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A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU NO SÉCULO XXI SOB A ÉGIDE DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO: UM ESTUDO COMPARATIVO Ádria Saviano Fabricio da Silva 1 & César Augusto S. da Silva 2 1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, bolsista de Iniciação Científica CNPq PIBIC 2018/2019. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em Campo Grande/MS. E-mail: [email protected] Resumo: O presente trabalho busca traçar e caracterizar um paralelo entre as diversas Operações de Manutenção de Paz da ONU em que o Brasil participou no século XXI, a fim de investigar os seus alicerces no Direito Internacional Humanitário, compreender a inserção do Brasil nessa dinâmica, bem como descrever as suas consequências no âmbito jurídico. A metodologia utilizada se desenvolverá por meio do método dedutivo de análise descritiva, tendo por finalidade a pesquisa básica estratégica com abordagem qualitativa. Já os procedimentos técnicos se dividirão entre o bibliográfico e o documental inicialmente, e posteriormente será utilizado o estudo de casos concretos. Para tanto, inicialmente buscaremos compreender os fundamentos, a legitimidade, a necessidade e a efetividade das Operações de Manutenção de Paz da ONU, com o intuito de definir os critérios utilizados para a análise que virá a seguir. Após, utilizaremos a experiência brasileira como objeto de estudo, dispondo os seguintes casos concretos em análise comparativa afim de obter dados, estabelecer parâmetros e deduzir conclusões: MINURSO (Saara Ocidental), MINUSCA (República Centro-Africana), UNFICYP (Chipre), UNIFIL (Líbano), MONUSCO (República Democrática do Congo), UNISFA (Abyei) e UNMISS (Sudão do Sul) e MINUSTAH (Haiti) ocasião em que verificaremos a atuação das tropas brasileiras como mantenedores da paz e os desdobramentos jurídicos concernentes às normas Humanitárias. A importância desta proposta resta clara, na medida em que almejamos o aperfeiçoamento das Operações de Manutenção da Paz em um momento histórico em que estas protagonizam o Sistema de Segurança Coletiva da ONU na busca pela estabilização da paz. Palavras-chave: Direito Internacional Humanitário. Operações de Manutenção da Paz da ONU. Brasil. BRAZILIAN PARTICIPATION IN UN PEACE OPERATIONS IN THE 21st CENTURY UNDER THE AUGUST OF INTERNATIONAL HUMANITARIAN LAW: A COMPARATIVE STUDY Abstract: The present work seeks to outline and characterize a parallel between the various UN Peacekeeping Operations in which Brazil participated in the XXI century, in order to investigate its foundations in International Humanitarian Law, to understand the insertion of Brazil in this dynamic, as well as to describe its consequences in the legal framework. The methodology used will be developed through the deductive method of descriptive analysis, aiming at basic strategic research with a qualitative approach. The technical procedures will be divided between the bibliographical and the documentary initially, and later will be used in the study of concrete cases. For this purpose, we will initially seek to understand the fundamentals, legitimacy, necessity, and effectiveness of UN Peacekeeping Operations in order to define the criteria used for the analysis that will follow. Afterwards, we will use the Brazilian experience as an object

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A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU NO

SÉCULO XXI SOB A ÉGIDE DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO:

UM ESTUDO COMPARATIVO

Ádria Saviano Fabricio da Silva1 & César Augusto S. da Silva2

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, bolsista de Iniciação Científica CNPq

– PIBIC 2018/2019. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor associado da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em Campo Grande/MS. E-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho busca traçar e caracterizar um paralelo entre as diversas

Operações de Manutenção de Paz da ONU em que o Brasil participou no século XXI, a fim de

investigar os seus alicerces no Direito Internacional Humanitário, compreender a inserção do

Brasil nessa dinâmica, bem como descrever as suas consequências no âmbito jurídico. A

metodologia utilizada se desenvolverá por meio do método dedutivo de análise descritiva, tendo

por finalidade a pesquisa básica estratégica com abordagem qualitativa. Já os procedimentos

técnicos se dividirão entre o bibliográfico e o documental inicialmente, e posteriormente será

utilizado o estudo de casos concretos. Para tanto, inicialmente buscaremos compreender os

fundamentos, a legitimidade, a necessidade e a efetividade das Operações de Manutenção de

Paz da ONU, com o intuito de definir os critérios utilizados para a análise que virá a seguir.

Após, utilizaremos a experiência brasileira como objeto de estudo, dispondo os seguintes casos

concretos em análise comparativa afim de obter dados, estabelecer parâmetros e deduzir

conclusões: MINURSO (Saara Ocidental), MINUSCA (República Centro-Africana),

UNFICYP (Chipre), UNIFIL (Líbano), MONUSCO (República Democrática do Congo),

UNISFA (Abyei) e UNMISS (Sudão do Sul) e MINUSTAH (Haiti) – ocasião em que

verificaremos a atuação das tropas brasileiras como mantenedores da paz e os desdobramentos

jurídicos concernentes às normas Humanitárias. A importância desta proposta resta clara, na

medida em que almejamos o aperfeiçoamento das Operações de Manutenção da Paz em um

momento histórico em que estas protagonizam o Sistema de Segurança Coletiva da ONU na

busca pela estabilização da paz.

Palavras-chave: Direito Internacional Humanitário. Operações de Manutenção da Paz da

ONU. Brasil.

BRAZILIAN PARTICIPATION IN UN PEACE OPERATIONS IN THE 21st CENTURY

UNDER THE AUGUST OF INTERNATIONAL HUMANITARIAN LAW: A

COMPARATIVE STUDY

Abstract: The present work seeks to outline and characterize a parallel between the various UN

Peacekeeping Operations in which Brazil participated in the XXI century, in order to investigate

its foundations in International Humanitarian Law, to understand the insertion of Brazil in this

dynamic, as well as to describe its consequences in the legal framework. The methodology used

will be developed through the deductive method of descriptive analysis, aiming at basic

strategic research with a qualitative approach. The technical procedures will be divided between

the bibliographical and the documentary initially, and later will be used in the study of concrete

cases. For this purpose, we will initially seek to understand the fundamentals, legitimacy,

necessity, and effectiveness of UN Peacekeeping Operations in order to define the criteria used

for the analysis that will follow. Afterwards, we will use the Brazilian experience as an object

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of study, making the following concrete cases in comparative analysis to obtain data, establish

parameters and draw conclusions: MINURSO (Western Sahara), MINUSCA (Central African

Republic), UNFICYP (Cyprus), UNIFIL (Lebanon), MONUSCO (Democratic Republic of

Congo), UNISFA (Abyei) and UNMISS (Southern Sudan) and MINUSTAH (Haiti) - on which

occasion we will verify the performance of Brazilian troops as peacekeepers and legal

developments concerning Humanitarian norms. The importance of this proposal remains clear

as we aim to improve the Peacekeeping Operations at a historic moment in which they are the

protagonists of the UN Collective Security System in the search for peace stabilization.

Key words: International Humanitarian Law. UN Peacekeeping Operations. Brazil.

INTRODUÇÃO

Enquanto protagonistas do Sistema de Segurança Coletiva do Conselho de Segurança

da ONU, as intervenções humanitárias, aqui compreendidas como sinônimo de Operações

Militares pela Paz, podem ser divididas em diversas abordagens, dependendo das circunstâncias

política, econômica, social e humanitária em que se encontra o país que sediará a operação.

Neste trabalho serão analisadas Operações de Estabilização, Multidimensionais, de Segurança

e de Manutenção da Paz, de modo que foi eleito como critério de escolha para a análise

específica destas 8 (oito) escolhidas a lista constante no site do Itamaraty, como as Missões

desenvolvidas no século XXI.

Mais especificamente, o termo “manutenção da paz” no texto em português da Carta da

ONU é utilizado 20 vezes, de onde provém a sua previsão, e, em todas elas, juntamente com o

termo “segurança”, demonstrando o quão caro seriam estes dois objetos jurídicos para a

Organização das Nações Unidas, já no cerne de sua criação. Entretanto, ambos os termos não

são definidos em nenhum momento no longo histórico de invocação, no decorrer da atuação da

Organização, de modo que resta necessário salientarmos as significações utilizadas como

pontos de partida, já que por vezes ambos se confundem em uma realidade global em que a

busca pela paz passou a significar o controle armado de conflitos em andamento onde não há

trégua para se manter e segurança, a ampla presença armada em torno de áreas protegidas.

Ambos os conceitos, apesar de se modificarem ao longo da história, segundo os valores

difundidos e desejados pela humanidade (tempo histórico) – considerando que hoje podemos

analisar com solidez a esfera global graças à interdependência e homogeneidade dos povos

nunca antes vistas – perderam o seu significado independente para se tornarem este bloco

“manutenção da paz e segurança internacionais” diretamente influenciados pela nossa mais

nova noção de Paz e Segurança que advém da guerra ao terror. Este bloco de significação única

está intimamente ligado às Intervenções Humanitárias e o que elas significam para a

humanidade.

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Em outras palavras, a paz não é o melhor ponto de partida para uma Peacekeeping

Operation, pois cria expectativas irreais do que de fato é possível realizar e o que de fato a

Missão busca, pois, através dela, não é possível atingir a paz sem antes serem atendidas outras

circunstâncias conduzidas por outros métodos como o peacemaking, majoritariamente

realizado pela diplomacia, já que e o peacekeeping é pura e simplesmente uma técnica de

administração de conflitos (CARDOSO, 1998, p. 19).

As forças de paz da ONU (blue helmets ou peacekeepers) representam a maior força

militar extra estatal existente no mundo, 100.411 pessoas dentre tropas militares do Exército,

Marinha e Aeronáutica, especialistas, policiais, oficiais observadores, funcionários civis e

voluntários. Este contingente multifacetado funcionaria como um exército independente

composto por diversas forças militares, policiais e funcionários civis de 122 países, atuando em

14 missões em andamento atualmente, das 71 operações desenvolvidas desde 1948, sendo que

o total de mortes durante as operações chega a 3855, segundo o Global Peacekeeping Data (30

de junho de 2019).

Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende analisar a atuação brasileira no que

tange às contribuições para as Operações de Paz que participou com efetivos militares, civis e

policiais, além da própria legitimidade e efetividade das Operações de Manutenção da Paz. De

forma específica, esse estudo se dará por meio da análise da aplicação de uma série de critérios

a fim de verificar os sucessos e fracassos das operações analisadas, bem como de seus objetivos

primordiais, os quais deveriam ser alcançados no decorrer da realização da Missão e quais são

os aprimoramentos necessários.

O procedimento metodológico do projeto se desenvolveu por meio de análise descritiva,

tendo por finalidade a pesquisa básica estratégica com abordagem qualitativa. Já os

procedimentos utilizados se dividiram entre o bibliográfico e o documental, inicialmente, e por

fim, foi utilizado o estudo de casos concretos. Ademais, é importante salientar que o método

escolhido foi o método dedutivo, já que nos propusemos a realizar a pesquisa de modo a analisar

como principal objeto as Missões de Paz em que o Brasil foi protagonista no século XXI até

então, bem como a sua legitimidade e eficácia.

A etapa de análise histórica consiste no estudo aprofundado dos alicerces que regem as

normas humanitárias diante de Operações de Manutenção de Paz, bem como o estudo da atitude

do Estado Brasileiro perante a construção do complexo modus operandi teórico e prático que

observamos hoje como um padrão de ação próprio da Organização das Nações Unidas para essa

espécie de ingerência. Já a etapa de análise fática consiste no estudo bibliográfico de autores

sobre a temática e pesquisa doutrinária que nos orientem acerca dos princípios que legitimam

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as Ocupações Humanitárias e regulamentam tais intervenções, aplicado aos casos concretos

escolhidos.

Dentre as perspectivas analisadas, o propósito é identificar criticamente se a sociedade

internacional e, em recorte, o Estado Brasileiro está oferecendo o tratamento adequado às

questões relacionadas às normas internacionais humanitárias nas Missões de Paz que fez parte

e que está fazendo parte. É por meio das etapas descritas que buscamos concluir o nosso estudo,

a fim de que, posto isto, sejam potencializados e aprimorados o tratamento correto e a melhor

administração dos prejuízos e benefícios provenientes das ocupações humanitárias.

1 AS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU

Quando Intervenções Humanitárias pelas Paz organizadas pela ONU são determinadas,

então as mazelas sofridas pela população de determinada nação já são reconhecidas

internacionalmente e se enquadram, dessa forma, em um contexto em que caberia, em termos

de poderes implícitos, a ação humanitária. Como bem coloca Bierrenbach (2011, p. 54) ao citar

Walzer (2004, p. 68), a Ação Humanitária pode inclusive ser caracterizada como uma obrigação

moral internacional de pôr fim ao sofrimento de um povo, na medida em que as instituições

locais não são capazes de prover tal proteção ou são estas os algozes.

Essa consideração moral propõe a embate várias perspectivas distintas, em um eterno

sopesamento de princípios entre os direitos do povo em sofrimento em razão das ações ou

omissões de seu Estado de origem, os direitos dos opositores do regime em vigência e de seus

simpatizantes, os direitos do grupo que busca autodeterminação e os direitos da máquina estatal

de mantê-la em funcionamento e protegê-la das adversidades (FRANÇA, 2004, p. 168)

As práticas para a paz se dividiriam, assim, em uma série de conceitos que em sequência

determinariam, por fim, o sucesso do processo completo, desde a imposição da paz, até a sua

manutenção e a sua eficaz e independente estabilidade. Previstos inicialmente no relatório “An

Agenda for Peace” de Boutros-Ghali, em 1992, os conceitos de preventive diplomacy, o qual

ocorre enquanto o conflito ainda não se instalou e é definido como ação de prevenir a ocorrência

de disputas entre as partes, prevenir disputas existentes de se tornarem conflitos e limitar a

propagação dos conflitos quando eles ocorrerem; peacemaking ou promoção da paz,

caracteriza-se como a fase na qual o conflito já está instalado e as Nações Unidas se dedicam à

solução pacífica de controvérsias e é definido como ação de levar as partes em conflito a

realizarem acordos através de meios pacíficos; peacekeeping – desenvolvimento da presença

das Nações Unidas no campo, com o consentimento de todas as partes interessadas,

normalmente envolvendo Militares, equipe policial e civis das Nações Unidas – e Post-conflict

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Peacebuilding – ação para identificar e apoiar estruturas as quais tenderão a fortalecer a paz a

fim de evitar a recaída de volta para conflito (UN, 1992, p. 5-6, tradução nossa).

Essencialmente sobre as Missões baseadas no peacekeeping: “atualmente parte-se do

pressuposto de que a fase anterior, de negociação de acordo de paz, ou, pelo menos, de

imposição de cessar-fogo, foi bem-sucedida, antes que se empregue uma operação de

manutenção da paz” (NEVES, 2010, p. 17). Por conseguinte, as mencionadas operações pela

manutenção da paz (peacekeeping operations) passaram a ser amplamente aceitas como uma

técnica de administração de conflitos ou de outras situações de padecimento de um país, em um

mundo que não necessita mais de hostilidades como as trazidas por um sistema de segurança

coletiva que prevê embargos econômicos, isolamentos diplomáticos e, por fim, ações militares

(FONTOURA, 1999).

A Organização das Nações Unidas define em doutrina própria o conceito tradicional

de peacekeeping como sendo “uma técnica projetada para preservar a paz, por mais frágil que

seja, onde os combates foram interrompidos e para auxiliar na implementação de acordos

alcançados pelos pacificadores” (UN, 2008: p. 18, tradução livre), entretanto hoje

compreendemos que muito se evoluiu a partir do modelo proposto, tornando-se uma complexa

rede de atuação que busca abarcar todas as fases de reconstrução dos alicerces para a paz, desde

institucionais, logísticos e físicos, até a reestruturação completa de áreas essenciais para um

Estado Democrático.

Dentre os fatores que contribuíram para a transformação da dinâmica do peacekeeping

a partir da década de 90, temos o fim da Guerra Fria – de modo que diminuíram as divergências

e vetos no Conselho de Segurança para a aprovação de novas Operações – e a proliferação de

Conflitos Armados Não-Internacionais, os quais se dão internamente nos Estados por razões

étnicas, políticas ou religiosas (MORAIS, 2015, pp. 46-47) e também podem ser chamados de

Guerras Civis. Também observamos na mesma época o caso das Guerras de Libertação

Nacional, as quais, equivalentes a Conflitos Armados Não-Internacionais, ocorrem quando

povos lutam contra a dominação colonial, a ocupação estrangeira ou contra um regime racista,

no exercício do direito dos povos à autodeterminação.

Revestidas dessa nova natureza, as Operações Multidimensionais ou de Segunda

Geração, têm por principais diretrizes, conforme o United Nations Peacekeeping Operations:

Principles and Guidelines (UM, 2008, p. 22, tradução nossa): “Criar um ambiente seguro e

estável, ao mesmo tempo em que fortalece o capacidade de fornecer segurança, com total

respeito pelo Estado de direito e direitos humanos; (...) promovendo o diálogo e a reconciliação

e apoiar o estabelecimento de meios legítimos e eficazes instituições de governança”. As

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Operações Multidimensionais geralmente são desenvolvidas em momentos diretamente

posteriores ao fim de Conflitos Armados Internacionais ou Não-Internacionais, de modo a

reconstruir a democracia, as instituições e a soberania arrasadas.

Assim ocorreu com o caso do Timor-Leste e a UNTAET (United Nations Transitional

Administration in East Timor), durante a qual fora conduzida a administração temporária do

país pelo brasileiro Sérgio Vieira de Melo. No entanto, a implementação do mesmo modelo de

administração transitória no Iraque custou a vida de Vieira de Melo. As diferenças entre as

realidades das operações dizem muito sobre a morte do estadista, já que o princípio do

consentimento foi respeitado naquela e não nesta. Além disso, vemos claramente que no Iraque,

não havia paz para ser mantida naquele momento, nem instituições para serem reconstruídas.

Como verificamos, poucos conceitos no âmbito do Direito Internacional são tão

sensíveis quanto tais intervenções humanitárias, diante da colisão frequente entre a soberania –

relacionada aos princípios previstos da Carta das Nações Unidas, de 1945, da Não-Intervenção

e da Abstenção do Uso da Força nas Relações Internacionais – e a Responsabilidade

Internacional de Proteger. Antes mesmo da delimitação conceitual, já se utilizavam

justificativas genéricas como “razões de humanidade” para a realização de ocupações

internacionais organizadas sob o véu da suposta legitimidade, visto que a ideia de intervenção

humanitária não é nova e nos remete à antiguidade, quando desde Hugo Grotius já encontramos

referências para a temática (MINAYO, 2008, p. 22).

De fato, diante dos paradigmas jurídicos que fundamentam o Direito Internacional,

encontramos a duplicidade presente na Responsabilidade de Proteger, contrastando-se com as

violações de Direitos Humanos ocorridas no contexto da aplicabilidade do Direito Internacional

Humanitário. Para SEITENFUS (2006, p. 5), as razões pelas quais são implementadas as

Intervenções Humanitárias vão desde interesses pontuais (financeiros, militares, estratégicos,

políticos, diplomáticos ou de prestígio) até casos em que a pressão da opinião pública impõe

um atitude ativa por parte do Estado ou, em menor parte das vezes, pode decorrer também da

construção de um sentimento geral de um dever moral para com as populações dos Estados

falidos, os quais trataremos mais à frente.

O desenvolvimento das Operações de Paz ocorreu em uma série de etapas, sempre

marcadas pelo embate de seus mandatos1 com a realidade que se apresentava, diante das

1 O Mandato de uma Operação de Paz da ONU é a projeção de seus objetivos, justificativa, características, meios

e demais arranjos financeiros e logísticos definidos por meio de Resoluções do Conselho de Segurança ao aprovar

as Operações. Este é utilizado como a norma da Operação e o consequente guia para a concretização dos objetivos

nela previstos.

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divergências acerca da doutrina humanitária. Após o fim da Guerra Fria, na década de 90,

restava claro o antiquado mandato que não abarcava os conflitos internos, em uma relutância

generalizada em ofender o princípio da soberania, embora diante da necessidade evidente de

proteção à população afetada em países como a República Democrática do Congo, Sudão do

Sul e Ruanda. A grande discussão giraria em torno da existência ou não de um direito de

intervenção e de como e em que condições este seria legítimo e aplicável, tendo em vista que

muitos pedidos de intervenção foram feitos desde a década de 90, alguns atendidos e outros

ignorados, sob critérios e circunstâncias por vezes sombrias (ICISS, 2001, p. 7).

No início do século XX, a fim de que os debates não mais afetassem a atuação dos

peacekeepers no campo com mandatos e princípios confusos, foi necessário um consenso para

determinar quais seriam as atitudes práticas adotadas, ocasião em que surge a discussão sobre

a Responsabilidade de Proteger, liderada pelo Estado canadense (MURITHI, 2009, p. 91), a

qual iremos trabalhar nos tópicos a seguir.

Para fins da análise proposta neste trabalho a definição de peacekeeping utilizada será a

prevista no Manual do Peacekeeper (1984), o qual a descreve como sendo: a prevenção, a

contenção, a moderação e o término das hostilidades (...), pela intervenção pacífica de terceiros,

organizada e dirigida internacionalmente, com o emprego de forças multinacionais de soldados,

policiais e civis, para restaurar e manter a paz (HARBOTTLE, 1984, p. 22).

1.1 A aplicação do Direito Internacional Humanitário a contextos de Ingerência

Humanitária: legislação internacional

O Direito Internacional Humanitário é a vertente que fundamentalmente abarca o ideal

de proteção em meio a situações de barbárie e violência generalizada, como as decorrentes de

conflitos armados internacionais e não-internacionais. Apesar de ser composto por duas

vertentes, quais sejam o Direito de Genebra – que busca garantir a proteção daqueles que não

estão atuando no conflito, como a população civil, a equipe médica e os religiosos, ou não

podem mais fazê-lo como os feridos e doentes que depuseram as armas) e o Direito de Haia –

que busca diminuir os sofrimentos desnecessários decorrentes dos meios e métodos de guerra

– o Direito Internacional Humanitário possui como princípio uno a diminuição das

consequências dos conflitos armados para que, por fim, após o último disparo, a humanidade

possa voltar à paz.

Conforme o que fora descrito, além de encontrarmos nos princípios basilares do Direito

Internacional Humanitário o fundamento para os mandatos das Operações de Paz, observamos

também a conexão no que tange à prevenção dos crimes de guerra. Como geralmente as

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Operações são destinadas para construir, manter ou impor a paz diante de uma situação latente,

em pleno desenvolvimento ou pós conflito armado, é razoável que a mesma vertente que aborda

as violações dos conflitos armados seja utilizada para reger as violações ocorridas durante as

Operações de Paz das Nações Unidas, tendo em vista que os objetivos são os mesmos, quais

sejam prevenir e punir os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade.

Nesse sentido, o Direito Internacional Humanitário no contexto das Operações de Paz

pode ser definido como o ramo que prevê as regras aplicáveis durante os conflitos armados,

(...), visando limitar os métodos e meios de guerra em patamares suficientes ao êxito das

operações, a fim de não causar mais sofrimento desnecessário, além do que as guerras

normalmente o fazem (FABRICIO DA SILVA, 2016, p. 24). Assim, este possui como seu

sentido próprio de existência a busca pela paz e a sua consequente construção e manutenção,

sendo, portanto, a base jurídica legitimadora das ações daqueles cujos objetivos sejam

fundamentados nessas diretrizes. O Estatuto de Roma, prevendo tal intento, registrou a seguinte

descrição como uma das previsões para crimes de guerra, em seu artigo 8º, 1, b, III: “Para os

efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crimes de guerra": Dirigir intencionalmente

ataques ao pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa

missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária”.

Assim, consideramos salutares os apontamentos de Swinarski (1996, p. 12), no que

concerne à importância do Direito Internacional Humanitário, tido como “direito de guerra”,

quando se determinou na Conferência de Direitos Humanos, convocada pelas Nações Unidas

em Teerã, em 1968, na resolução XXIII, a essencialidade da proteção dos Direitos Humanos

em tempos de guerra, como regras tidas como o mínimo necessário para a manutenção da

dignidade. Além disso, o respeito à paz como “condição primordial para o pleno respeito aos

direitos humanos, sendo a guerra a negação desse direito”.

O Direito Internacional Humanitário, também chamado de Direito Internacional dos

Conflitos Armados e de Direito da Guerra, surge, assim, como via de proteção legitimada para

atuar em ocasiões em que há ausência, inoperância ou ineficiência da paz, de modo que são

abrangidas as situações dos países receptores onde se instalam as operações de paz. Nesse

contexto, faz-se essencial diferenciar o Direito Internacional Humanitário, do “Direito de

Ingerência” entendido como um dever internacional de proteger as populações que padecem,

pois a elas não foi conferida qualquer proteção por parte do Estado ou por ser o Estado o agente

causador das violações.

Estes se diferenciam na medida em que, apesar de ambos constituírem deveres ou

responsabilidades internacionais, o Direito de Ingerência nunca foi de fato discutido

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oficialmente, codificado, ou mesmo registrado, surgindo apenas como um termo que resume os

intentos dos países líderes das Missões de justificarem sua atuação sem supostamente ferir a

soberania e a não-intervenção.

1.2 A legitimidade e a responsabilidade de proteger quando confrontadas à não-

intervenção e à soberania: conceitos

Quanto às origens das Operações de Paz e a legitimidade de sua existência e atuação,

faz-se essencial a análise das atitudes políticas de uma das mais influentes instituições do

sistema internacional de manutenção da paz, a Organização dos Estados Americanos,

examinada sob o caso concreto mais rico em detalhes em termos de discussão bibliográfica

documentada em língua portuguesa: a crise haitiana. A utilização da defesa da democracia como

elemento legitimador das intervenções pacíficas está entre os principais fatores que levaram à

busca pela solução das crises humanitárias e à discussão sobre o envolvimento de ingerência

estrangeira.

Nesse sentido, o caso Haiti se torna central nessa dinâmica, ao se tentar demonstrar,

nesse pequeno espaço de tempo considerado, os erros e acertos dos sujeitos protagonistas diante

da deterioração do Estado haitiano, enquanto demonstra a evolução dos fundamentos da práxis

do Direito Internacional Humanitário aplicado às Operações de Manutenção da Paz e a

maturação da própria ONU ao lidar com o caso.

A discussão internacional em torno da democracia e do regime democrático enquanto

direito do homem desenvolve-se em consonância com a criação da Organização dos Estados

Americanos, na medida em que o referido órgão ganhava visibilidade e legitimidade política.

Após um século de desentendimentos ideológicos baseados em divergências de interesses, a

ideia de ingerência pacífica finalmente se legitima a partir da possibilidade de coexistência entre

o respeito à soberania (não-intervenção) e a defesa da democracia, cenário este nunca antes

vislumbrado.

A negativa de simultaneidade dos dois princípios regentes do direito internacional desde

o início do século passado era tão presente nas discussões sobre o desenvolvimento das nações

americanas, estimulada devido desde o desinteresse de presidentes americanos enquanto os

Estados Unidos da América voltava a sua política internacional para outros assuntos ou quando

não era conveniente garantir a democracia em sua política de combate ao comunismo, à

desconfiança dos países americanos em pôr sob o julgo do Estado imperialista o seu governo

frágil.

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A defesa da democracia exercida nos limites do respeito à autodeterminação e à não-

intervenção foi amplamente debatida, sendo considerada em um início duvidoso, uma

concepção utópica em meio aos conflitos das grandes guerras e, por fim, com a guerra fria. A

efetivação da proposta só foi possível com o indeclinável Compromisso de Santiago à Carta

Democrática Interamericana, em 1991, acordo no qual foi definido como objetivo dos Estados

Americanos a primazia da defesa da democracia como um ideal mais precioso a ser resguardado

mediante o respeito mútuo entre os Estados, mas primariamente resguardado.

Nessa conjuntura, a OEA obteve legitimidade para agir contra situações que

representassem perigo às instituições democráticas como a “interrupção abrupta ou irregular do

processo político institucional democrático ou do legítimo exercício do poder” (Resolução

1080), atuação que representa o estopim histórico para a ideia de ingerência pacífica ou

operação de paz em âmbito regional. A interpretação doutrinária e prática do paradoxo antes

irreconciliável, oportunamente modificada, agora se torna fundamento de harmonia de todo o

sistema.

Nascendo de uma revolução de escravos e trazendo forte insegurança aos imperialistas,

o Estado haitiano nunca deixou o sistema escravagista, o despotismo e a autocracia para trás,

sendo os governantes eterna fonte de turbulências políticas e de miséria para a sua população.

No pequeno país caribenho sucederam-se tentativas fracassadas de democracias e golpes de

Estado desde a independência do país em 1804, passando por um novo tratamento escravagista

baseado na rivalidade entre os mulatos e negros nativos, pela incompetência e pelo desinteresse

de governantes em desenvolver um Estado forte, por uma ingerência militar americana e por

tiranias disfarçadas de democracias. Nessa esteira, consciente a OEA das tentativas infrutíferas

de garantir o procedimento eleitoral, em 1990 oferece o auxílio para garantir a realização das

eleições, reafirmando o seu compromisso com o ideal democrático, com o envio de cerca de

200 (duzentos) observadores da OEA e 200 (duzentos) observadores da ONU.

Na sequência, o regime brevemente implementado de Jean-Bertrand Aristide vem ao

fim, em 1991, e nasce a primeira oportunidade de a OEA demonstrar o controle sobre a situação

utilizando os mecanismos recém implementados. Respeitando a regulamentação prevista para

a crise, a OEA convoca os ministros das relações exteriores para deliberar acerca das atitudes a

serem tomadas em seguida, oportunidade em que alguns países tendem ao ativismo ao

defenderem a intervenção – ultrapassando os limites da legalidade – e outros defendem a

legalidade estrita sob a égide da não-intervenção e do respeito à soberania (a intervenção pela

defesa da democracia nos limites da legalidade).

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Pela primeira vez, portanto, uma organização multilateral interferia nos assuntos

internos de uma nação em crise, sem que qualquer outro mecanismo legitimasse as suas ações

a não ser o recentemente acordado compromisso de Santiago e o histórico de discussões por

trás deste. Em continuidade a estes esforços e para a sua efetivação, a OEA definiu

recomendações e instituiu missões civis (OEA-DEMOC) a fim de restaurar o processo

democrático e aplicou embargos econômicos e comerciais. Com o fracasso da organização em

extinguir a crise haitiana, o próximo passo era pedir auxílio à ONU, a qual requisitou o

envolvimento do seu Conselho de Segurança. Mais uma vez, seguiram-se debates acerca da

legitimidade do departamento em interferir em assuntos de ordem interna do país, de acordo

com o art. 52 da Carta da ONU, o qual descreve os mecanismos regionais de manutenção da

paz e a sua indispensabilidade.

Após um primeiro momento de negativa quanto ao envolvimento do Conselho de

Segurança na medida em que se renovaram as tentativas do foro regional, sem que, contudo,

obtivessem êxito, o protagonismo da ONU voltou para o centro dos debates demonstrando-se

uma solução ideal. A ideia de uma “missão multidimensional” nasceu da carta do presidente

Aristide à organização enviada ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em 1992. Nesse

contexto: “Uma missão de caráter internacional só seria aceita, se inserida no contexto de um

programa multilateral de cooperação, destinado à implementação de projetos previamente

negociados e aprovados pelas autoridades haitianas”, (CÂMARA, 1998).

A universalização da crise haitiana foi um dos fenômenos mais importantes para o

desenvolvimento das Missões de Paz, pois, assim, considerando a crise política e humanitária

do pequeno país caribenho como uma emergência com a qual todos os países deveriam se

preocupar e agir para solucionar, ou seja, um problema de todos, a atuação da ONU se tornara

essencial e obrigatória. A OEA e a ONU atuariam em conjunto, entretanto, nos limites de sua

legitimidade própria, quais fossem, a defesa da democracia e a proteção dos direitos humanos,

respectivamente.

Os próximos passos para impedir um desastre (uma possível intervenção não-pacífica)

se deram em direção a fundamentar as Missões de Paz e estabilizar a sua regulamentação

própria para que estas se tornassem ferramentas ideais para a solução pacífica de crises

humanitárias em nações que delas necessitassem. Além disso, as missões de paz deveriam se

tornar instrumentos democratizantes, apaziguadores e institucionalizadores da segurança

jurídica e da proteção das instituições, nas mãos de um órgão historicamente inseguro.

Ao investigarmos a legitimidade das Intervenções Humanitárias, não há como não citar

a Carta da ONU, na medida em que, apesar de não previstas inicialmente, estas foram

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desenvolvidas com base nos Capítulos VI, VII e VIII da Carta da ONU, os quais abordam o

tema Paz e descrevem o modus operandi diante da sua ausência ou ruptura.

Dentre as principais controvérsias relacionadas às operações militares de paz da ONU,

está a legitimidade das intervenções humanitárias, correlacionada diretamente aos princípios da

responsabilidade de proteger, da não-intervenção e da soberania, isto porque, ocorre uma

antinomia principiológica sem solução, o que nos leva à ponderação e consequentemente à

análise caso a caso. A soberania sempre se apresentou com um alívio em decorrência da sua

face protetora. O conceito de Estado soberano garantia a proteção daquela população contra as

ingerências externas considerando que o Estado era o último marco decisório possível e que

todos os Estados teoricamente possuíam, assim, a mesma condição e o mesmo patamar de poder

entre si. É notável, portanto, o apego das nações menores às suas respectivas soberanias ao

tentarem se auto-afirmar em um contexto de ingerências e interesses diversos.

Os princípios da não-intervenção e da soberania, por sua vez, estão intimamente

ligados à criação dos Estados Nacionais e de sua independência (autodeterminação) normativa

e a um movimento global em direção ao fim das intervenções militares que levariam às guerras,

desde a criação da ONU, em 1948, momento em que o mundo buscava caminhar em direção a

uma paz duradoura, após as atrocidades presenciadas.

No entanto, quando a colisão de princípios provenientes do jus cogens internacional

nos leva a uma série de possibilidades de respostas, geralmente a depender de casualidades,

questiona-se naturalmente se os Estados mais poderosos, os quais geralmente lideram as

operações, estariam explorando a Missão para perseguir seus interesses sob a dissimulação de

solucionar conflitos ou investir na manutenção da paz (ANI, 2016, pp. 9-10).

Nesse contexto, vale observarmos dois outros conceitos que adentram a análise, a

reponsabilidade de proteger (R2P2), princípio comumente invocado como justificativa para as

intervenções humanitárias e a seletividade, característica geralmente associada à aplicação da

R2P. A previsão normativa que legitimaria e regulamentaria o princípio está contida no 2005

World Summit Outcome, da ONU: “Estamos preparados para agir de maneira oportuna e

decisiva por meio do Conselho de Segurança, (...) se os meios pacíficos forem inadequados e

se as autoridades nacionais manifestamente não conseguirem proteger suas populações (...) dos

crimes de guerra” (ONU, 2005).

Além disso, na mesma previsão normativa há outro alinhamento próprio das

Operações de Manutenção da Paz, no sentido de que também haverá comprometimento em

2 Responsability to Protect.

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situações em que, quando necessário e apropriado, seja necessário: “ajudar os Estados a

construir a capacidade para proteger suas populações contra o genocídio, crimes de guerra,

limpeza étnica e crimes contra a humanidade e para ajudar aqueles que estão na iminência de

um conflito armado antes que isto ocorra” (Idem, 2005). Aqui observamos sendo utilizado o

conceito de diplomacia de defesa, um dos principais métodos de preservação da paz através

de demonstração de poderio militar e do conceito de segurança se misturando ao conceito de

paz.

Ademais, nas discussões acerca da legitimidade das intervenções também se

confrontam duas narrativas, quais sejam a do “Failed State”3 e a “Conflict Prevention4”. O

Estado falido é aquele no qual os Direitos Humanos se apresentam como inefetivos ou

inoperantes, de modo que sua eficácia é impossibilitada ou indesejada por parte do Estado, por

conta da desestabilização das instituições, da falta de governabilidade. Já a prevenção do

conflito estaria ligada não ao momento de latência do conflito, mas sim na manutenção de uma

paz relativamente estável, em uma área historicamente ou momentaneamente instável devido a

crises humanitárias ou conflitos que se desenvolvem ao seu redor pelos mais variados motivos.

A necessidade da atuação das intervenções humanitárias seria produto das

preocupações globais em segurança: “Encontrar um consenso sobre a intervenção

simplesmente não é uma questão de decidir quem deve autorizá-la e quando é legítimo

empreender. É também uma questão de descobrir como fazê-lo, para que metas decentes não

sejam manchadas por meios inadequados. (ICISS, 2001, p. 5, tradução livre).

1.3 A necessidade e a efetividade das Operações de Manutenção da Paz como técnica de

administração de conflitos: histórico

Verificamos ao longo das décadas uma série de modificações concernentes ao mandato

das operações, de modo que se inicialmente os agentes carregavam a missão de proteger as

fronteiras e desencorajar o início de conflitos interestatais, ao tornarem-se cada vez mais

numerosas os conflitos intraestatais, após o fim da Guerra Fria, envolvendo uma série de outros

agentes e circunstâncias e modificando a natureza do que era necessário a operação realizar,

modificou-se o mandato, voltadas as atenções para a proteção dos direitos humanos do

indivíduo, sendo impossibilitado o uso da força.

3 Estado Falido (em inglês, é o termo utilizado para descrever Estados que não conseguem se sustentar com base

em suas instituições, estando estas em ruínas e a própria democracia, frágil e, por vezes, inoperante). 4 Prevenção do Conflito (em inglês, termo utilizado para descrever uma forma de argumentação que busca

justificar a presença de Operações de interesses escusos em situações em que não há justificativa para tal.

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Com o passar dos anos, entretanto, a guerra ao terror a partir do início do século XXI

incidiu diretamente no binômio segurança-paz, de modo que passou a ser cada vez mais comum

a autorização ao uso da força e a implementação de missões multidimensionais com a

participação de atores militares, civis e policiais e o uso de uma abordagem complexa que

integrasse uma série de funções com características do peacebuilding (fortalecimento das

instituições estatais), do peace enforcement (aplicação de medidas coercitivas) e, naturalmente,

do peacekeeping (preservação da paz, ainda que frágil, e a implementação dos acordos obtidos).

O uso da força, entretanto, não pode ser justificado juridicamente por razões

humanitárias, pois tal depreciação da utilização da Missão para abranger também este método

contraria diametralmente a Carta da ONU e as razões de ser das Operações de Paz (FRANÇA,

2004, p. 130). Assim, a “Intervenção Humanitária” e o próprio termo em si são juridicamente

condenáveis pela sua injustificabilidade no que tange ao Direito Internacional e, mais

especificamente, ao Direito Internacional Humanitário.

1.4 As consequências: projeções e realidade da atuação dos peacekeepers

Inicialmente, como visto, as operações de manutenção da paz foram idealizadas sob o

manto de uma série de belos princípios, elevando a causa à uma responsabilidade conjunta da

comunidade internacional de proteger dividida sob os mandatos do fortalecimento do Estado e

da proteção do indivíduo. Sob tal intento, era natural que os Estados com maior capacidade

financeira, e consequentemente tecnológica e armamentista, tomassem frente diante da alta

possibilidade de oferecer aos seus peacekeepers um treinamento aprimorado e equipamento

suficiente para assegurar a sua segurança e o sucesso da operação, não se tratando simplesmente

desses termos, mas também de poderem atuar como agentes da paz e carregar em mãos os

instrumentos que possibilitassem um mundo mais estável e seguro.

A natureza desta realidade se modificou profundamente, de modo que o que

vislumbramos a partir do início do século, é uma inversão de quem são os Estados mais atuantes

e, portanto, os que mais sofrem com as consequências das Operações. Atuando com cerca de

20% do total dos agentes em 1994, os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a Rússia e a

China – os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU – passaram a atuar

com menos de 5% das tropas, com a virada do século. A mensagem é clara, os países mais ricos

do mundo não desejam mais lidar com os riscos provenientes destas empreitadas, ao invés,

buscam financiar os países mais pobres para enviarem os contingentes militares e, assim, a paz

se tornou mercadoria.

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A questão, assim como ocorre em muitas outras causas que envolvam direitos humanos,

se monetizou. Como principal efeito deste fato, são pagos milhões aos governos dos países mais

pobres do mundo como Etiópia, Ruanda e Nepal, por parte da ONU e dos demais organizadores

para o treinamento e equipamento dos peacekeepers. Uma vez deslocado esse recurso, os

resultados alcançados são agentes mal treinados, equipamentos ineptos e mortes.

Por fim, é importante elucidar que, dentre os assuntos que mais preocupam a própria

Organização das Nações Unidas quanto à abordagem tida como parâmetro, estão a violência

contra a mulher perpetrada contra a população vulnerável que é foco da Missão de Paz por

capacetes azuis e no que concerne ao tratamento aos refugiados e à migração internacional.

Como bem coloca Faganello (2013, p. 184), desde as falhas da ONU na década de 1990 em

lidar com a realidade da prática do peacekeeping na Somália, Bósnia e Ruanda, os relatórios já

demonstravam os abusos sexuais, o grande fluxo de deslocados internos e o genocídio contra a

população civil. Nessa esteira, vale ressaltar a existência do Status of Force Agreement5 que

prevê a imunidade das Operações de Paz perante o país anfitrião (MORAIS, 2015, p. 53).

1.5 Definição dos critérios de análise das Operações de Manutenção da Paz

Quanto à definição dos critérios para a análise dos casos concretos escolhidos, resta

essencial justificarmos o seu sentido e escolha. Para tanto, é importante demonstrar que

independentemente de quais argumentos, viciados ou não por outros interesses, sejam utilizados

para sustentar a razão de ser de uma Operação de Paz, não podemos nos afastar jamais do seu

principal objetivo, qual seja o direito das vítimas das violações de direitos humanos que estão

sendo perpetradas de receber assistência.

Assim, como bem coloca LINDGREN-ALVEZ, (2018, p. 148), quando falamos de

ingerência devemos retirar o foco da ideia egocêntrica e megalomaníaca das nações de

arrogarem para si o título de polícia supranacional e sim, compreendermos na necessidade

humana de ajuda humanitária, o fundamento das ações propostas pela Missão. Considerando

tal ideal, escolhemos os seguintes critérios, tendo em vista que estes são voltados para a

proteção humana das vítimas da nação foco da Missão, já que isto sim condiz com os princípios

sob os quais foi construído o conceito de Operação de Paz, bem como ser coerente com a

fundamentação jurídica que se justifica no Direito Internacional Humanitário.

Assim, são os critérios, sendo que a Jurisdição, a Consulta, a Retirada, o Uso da Força

e a Imparcialidade e a Neutralidade são todos desmembramentos do principal critério para o

5 Acordo das Prerrogativas das Forças, em inglês. Conforme esta diretriz, os peacekeepers seriam julgados de

acordo com as normas de seus países de origem.

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sucesso da Missão, qual seja o Consentimento do Anfitrião: 1) Consentimento do Anfitrião –

consiste na autorização ou mesmo solicitação do Estado foco da Operação em tê-la em seu

território; 2) Jurisdição – consiste no acordo sobre regime especial de jurisdição, o qual

geralmente abrange as imunidades penais e civis em relação à jurisdição do Estado onde está

ocorrendo a Operação de Paz; 3) Consultas para a composição de força ou missão – consiste

em levar em consideração para o exercício da Missão os entendimentos e opiniões do Estado

anfitrião sobre como deve ser esta realizada, entretanto, não há deveres ou garantias de que

estas serão acatadas; 4) Retirada de contingentes – a retirada pode ser solicitada ou pelo

Estado anfitrião ou pelo Estado que cedeu o contingente por uma série de motivos como defesa

nacional, problemas de ordem interna, desacordos sobre as condições, duração excessiva da

Operação, falta de segurança, etc.; 5) Uso da força – critério este sempre questionado e o mais

polêmico de todos os desdobramentos do consentimento do anfitrião, pois a restrição do uso da

força nasce na própria razão de ser da Operação de Paz presente na Carta da ONU, sendo

permitida somente em situações de autodefesa ou para proteção da pessoal humanitário; 6)

Imparcialidade – critério essencial para o sucesso da Missão, pois, para tanto, é necessário o

perfeito entendimento entre os objetivos da Operação e as partes em conflito; não é possível,

entretanto, avaliar a neutralidade, pois esta é questionável por diversas vezes ao longo do

histórico de peacekeeping.

A seletividade das Intervenções não é e nunca foi um mistério para a literatura que

analisa a temática da Ingerência e ter a consciência de que os interesses em termos de política

internacional existem e viciam as Operações é essencial para compreendermos essa dinâmica.

Por outro lado, e não menos importante, a militarização também se apresentar como uma

questão central que divide a doutrina, quanto à sua necessidade ou a preferência pela Missão

integralmente civil. Entretanto, precisamos compreender o que de fato é o cerne da questão. Os

debates em torno das Operações de Paz e a avaliação da sua efetividade ou precariedade não

podem se resignar a analisar as nações autoras como se estas fossem os sujeitos internacionais

da relação jurídica exercendo o seu direito de ingerência ou protegendo o direito da humanidade

pela paz.

Enquanto tentamos compreender ou desafiar as informações que já possuímos, os

verdadeiros sujeitos de direito, vítimas do teatro mundial das nações protetoras, padecem. As

Operações de Paz estão deixando países que já não se fazem estratégicos para seus intentos e

permanecendo em outros que o são, mesmo após os objetivos terem sido alcançados; estão

escolhendo atuar onde lhes convém e confiando ao extermínio e à desgraça populações inteiras,

sem qualquer argumento justificável. Enquanto isso, os esquecidos padecem. Tais análises são

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importantes para a compreensão da realidade, entretanto, há de se buscar um entendimento

analítico baseado nas necessidades das vítimas. Basicamente, muito maior do que o direito de

ingerência como um “dever internacional” é o direito das populações vítimas de serem

protegidas de suas realidades atrozes.

2 A INSERÇÃO DO BRASIL COMO MANTENEDOR DA PAZ

Conforme retiramos do artigo 4º, VI, VII e IX da CF/88, o Estado Brasileiro

compromete-se com a defesa da paz, com a solução pacífica de conflitos e com a cooperação

entre os povos para o progresso da humanidade, no âmbito internacional, através de seu mais

importante diploma legal. Outrossim, sendo também membro fundador das Nações Unidas, o

Brasil assume historicamente a responsabilidade internacional de participação nas Operações

de Manutenção da Paz da ONU, tendo participado de mais de 50 (cinquenta) operações de paz

ao longo da história.

Faz-se, portanto, essencial o estudo do presente tema no que tange à atuação brasileira

e à inserção do nosso país na temática, pois é notável, já há décadas, a posição de protagonismo

que o Brasil vem portando diante da recuperação e manutenção da paz em países que padecem

das mais variadas moléstias. Vale salientar que não só sua participação restou importante, como

o seu engajamento foi pioneiro (FONTOURA, 1999, p. 279).

2.1 O modus operandi do Brasil nas Operações de Manutenção da Paz e a atuação dos

peacekeepers brasileiros

A atuação dos peacekeepers brasileiros é pautada em quatro diplomas normativos

fundamentais, quais sejam: a Constituição Federal, em seu artigo 4º, inciso VI e IX, os qual

determina que as relações internacionais serão regidas pelos princípios da defesa da paz e da

cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; a Estratégia Nacional de Defesa, a

Política Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa. Encontramos na Lei Complementar

nº 97 de 9 de junho de 1999 a previsão do destacamento de forças armadas para o emprego em

Operações de Paz.

A não-ingerência e a solução pacífica de conflitos estão entre os princípios mais

enfatizados pela atuação brasileira ao longo das décadas. Entretanto, com a propagação do

princípio da não-indiferença – proveniente das discussões pós conflitos armados na África

como o caso Ruanda (1994) e Somália (1992), nos quais não houve um posicionamento ativo

por parte da comunidade internacional e consequentemente da própria ONU, que se eximiram

de proteger da violência e do genocídio a população civil que não participava do conflito – a

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partir do século XXI, os peacekeepers brasileiros passaram a atuar mediante uma nova diretriz

composta pela comunhão do princípio da não-indiferença com o princípio da não-ingerência,

representando, assim, o equilíbrio necessário entre a atuação necessária e o resultado eficaz

(AGUILAR, 2015, p. 12).

Também é notável a resistência do país em enviar contingentes de peacekeepers para

Missões de Peace enforcement6 devido principalmente à previsão constitucional acerca da

solução pacífica de conflitos, além do modo de agir próprio das Relações Internacionais e do

histórico da moderadora diplomacia brasileira, enviando apenas, nesses casos, missões

individuais de observadores militares.

Outro termo interessante da atuação brasileiras nas Operações de Paz se deu no sentido

de que a partir do momento em que se passou a ser considerada a possibilidade de ouvir o

Estado anfitrião e levar em consideração a sua fala para o exercício da Missão, com a UNFICYP

(Chipre), o Brasil passou a exigir critério para aprovar a sua participação. Quando este critério

não foi atendido, portanto, o Brasil decidiu por enviar somente observadores militares

(CARDOSO, 1998, pp. 22-23).

2.2 Análise das Operações de Manutenção da Paz em que o Brasil foi parte no Século XXI

A UNIFIL é uma missão de manutenção da paz estabelecida em 1978, a qual a partir de

2006 passou a contar com uma Força-Tarefa Marítima, ocasião em que se insere as tropas e

embarcações da Marinha brasileira, que a partir de 2011 tomou a frente da operação. Esse

contexto exige a análise pormenorizada do conceito de diplomacia de defesa, a qual pode ser

definida como “emprego não coercitivo do poder militar em apoio à política externa”

(ALMEIDA, 2017, p. 37-38).

Não é por acaso que a MINUSTAH7 merece lugar de destaque dentre as missões em

que o Brasil participou não só no Século XXI, mas desde 1947, visto que possuiu o maior

contingente militar da missão (37 mil pessoas) e garantiu durante todo o mandato o comando

militar desta, decisão logística incomum por parte das Nações Unidas, que geralmente efetua a

repartição periódica da competência (HAMANN, 2018).

É interessante salientarmos que um dos propósitos desenvolvidos na MINUSTAH tinha

como objetivo auxiliar na execução de metas presentes na constituição haitiana de 1987,

provenientes do projeto de fortalecer as instituições nacionais, quais sejam: a reforma do

sistema judiciário, a profissionalização das forças armadas e a formação de uma força policial

6 Imposição da Paz, em inglês. 7 Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti - sigla MINUSTAH em francês.

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independente do exército. Passou, então, a ser debatido o objetivo de “atuar nas áreas de

reconstrução econômica do Haiti e colaborar com as forças de ordem nacionais, no esforço de

apaziguamento interno durante o período de transição para a democracia”. (CÂMARA, 1998,

pp. 133/134).

2.3 Convergências e divergências entre as operações e os seus princípios e objetivos

basilares

Resta essencial salientar, em primeira análise, que há uma eterna confusão conceitual,

conforme já descrito, entre os ideais de paz e segurança nas Operações das Nações Unidas e no

Conselho de Segurança como um todo. Se inicialmente, as Peacekeeping Operations foram

pensadas para de forma objetiva manter a paz, no sentido de manter acordos de paz realizados

através da diplomacia e apenas acompanhar a sua efetivação ou descumprimento sem intervir,

após a incorporação na memória coletiva da Guerra ao Terror, a paz foi securitizada e

comercializada sob essa nova bandeira.

Considerando que os conceitos mudam de era em era, o indivíduo do Século XXI

compreende a paz como se segurança fosse. Nessa perspectiva, a presença da militarização a

fim de garantir a segurança é clara em nossas mentes. Perdemos a compreensão de que quando

a paz é alcançada, a segurança é desnecessária e a manutenção da paz pode ser feita por meio

de Missões integralmente compostas por civis. Assim descreve Kant em sua obra “A Paz

Perpétua” (2008) “Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, de todo

desaparecer. Pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a guerra, devido à sua

prontidão para aparecerem sempre preparados para ela; os Estados incitam-se reciprocamente”.

Se conforme já colocado, os Blue Helmets8 compõe a maior força militar supranacional,

podemos compreender as consequências positivas e negativas de sua presença em áreas de

conflito.

Apesar de garantirem por vezes o êxito de Operações que não poderia de outra forma

ser alcançado, observamos também o claro apelo que sua imagem confere à securitização

global, caminho este que vai em direção oposta ao que antes historicamente buscávamos como

a desejada paz. É clara portanto, a divergência que se apresenta em relação aos objetivos para

os quais foram criadas as Operações de Manutenção da Paz e as origens destas no Direito

Internacional Humanitário. Unindo-se tal percepção aos demais fatores aqui já discutidos, como

os interesses escusos das nações participantes, o direito de ingerência e a seletividade em

8 Capacetes azuis, em inglês, é considerada outra forma de se referir aos Peacekeepers.

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detrimento do direito à assistência humanitária internacional, que deveria ser o cerne deste

teatro de poder, compreendemos as consequências advindas das Missões quando seu mandato

é viciado; grande exemplo desse entendimento se apresenta no caso do Iraque.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo comparativo possibilitou um olhar, ainda que singelo, para as diferentes

realidades das Operações de Paz desenvolvidas, as quais o Brasil se dedica no início do presente

século. Com este estudo, observamos que o desenvolvimento das Operações de Paz e a

construção do que hoje entendemos por mandato ocorreu devido a uma necessidade política das

organizações de conquistarem soluções e, principalmente, de os países que dominavam os

debates conseguirem um desfecho favorável aos seus interesses, em detrimento de uma

fundamentação jurídica razoável. Para tanto, por vezes ao longo das discussões, buscava-se o

fundamento para a intervenção do Conselho de Segurança em premissa subsidiárias que, apesar

de serem fatos, não enfrentavam devidamente a antinomia soberania versus direito de

intervenção, como por exemplo o argumento do aumento do fluxo de deslocamento de

refugiados para países vizinhos em torno dos países foco das Operações, de modo que estaria

ameaçando a paz e a segurança internacionais.

Quanto especificamente ao caso haitiano, se destaca a participação brasileira nas

discussões, quando fez constar a característica de “excepcionalidade” da atuação do Conselho

de Segurança nos debater iniciais sobre a MINUSTAH, a fim de que não se instaurasse um

precedente para futuras ingerências nos mesmos termos, sem que houvesse fundamentação

jurídica suficiente.

Em vias de perder a credibilidade internacional em relação à resolução da crise haitiana

e apesar dos embargos econômicos que afetavam ferozmente a economia do país caribenho

(resolução 841), após nova expulsão dos observadores internacionais por parte do governo de

fato, o Conselho de Segurança enfim determina a criação de uma força multinacional com base

no pretexto do perigo da crise de refugiados, por meio da resolução 940, a fim de conter a crise

haitiana utilizando todos os meios possíveis e estabelecendo um precedente importante para a

ingerência estrangeira em assuntos internos na região sob fundamentos jurídicos frágeis e

contrariando claramente o princípio da não-intervenção. Apesar do fundamento ilegítimo,

obteve-se uma suposta estrutura pacífica para a intervenção militar norte-americana com base

em acordos realizados para uma “invasão consentida”, oportunidade em que nitidamente foram

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utilizadas interpretações incompatíveis e desencontradas para legitimar interesses, os quais não

objetivavam a diminuição do sofrimento do povo haitiano.

Quanto ao posicionamento brasileiro em relação às medidas adotadas e o seu modus

operandi habitual, desde o início da crise haitiana, o Brasil apoiou a liderança da OEA nas

negociações, pois esta seria o ente legítimo para tratar da questão, como guardiã da democracia

na região. Mantendo, assim, a sua posição durante todo o desenrolar dos debates de modo

coerente, o Brasil foi defensor das negociações diplomáticas e contra quaisquer determinações

de ingerência que afetassem a soberania do Haiti, tendo em vista a questão ser interna e

nacional, não restando justificativas suficientes à intervenção militar ou aos embargos

econômicos que restringissem essencialmente a livre determinação do cenário político interno

haitiano.

Como já comentado, o agravamento e a extensão da crise levaram o Brasil a apoiar em

parte as ações determinadas tendo em vista os objetivos iniciais de reestabelecer a democracia

e fortalecer as instituições democráticas, entretanto, o nosso país preocupava-se em impedir que

a fórmula construída para a excepcional crise haitiana fosse reutilizada no futuro para situações

semelhantes em termos de legitimar quaisquer ações interventivas com base em interpretações

arbitrárias.

Nessa conjuntura, vale salientar que a preocupação em fortalecer o princípio da não-

intervenção e a segurança jurídica da norma internacional, deve imperar, mesmo com os

avanços realizados na direção oposta. Isto porque o compromisso com a carta da OEA em

relação à abstenção de interferência nos assuntos internos e externos de qualquer país, além de

ser um objetivo regional, é uma das premissas da nossa Constituição Federal. A única

possibilidade de ingerência prevista prevê um quadro grave atentatório à segurança e à paz

regionais, sendo que a carta da OEA ainda determina a proibição de atuações inconsistentes

juridicamente, tendo em vista a imprevisibilidade dos desdobramentos e danos de tais ações

para a região.

A aplicação do direito internacional humanitário na conjuntura das missões de paz

nasce, portanto, com o fundamento de um direito internacional de ingerência que se legitima na

medida em que a organização internacional age, interferindo em questões domésticas dos

países, em nome da proteção de uma população que está sujeita a sofrimento decorrente de uma

violação massiva dos direitos humanos. Assim, sob esse falso manto de legitimidade, o

Conselho de Segurança passa a interferir com intervenções militares nas crises internas dos

países sem fundamentação jurídica que sustente as suas ações e com justificativas vazias

legalmente.

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