a paródia em novelas-folhetins camilianas

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A PARDIA EM NOVELAS-FOLHETINS CAMILIANAS

Biblioteca Breve

SRIE LITERATURA

2

DIRECTOR DA PUBLICAO

ANTNIO QUADROS

3

JOS DIL DE LIMA ALVES

A PARDIA EM NOVELAS- -FOLHETINS CAMILIANAS

MINISTRIO DA EDUCAO

4

Ttulo Pardia em Novelas-Folhetins Camilianas ___________________________________________ Biblioteca Breve / Volume 115 ___________________________________________ 1. edio 1990 ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao e Cultura ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________ Tiragem 4 000 exemplares ___________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira ___________________________________________ Orientao grfica Lus Correia ___________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________ Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA Fevereiro 1990 Depsito legal n. 33 091/89

ISBN 972 - 566 - 141 - 9 ISSN 0871 - 5211

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NDICE 1 CAMILO, O ROMANCE-FOLHETIM E A CRTICA ........7 2 O ROMANCE-FOLHETIM.............................................17

2.1 Redescoberta Crtica................................................... 17 2.2 Origem e Importncia................................................. 21 2.3 Reaco Contrria e Posio de Camilo .................... 29

3 PARDIA: A LITERATURA EXPERIMENTAL

FACE LITERATURA TRADICIONAL .........................36 4 Antema, Mistrios de Lisboa, Livro Negro de Padre

Diniz e Mistrios de Fafe: PRESENA DA PARDIA FACE AOS MODELOS DO ROMANCE-FOLHETIM.....47

4.1 Funes Crticas: elementos tradicionais e

experimentais na construo da novela-folhetim camiliana...................................................................... 53

4.2 Factos, Locais e Datas: romance histrico e verosimilhana romanesca ......................................... 103

4 .3 Contedo e Personagens: modelos pardicos externos e simetrias especulares internas ................... 110

5 CAMILO, A PARDIA E O SENSO CRTICO.............146 6 NOTAS........................................................................154 7 BIBLIOGRAFIA ..........................................................160

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Camilo lixvia contra todas as gafeiras. E alm desse papel de potassa custica, ele nos d essa coisa linda chamada topete. Camilo nos desabusa, como aos seminaristas tmidos um companheiro desbocado. Ensina-nos a liberdade de dizer fra de qualquer frma. Cada vez que mergulho em Camilo, saio de l mais eu mesmo mais topetudo.

(Monteiro Lobato)

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1 CAMILO, O ROMANCE-FOLHETIM E A CRTICA

Em artigo intitulado Como andam os estudos camilianos, publicado em Por uma Literatura de Combate, editado em 1975, diz o ensasta portugus Jos Manuel Mendes:

O grande prosador do sculo XIX, a um

tempo idolatrado e malquisto, mal tem sido submetido a uma anlise de fundo, e isso bem concorreu para que se generalizassem posies extremamente fluidas, qualquer que fosse o ngulo de observao. (MENDES [1975] p. 273)

Na verdade, essa afirmao revela-se bastante

pertinente para quem, mesmo de passagem, compara trs ou quatro opinies emitidas sobre a obra de Camilo Castelo Branco. Aqui ou ali possvel deparar-se com colocaes realmente significativas; no conjunto, porm, lugares-comuns, ficando-se com a impresso de que um repete o que outro j dissera.

Em se tratando das novelas classificveis como folhetinescas, ento, poder variar o espao que o

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comentarista ocupa, pois na essncia ter-se- sempre o mesmo contedo.

Para simples comparao, veja-se o que escrevem quatro estudiosos, referindo-se chamada fase de aprendizado e que engloba novelas como Antema e Mistrios de Lisboa:

1) At meados da dcada de 50, a obra

novelstica de Camilo no se individualizava notavelmente dentro das tendncias principais que entretanto se verificavam na fico em prosa de autoria portuguesa ou traduzida. Tendo-se estreado em letra redonda com pardias de estudante, com stiras e crnicas anti-cabralistas, com poesias ultra-romnticas, com dramas histricos e um folheto de cordel sobre um crime hediondo, publica em 1848, em O Eco Popular e O Nacional, uma srie de folhetins em que, no fundo, se debatem os conflitos sociais e morais da juventude romntica (A ltima vitria de um conquistador, O esqueleto, etc.). Trata-se, em geral, de um gal esgrouviado e macilento, segundo a moda de Arlincourt e outros escritores romnticos, que, embora de boa ndole, se deixa corromper pela podrido urbana (ideia de Rousseau), seduz uma mulher e a abandona, enfastiado ou que, ento, a ama desvairadamente, mas tem de ceder perante a imposio de um pai tirano que a pretende casar com um rival to lorpa como rico, de tudo isso resultando enlouquecimentos, mortes pela tsica, pelo suicdio ou assassinato. Camilo no mais abandonar de todo este

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esquema, que se relaciona com a idealizao de uma como religio do amor, em que as aspiraes ideais (o prelibar de bem-aventuranas) s podem recortar-se contra um fundo trgico de impossibilidades sociais, ou de crimes e sacrilgios; em que, por outro lado, a posse fsica nunca deixa de gerar o fastio da mulher angelizada, o solilquio lrico do tdio, ou a responsabilizao vaga da sociedade ou do destino por tudo isso.

Nesta fase inicial nota-se tambm, em certos folhetins, como no drama Agostinho de Ceuta, a influncia do historicismo e do moralismo grandloquo de Herculano, que se cruzam em Antema (51), a sua primeira novela editada em volume, com a influncia de Nossa Senhora de Paris de Hugo (o tema da paixo sacrlega e rancorosa de um sacerdote). Mas ainda h outras tendncia que, depois de leves afloraes, se desenvolve atravs de Antema e atinge o apogeu na srie novelesca constituda pelos Mistrios de Lisboa (65) e o Livro negro do padre Dinis (55): a tendncia melodramtica para o enredo de perseguio, expiao e terror macabro atravs de vrias geraes de uma mesma famlia, com enjeitados, raptos, prises, crimes, reaparies e reconhecimentos inverosmeis. Camilo procura satisfazer assim o gosto do romance negro de aventuras, lanado pelo pr-romantismo ingls (H. Walpole, Ana Radcliffe) e afim do melodrama de Pixrecourt, e de que Souli, Nodier, Fval, Sue e o prprio Vtor Hugo foram os principais transmissores. , no

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entanto, significativo o facto de o nosso novelista esbater, se no eliminar, a crtica da misria e das degradaes morais, das perverses que a misria provoca, tal como a encontramos nos livros de Eugne Sue e Vtor Hugo que imita.

*A data de (65), aps Mistrios de Lisboa,

evidente equvoco, pois o livro, como se sabe, foi publicado em 1854). (SARAIVA e LOPES [1978] p. 888-9).

2) Analisando mais de perto, podemos

assinalar, nos anos de aprendizado ou ensaio, quer dizer, entre 1851 e 1855, a submisso ao romantismo negro, terrfico, postio, a que no so alheios os modelos franceses: Hugo, Souli, Charles Nodier, Eugne Sue; a fantasia de Camilo, dcil ao gsto dum pblico habituado s tradues do francs, desentranha-se em mirabolantes intrigas, lances de surpresa e terror, homens fatais, de aspecto glacial e paixes ocultas. Mas j nestas primeiras novelas, do Antema (ttulo sugerido por Notre Dame de Paris) aos Mistrios de Lisboa e ao Livro Negro de Padre Diniz, se mostra o pendor para a observao de tipos, costumes e linguagem locais, alm da autodefesa que consiste em troar de ingredientes literrios em voga. (BRANCO [1960] Org. Sel. Not. Jacinto do Prado Coelho, p. 23-4).

* LOBATO, MONTEIRO. A Barca de Gleyre. So Paulo,

Brasiliense, 1946. V. 2, p. 11.

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3) Em 1851 publicou o Antema, seu primeiro

romance. Poucos anos decorridos, em 1854, saram os Mistrios de Lisboa. So dois romances que se filiam no fantstico, sacrificando ao imprevisto o verosmil. (FERREIRA [s.d] p. 256).

4) Antema seu primeiro romance; romance

entre histrico e romanesco medocre. (PINTO [1964] p. 226).

Pela leitura dos trechos, citado o primeiro muito

longamente, para no truncar seu sentido, pode-se verificar alguns pontos comuns, dentre os quais se destacam:

a) cpia de modelos franceses (e modelos de baixa

qualidade, pelo que se depreende); b) ausncia de valor literrio; c) preocupao em escrever para agradar ao pblico. Ora, a ser verdadeiro tudo isso, pode-se afirmar que

o autor portugus carecia de senso crtico mais apurado em relao sua prpria obra.

No entanto, apesar do renome e da autoridade incontestvel de Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, autores da difundidssima Histria da Literatura Portuguesa, e de Jacinto do Prado Coelho, torna-se muito difcil concordar com os juzos por eles exarados em relao s novelas-folhetins de Camilo.

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De facto, pode-se afirmar que uma leitura atenta dos textos camilianos autoriza interpretaes bastante diferentes e mesmo opostas quelas emitidas pelos ensastas acima mencionados.

Camilo tem sido sistematicamente apontado como autor de uma vastssima e irregular obra literria. Considerado o verdadeiro artfice da novela passional, o gnio camiliano reconhecido, fazendo-se-lhe, contudo, uma srie de restries, algumas mais, outras menos pertinentes.

Autor muito difundido, como bem atestam as sucessivas edies de suas novelas, personalidade marcante, activo em sua produo literria e nas polmicas que manteve, Camilo foi um esprito lcido e, pode-se mesmo afirmar, pela leitura do que deixou, bastante superior ao comum dos homens.

Mas, se com justia se lhe reconhece o valor e a capacidade criativa em novelas como Amor de Perdio e romances como A Brasileira de Prazins, no pode deixar de surpreender a desconsiderao em que tida aquela parte de sua obra onde se evidenciam as marcas dos modelos franceses utilizados.

Contudo, relativamente fcil perceber as razes que esto na raiz mesma de tal desconsiderao. O romance-folhetim, praticamente desde seu surgimento, foi visto por muitos como sub-literatura, cujos objectivos eram apenas agradar a um pblico amorfo, sem a devida instruo, semi-analfabeto, de cultura bastante inferior. Em uma palavra: indigno do interesse de alguma obra ou autor srios.

Assim, todo o escritor que incursionasse pelos caminhos do romance-folhetim no poderia ser visto

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de modo favorvel e apreciado pelos que desdenhavam as narrativas folhetinescas.

E fcil notar que tais posies, assumidas pelos que se julgam membros e guardies da chamada elite cultural, normalmente comprometida com os sistemas conservadores, via de regra reaccionrios, persistem ainda.

Camilo lana-se nas lides literrias como um escritor que se apoia em modelos franceses facilmente identificveis como romances-folhetins: por isso suas novelas so entendidas como carentes ele toda originalidade, visto no ser difcil apontar os modelos que copiam: Hugo, Sue, Notre Dame de Paris, Mistrios de Paris, etc.

Poucos, e mesmo assim sem se aprofundarem o suficiente, chegam a perceber a considerao em que Camilo tinha o romance-folhetim. Os comentaristas ficam apenas com o superficial, sem considerar sequer alguns pontos bastante claros que o escritor ape a suas obras como Advertncias, Introdues a que ele coloca em Antema, mais especificamente, exemplar.

E Camilo passa a ser vtima do raciocnio simplista e redutor que tem deturpado consideravelmente a avaliao de sua novela-folhetim.

H elementos que facilmente evidenciam as marcas de romances-folhetins? Ento no pode ser outra coisa: cpia. H referncia a um ou outro dado de cunho histrico? Simples: romance histrico.

A partir da, porque na verdade impossvel deixar de reconhecer o valor intrnseco de Camilo, torna-se necessrio buscar justificativas para os pecadilhos camilianos, principalmente os de seus primeiros escritos. Ento surgem as fases. Resolvido o problema:

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joga-se para a primeira tudo o que possa assemelhar-se ao folhetim francs.

Contudo, mal se atinara com a soluo, l surge outro empecilho. Acontece que Camilo rebela-se a esse novo tipo de priso, ele que no se acostumara da Relao, no Porto.

De repente, assim, sem mais nem menos, em obra j catalogada como de sua fase de maturidade, l vm outra vez aqueles ressaibos folhetinescos, cpia barata de folhetinistas ainda mais baratos. Mesmo assim, como ltimo recurso, lana-se mo das indefectveis explicaes:

Dependendo quase exclusivamente do seu

trabalho literrio, no pde nunca dar-se ao gosto de construir um romance de flego, torneado de caracteres e ambientes, que eliminasse os atractivos folhetinescos e a retrica sentimental. (SARAIVA e LOPES [1978] p. 886).

Todavia, h crticos que percebem a influncia

folhetinesca em Camilo somente na dita primeira fase, como o caso de Joaquim Ferreira, anteriormente referido, que afirma:

O gnio de Camilo fatigou-se depressa dessa

literatura hbrica, que desgostava o seu vigoroso senso crtico. (FERREIRA [s.d.] p. 856).

Em certo sentido no seria difcil concordar com

Joaquim Ferreira, principalmente no que se refere ao

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senso crtico do escritor de Seide. Quanto a haver-se fatigado dessa literatura hbrida, bem possvel que Joaquim Ferreira estivesse louvado nas palavras do prprio Camilo.

A bem da verdade, convm recordar tambm que Jacinto do Prado Coelho, em seu estudo citado anteriormente, transcreve o interessante depoimento que Camilo pe como Advertncia na segunda edio de Doze Casamentos Felizes. Ali o diz o novelista:

Cuidou o autor que este livro, conta de sua

muito simpleza e naturalidade, desagradaria ao mximo nmero de pessoas, que aferem, ou dantes aferiam, o quilate duma obra de fantasia consoante os lances surpreendentes e extraordinrios. No foi assim. A poca outra, e melhor. O maravilhoso teve sua voga, seu tempo e sua catstrofe. Tambm o autor foi tributrio da moda, quando, mais que a arte, o seduzia e subornava a glria de ser lido.

A esto os Mistrios de Lisboa e o Livro Negro e que tais volumes, cujas reimpresses so o proporcionado castigo de quem os fz. (BRANCO [1960] p. 23).

Igualmente no ser demais registar que a

introduo escrita para a novela Antema, publicada em 1851, e que de certo poderia ser entendida como uma profisso de f do autor em relao ao romance-folhetim em voga, o oposto a essa ltima parte da citada Advertncia publicada em 1862. Inobstante, praticamente no foi levada em considerao pelos estudiosos e crticos da obra camiliana. A tnica, em tal

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assunto, a insistncia em recorrer aos depoimentos em que Camilo renega a sua produo anterior, para cujas reedies no cessa de escrever novas Advertncias e Introdues, curiosamente, sem procurar tir-las de circulao. Afinal, um coitado que vive da pena...

Com tais observaes, o que se pretende afirmar a importncia de um elemento at agora pouco valorizado na produo camiliana, ou seja, o agudo senso crtico daquele autor.

E foram a revitalizao do conceito de pardia, graas aos estudos relacionados narrativa experimental, e a convico de que a lucidez de Camilo necessariamente fora muito alm do que se lhe reconhece, as responsveis pela realizao do presente estudo.

O modo como aparecem elementos pardicos nas novelas-folhetins do autor de Antema, para l da frequncia com que se pode identific-los, demasiado significativo para tratar-se de mera coincidncia.

Todavia, mesmo fruto do acaso, seria o suficiente para reconhecer que s os competentes so bafejados pela Sorte em seu fazer profissional.

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2 O ROMANCE-FOLHETIM

2.1 Redescoberta Crtica

A fora dos meios de comunicao de massa ocupa hoje a ateno de tericos e de crticos de diversas reas, ao mesmo tempo em que desperta o interesse de grande faixa do pblico.

Apoiada por uma tecnologia que no cessa de evoluir, de modo particular a televiso j se afirmou como um potente veculo de informaes. Discutidssima no campo formativo, ela tanto pode ser utilizada para auxiliar na sedimentao de elementos culturais bsicos para determinado povo, como prestar-se ao solapamento dos princpios fundamentais de uma dada cultura, exercendo uma irresistvel presso sobre os consumidores da imagem, numa verdadeira aco de carcter alienador.

Sempre voltada para a consecuo de seu objectivo ltimo, qual seja o de atingir o maior nmero de audincia para garantir-se nesse modelo de sociedade

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competitiva, os diversos canais de estaes transmissoras no medem esforos para atrair o pblico, mantendo-o o quanto possvel em sintonia.

Dessa forma, tornou-se praxe levar os programas de televiso a repetir frmulas que j haviam obtido resultados positivos em outros meios de comunicao de massa. No Brasil, realidade da qual se pode aqui falar com maior conhecimento de causa, por vrios anos a televiso foi o prolongamento das emissoras de radiodifuso.

Desde os programas humorsticos, at aos noticirios, passando por apresentaes de musicais e de variedades, como as reportagens desportivas, todos, produtores, directores, apresentadores e artistas, reproduziam o j realizado nas emissoras de rdio do pas (1).

Em grande voga a partir da dcada de Quarenta, as novelas radiofnicas no iriam ser desprezadas pela televiso, em sua busca para atrair e fixar um grande pblico consumidor.

Na verdade, desde seu lanamento, as novelas televisionadas foram oferecidas ao grande pblico nos horrios mais acessveis que passaram a ser chamados de horrios nobres, na gria dos profissionais desse meio. E logo elas foram transformadas em verdadeiros carros-chefes das programaes locais em emissoras de televiso.

Assim, as melodramticas novelas televisionadas tornaram-se herdeiras das novelas de rdio, como estas haviam sido as legatrias dos romances-folhetins divulgados pelos jornais desde 1836.

Ento, mais de cem anos depois de haver sido lanada na Frana, e obedecendo ainda s mesmas

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frmulas esquemticas, possvel verificar a significativa presena dessa narrativa fragmentada em captulos que resiste, no s passagem do tempo, mas, adaptando-se s situaes do momento, consegue obter resultados positivos desde a forma impressa at televisionada.

E foi graas ao excelente xito obtido pela novela atravs da televiso hoje exportada para vrios pases, inclusive Portugal que o romance-folhetim voltou a ser explorado, debatido e estudado no Brasil (2).

Assim, a esto Josu Guimares com a novela Dona Anja e o estreante Jos Henrique Valle e Silva com o conto Breve estria sensual de Alma Rosa dos Santos, um folhetim trgico, porm muito atual (3), explorando os recursos da narrativa folhetinesca.

A rigor deve-se registar o facto de que isso no acontece isoladamente no Brasil. S no denominado Cone Sul, o argentino Manuel Puig, bem antes dos citados autores brasileiros, j publicara Boquitas Pintadas em 1969, alcanando a 14. edio em 1974 (4).

No mbito terico, renomados estudiosos europeus tm publicado trabalhos de anlise sobre o romance-folhetim. No Brasil, Muniz Sodr, em seu livro Teoria da Literatura de Massa, utiliza-se de uma expresso particularmente significativa ao falar de um folhetim-eletrnico (5).

Tudo isso faz com que se recupere para o acervo cultural de nossa poca uma produo literria de massa, realizada na primeira metade do sculo XIX.

A discusso ensejada por tal redescoberta, como no poderia deixar de ser, abriu vrios caminhos no

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que se refere aos estudos e anlises de obras escritas pelos mais afamados folhetinistas dos Oitocentos.

O crtico e terico italiano, Umberto Eco, em seu j clssico Apocalpticos e Integrados, apresenta um estudo sobre a Retrica e Ideologia em os Mistrios de Paris de Eugne Sue (6).

No referido trabalho, o ensasta discute diversos problemas em torno de um dos mais difundidos romances-folhetins franceses cujo ttulo regista a palavra chave: mistrios.

A propsito do tema, Jacinto do Prado Coelho, citado por Tlio Ramires Ferro, refere-se aos seguintes autores que em Portugal se utilizaram da palavra mistrios em ttulos de obras: Hermenegildo Correia: O diabo em Lisboa ou Mistrios da Capital (1851); Hogen: Mistrios de Lisboa (1854); Camilo Castelo Branco: Mistrios de Lisboa (1854) e Mistrios de Fafe (1868); Ea de Queirs e Ramalho Ortigo: Mistrio da Estrada de Sintra (1870) (7). No Brasil, Benjamin Costallat talvez tenha sido quem mais se notabilizou ao escrever, no final da dcada de 1970, a srie Mistrios do Rio publicada originariamente em folhetim do Jornal do Brasil, logo depois editada pela Miccolis (8).

Contudo, Eugne Sue e o romance-folhetim j haviam sido objecto de estudos anteriores ao de Umberto Eco.

Na verdade, o prprio Eco cita Edgar Allan Poe e V. Belinski, bem como Marx e Engels, dentre os autores que se preocuparam em comentar a obra de Sue, especialmente os Mistrios de Paris (ECO [1976] p. 188-9).

Em 1929, Nora Atkinson publica um alentado estudo sobre o autor de Judeu Errante, referindo-se

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origem, estrutura e ao significado do romance-folhetim (9).

Em lngua portuguesa, praticamente ainda inexistem publicaes de ensaios sobre autores lusos ou brasileiros que tivessem trabalhado a partir de modelos do romance-folhetim. No obstante, h autores e obras que seguramente seriam encarados de outra forma, se fossem submetidos a estudo a partir dos pressupostos da produo literria de massa (10).

Nesse sentido, Camilo certamente deve estar entre os que mais desafiam o interesse, visto ter produzido em grande escala naquela linha que se convencionou chamar de romance-folhetim, muito embora ele mesmo houvesse precavidamente registado na Introduo de sua primeira novela publicada em forma de livro:

O escritor destas coisas ainda no abriu

matrcula, nem pede que o inscrevam ainda custa de uma boa reputao de folhetinista. Se a escola, em nome do sculo, do futuro e da humanidade, o interrogar pela substncia til deste apontoado de palavras, o autor no lhe d resposta alguma. (BRANCO [1974] p. 11).

2.2 Origem e Importncia

O romance-folhetim tem sua origem na Frana, no alvorecer mesmo do sculo XIX.

Nora Atkinson, em seu Eugne Sue et le roman-feuilleton, diz:

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A origem do folhetim remonta ao ano de

1800. no 8 pluvioso, no VIII que encontramos pela primeira vez a expresso Folhetim do Jornal de Debates. Fundado por Geoffroy, o folhetim de 1800 toma a forma de um suplemento consagrado crtica literria e compe-se de quatro pginas, fazendo parte da edio in folio do jornal () (11).

A ser correcta a informao de Atkinson (12), foi

Emile de Girardin, em 1836, quem primeiro teve a ideia de publicar romances em fascculos, atravs do jornal Presse, que apareceu no 1. de Julho daquele ano.

Em Frana, o romance-folhetim alcanou grande notoriedade entre os anos de 1836 e 1850. Ento, renomados escritores colaboraram nos suplementos de jornais como Sicle e Constitutionnel, alm dos j citados Journal de Dbats e Presse.

Romancistas como Balzac, Vtor Hugo, Alexandre Dumas, pai, Alexandre Dumas, filho, Thephile Gautier, Eugne Scribe, Frdric Souli, Alfred de Musset, Georg Sand e o mais popular de todos os folhetinistas, Eugne Sue, publicaram inmeras obras que permaneceram como expoentes desse gnero na chamada literatura de massa.

De Frana, o romance-folhetim passou s demais partes do Ocidente, cultivado sempre por grandes nomes da literatura de cada pas.

O jornalismo entrara em sua fase industrial, e um pblico cada vez mais vido de informaes era atingido pelos inmeros rgos de imprensa escrita que impunha sua fora irresistvel.

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O romance-folhetim abria aos escritores a possibilidade de atingir a um maior nmero de leitores; os contratos oferecidos pelos proprietrios das empresas jornalsticas queles autores mais destacados na preferncia junto ao pblico tornavam-se muito vantajosos.

Firmado o prestigio junto aos consumidores desse novo produto posto ao alcance de todos, o escritor podia encarar sua actividade em termos estritamente profissionais.

Passou a ser possvel viver com a remunerao recebida pelo trabalho de escrever. E muitos, como Dumas, pai, souberam aproveitar muito bem os bons contratos oferecidos, percebendo quantias considerveis (13).

Em Portugal e no Brasil, inmeros so os autores que se lanaram atravs do romance-folhetim, e muitos dos considerados importantes escritores do sculo passado publicaram grande parte de sua obra em suplementos e rodaps dos jornais de maior prestgio nesses pases. Sem exagero, pode-se afirmar que alguns desses autores conquistaram desde logo o grande pblico, justamente graas ao veculos de que se utilizaram.

Em 1843, diz Nelson Werneck Sodr, em sua Histria da Literatura Brasileira, comea a ser publicado O Correio Mercantil, jornal que teve papel importante na actividade literria da fase romntica (SODR [1964] p. 215). Atravs das pginas do referido jornal foi que apareceu pela primeira vez um dos romances mais difundidos no Brasil durante o sculo passado: Memrias de um Sargento de Milcias, de Manuel Antnio de Almeida (SODR [1964] p. 227).

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Um marco significativo no Romantismo brasileiro, O Guarani, de Jos de Alencar, apareceu primeiro em folhetim, nas pginas do Dirio do Rio de Janeiro (SODR [1964] p. 281). E Machado de Assis, sem favor o maior dos romancistas brasileiros at hoje, publicou muitos de seus trabalhos em jornais (SODR [1964] p. 311). Em Portugal, no ser necessrio citar outro autor, alm de Camilo Castelo Branco, indubitavelmente o maior dentre todos os folhetinistas em Lngua Portuguesa. Em princpio, poder-se-ia dizer com Esther de Lemos:

O folhetim , na literatura jornalstica

daquele tempo, uma seco que abrange grande variedade de gneros romance histrico ou novela sentimental, crnica de viagem, crnica de actualidades polticas, literrias, cientficas e artsticas, conversa humorstica e divagante com o leitor, versando assunto do dia a dia... (BRANCO [1966] p. 5).

Contudo, tal destaque atingiu o romance-folhetim

que veio a tornar-se um verdadeiro gnero narrativo, estabelecendo suas caractersticas prprias.

Na verdade, muitas obras que desde a primeira edio foram impressas em livros, como Os Miserveis, de Vtor Hugo, por exemplo, com propriedade so considerados como romances-folhetins, segundo a lio de Nora Atkinson (ATKINSON [1929] p. 10).

Em sua maior parte visando servir de entretenimento a um pblico urbano pouco exigente do ponto de vista das pretenses de refinamento cultural, o romance-folhetim estruturalmente

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simples. Com intriga bastante complicada, a fim de manter a ateno do pblico, ele privilegia quase sempre o mistrio e o terror; as personagens so simplificadas ao mximo, restringindo-se aos tipos; h, bem destacado, o gosto pelos golpes teatrais e pelas aparies sbitas de certas personagens quase esquecidas, tanto pelo leitor, quanto pelo prprio autor; frequentes so tambm as interrupes em pontos crticos ou no clmax.

J em relao aos temas, destacam-se as preocupaes de caracter social, as lutas contra a opresso e a injustia, sobressaindo, ento, a figura do heri que se bate com denodo em favor das boas causas.

Tambm so comuns os temas didcticos e aqueles em que o homem est submetido ao destino, necessidade.

Assim esquematizado, o romance-folhetim pode ser escrito mesmo por quem no possua as mnimas qualidades artsticas e no tenha as mnimas pretenses literrias, produzindo somente para atender ao consumo, ou para melhorar suas condies de sobrevivncia, como se diz a respeito de Alusio Azevedo:

e elabora-os sob a presso da necessidade,

passando do folhetim romntico mais vadio aos livros em que capricha na feitura e em que se realiza. Confessa, em documentos ntimos, o drama de subsistncia que o fora a compor Mistrios da Tijuca, quando desejaria escrever os grandes romances (SODR [1964] p. 390).

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Como fcil observar pelos comentrios anotados

at aqui, os mistrios deviam ter o condo de resolver quaisquer problemas pecunirios, pois certamente havia considervel pblico disposto a mergulhar nos domnios de uma realidade que lhe era desconhecida e que exercia um irresistvel fascnio.

De igual modo, simples notar como e quanto o folhetim foi acusado pelo achatamento da literatura estabelecida at ento; as palavras de um Werneck Sodr, historiador da literatura e crtico considerado, tido como bastante receptivo s manifestaes de uma contra-cultura, so por demais eloquentes e significativas, nesse sentido, uma vez que ele chega a ponto de falar em folhetim romntico mais vadio (SODR [1964] p.390 destaque nosso). Implcita tambm, nas palavras do referido estudioso, a pouca considerao pelo folhetim.

Entretanto, hoje j no se pode duvidar de que o romance-folhetim foi o maior responsvel pela popularizao da literatura como tal. Igualmente preciso reconhecer que a partir de sua produo foi possvel ao autor conseguir o auto-sustento, sem depender de mecenas. Em uma palavra, com o advento do romance-folhetim e sua afirmao junto ao grande pblico, a literatura perdeu seus ares aristocrticos, e o autor passou a ter a possibilidade de ser um profissional das letras.

No caso especfico de Camilo Castelo Branco, ele mesmo sempre fez questo de sublinhar sua condio de profissional da literatura, embora correndo o risco de escandalizar as pessoas para quem a actividade de

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elaborao criadora, mormente no domnio das artes, tem de preservar uma certa aura sublime.

Duas passagens breves ilustraro o modo como a conscincia profissional de Camilo tem sido entendida.

Diz Esther de Lemos:

sem dvida uma das notas mais curiosas deste livro a atitude assumida por Camilo, ao desnudar-se voluntariamente para se mostrar na frieza calculista do profissional, e at do comerciante das letras. (BRANCO [1966] p. 29-grifos nossos).

Fernando Castelo-Branco anota:

no devemos esquecer que a novela camiliana apresenta numerosos casos de romances que continuam outros romances, o que excepcional no panorama da fico portuguesa do sculo passado. Esta posio excepcional e sua situao de escritor vivendo da pena, acrescidas ambas de incontestvel recomendao econmica que possuam os romances que continuavam outros romances, representavam coincidncia que no podemos considerar meramente ocasional e que, pelo contrrio, se nos afigura como muito provavelmente significativa. (BRANCO [1967] p. 11-grifos nossos).

No comentrio de Esther de Lemos, as passagens

que foram destacadas so mostras eloquentes a respeito da maneira de encarar um escritor que

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assumisse a desacralizao da sua arte, mercantilizando-a. Frieza calculista e comerciantes das letras so expresses que falam por si sobre o estatuto do artista, maculado sumamente por Camilo.

J Fernando Castelo-Branco fere a tecla tantas vezes batida do escritor em situao pecuniria miservel e que produz com o nico objectivo de arranjar uns vintns para a refeio seguinte dos seus, j to desacostumados ao comer quotidiano. Como tal, precisa escrever apenas o que lhe renda algum dinheiro, deixando sempre por elaborar a obra-prima, para a qual seu gnio havia sido criado. E, ainda nesses casos, escrevendo somente aps as convenientes pesquisas de mercado, a fim de no se equivocar na tendncia registada pela velha lei da procura e da oferta.

Se isso de necessitar escrever para garantir o sustento abatia e mortificava tanto a Camilo, como em algumas passagens o prprio romancista regista (sendo impossvel, porm, saber at onde teria ido sua sinceridade ou seu esprito irnico), submetendo-o a uma vida de marginal da Arte, a ponto de tolher nele as faculdades mentais ou capacidade crtica, algo que causa certa surpresa, quando se submetem suas narrativas folhetinescas a uma anlise a partir dos conceitos da pardia. Contudo, sejam ou no uma realidade a srio para Camilo os conflitos morais com que se teria debatido pela necessidade de produzir tais novelas, o facto concreto que o romance-folhetim tornou-se um divisor de pocas para a produo literria ocidental, e Camilo Castelo Branco encarnou magistralmente essa realidade nova para a literatura em Lngua Portuguesa.

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2.3 Reaco Contrria e Posio de Camilo Castelo Branco

O prprio interesse em atingir um grande pblico ainda de pouca instruo, em sua maioria, obrigou a uma espcie de achatamento da qualidade literria do romance.

Ademais, o facto de o romance tomar certa aparncia democrtica e de se tornar um instrumento de propaganda socialista, a par das mnimas qualificaes de muitos de seus autores, fez com que vrias vozes se levantassem contra as concesses feitas popularizao da literatura, como se aquilo, afinal, pudesse ser um facto reversvel pelo simples desejo de algum ou mesmo de algum grupo.

Em Frana, Sirtema de Grovestins, citado por Nora Atkinson, em seu Eugne Sue et le Roman-Feuilleton, afirma:

O Senhor de Girardin () Ele transtornou no somente a imprensa

poltica, mas a livraria e a literatura. um efeito imenso produzido por um insignificante pensamento: ... a especulao (14).

Sem dvida, a mudana fora muito rpida. De um

momento para outro o sistema perdera o controle sobre as produes literrias. As mudanas sociais a partir da Revoluo Francesa, embora houvessem ficado mais na superfcie, seriam irreversveis. E a

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literatura j no seria a mesma, por mais controvrsias que pudesse suscitar.

Acabada a necessidade de haver o mecenas, percebendo a possibilidade de atingir sua independncia financeira atravs do produto de seu talento, o escritor pode evitar a censura implcita existente, decretada por sua condio anterior, quando vivia da proteco e benefcio de alguns aristocratas dispostos a sustentar as artes.

Livre do compromisso para com um protector, foi possvel ao escritor aventurar-se pelos temas que mais poderiam agradar ao numeroso pblico consumidor que ele pretendia atingir e a quem via como seu nico patro.

Atravs dos jornais chegava-se ao pblico e podia-se trocar de companhia jornalstica, desde que no se concordasse com as directrizes editoriais, mantendo-se o autor fiel a seus princpios, caso tpico de Jos de Alencar ao deixar o Correio Mercantil por sentir o desagrado e mesmo a censura da direco do jornal, ligada aos latifundirios da provncia do Rio de Janeiro, ante os seus pontos de vista quanto ao jogo da Blsa de ttulos, segundo Nelson Werneck Sodr (SODR [1964], p. 289).

Desse modo, com maior ou menor propriedade, os autores ocupam-se de assuntos nunca antes abordados pelas produes tidas como verdadeiramente literrias: as mazelas sociais, causadas pela espoliao e pelas injustias, e os anseios de redeno popular, to ao gosto das pregaes ideolgicas em grande voga a partir da Revoluo Francesa.

Todavia, a nova realidade trouxe o problema que s os mais capazes puderam resolver. Na verdade, a par

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do interesse em conquistar um pblico numeroso e heterogneo quanto s aspiraes e formao, permanecia o desafio de no perder aquele j afeito leitura e, por isso, de gosto j requintado. O fundamento, ento, seria atrair os leitores em potencial, principalmente os pertencentes burguesia em ascenso, sem perder os remanescentes da aristocracia, inclusive os decadentes.

No tocante aos autores, preciso considerar que a mudana afectou-os de modo particular. Assim, se alguns se sentiram logo vontade com os rumos tornados pela literatura, nesse posicionamento francamente popular, tratando das questes sociais mais angustiantes de modo doutrinrio, impelidos por uma formao ideolgica, outros viram-se constrangidos a aderir nova realidade, at por mera questo de sobrevivncia como escritores e/ou como pessoas.

De modo semelhante, as mutaes ocorridas na rea da literatura nos princpios do sculo XIX obrigaram o autor a posicionar-se face s conjunturas do momento, isto , muitos levavam a srio as proposies que apresentavam em seus romances de tese; outros, contudo, procuraram posicionar-se criticamente face aos modelos em voga. Entre os ltimos, em Portugal, sobressai a figura de Camilo Castelo Branco.

De facto, ser fcil verificar a justeza da afirmao, bastando para isso ler o que est registado na Introduo da novela Antema, publicada em 1851:

No queremos enviesar apontoados de

palavras eufnicas ao avelhado vu de mistrios

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com que por a se enroupa o romance chamado de poca. ()

Popularizada a literatura, era necessrio despoj-la das alfaias graves e sinceras da cincia, traz-la da profundeza da erudio superfcie das inteligncias vulgares, e vesti-la no maravilhoso surpreendedor, j que o lgico verosmil repelido da biblioteca burguesa e do artista. () O estilo devia ser exagerado como o pensamento: quimrico, hbrido e mentiroso como todas as teorias, criadas no caos de todas as prticas. (BRANCO [1974] p. 9; 10-1).

Ora, tais colocaes feitas pelo fecundo novelista

bem demonstram sua posio face ao romance-folhetim, aquele escrito para agradar ou ensinar plebe, desconsiderando as mximas aspiraes das camadas mais cultas e eruditas.

Jacinto do Prado Coelho afirma enfaticamente:

O seu feitio de orgulhosa independncia leva-o a marear uma posio inteiramente pessoal, acima (julga ele) das tendncias de escola. Desde o comeo, foi um reaccionrio: no prefcio do Antema, j acusava os males de que enfermava a literatura romntica ento na moda... (COELHO [1946] p. 403).

Da observao feita pelo ilustre mestre, pode-se

discordar em relao passagem colocada entre parntesis.

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fcil perceber que Camilo ope-se de modo franco e directo quela expresso literria a que chamava palpitaes de actualidade (BRANCO [1974] p. 10). Assim sendo, sua novela de estreia, entendida alm de sua aparncia, pretende ser um verdadeiro libelo, constituindo-se em antema ao que o autor considera como o apoucado romance-folhetim produzido em Frana e aquele que aparece como mera cpia dos modelos oriundos de Paris.

Todavia, certamente Camilo j percebera a importncia que adquirira a popularizao da literatura. Assim, a nica maneira de manter-se como escritor e fazer frente quela espcie de narrativa seria utilizar-se das tcnicas e no assumir as posies tericas, ou seja, manter uma atitude crtica constante de modo subtil ou declarado.

E para isso recorreu pardia como forma de executar a necessria antropofagia cultural, aquela que lhe possibilitasse extrair do modelo em voga o que lhe parecia conveniente para criar um tipo definido de novela-folhetim portuguesa.

Jacinto do Prado Coelho percebeu claramente o propsito de Camilo ao elaborar o seu trabalho novelstico como pardia. No entanto, nem pode surpreender que algum perceba tal inteno, tal o modo como est explcita no texto camiliano. Contudo, o crtico portugus, pelo que se depreende de seu texto, no concorda com o romancista, mormente com os ares de superioridade que julga ler nas palavras da Introduo escrita para Antema. Rererindo-se a tal novela, diz Prado Coelho:

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Tentando um juzo de conjunto, direi que o Antema marca um surpreendente progresso em relao aos anteriores esboos de novelas: maior flego, mais habilidade na composio, linguagem menos imprecisa e mais dctil. Desta vez, Camilo defende-se pela ironia dos exageros romanescos em que cara: os sentimentos continuam a ser excessivos, as falas enfticas, o enredo melodramtico; mas o autor parece no tomar tudo isso muito a srio, e o leitor hesita em troar com receio de ter sido troado. Colocar um gal numa capoeira, por exemplo, no realmente muito prprio duma nobre novela passional. A inteno de fazer uma pardia ao romance romntico, que recorria ao maravilhoso surpreendedor, explorava sempre a histria duns amores urgentes e lamentosos e usava uma linguagem pomposa e extravagante, cheia de ahs! e ohs!, adivinha-se desde o prefcio. Da a mistura, aparentemente inbil, de cenas grotescas e de episdios de alto coturno. A atitude que Camilo adoptou deu-lhe maior liberdade de movimentos, permitiu-lhe servir-se de clichs sem os quais no podia ainda passar, habilitou-o a escrever de vento em popa a sua novela sem grandes preocupaes de verosimilhana, e ficar, depois de tudo isto, na posio de quem supera a prpria obra. (COELHO [1946] p. 212).

Respeitando o ponto de vista do renomado

estudioso, referendado, de resto, na segunda edio, refundida e aumentada, posta venda em 1983, pode-

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se discordar de sua opinio justamente no que se refere ao facto de Camilo ainda no se poder ver livre dos clichs. Se h inteno de parodiar, e o crtico anota tal facto, fora de dvida que tais clichs precisariam ser utilizados, pois sobre eles que a pardia deveria ser montada. Afinal, so os ditos clichs, de que fala Prado Coelho, os suportes do romance-folhetim em voga que o novelista portugus procura ridicularizar.

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3 PARDIA:

A LITERATURA EXPERIMENTAL FACE LITERATURA TRADICIONAL

A preocupao actual, referente influncia dos temas entre os mais diversos textos ou entre as partes de um mesmo texto, foi a responsvel pela importncia que a pardia veio a adquirir nos ltimos anos no terreno dos estudos tericos sobre o fenmeno literrio. A par de tal preocupao, igualmente importante foi a discusso que se tem realizado em torno dos problemas da formao cultural e do intercmbio que as diferentes culturas estabelecem entre si.

Definida originariamente como a imitao burlesca de um canto srio e conhecido, a pardia ganha hoje uma outra dimenso, medida que passa a ser vista como um fenmeno muito mais abrangente no plano da criao literria.

Na verdade, para alm da troa inconsequente, a pardia passa a ser compreendida como uma realizao cujo propsito mais destacado o do compromisso para com uma determinada realidade cultural, claramente delimitada.

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Se for aceite que para toda a narrativa existe no mnimo um texto que funciona como seu referente, este, no caso especfico da pardia, deve estar bem marcado. Ocorre que, para obedecer sua prpria definio radical, ela reflecte outro texto, seja invertendo-lhe o sentido de origem, seja prolongando o sentido do modelo.

Porm, de um ou de outro modo, fcil perceber na pardia uma finalidade exclusivamente literria, dada sua funo crtica.

Na verdade, a pardia prope-se criar textos a partir de textos velhos, ou anteriores. S por isso j exerce com bastante vigor uma funo marcadamente crtica.

Explica-se: ao remeter a outro ou outros textos, recorda constantemente o carcter literrio da leitura proposta. Assim, sua funo especular exercida no momento em que, ao reproduzir o modelo, inverte-lhe a imagem, podendo distorc-la ou deform-la com maior ou menor intensidade; como prolongamento, ela se prope aprofundar determinados aspectos abordados pelo modelo.

Em uma relao inevitvel com a literatura tradicional, a pardia insiste em lembrar constantemente ao leitor o carcter ficcional da narrativa; aquela, ao contrrio, empenha-se no sentido de envolver o leitor, para inseri-lo no mundo da narrativa, naquela realidade palpitante de vida autnoma e prpria, como se pretende.

Assim, enquanto a literatura experimental luta para manter o leitor a uma respeitvel distncia do texto, incitando-o a assumir uma postura crtica face

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narrativa, a literatura tradicional esmera-se para dar ao consumidor um produto acabado.

Ora, por ser eminentemente crtica, ento, que a pardia se apresenta como uma das solues possveis para a devida assimilao das culturas estrangeiras em relao quela onde est inscrita.

Com seu poder de carnavalizao, ela tem a fora necessria e suficiente para exorcizar os fantasmas do colonialismo cultural que sistematicamente incomoda e preocupa os intelectuais de todos os lugares perifricos relativamente aos centros irradiadores Paris, de modo particular, nesses ltimos dois sculos, em termos de cultura ocidental.

Sabe-se perfeitamente que uma cultura no se faz sozinha.

De facto, impossvel recusar-se as contribuies que sempre existiram entre os povos. Entretanto, preciso estar atento para encontrar os modos mais convenientes de assimilar tais contribuies, pois caso contrrio, corre-se o grave risco de ser dominado, parcial ou totalmente, pela fora da cultura aliengena.

Dentre as maneiras mais eficazes para processar-se a devida assimilao cultural, a pardia ocupa lugar destacado. Entendida como uma das modalidades possveis no universo da chamada literatura experimental, ela favorece a apropriao dos princpios culturais estrangeiros, transformando-os e adaptando-os, para integr-los.

Comendo e digerindo os modelos alheios, a pardia afirma-se como um instrumento capaz de favorecer a execuo da antropofagia cultural. Pela carnavalizao que realiza, assegura a integrao de elementos novos, necessrios s mudanas internas de sua prpria

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cultura; nem por isso, contudo, deixa de preservar o autctone.

Opondo-se literatura tradicional, aqui entendida como aquela actividade reduplicadora de frmulas, sem o mnimo propsito de critic-las, a literatura experimental torna-se um veculo inestimvel de questionamento, capaz de propor a discusso e de julgar os modelos em voga, exercitando-se numa actividade de todo criadora.

Justamente a partir de tais pressupostos, torna-se interessante verificar o quanto os grandes mestres se utilizaram da pardia, melhor contribuindo para a transformao e permanncia de suas respectivas culturas.

A obra de Camilo Castelo Branco, mesmo aquela em que se destaca sua evoluo literria, tem sido entendida, via de regra, como inscrita dentro do que se conceitua como literatura tradicional.

Na verdade, embora haja o registo de uma contribuio de Camilo ao fazer literrio em Lngua Portuguesa e o testemunho da admirao que por ele nutriram no s leitores annimos, como intelectuais renomados do porte de um Miguel de Unamuno e de um Monteiro Lobato, para citar apenas no-portugueses, Camilo no tido como um introdutor de rupturas significativas na tcnica ou nos contedos da narrativa, como Ea de Queirs, por exemplo.

certo que Fidelino de Figueiredo, em sua Histria da Literatura Romntica, citado por Dinah Sonia Renault Pinto, chega a destacar a importncia do autor de Amor de Perdio para o que chama a depurao do romance romanesco e sentimental, reconhecendo-lhe, por isso, a condio de verdadeiro criador (PINTO

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[1964] p. 226). E nesse sentido a maioria certamente concorda com o grande mestre, como possvel notar.

No obstante, o que invariavelmente se v sublinhado por parte de seus comentadores aquele misto de surpresa e de censura perante a prolfica capacidade de produo do narrador, com o registo velado ou explcito sobre a discutvel qualidade de grande parte daquilo que o autor publicou. Em relao referida obra camiliana, como notrio, as Histrias da Literatura Portuguesa registam a diviso em duas partes: fase do aprendizado e da maturidade, esta compreendida pelos perodos em que trabalha a chamada Novela Passional e os quatro ltimos romances de sua produo, onde aparece no mais como autor ligado ao Romantismo (ou Ultra-Romantismo, como querem alguns), mas j se exercitando no terreno da Novela Naturalista.

Alis, mesmo de passagem convm relembrar que esta vista mais como o resultado de um equvoco que deu certo, ou uma inteno que lhe saiu s avessas. Em Razes e sentido da obra camiliana, diz Jacinto do Prado Coelho:

...Depois, vendo-se em perigo, Camilo

escolhe a ttica da charge, fazendo caricatura de temas, tcnica e linguagem de Ea e discpulo (Eusbio Macrio, 1879, Corja, 1880). Finalmente, superando a atitude polemstica, escreve duas novelas as ltimas que mostram j uma assimilao a srio dos processos e do estilo da escola triunfante... (BRANCO [1960] p. 24-5).

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E, coincidncia ou no, sua produo literria pertencente dita primeira fase vista de modo mais ou menos semelhante. Suas novelas resumir-se-iam a trabalho sobre modelos alheios que imita o melhor que lhe possvel, sem sequer discuti-los ou analis-los. Desse modo, fica o consenso de que elas carecem de um valor positivo, pois no passam de narrativas destinadas ao consumo fcil de uma burguesia sedentria e estupidificada, mas com o esprito, se for possvel, vido por mergulhar em mundos onde sobejam a aco complicada e o lance teatral impressionante.

Alis, essa burguesia, onde o brasileiro ocupa lugar de destaque, bem representada pela mulher a quem se abrira a possibilidade de alfabetizao e que, contudo, no tinha a menor capacidade para dedicar-se a reflexes dignas de tal nome, como insinuam alguns crticos de gnio marialva.

Outrossim, segundo juzo de ilustres estudiosos, Camilo jamais conseguiria livrar-se, como escritor, do que h de pior em suas narrativas daquela fase. Em Histria da Literatura Portuguesa, de Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, l-se:

ainda de notar que muitos dos elementos

inferiores da sua iniciao novelstica se mantm, mesmo esbatidos, e sobretudo nesta ou naquela srie que a especulao editorial do livro e do folhetim exigem. (SARAIVA e LOPES [1978] p. 891).

Registo mais ou menos semelhante feito por

Jacinto do Prado Coelho:

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Na vastssima obra de Camilo, encarada

segundo uma perspectiva diacrnica, no se observa progresso contnua: depois de uma obra-prima vem uma novela secundria; na mesma novela alternam, por vzes, a elevada poesia e o romanesco fcil; a uma que marca um passo a frente no caminho da naturalidade segue-se uma histria folhetinesca, onde se aplicam receitas demasiado conhecidas. (BRANCO [1960] p. 22).

Com o perodo da evoluo literria, como diz

Prado Coelho (BRANCO [1960] p. 22), que Camilo passaria a produzir material de maior profundidade; todavia, ainda ser facilmente perceptvel o modelo que busca imitar. Se na primeira fase os autores so Vtor Hugo, Souli, Eugne Sue, na fase seguinte o grande mestre ser Balzac.

E Jacinto do Prado Coelho, citado anteriormente, no esquece de registar:

Tornou-se corrente, no sculo XIX, a

designao de Balzac portugus aplicada a Camilo designao que decerto o prprio novelista acharia justificada. A devoo de Alberto Pimentel v em Camilo um Balzac melhorado, pela observao de costumes isenta de prolixidade descritiva e servida por um estilo fluente, preciso. (BRANCO [1960] p. 23).

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No ser demasiado afirmar que a leitura desse breve trecho exige uma ou duas consideraes.

Primeiramente, a designao, de per si, implica um consenso, segundo o qual Camilo produz uma obra a partir do modelo balzaquiano; de igual modo, facilmente subentendvel aflora o juzo do crtico Jacinto do Prado Coelho de que h, por parte do novelista portugus, o propsito de ater-se ao modelo escolhido; finalmente, a palavra de Alberto Pimentel, que emite opinio judicativa, capaz de satisfazer aquela pretenso que provavelmente Camilo poderia ter tido: a de superar seu mestre.

De certo, Jacinto do Prado Coelho ameniza o parecer de Alberto Pimentel, referindo-se devoo deste por Camilo.

Todavia, o fundamental o que permanece de comum entre as colocaes dos citados crticos: o autor de Amor de Perdio segue o modelo da narrativa de Balzac em sua fase de afirmao, como seguira a de outros autores franceses no perodo de aprendizagem.

Melhorara, segundo os comentadores, a qualidade e o bom gosto do imitador no concernente s tcnicas e ao modelo escolhido. A capacidade criadora permanecera inalterada: reproduzir, adaptando os temas a uma viso mais pessoal e mais prxima da verdade humana (BRANCO [1960] p. 23).

Ora, o imitar por imitar, em qualquer circunstncia, e no importando a quem envolva, ser sempre muito mesquinho.

E, de facto, no se percebem nas opinies emitidas por historiadores e por crticos quaisquer referncias significativas sobre a importncia positiva que a pardia teria tido para Camilo Castelo Branco. Pelo

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contrrio, o que se diz sobre o assunto sempre aparece como ndice de sua m qualidade.

E mesmo de passagem cabe o registo de que so escassas as menes a respeito do sentido pardico na estrutura da obra camiliana. Uma passagem j citada, feita por Jacinto do Prado Coelho a respeito da pardia em Antema, sendo as demais referncias feitas sobre a narrativa realista ou naturalista.

Assim, comum ler-se:

Tudo isso revela, apesar da inteno parodstica, uma extraordinria plasticidade literria, e uma capacidade, j tardiamente exercitada, de construir o romance realista. (SARAIVA & LOPES [1978] p. 895).

Registo mais ou menos semelhante encontra-se em

Razes e sentido da obra camiliana, de Jacinto do Prado Coelho:

Depois, vendo-se em perigo, Camilo escolhe

a ttica de charge, fazendo caricatura de temas, tcnica e linguagem de Ea e discpulos (Eusbio Macrio, 1879, Corja, 1880). Finalmente, superando a atitude polemstica, escreve duas novelas as ltimas que mostram j uma assimilao a srio dos processos e dos estilos da escola triunfante, uma conciliao das injunes do temperamento com aspectos positivos do naturalismo-impressionismo: A Brasileira de Prazins (1882), Vulces de Lama (1886). (BRANCO [1960] p. 24-5).

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E o mesmo Prado Coelho anota adiante:

E o Eusbio Macrio, parodiando Zola, a histria natural e social duma famlia no tempo dos Cabrais. (BRANCO [1960] p. 62).

O registo torna-se importante, na medida em que se

relacionam as duas observaes do crtico transcritas anteriormente sobre a ttica da charge e a assimilao a srio.

No obstante, a pardia um dos elementos mais importantes no fazer literrio de Camilo e atravs desse processo que ele traz Literatura Portuguesa sua inestimvel contribuio.

Na verdade, Antema, Mistrios de Lisboa e Mistrios de Fafe, alm de outros, antecipam em muito o Eusbio Macrio e Corja, no que diz respeito criatividade que se manifesta na sua evoluo como narrador. Naquelas novelas, os recursos pardicos usados so inmeros e dos mais variados tipos, explicitando sobejamente as rupturas que existem entre o romance-folhetim que tomam por modelo e a recriao realizada.

E assim que contribuem para que a Literatura Portuguesa possa realizar seu prprio modelo folhetinesco, como realmente veio a acontecer.

No se pe em dvida o facto de que, no plano cultural, Camilo deve muito aos modelos franceses; contudo, o romance-folhetim, ou melhor dito, a novela-folhetim camiliana possui marcas peculiares que so fceis de reconhecer e que tornam nica sua narrativa folhetinesca, uma criao que nada fica a

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dever quela outra parte de sua obra aceita como de grande qualidade.

Acontece unicamente que a sua novela-folhetim necessita ser vista como um todo que mantm uma individualidade fortemente marcada.

Desde o prprio ttulo, umas, pelo contedo, outras, as novelas-folhetins de Camilo no se submetem mera cpia dos modelos franceses; muito pelo contrrio, pela fico narrativa que indiciam com insistncia, elas possibilitam o exerccio da funo crtica no universo do discurso literrio portugus.

E, como literatura experimental, provocam o debate sobre o universo cultural no mbito do prprio idioma luso, criando o espao necessrio para afirmarem-se como produo consequente de valor inestimvel, no s em relao obra camiliana em si, mas, ao confirmar o gnio criador do fecundo novelista, afirmar a prpria narrativa portuguesa que se transforma, para conservar sua identidade.

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4 Antema, Mistrios de Lisboa, Livro Negro de Padre Diniz e Mistrios de Fafe:

PRESENA DA PARDIA FACE AOS MODELOS DO ROMANCE-FOLHETIM

A obra literria de Camilo Castelo Branco, via de regra, entendida como uma produo pertencente quela linha do romance tradicional em que a preocupao do escritor se concentra em reproduzir no mundo da narrativa um tipo de realidade verosmil indiscutvel.

Outro aspecto que se destaca sobremodo em relao a Camilo Castelo Branco a insistncia com que a crtica se refere sua vasta produo literria, sublinhando o facto de que o escritor precisava produzir para prover a prpria subsistncia e a de seus familiares, como se isso fosse um facto altamente prejudicial a seu trabalho, j para no dizer recriminvel sob vrios pontos de vista.

De facto, no raro deparar-se o leitor com depoimentos segundo os quais a obra de Camilo carece de melhor qualidade por ver-se o autor premido pelas

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necessidades materiais e, desse modo, no poder dedicar tempo suficiente depurao de seus livros.

Em passagem digna de registo para perceber-se at onde se tem chegado em relao a Camilo, nesse assunto, veja-se o que diz Paulo de Castro:

As suas pginas no so formosas maneira

do Ea, nem tdas trabalhadas com esmro. H imensas banalidades apenas suportveis em ateno ao nome do autor, mas quando a nossa benevolncia parece esgotada, surge a presena fsica do gnio: o intrito de Maria Moiss, a morte do lbo, a figura de D. Ana Quitria da Chaga do Lado, a morte de Zeferino, a descrio de uma cabana de camponeses nas Alturas de Barroso.

Por isso, Camilo, , por excelncia, um autor de antologia. (CASTRO [1961] p. 9 itlicos nossos).

Tal opinio crtica, exposta com tanta sem

cerimnia em uma coleco que, no dizer de Ribeiro Couto, ser sem dvida um monumento de primeira grandeza na cultura literria dos pases de lngua portuguesa (15), apoia-se, de se acreditar, em depoimentos como o de Tefilo Braga sobre a proletarizao literria do gnio de Camilo, como registam Saraiva e Lopes em sua Histria da Literatura Portuguesa (SARAIVA & LOPES [1978] p. 886).

No obstante, o que particularmente chama a ateno o facto de passar quase despercebida a intensa carga crtica que no s subjaz, mas emerge de diferentes maneiras nos textos camilianos, estribados,

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no mais das vezes, nos recursos facultados pela pardia.

bem verdade que Esther de Lemos, em Nota Preliminar a Vinte Horas de Liteira, edio de A. M. Pereira de 1966, regista com certa propriedade:

Alm dos temas, outro objecto de anlise

crtica a prpria tcnica da narrao. Neste domnio, tambm o autor reconhece

os pecados de sua poca, pecados em que ele prprio muitas vezes incorrera, mas dos quais se remia por esta denncia que o revela perfeito senhor do artifcios enhor para o utilizar e senhor para o desdenhar. (BRANCO [1966] p. 22).

E mais adiante:

A pardia deliciosa do estilo romntico que

se esboa nos Percevejos de Baltar mais um documento de quanto o autor era sensvel aos tons, aos gostos, e aos ridculos de qualquer maneirismo. Desta vez o alvo a literatura ttrica e melodramtica, que fizera fortuna no apogeu do Ultra-Romantismo. (BRANCO [1966] p. 31).

Contudo, convm prestar ateno para o ponto de

vista sob o qual a estudiosa analisa o livro em questo. Ela no o v como uma narrativa romanesca

propriamente dita, a julgar pelo registo que faz logo na introduo de seu estudo, onde diz:

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O folhetim , na literatura jornalstica daquele tempo, uma seco que abrange grande variedade de gneros romance histrico ou novela sentimental, crnica de viagem, crnica de actualidades polticas, literrias, cientficas e artsticas, conversa humorstica e divagante com o leitor, versando sobre assunto do dia a dia... (BRANCO [1966] p. 5).

Ora, o que ela diz refere-se quele tipo de folhetim

surgido em Frana pela altura dos 1800. Mas esse no positivamente o romance-folhetim.

E o Vinte Horas de Liteira, de facto, caracteriza-se mais como uma crnica literria em forma de fico, sendo seu contedo, em diversas passagens, o do ensaio crtico.

Assim, afora os registos de que as primeiras novelas camilianas so inspiradas no romance-folhetim francs, e generalidades semelhantes, pouco dito.

Em relao ao modo como teriam sido recebidas as novelas de Camilo pelo pblico contemporneo seu, as afirmaes so as mais dspares possveis, o que, afinal, por se tratar de quem se trata, talvez no deva mesmo surpreender.

Crticos coevos do discutidssimo escritor manifestam as opinies mais diversas; no raro um mesmo crtico apontar-lhe vrios defeitos, escrevendo mais tarde sobre as excelncias... da mesma obra!

Camilo Castelo Branco, no prefcio da segunda edio de Antema, publicada em 1858, esclarece:

Este romance foi, h oito anos, a estreia do

autor. Ele mesmo considera-o agora uma

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tentativa que a crtica tolerante aceitou. Os merecimentos que ela ento lhe viu, talvez, hoje, lhos acoime como faltas. (...)

O livro reimprime-se com algumas emendas, e reimprime-se porque a primeira edio est consumida. (BRANCO [1974] p. 7).

Em seu alentado e j clssico Introduo ao Estudo da

Novela Camiliana, Jacinto do Prado Coelho anota judiciosamente o que teria ocorrido, quando do lanamento da novela em pauta:

Quando se publicou em volume, em 1851, o

Antema no passou despercebido. Apareceu ento em Lisboa (diz Jlio Csar Machado em Cludio) um poeta, um prosador, um diabo como diz Heine de Proudhon, que com uma simples poesia, A harpa do cptico, produziu uma impresso profunda, e ganhou desde logo as atenes para um romance que se publicava na Semana: Antema. Em 1854, o mesmo crtico alargava-se sobre a obra, cujos defeitos apontava: A mestria de toques dos primeiros captulos desvanece-se depois, e parece que o fito de formar um grande volume obrigou o autor a ser prolixo. O dirio de D. Antnio Bacelar quase to fastidioso como o Dirio do Governo

Mas ia acrescentando: Se o estilo faz a obra, o romance Antema h-de viver. H ali pginas e pginas duma eloquncia enrgica e cintilante. No ano seguinte, recordava, pensando nos

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folhetins dA Semana: O romance era excelente, e o romance agradou. O autor era pouco conhecido em Lisboa, e todavia popularizou-se. (...)

Entretanto, Sampaio (Bruno), nA Gerao Nova, pgina 35, afirma que a novela deparou com uma hostilidade geral. (COELHO [1946] p. 212-3).

O crtico Paulo de Castro, porm, d como caso

encerrado a receptividade que essa primeira novela de Camilo teria conhecido, dizendo:

Em comeo de 1850 Camilo inicia a primeira

grande novela, o Antema (ttulo sugerido, ao que parece, pela leitura de Notre Dame). (...)

A novela foi mal recebida. (CASTRO [1961] p. 12-3).

Ora, mesmo deixando-se de lado o debate sobre a

quem assistiria a razo neste caso especfico, o certo que Antema conheceu vrias edies ainda em vida de seu autor, facto significativo, pois demonstra que o pblico manteve sempre um certo interesse por essa novela que nunca foi da predileco da crtica literria, pelo que dado observar.

E o mesmo poderia ser dito, alis, de toda a chamada novela-folhetim de Camilo.

Entretanto, o estudo das tcnicas utilizadas por Camilo e o confronto com os modelos em que aparentemente se inspiram suas novelas permitem dizer que h preocupaes bem mais consistentes do que aquelas, tantas vezes apontadas, de reproduzir para

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agradar s exigncias da moda, juzos que o prprio autor de O Regicida provocou ou autorizou, sua maneira.

Fora de dvida, porm, a crtica feita aos modelos de que se teria utilizado. Isso torna-se possvel demonstrar atravs da anlise e da interpretao das novelas camilianas em relao aos romances-folhetins que lhes serviram de modelo.

4.1 Funes Crticas: elementos tradicionais e experimentais na construo da novela-folhetim camiliana

Nas novelas-folhetins de Camilo Castelo Branco avultam factores carregados de propsitos crticos que ficam bem evidentes. Tais factores so os responsveis pela feio peculiar de que se reveste este tipo de narrativa camiliana e a torna sui-generis no panorama literrio de Lngua Portuguesa, garantindo-lhe um papel pioneiro, embora no devidamente reconhecido, menos pelo pblico que obrigou o aparecimento de diversas edies dessas novelas, mas pela crtica especializada que, ou no se refere a elas, ou o faz de maneira depreciativa.

A anlise dos textos revela de modo bem destacado pelo menos trs factores que manifestam em potencial as funes crticas a elas reservadas.

Sem pretender hierarquizao de nenhuma espcie, tais factores so os elementos que chamamos pr-textuais e textuais, formando um bloco, o narrador e narratrio constituindo os outros dois corpos.

Em separado, como se pretende estud-los aqui, ou em conjunto, eles asseguram narrativa folhetinesca

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camiliana sua capacidade de parodiar os textos que lhe servem de modelo, invertendo-lhes o sentido ou prolongando-os, simplesmente, exercendo sempre uma funo transformadora e altamente criativa.

4.1.1 Elementos pr-textuais e textuais

Dentre os elementos pr-textuais aparecem os Prefcios, as Introdues, os Avisos e as Advertncias, em que Camilo no se distinguiu pela parcimnia.

Uma breve passagem pela vasta produo ficcional camiliana logo evidencia o quanto aquele escritor se preocupou em aproveitar a oportunidade que lhe oferecia uma nova edio de qualquer de suas novelas para dirigir-se ao pblico, tecendo consideraes sobre o fazer literrio estrangeiro e portugus da poca, sem deixar de referir-se ao seu prprio. Isso, evidentemente, sem levar em conta se aproveitara ou no espao semelhante j na primeira edio.

o teor desses comentrios, que ele faz quase sempre de modo franco e directo, pontilhado muitas vezes de tons irnicos e mesmo sarcsticos, o elemento que primeiro fala ao leitor, preparando-lhe o esprito para, de maneira conveniente, acompanhar os sucessos que a prolfica imaginao do autor elaborou para o entrecho da novela.

Semelhantemente, as designaes de captulos e as epgrafes, como elementos textuais, funcionam como campainhas de alarme, soando estridentes aos ouvidos de quem l, obrigando-o a assumir uma posio de fora, em relao narrativa; ou seja, funcionando

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como elementos desinstaladores, denunciam a presena de uma narrativa emientemente experimental que pe em xeque a posio da literatura tradicional, preocupada simplesmente em entreter, sem questionar. Para melhor descrio desses elementos, pareceu conveniente separ-los. Assim, tem-se: 4.1.1.1 Prefcios, e Introdues, Avisos e Advertncias

Antema, em 1858, aparece com um Prefcio; nele, o autor tece consideraes sobre a receptividade que o romance, como ele o chama, havia tido e d a razo para apresent-lo novamente ao pblico, no deixando passar a oportunidade de referir-se crtica, justificando-se antecipadamente pelo juzo que ela poderia fazer sobre essa segunda edio.

Em certo trecho diz Camilo:

O livro reimprime-se com algumas emendas e reimprime-se porque a primeira edio est consumida.

Os retoques desta so to ligeiros que no remedeiam os vcios da forma primitiva. (BRANCO [1974] p. 7).

Quanto motivo no encontrar o leitor ingnuo

para destacar a modstia de Camilo ao entender a frase em seu sentido literal.

Tratando-se, porm, de quem se trata, no parece atitude muito recomendvel; ao leitor atento de certo no passar despercebido o sentido especular do discurso camiliano. O sentido da frase, nesses casos,

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normalmente o inverso do que aparece escrito. Convm, pois, desconfiar dessa modstia.

Contudo, bem mais significativa e ao mesmo tempo mais explcita, a Introduo que aparece na novela desde a sua primeira edio. J na frase inicial, l-se:

No queremos enviesar apontoados de

palavras eufnicas ao avelhado vu de mistrios com que por a se enroupa o romance chamado de poca. (BRANCO [1974] p. 9).

O que Camilo manifesta nesses elementos pr-

textuais possui uma importncia de um ou de outro modo notada pela crtica especializada.

Jacinto do Prado Coelho, fazendo reparo aos conceitos que o novelista emite sobre o fazer literrio contemporneo, escreve:

Nos prefcios exprime, nem sempre com

perfeita coerncia, as suas ideias estticas. Camilo julga-se no meio termo da verdade. O seu feitio de orgulhosa independncia leva-o a marcar uma posio inteiramente pessoal, acima (julga ele) das tendncias de escola. (COELHO [1946] p. 403).

Ora, parece que se pode concordar de modo pleno

com a posio inteiramente pessoal, acima das tendncias de escola. No ser fcil, porm, concordar-se com o comentrio entre parntesis, escrito pelo renomado crtico.

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Talvez fosse mais pertinente respeitar a posio de Camilo, reconhecendo-lhe o direito inalienvel de ter conscincia total de seu valor. Afinal, no h razo lgica que obrigasse o autor a ficar atrelado s tendncias de escola, quaisquer que elas fossem.

O modo como o narrador encerra a srie de comentrios na referida Introduo por demais significativo. Ali Camilo pe uma advertncia, ao que parece no muito bem entendida pela crtica especializada que pelas dcadas mais tarde se defrontaram com sua novela-folhetim, em geral, e com Antema, particularmente:

O certo que existe uma escola romntica,

democrtica, social e regeneradora. No tem academias, nem paragem determinada. imensa, elctrica e omnipotente. L que se aprende a agradar s turbas, delas se inspira esta mocidade coroada e corajosa, dela, finalmente, que surdem os apodos e vaias literrias para os que sacrificam ao passado o cabedal da inteligncia negativa para esta sociedade aspiradora.

O escritor destas coisas ainda no abriu matrcula, nem pede que o inscrevam ainda custa de uma boa reputao de folhetinista. Se a escola, em nome do sculo, do futuro e da humanidade, o interrogar pela substncia til deste apontoado de palavras, o autor no lhe d resposta alguma. (BRANCO [1974] p. 11 os grifos so do autor).

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No obstante, a resposta estava dada. Sempre pelo jogo especular, Camilo revela-se o anti-folhetinista, abrindo, pois, sua matrcula, ainda que por anttese; ludibriando boa parcela do pblico que o leu durante esses cento e tantos anos em que sua obra anda a ser reeditada em Portugal e em outras terras, Camilo despistou-a pelo acmulo de evidncias que foi apondo sua criao e que foram entendidas pelo que pareciam ser, no pelo que eram.

De facto, o criador de Antema apresentado como um dos mais destacados membros da Escola Romntica e at como expoente do Ultra-Romntico. Todavia, ele manifesta sempre de modo irnico o que pensa sobre tais movimentos.

Assim, se ali foi encaixado, deve-o fora e s exigncias da crtica, especializada como s ela em catalogar autores por Escolas.

No tolerando os autnticos criadores que, como se sabe, transcendem a tais banalidades e lhes fogem tirania, apenas resta a ela aplicar-lhes, como revis, o esdrxulo princpio do famigerado Procusto.

Ento Camilo, ao invs de ser entendido como um autor margem de classificaes e de escolas, o que estaria bem mais de acordo com as posies que toma, depreendido da leitura de suas novelas, submetido a padres que sempre repudiou de modo veemente, embora seu discurso seja amenizado pelo toque subtil da galhofa, to a seu feitio.

Detalhe igualmente importante em Camilo e do qual se utiliza para reforar o despiste, so as Prevenes e a Advertncia, utilizadas nos Mistrios de Lisboa e no Livro Negro de Padre Diniz, respectivamente.

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Sabe-se que a preocupao em criar um estado de verosimilhana entre o real e o contedo da narrativa foi a responsvel pelo aparecimento dos manuscritos-annimos alguns, outros com autor nomeado , os quais, pelos canais os mais diversos e at inslitos, chegavam ao domnio dos editores, que assim se compraziam em autodenominar-se os escritores de romances-folhetins, em muitos casos.

Nesse particular, Camilo tornou-se quase imimitvel. Antema, por exemplo, resulta de um manuscrito rodo de traa, que aqui tenho a meu lado, e do qual vou extraindo esta mirfica histria (BRANCO [1974] p. 15).

O autor de tal manuscrito no referido, e o narrador s vezes se autodenomina autor, outras vezes prefere chamar-se editor, conseguindo, talvez, confundir o leitor menos atento.

Mas se em Antema o autor ou editor pois o narrador se refere a si mesmo das duas maneiras vai recriando a histria, uma vez que sempre aparece na primeira pessoa, opinando sobre os factos que narra, em Mistrios de Lisboa e no Livro Negro de Padre Diniz a situao diferente, como se pode ver.

Assim, nas Prevenes aparece um breve arrazoado sobre a realidade de ...que os romances so uma enfiada de mentiras... (BRANCO [1917] p. 6) e a enftica afirmao de que: Este romance no um romance: um dirio de soffrimentos, verdico, authentico e justificado. (BRANCO [1917] p. 6).

Aps tais colocaes, segue-se a longa carta, assinada por um inidentificvel F, que testifica a veracidade de que o romance no romance, pelo menos aquele, por incrvel que possa parecer.

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E a novela, que j se apresentava como imitao de um modelo desde o seu ttulo Mistrios de Lisboa Mistrios de Paris , vai glosar nas ditas Prevenes o papel de Eugne Sue, autor do modelo, bem como o prprio modelo. Na verdade, ali est escrito:

...Cuidei que os horizontes do mundo

phantastico se fechavam nos Pyreneus, e que no podia ser-se peninsular e romancista, que no podia ser-se romancista sem ter nascido Cooper ou Sue. (BRANCO [1917] p. 6).

Ora, o que na verdade pretendem tais Prevenes

alertar para o carcter ficcional que possui toda a narrativa romanesca, seja escrita por Cooper, Sue ou Camilo.

Em qualquer lugar possvel criar-se um romance, ainda que para isso se torne necessrio reneg-lo na aparncia, fingindo-se copiar simplesmente aquilo que conquistara a ateno do pblico em determinado momento.

Cooper lido e acatado? O mesmo acontece com Sue? Ento nada mais fcil do que fazer o que eles faziam, uma vez que era difcil atrair o pblico com algo que fosse diferente.

Tal comportamento, de resto, bastante peculiar a Camilo, um cnico na acepo da palavra. Para chamar a ateno da crtica sobre outros modelos de narrativa que o ocupam em dada ocasio, pois o pblico no necessitava de solicitaes especiais para l-lo, o autor de Doze Casamentos Felizes no vacila em pr na Advertncia da segunda edio desse livro, em 1862:

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O maravilhoso teve sua voga, seu tempo e

sua catstrofe. Tambm o autor foi tributrio da moda, quando, mais do que a arte, o seduzia e subornava a glria de ser lido. A esto os Mistrios de Lisboa e o Livro Negro e que tais volumes, cujas reimpresses so o proporcionado castigo de quem os fz. (BRANCO [1960] p. 23).

Dois anos aps, porm, ou a arte j no o seduzia

de modo total, ou havia algo de especial a ser entendido em seu discurso, pois dizia o narrador de Vinte Horas de Liteira:

Conta-me agora tu uma histria disse

Antnio Joaquim. Eu costumo vend-las respondi com o

grave e sisudo desinteresse da arte. Contava-te um conto bonito, se me desses

este brilhante, que me vai cegando como o resplendor de Jeov ao povo escolhido. (BRANCO [1960] p. 619).

O jogo fcil de ser percebido. O que finge

repudiar hoje, valoriza amanh, com todo o prazer. Consciente do valor de sua obra, qual dispensava todo seu zelo, Camilo sempre reconheceu com nfase o facto de viver do que produzia. S por isso, no se poderia admitir que fosse renegar a srio o que lhe dera, no apenas a fama, mas o prprio sustento.

Sempre atento em relao ao panorama literrio que o circundava e necessidade que tem o escritor de

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vender para manter-se, independente dos juzos que a crtica especializada possa exigir de um novelista, anota de modo exemplar no Prefcio da segunda edio de A Doida do Candal, de 1867:

Reconhece o autor que este livro seria

deficientssimo, se assentasse em alguma idia fundamentalmente filosfica.

No estamos em terra onde se invista a novela de misso que no seja espairecer o nimo de estudos atentos, ou desenfasti-los dos enojos da ociosidade. (...) Entrei a comparar os dois romances para entender a desigualdade dos mritos, e vim ao conhecimento de que um pouquinho mais de filosofia estragara a Bruxa.

Nada, pois, de tirar novela a inutilidade que a faz preciosa. Seja cada um do seu tempo e do seu pas. O melhor romancista em Portugal, por enquanto, h de ser o que tiver mil leitores que lhe comprem o livro e o aplaudam, contra dez que o leiam de graa e o critiquem em folhetins a dez tostes. BRANCO [1960] p. 1045-6).

Sem dvida as palavras de Camilo esto carregadas

de ironia, e de modo particular em relao aos crticos que opinam contra aquilo que no conseguem, por vezes, compreender. O sentido prtico do escritor, contudo, est bem assinalado.

Alis, claramente ele reconhece que no fora apenas o romance que se proletarizara, como escreve na Introduo de Antema; entrando em outra realidade, o escritor tambm passara a ser um profissional a

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depender de sua produo. J pouca diferena, em termos de sobrevivncia, havia entre o artista operrio e o romancista. Ambos deviam lutar com esforo e continuamente para garantir o sustento, cada vez mais difcil em uma sociedade em fase pr-industrial, mas j bastante competitiva.

Visto assim, ganham outro sentido aquelas saborosas colocaes que se repetem nas Vinte Horas de Liteira, atravs das quais deixa clara sua posio. Logo nas primeiras palavras em Os percevejos de Baltar, o narrador relembra seu ponto de vista, face s retribuies pecunirias:

Antnio Joaquim fz-me o favor de achar

engraada a minha histria, e perguntou-me quanto devia, visto que a minha profisso era vender histrias. (BRANCO [1960] p. 640).

Do mesmo modo, tambm esclarecedora a

maneira como inicia a Dedicatria que faz a Antnio Rodrigues Sampaio, em sua novela A Queda dum Anjo, publicada em 1865. Diz Camilo:

Volto a oferecer-lhe uma das minhas

bagatelas. Chamo assim, para me fingir modesto, bagatelas a umas coisas que eu reputo no mximo valor. (BRANCO [1960] p. 785).

A leitura de tais depoimentos evidenciam um jogo

bastante interessante, em que o escritor alterna posies e, para alimentar essa brincadeira de tira-e-

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pe, entretendo a ateno do pblico, e talvez da crtica, que esse exmio fingidor, no sentido que a essa palavra d Fernando Pessoa, utiliza-se com mestria desses elementos pr-textuais, tornando-os elementos integrantes do prprio corpo do seu trabalho.

E, sem chegar a ponto de afirmar que as noveIas-folhetins de Camilo Castelo Branco no chegariam a ser o que so ou que no poderiam ser entendidas como pardias aos modelos franceses em voga por aquelas pocas, no caso da inexistncia desses elementos indicadores, pode-se dizer que torna-se mais fcil, face sua leitura em profundidade, identificar o carcter crtico que elas possuem.

De facto, esses elementos, se interpretados em toda a sua extenso, servem para despertar ou activar a conscincia crtica do leitor que no poder penetrar no mundo da narrativa de modo inocente, como se estivesse inserido na realidade mesma que a histria romanesca, parece, pretende criar.

O livro negro no foi escritpo para ser

publicado em frma alguma, e muito menos em frma de romance. (...) Lde como quem se recreia. Para isso compraes este livro. (BRANCO [1924] p. 5-9).

Ora, no se requer muita ateno do leitor para que

ele perceba em tal Advertncia o que est por detrs dela. Primeiro, que o livro foi feito para ser publicado fora de dvida, tanto que j fora anunciado quando da publicao dos Mistrios de Lisboa (BRANCO [1917] p. 119) e o leitor o tem em suas mos; segundo, que foi

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feito em forma de romance tambm no se pode discutir, pois assim o entende seu autor; terceiro, que ser difcil poder recrear-se, pois o leitor constantemente estar sendo instigado a exercitar sua capacidade crtica, podendo ser capaz de reconhecer que o Livro Negro fico em todos seus pontos e vrgulas.

Assim, pois, funcionam os elementos pr-textuais, provocando a participao do leitor como personagem fundamental para a complementao devida da obra.

Todavia, quem os entender apenas naquilo que ali est em aparncia, no poder dizer seno que tais novelas nada acrescentam glria de Camilo Castelo Branco, pois no passam de meras cpias descoradas de modelos franceses, apesar da lio de Jacinto do Prado Coelho que afirma enfaticamente e com a mxima pertinncia: A obra novelstica de Camilo no seria o que sem a larga experincia da crnica e do folhetim. (BRANCO [1960] p. 14).

No resta dvida de que essas palavras do emiente crtico contemporneo no chegam a atribuir um valor positivo em si, em relao novela-folhetim camiliana.

Talvez por isso ainda persistam as opinies depreciativas, em se tratando deste tipo de realizao do Escritor de Seide. Houvesse o crtico em pauta sublinhado a importncia daquela narrativa como produo madura, com um sentido crtico evidenciado pela pardia especular ou em prolongamento que, ao se apoderar dos princpios fundamentais do modelo, dele se distancia pelas proposies diversas que introduz, ento possvel que pelo menos os estudiosos da obra camiliana, formados sob a influncia do renomado mestre, tivessem em outro

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conceito a novela-folhetim do famoso criador dos Mistrios de Fafe.

Alis, no AVISO S PESSOAS INCAUTAS, posto no referido livro, que Camilo, como se se dirigisse aos crticos que com tanto desprezo tm visto sua novela-folhetim, anota irnico:

Almas, em flor de innocencia e candura, no

leiam isto que trescala podrido de gafaria. (...) Neste livro inverte-se o estylo: os salteadores

da pudicicia levantam bem alto o letreiro que diz: Aqui ha ladres.

Sem o qual letreiro, este livro seria um abysmo. (BRANCO [1920] p. 5).

possvel que determinados intelectos

necessitassem de parfrases de tais novelas camilianas para poder entend-las, como aqui se est pretendendo; julga-se, porm, que, se todos os Avisos, Introdues e Prefcios, magistralmente redigidos por Camilo, no foram suficientes para alargar-lhes o caminho do entendimento, nada mais poder fazer-se em benefcio deles. 4.1.1.2 Ttulos de captulos e epgrafes

Se os elementos pr-textuais, independentemente

das edies em que apareceram pela primeira vez, exercem um papel considervel para a devida compreenso em profundidade da novela-folhetim camiliana, mais relevncia adquirem os elementos textuais que ocupam lugar de destaque na prpria

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composio grfica do volume, tais como os ttulos de captulos (16) e epgrafes a esses captulos ou ao livro, como um todo.

Nas obras aqui tomadas como ponto de referncia, destacam-se de modo particular o Antema e Mistrios de Fafe; pelos ttulos, o primeiro, e pelas epgrafes, o ltimo.

No se pode ter receio de afirmar que em Antema os ttulos utilizados para cada captulo indicam o carcter pardico da novela.

Em seu total so vinte e cinco captulos, e se fosse o caso de apenas exemplificar, qualquer um deles, tomado ao acaso, satisfaria de modo adequado.

No captulo XX, l-se:

V-se que o editor desta verdadeira histria no quis desfalcar a ordem do manuscrito, e por isso deu aqui remate ao lamentoso dirio de Antnio Bacelar. (BRANCO [1974] p. 215).

Na verdade, esses ttulos de Antema parodiam os

seus modelos franceses que apareciam como verdadeiras sinopses do que o autor se propunha a desenvolver no captulo. s vezes as ditas sinopses tomavam um desmesurado tamanho, como o ttulo abaixo, extrado de Mistrios do Povo, de Eugne Sue:

Como, no mez de fevereiro de 1848, o Sr.

Marik Lebrenn, fanqueiro na rua de S. Diniz havia tomado por distinctivo: espada de Brenno, que mandara pintar na taboleta da sua loja. Das cousas extraordinarias de que deu f o

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marano Gildaz Pakou em casa do patro. Como, a propsito de um coronel de drages Gildaz Pakou conta a Joaninnha, criada da casa, uma terrvel historia de tres frades vermelhos, que viviam ha cerca de mil annos. Joaninha responde a Gildaz que j no estamos no tempo dos frades vermelhos e que chegou a pocha dos omnibus. Joaninha, que parecia toda afoita ao principio, mostra-se no menos assustada que Gildaz Pakou. (SUE [s.d.] p. 5 Os grifos so do Autor).

Sem chegar a redigir ttulos assim to longos,

Camilo consegue fazer snteses bastante completas e de tamanho tambm respeitvel, aqui ou ali. o caso, por exemplo, do captulo XVI:

Em que o padre Carlos da Silva

inquestionavelmente narra a famosa histria, no sabemos por ora de quem, mas com a ajuda de Deus a mais inteligvel de todas as histrias. Obra de muita moral e edificao. Temos a anunciar interrupes, que nos no deixam gozar estes contos do princpio ao fim, com aquela fleuma lgica e imperturbvel de uma novela inglesa. (BRANCO [1974] p. 137. O grifo do autor).

Se, como foi dito, no se chega extenso daquele

retirado da obra de Eugne Sue, inegvel, pelo menos, que o de Camilo deixa transparecer a forma irnica como so redigidos. De um s golpe, ele parodia a personagem Carlos da Silva pois, segundo

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se l no Captulo XV, o padre usa e abusa do que o narrador, zombeteiro, chama de grande advrbio (BRANCO [1974] p. 133) , as novelas inglesas e, obviamente, os modelos franceses que estaria apenas imitando, segundo a opinio dominante entre a crtica especializada.

Contudo, seja como for, inegvel que, pelo modo como esto redigidos, tais ttulos provocam a stira e no permitem uma leitura ingnua, distanciada do juzo crtico.

O contedo das frases provoca de imediato a reaco do leitor.

E como para no deixar nenhuma dvida, diz o narrador, no Capitulo I da novela Antema:

No qual se prova que o autor no tem jeito

para escrever romances. (BRANCO [1974] p. 13).

Ora, essa afirmao feita assim, de forma directa na

abertura de algo que se pretende um romance, no pode deixar de surpreender, por mais que se imagine um leitor distrado.

De facto, todos ho-de convir que no comum ver-se o prprio autor iniciar afirmando suas deficincias para exercer sua actividade.

Alis, no s no escritor isso surpreenderia. Como se poder acreditar no profissional, qualquer

que seja, que afirma a prpria ineficincia em sua especialidade? Ser possvel algum confiar em quem se confessa inbil? Ento como entender a confisso do autor que procura provar a prpria incapacidade para desempenhar sua funo?

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As respostas so bvias e ao alcance de qualquer leitor. O ttulo do captulo manifesta a modstia, falsa, sem dvida, de parceria com a brincadeira em que procura envolver o leitor, seu comparsa na construo da novela ou, pelo menos, no desenvolvimento do jogo.

Fica claro nessa passagem que o escritor diz o contrrio do que pensa, como faz em diversas oportunidades.

O jogo no s procura envolver o leitor como parceiro para uma brincadeira em que este sirva como vtima, mas quer alert-lo para a presena das armadilhas que o autor espalhar ao longo da narrativa, prevenindo-se a vtima em potencial, a fim de que ela se acautele, se houver descodificado a mensagem transmitida assim, de modo to inslito.

A partir da, s se deixar mergulhar na pretensa atmosfera medonha e/ou terrfica, como diz mais de um crtico, o leitor que no tiver a perspiccia necessria para seguir os caminhos propostos pelo autor.

Entretanto, se conseguir manter-se em uma atitude de alerta, se se tornar um leitor cauteloso, o senso crtico poder funcionar de modo pleno para perceber como a posio franca de Antema diametralmente oposta ao que se pretendia fazer a srio nos romances-folhetins. No Captulo VII, diz o ttulo:

Que necessrio ler-se para entender o que

vier depois. O autor esquece-se do romance algumas vezes. (BRANCO [1974] p. 52).

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Ora, um dos apelos constantes nos romances-folhetins que se prezavam era justamente feito ao leitor, convidando-o a recordar algumas passagens, pois no era coisa difcil esquecer as peripcias, tantas confuses o narrador intercalava umas s outras.

Assim, encontrar-se palavras como estas, retiradas de Mistrios do Povo, de Eugne Sue, era bastante frequente:

Lembremos agora ao leitor os principaes

factos que serviram de introduo nossa historia.

Estes factos, o leitor pde ter esquecido alguns deles nesta longa peregrinao atravez dos seculos, assistindo s vicissitudes da existencia da nossa famlia de proletarios. (SUE [s.d.] v. 3, p. 503. Grifo do autor).

Se se considerar a realidade dos romances-folhetins

desde seu su