China e o Japão‟, como o próprio vice-rei D. Antão de Noronha reconhecia em 1564,

eram partes demasiado „remotas‟, onde o Estado da Índia não conseguia impor qualquer

tipo de jurisdição, opinião que era totalmente subscrita por um missionário que nesse

ano se encontrava em Macau», sendo que «a delegação de poderes, no que respeita a

Macau, durava apenas uma parte da viagem, uma vez que no regresso do Japão já teria

chegado a este porto um novo capitão». E ainda: «estas confusões ficaram a dever-se ao

facto de nem todas as mercês serem idênticas», pois «alguns beneficiados tinham apenas

direito à capitania da viagem da China, sem quaisquer poderes sobre a povoação. Outros

recebiam a mesma viagem com prolongamento para o Japão, juntamente com poderes

sobre a gente portuguesa que se cruzasse no seu caminho. Outros ainda dispunham da

capitania, mas não da provedoria dos defuntos e ausentes. Enfim, as mercês reais

sucediam-se, por vezes coincidindo geográfica e cronologicamente, desenhando uma

complicada trama de direitos e precedências, que, regra geral, tinham de ser resolvidos

pelos próprios interessados, se porventura se cruzassem em Macau. Em 1564, por

exemplo, os jesuítas que se encontravam neste estabelecimento presenciaram uma grave

disputa, que quase chegou a vias de facto, entre vários fidalgos „‟que estavão prouidos

da uiagem de Jappão‟‟(p. 575).

Acresce, ainda, que as mercês de viagens à China até podiam ser trespassadas (vendidas,

arrendadas), como se pode ver também em LOUREIRO, ib., p. 378.

É neste quadro de «confusão» que o nosso Épico se vê provido no insignificante cargo de

provedor de defuntos e ausentes na viagem do capitão-mor Pero Barreto Rolim. Este era primo do ex-

governador da Índia Francisco Barreto (1555-1558) e esta foi a sua terceira viagem ao arquipélago

nipónico como capitão-mor da viagem do Japão (id., p. 576). Terá sido com contrariedade que acedeu ao

mando do Conde de Redondo para prover o nosso vate na função? Seria mesmo amigo de Camões, como

sugere Boxer? É que a sua conduta para com Camões à chegada a Moçambique em 1567/68 deixa alguma

margem para dúvidas. Ou as relações azedaram nesse interim? Por outras palavras: sendo, embora, trunfo

no baralho, terá sido a final empeno? Já depois destas linhas escritas, resolvi varrer melhor O Grande

Navio de Amacau (BOXER, 1989) e dei conta que o ilustre Professor, para 1562, anota justamente que o

que mais notabilizou Pero Barreto foi ter sido «grande amigo de Luís de Camões (com quem depois se

zangou), em 1568-69» (p. 27). Não sei se chegou a essa conclusão com os dados aqui também avaliados,

ou se com outros que, contudo, não indica!... Mas é um facto que, mesmo só com o que aqui temos, já dá

para pensar que se amigos foram, zangados terão ficado!

A circunstância de o capitão-mor Barreto, que Diogo do Couto refere nas Décadas VII, VIII e IX,

ser primo do governador Francisco Barreto pode explicar, a meu ver, a troca que o ilustre cronista, já no

fim da vida, doente e cansado, a quarenta anos de distância no tempo, fez entre Francisco Barreto e o

verdadeiro governador a quem o Poeta devia o insignificante cargo em Macau. Mais a mais tendo sido

logo a seguir a ter referido que Camões tinha «ido» para Moçambique «em companhia de Pero Barreto

Rolim» (isto é, de ter mencionado o Barreto capitão-mor), que fala de quê? da «viagem que fez à China

por provedor dos defuntos que lhe o governador Francisco Barreto deu, vindo de là se foi perder na costa

do Sião [...]».

Tudo o que Couto diz é verdadeiro. E se Sião já está explicado o que significa (RIBEIRO, 2007b;

RIBEIRO, 2008), fica agora esclarecido que a troca do nome do governador que lhe deu o cargo (ou seja,

a quem o ficou a dever) por um outro, foi mero lapso de memória que é perfeitamente explicável no

contexto dos erros, gralhas e trocas de que abundantemente falo no meu livro (2007b) e de que nenhum de

nós, escribas de ontem e de hoje, estamos livres e que, neste caso, é explicado pela associação que faz

entre os dois Barretos. Diogo do Couto sabia que tinha sido com Pero Barreto que Camões tinha ido à

China; que tinha sido com ele que tinha vindo para Moçambique; que Barreto se tinha zangado (quebrado,

como diz) com o Poeta, a ponto de o deixar desembarcado na ilha; que Barreto havia morrido na viagem

que todos fizeram juntos de regresso ao Reino; assim, no fim da vida, ao querer mencionar o governador

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que havia dado o cargo ao Épico, lembrando-se do amigo Pero Barreto, tão associado ao Vate e a essa

viagem que fizeram juntos e em que ele perdeu a vida, comete o deslize de atribuir ao ilustre primo desse

companheiro de viagem a honra de ter contribuído para matar a fome do Vate. Memória atraiçoada até,

quiçá, por outra lembrança, a de se lembrar que tinha sido no tempo deste governador (Francisco Barreto),

e por encomenda dele, que tinha sido representada na corte do Estado da Índia o Auto de Filodemo, de

autoria, justamente, de Camões.

3). Nos textos poéticos de Camões, sempre que utilizada a Obra Completa de Luís de Camões

organizada, comentada e anotada pelo Prof. António Salgado Júnior, utilizamos as convenções por ele

adoptadas (p. 966): ex: R2 VII 101, para Rimas (parte, secção e numeração).

4). Agradecimentos especiais ao Prof. Rui Manuel Loureiro e à Dr.ª Deana Barroqueiro, ambos

citados no texto e que me deram indicação de preciosa bibliografia e esclarecimentos nem sempre

referenciados, que em muito me ajudaram nesta «viagem» aos últimos dez anos de Camões e ao

aprofundamento do baralho Camões e Macau. Agradecimentos ainda ao Desembargador João Aveiro

Pereira, magistrado e autor de obras jurídicas, por ter percebido quanto me interessaria, para este trabalho,

o texto citado relacionado com o fado e, finalmente, ao bom amigo e colega, Advogado José António

Barreiros, por me ter cedido, antes do lançamento da obra, a sua biografia de Maquivel de que é prefácio à

nova tradução de Il Principe.

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