a parábola dos talentos

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A Parábola dos Talentos Havia um homem muito rico, possuidor de vastas propriedades, que era apaixonado por jardins. Os jardins ocupavam o seu pensamento o tempo todo e ele repetia sem cessar: O mundo inteiro ainda deverá transformar-se num jardim. O mundo inteiro deverá ser belo, perfumado e pacífico. O mundo inteiro ainda se transformará num lugar de felicidade. As suas terras eram uma sucessão sem fim de jardins, jardins japoneses, ingleses, italianos, jardins de ervas, franceses. Dava muito trabalho cuidar de todos os jardins. Mas valia a pena pela alegria. O verde das folhas, o colorido das flores, as variadas simetrias das plantas, os pássaros, as borboletas, os insectos, as fontes, as frutas, o perfume… Sozinho ele não daria conta Por isso anunciou que precisava de jardineiros. Muitos se apresentaram e foram empregados. Aconteceu que ele precisou de fazer uma longa viagem. Iria a uma terra longínqua comprar mais terras para plantar mais jardins. Assim, chamou três dos jardineiros que contratara, e disse-lhes: Vou viajar. Ficarei muito tempo longe. E quero que vocês cuidem de três dos meus jardins. Os outros, já providenciei quem cuide deles. A você, Paulo, eu entrego o cuidado do jardim japonês. Cuide bem das cerejeiras, veja que as carpas estejam sempre bem alimentadas… A você, Hermógenes, entrego o cuidado do jardim inglês, com toda a sua exuberância de flores espalhadas pelas rochas… E a você, Boanerges, entrego o cuidado do jardim mineiro, com romãs, hortelãs e jasmins. Ditas essas palavras, partiu. Paulo ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim japonês. Hermógenes ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim inglês. Mas Boanerges não era jardineiro. Mentira ao oferecer-se para o emprego. Quando ele viu o jardim mineiro disse: Cuidar de jardins não é comigo. É demasiado trabalho… Trancou então o jardim com um cadeado e abandonou-o. Passados muitos dias voltou o Senhor, ansioso por ver os seus jardins. Paulo, feliz, mostrou- lhe o jardim japonês, que estava muito mais bonito do que quando o recebera. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. Hermógenes mostrou-lhe o jardim inglês, exuberante de flores e cores. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. E foi a vez de Boanerges… E não havia forma de enganar: Ah! Senhor! Preciso de confessar: não sou jardineiro. Os jardins dão-me medo. Tenho medo das plantas, dos espinhos, das lagartas, das aranhas. As minhas mãos são delicadas. Não são próprias para mexer na terra, essa coisa suja… Mas o que me assusta mesmo é o facto das plantas estarem sempre a transformar-se: crescem, florescem, perdem as folhas. Cuidar delas é uma trabalheira sem fim. Se estivesse em meu poder, todas as plantas e flores seriam de plástico. E a terra estaria coberta com cimento, pedras e cerâmica, para evitar a sujeira. As pedras dão-me tranquilidade. Elas não se mexem. Ficam onde são colocadas. Como é fácil lavá-las com esguichos e vassoura! Assim, eu não cuidei do jardim. Mas tranquei-o com um cadeado, para que os traficantes e os vagabundos não o invadissem. E com estas palavras entregou ao Senhor dos Jardins a chave do cadeado. O

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A Parábola dos Talentos Havia um homem muito rico, possuidor de vastas propriedades, que era apaixonado por jardins. Os jardins ocupavam o seu pensamento o tempo todo e ele repetia sem cessar: O mundo inteiro ainda deverá transformar-se num jardim. O mundo inteiro deverá ser belo, perfumado e pacífico. O mundo inteiro ainda se transformará num lugar de felicidade.As suas terras eram uma sucessão sem fim de jardins, jardins japoneses, ingleses, italianos, jardins de ervas, franceses. Dava muito trabalho cuidar de todos os jardins. Mas valia a pena pela alegria. O verde das folhas, o colorido das flores, as variadas simetrias das plantas, os pássaros, as borboletas, os insectos, as fontes, as frutas, o perfume… Sozinho ele não daria conta Por isso anunciou que precisava de jardineiros. Muitos se apresentaram e foram empregados.Aconteceu que ele precisou de fazer uma longa viagem. Iria a uma terra longínqua comprar mais terras para plantar mais jardins. Assim, chamou três dos jardineiros que contratara, e disse-lhes: Vou viajar. Ficarei muito tempo longe. E quero que vocês cuidem de três dos meus jardins. Os outros, já providenciei quem cuide deles. A você, Paulo, eu entrego o cuidado do jardim japonês. Cuide bem das cerejeiras, veja que as carpas estejam sempre bem alimentadas… A você, Hermógenes, entrego o cuidado do jardim inglês, com toda a sua exuberância de flores espalhadas pelas rochas… E a você, Boanerges, entrego o cuidado do jardim mineiro, com romãs, hortelãs e jasmins.Ditas essas palavras, partiu. Paulo ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim japonês. Hermógenes ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim inglês. Mas Boanerges não era jardineiro. Mentira ao oferecer-se para o emprego. Quando ele viu o jardim mineiro disse: Cuidar de jardins não é comigo. É demasiado trabalho…Trancou então o jardim com um cadeado e abandonou-o. Passados muitos dias voltou o Senhor, ansioso por ver os seus jardins. Paulo, feliz, mostrou-lhe o jardim japonês, que estava muito mais bonito do que quando o recebera. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. Hermógenes mostrou-lhe o jardim inglês, exuberante de flores e cores. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu.E foi a vez de Boanerges… E não havia forma de enganar: Ah! Senhor! Preciso de confessar: não sou jardineiro. Os jardins dão-me medo. Tenho medo das plantas, dos espinhos, das lagartas, das aranhas. As minhas mãos são delicadas. Não são próprias para mexer na terra, essa coisa suja…Mas o que me assusta mesmo é o facto das plantas estarem sempre a transformar-se: crescem, florescem, perdem as folhas. Cuidar delas é uma trabalheira sem fim.Se estivesse em meu poder, todas as plantas e flores seriam de plástico. E a terra estaria coberta com cimento, pedras e cerâmica, para evitar a sujeira. As pedras dão-me tranquilidade. Elas não se mexem. Ficam onde são colocadas. Como é fácil lavá-las com esguichos e vassoura! Assim, eu não cuidei do jardim. Mas tranquei-o com um cadeado, para que os traficantes e os vagabundos não o invadissem.E com estas palavras entregou ao Senhor dos Jardins a chave do cadeado. O Senhor dos Jardins ficou muito triste e disse: Este jardim está perdido. Deverá ser todo refeito. Paulo, Hermógenes: vocês vão ficar encarregados de cuidar deste jardim. Quem já tinha jardins ficará com mais jardins.E, quanto a você, Boanerges, respeito o seu desejo. Não gosta de jardins. Vai ficar sem jardins. Gosta de pedras. Pois, de hoje em diante, irá partir pedras na minha pedreira…

Rubem AlvesGaiolas ou Asas

Publicada por Helena em 6:40 Etiquetas: Rubem Alves 3 0 / D E Z / 2 0 0 8O Senhor Palha Conto japonês

Era uma vez, há muitos e muitos anos, é claro, porque as melhores histórias passam-se sempre há muitos e muitos anos, um homem chamado Senhor Palha. Ele não tinha casa, nem mulher, nem filhos. Para dizer a verdade, só tinha a roupa do corpo. Ora o Senhor Palha não tinha sorte. Era tão pobre que mal tinha para comer e era magrinho como um fiapo de palha. Era por esse

motivo que as pessoas lhe chamavam Senhor Palha.Todos os dias o Senhor Palha ia ao templo pedir à Deusa da Fortuna que melhorasse a sua sorte, mas nada acontecia. Até que um dia, ele ouviu uma voz sussurrar:— A primeira coisa em que tocares quando saíres do templo há- de trazer-te uma grande fortuna.O Senhor Palha apanhou um susto. Esfregou os olhos, olhou em volta, mas viu que estava bem acordado e que o templo estava vazio. Mesmo assim, saiu a pensar: “Terei sonhado ou foi a Deusa da Fortuna que falou comigo?” Na dúvida, correu para fora do templo, ao encontro da sorte. Mas, na pressa, o pobre Senhor Palha tropeçou nos degraus e foi rolando aos trambolhões até o final da escada, onde caiu por terra. Ao levantar-se, ajeitou as roupas e percebeu que tinha alguma coisa na mão. Era um fio de palha.“Bom”, pensou ele, “uma palha não vale nada, mas, se a Deusa da Fortuna quis que eu o apanhasse, é melhor guardá-lo.”E lá foi ele, com a palha na mão.Pouco depois, apareceu uma libélula zumbindo em volta da cabeça dele. Tentou afastá-la, mas não adiantou. A libélula zumbia loucamente ao redor da cabeça dele. “Muito bem”, pensou ele. “Se não queres ir embora, fica comigo.” Apanhou a libélula e amarrou-lhe o fio de palha à cauda. Ficou a parecer um pequeno papagaio (de papel), e ele continuou a descer a rua com a libélula presa à palha. Encontrou a seguir uma florista, que ia a caminho do mercado com o filho pequenino, para vender as suas flores. Vinham de muito longe. O menino estava cansado, coberto de suor, e a poeira fazia-o chorar. Mas quando viu a libélula a zumbir amarrada ao fio de palha, o seu pequeno rosto animou-se.— Mãe, dás-me uma libélula? — pediu. — Por favor!“Bem”, pensou o Senhor Palha, “a Deusa da Fortuna disse-me que a palha traria sorte. Mas este garotinho está tão cansado, tão suado, que ficará certamente mais feliz com um pequeno presente.” E deu ao menino a libélula presa à palha.— É muita bondade sua — disse a florista. — Não tenho nada para lhe dar em troca além de uma rosa. Aceita?O Senhor Palha agradeceu e continuou o seu caminho, levando a rosa. Andou mais um pouco e viu um jovem sentado num tronco de árvore, segurando a cabeça entre as mãos. Parecia tão infeliz que o Senhor Palha lhe perguntou o que tinha acontecido.— Hoje à noite, vou pedir a minha namorada em casamento — queixou-se o rapaz. — Mas sou tão pobre que não tenho nada para lhe oferecer.— Bem, eu também sou pobre — disse o Senhor Palha. — Não tenho nada de valor mas, se quiser dar-lhe esta rosa ela é sua.O rosto do rapaz abriu-se num sorriso ao ver a esplêndida rosa.— Fique com estas três laranjas, por favor — disse o jovem. — É só o que posso dar-lhe em troca.O Senhor Palha continuou a andar, levando três suculentas laranjas. Em seguida, encontrou um vendedor ambulante a puxar uma pequena carroça.— Pode ajudar-me? — disse o vendedor ambulante, exausto. — Tenho puxado esta carroça durante todo o dia e estou com tanta sede que acho que vou desmaiar. Preciso de um gole de água.— Acho que não há nenhum poço por aqui — disse o Senhor Palha. — Mas, se quiser, pode chupar estas três laranjas.O vendedor ambulante ficou tão grato que pegou num rolo da mais fina seda que havia na carroça e deu-o ao Senhor Palha, dizendo:— O senhor é muito bondoso. Por favor, aceite esta seda em troca.E, uma vez mais, o Senhor Palha continuou o seu caminho, com o rolo de seda debaixo do braço.Não tinha dado dez passos quando viu passar uma princesa numa carruagem. Tinha um olhar preocupado, mas a sua expressão alegrou-se ao ver o Senhor Palha.— Onde arranjou essa seda? — gritou ela. — É justamente aquilo de que estou à procura. Hoje é o aniversário de meu pai e quero dar-lhe um quimono real.— Bem, já que é aniversário dele, tenho prazer em oferecer-lhe a seda — disse o Senhor Palha.A princesa mal podia acreditar em tamanha sorte.— O senhor é muito generoso — disse sorrindo. — Por favor, aceite esta jóia em troca.A carruagem afastou-se, deixando o Senhor Palha com uma jóia de inestimável valor refulgindo à luz do sol.

“Muito bem”, pensou ele, “comecei com um fio de palha que não valia nada e agora tenho uma jóia. Sinto-me contente.”Levou a jóia ao mercado, vendeu-a e, com o dinheiro, comprou uma plantação de arroz. Trabalhou muito, arou, semeou, colheu, e a cada ano a plantação produzia mais arroz. Em pouco tempo, o Senhor Palha ficou rico.Mas a riqueza não o modificou. Oferecia sempre arroz aos que tinham fome e ajudava todos os que o procuravam. Diziam que a sua sorte tinha começado com um fio de palha, mas quem sabe se não terá sido com a sua generosidade?

William J. BennettO Livro das Virtudes II – O Compasso Moral

Publicada por Helena em 6:47 Etiquetas: William J. Bennett A menina e o pássaro encantado

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…— Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…

E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.— Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.E de novo começavam as histórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre.Mas chegava a hora da tristeza.— Tenho de ir — dizia.— Por favor, não vás. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar…— E a menina fazia beicinho…— Eu também terei saudades — dizia o pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.Assim, ele partiu. A menina, sozinha, chorava à noite de tristeza, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada: “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz…”Com estes pensamentos, comprou uma linda gaiola, de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Ele chegou finalmente, maravilhoso nas suas novas cores, com histórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola, para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.Acordou de madrugada, com um gemido do pássaro…— Ah! menina… O que é que fizeste? Quebrou-se o encanto. As minhas penas ficarão feias e eu esquecer-me-ei das histórias… Sem a saudade, o amor ir-se-á embora…A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isto que aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar.Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…Até que não aguentou mais.Abriu a porta da gaiola.— Podes ir, pássaro. Volta quando quiseres…— Obrigado, menina. Tenho de partir. E preciso de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro de nós. Sempre que ficares com saudade, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, tu ficarás mais bonita. E enfeitar-te-ás, para me esperar…E partiu. Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.— Que bom — pensava ela — o meu pássaro está a ficar encantado de novo…E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra.— Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro. Porque ele deveria estar a voar de qualquer lado e de qualquer lado haveria de voltar. Ah!Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…E foi assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe se ele voltará amanhã….”E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

* * *

Para o adulto que for ler esta história para uma criança:Esta é uma história sobre a separação: quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus…Depois do adeus, fica aquele vazio imenso: a saudade.Tudo se enche com a presença de uma ausência.Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas…Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. Para que sejam deles, para sempre… Para que não haja mais partidas…Poucos sabem, entretanto, que é a saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços.Esta história, eu não a inventei.Fiquei triste, vendo a tristeza de uma criança que chorava uma despedida… E a história simplesmente apareceu dentro de mim, quase pronta.Para quê uma história? Quem não compreende pensa que é para divertir. Mas não é isso.É que elas têm o poder de transfigurar o quotidiano.Elas chamam as angústias pelos seus nomes e dizem o medo em canções. Com isto, angústias e medos ficam mais mansos.Claro que são para crianças.Especialmente aquelas que moram dentro de nós, e têm medo da solidão…

As mais belas histórias de Rubem AlvesLisboa, Edições Asa, 2003

Publicada por Helena em 6:30 Etiquetas: Rubem Alves 2 7 / D E Z / 2 0 0 8A marcha nupcial Há muitos anos, ia celebrar-se um rico casamento na comuna de Svarstjo, na Vermlândia. A bênção nupcial seria na igreja, e a festa duraria três dias inteiros, e, enquanto durasse a festa, devia dançar-se desde o anoitecer até de manhãzinha.E, pois que se devia dançar tanto, era muito importante achar um músico consumado, e a Nils Elofson, o rico camponês que casava a filha, atormentava mais este problema do que o resto dos preparativos. Quanto ao músico que habitava em Svarstjo, não o queria ele por preço algum. Chamava-se João Oster, e o nosso camponês sabia bem que tinha grande nomeada, mas era tão pobre, que às vezes se apresentava nas festas descalço e de colete rasgado. Não é um maltrapilho assim que a gente gosta de ver à frente de um cortejo nupcial.Decidiu-se enfim a mandar perguntar a certo Martim, chamado o Tocador, de Josseherad, cantão vizinho, se estava disposto a vir tocar no casamento de Svarstjo.Sem um instante de hesitação, respondeu Martim, o Tocador, que nunca tocaria em Svarstjo, enquanto houvesse naquela comuna o melhor músico de toda a Vermlândia. Visto que tinham aquele, não havia necessidade de mandar chamar outro.Recebendo esta resposta, esperou Nils Elofson alguns dias para reflectir, depois mandou perguntar a Olle de Saby, que morava na comuna de Stora Kil, se podia vir tocar no casamento de sua filha.Mas Olle de Saby deu a mesma resposta que Martim. Mandou dizer a Nils Elofson que, enquanto houvesse em Svarstjo um músico como João Oster, ele lá não iria tocar.Nils Elofson não achava graça à pretensão dos músicos de lhe imporem quem ele não queria. Parecia-lhe até que era agora um ponto de honra achar outro músico que não fosse João Oster.Alguns dias depois de receber a resposta de Olle de Saby, enviou o criado a Lars Larsson, o violinista de Engsgardet, na comuna de Ulerud.Lars Larsson era homem abastado, proprietário de uma próspera granja; era prudente e reflectido, não uma cabeça esquentada como os outros músicos.Mas esse, como os outros, pensou logo em João Oster, perguntando por que não se tinham dirigido a ele para o que queriam. Por malícia, respondeu o criado de Nils que, como João Oster morava em Svarstjo, havia ocasião de ouvi-lo todos os dias, e, visto que Nils Slofson promovia uma festa extraordinária, desejava oferecer aos seus convidados alguma coisa melhor, mais rara.– Duvido que ele ache melhor.– Sem dúvida, vai dar a mesma resposta que Martim o Tocador, e Olle de Saby – disse o criado,

contando-lhe o acolhimento que aqueles tinham feito ao convite do seu senhor.Atento, ouviu Lars Larsson a narração do criado. Guardou silêncio um momento, reflectindo, e deu resposta afirmativa.- Dize a teu amo que agradeço o convite e que irei à hora marcada.No domingo seguinte, lá foi Lars Larsson à igreja de Svarstjo. Viram-no chegar à ladeira que conduz à igreja, justamente quando começava a formar-se o cortejo nupcial para se pôr a caminho.Viera no seu próprio carrinho, puxado por um cavalo de preço; vestia um belo trajo negro e tirou o instrumento de uma esplêndida caixa. Recebeu-o Nils Elofson com todos os respeitos devidos à sua categoria: aquele, sim, era um músico de quem a gente se podia orgulhar.Pouco depois da chegada de Lars Larsson, viram aproximar-se João Oster, com o violino debaixo do braço. Foi direito ao cortejo que cercava a noiva, como se tivesse sido convidado para tocar na festa.Vinha com o seu velho colete de burel cinzento, que vestia há longos anos, mas, como se tratava de casamento tão rico, a mulher fizera alguns consertos, pondo nos cotovelos grandes remendos de pano verde. Era um belo homem, de alta estatura, e faria grande figura à frente do cortejo nupcial, se não estivesse tão miseravelmente vestido, e se a luta incessante contra a miséria lhe não houvesse marcado o rosto de rugas.Vendo chegar João Oster, pareceu Lars Larsson contrariado.– Convidou-o também? – perguntou a meia voz a Nils Elofson. – Não são demais com efeito, dois músicos para tão magnífico casamento.– Mas não o convidei – protestou Nils Elofson. – Não compreendo por que veio. Espera um pouco, que lhe farei saber que nada tem a fazer aqui.– Foi então algum trocista que o convidou. Mas, se quer o meu parecer, façamos de conta que de nada desconfiamos e vá dar-lhe as boas-vindas. Tenho ouvido dizer que ele é arrebatado de génio, e não podemos ter a certeza de que não vá fazer escândalo, se lhe disser que não foi convidado.Aceitou Nils sem hesitação este conselho. Seria inoportuno procurar aborrecimentos no momento em que o cortejo se formava na praça da igreja. Aproximou-se, pois, de João Oster e cumprimentou-o.Feito isto, colocaram-se ambos os músicos à frente. Atrás deles,o par, sob o pálio, seguido dos pajens e donzelas de honor, dois a dois; vinham depois os pais dos noivos, e os diversos membros de ambas as famílias, de modo que o acompanhamento tinha na verdade um aspecto imponente.Quando tudo estava pronto, um rapaz, dirigindo-se aos músicos, pediu-lhes que iniciassem a marcha nupcial.Fizeram ambos os músicos simultaneamente o mesmo gesto de apoiar o violino ao queixo. Nisto pararam ambos, rígidos, à espera, porque, em Svarstjo, um velho costume exigia que fosse o músico mais hábil a iniciar a marcha nupcial.Olhou o rapaz para Lars Larsson como a indicar que este começasse, mas Lars Larsson olhou para João Oster, dizendo:– É João Oster quem deve começar!Não pensava, porém, João Oster que o outro, vestido tão ricamente como um senhor, lhe pudesse ser inferior, a ele que, envergando um velho colete de burel, vinha de uma pobre cabana onde não havia mais do que trabalho e miséria.– Oh, mas de modo nenhum – disse ele, confuso. – Oh! Não, de modo nenhum!Viu que o noivo tocava no cotovelo de Lars Larsson, dizendo:– Lars Larsson deve começar!Ouvindo estas palavras, João Oster retirou o violino do queixo e deu um passo para o lado.Lars Larsson não se moveu; ficou no seu lugar, parecendo tranquilo e contente de si. Contudo, também não levantou o arco.– É João Oster quem deve começar – repetiu, acentuando as palavras, como homem habituado a fazer o que quer.Houve não pouca agitação no cortejo, por causa da demora. Veio o pai do noivo pedir a Lars Larsson que começasse. À porta da igreja apareceu o porteiro, fazendo-lhe sinal para que se apressassem; o pastor já estava diante do altar. Era pouco delicado fazê-lo esperar.– Não têm mais do que pedir a João Oster que comece – respondeu Lars Larsson. – Nós,

músicos, sabemos que é o mais hábil de todos.– Pode ser que assim seja – replicou o camponês – mas nós, camponeses, achamos que és tu, Lars Larsson, o mais hábil.Cercavam-nos todos os convidados.– Mas começai – diziam – o pastor está à espera. Vamos servir de risota a toda a gente.Lars Larsson, porém, permaneceu ali, tenaz e desdenhoso como nunca.– Não compreendo por que a gente daqui se opõe com tanto ardor a que o seu próprio músico tenha o primeiro lugar – disse ele.Mas Nils Elofson enfurecera-se perante a obstinação de todos em quererem impor-lhe João Oster. Aproximou-se de Lars Larsson e disse-lhe ao ouvido:– Compreendo que foste tu quem chamou João Oster, para o honrar diante de todos. Mas agora trata de começar, senão vou enxotar da praça este esfarrapado, que só levará daqui vergonha e confusão.Sem mostrar cólera, olhou-o Lars Larsson nos olhos e fez com a cabeça um sinal afirmativo.– Sim, tem razão, é preciso acabar com isto.Fez sinal a João Oster para retomar o seu lugar à frente. Depois, adiantou-se alguns passos para que todos o pudessem ver. E, com um gesto rápido, lançou longe o arco, tirou a faca do bolso e cortou de um golpe as quatro cordas, que se partiram, produzindo um som agudo.– Ninguém dirá que me considero acima de João Oster! – gritou ele.Ora, é o caso que há três anos ruminava João Oster uma ária que sentia palpitar em si, mas que era incapaz de fazer sair das cordas do violino, porque, lá em casa, estava constantemente curvado sob o pesado fardo de cuidados pequeninos e miseráveis, e nunca lhe sucedera nada que o pudesse elevar acima da tarefa quotidiana. Quando ouviu rebentarem as cordas do violino de Lars Larsson, atirou para trás a cabeça e aspirou violentamente o ar nos pulmões. Tinha os traços do rosto tensos, como se escutasse alguma coisa que lhe vinha de muito, muito longe, e de repente, pôs-se a tocar. Porque a ária que procurara em vão durante três anos, lhe aparece de improviso com maravilhosa limpidez, e, fazendo ressoar as notas claras, pôs-se a caminhar altivamente para a igreja. E jamais a gente do cortejo ouvira ária tão triunfal. Arrastou-os a todos com tão irresistível ímpeto que o próprio Nils Elofson não se pôde manter quieto. E estavam todos tão contentes, não só de João Oster, mas também de Lars Larsson, que o acompanhamento inteiro tinha os olhos rasos de lágrimas ao entrar na igreja.

Selma Lagerlöf, Histórias Inesquecíveis para Crianças,Ilse Losa (org.)

Publicada por Helena em 6:23 Etiquetas: Selma Lagerlöf 2 4 / D E Z / 2 0 0 8Conto de Natal

Um aldeão russo, muito cristão, constantemente pedia em suas orações que Jesus viesse visitá-lo em sua humilde choupana.Na véspera do Natal sonhou que o Senhor iria aparecer-lhe. Teve tanta certeza da visita que, mal acordou, levantou-se imediatamente e começou a pôr a casa em ordem para receber o hóspede tão esperado.Uma violenta tempestade de granizo e neve acontecia lá fora e o aldeão continuava com os afazeres domésticos, cuidando também da sopa de repolho, que era o seu prato predileto.

De vez em quando ele observava a estrada, sempre à espera. Decorrido algum tempo, o aldeão viu que alguém se aproximava caminhando com dificuldade em meio a borrasca de neve. Era um

pobre vendedor ambulante, que conduzia às costas um fardo bastante pesado. Compadecido, saiu de casa e foi ao encontro do vendedor. Levou-o para a choupana, pôs sua roupa a secar ao calor da lareira e repartiu com ele a sopa de repolho. Só o deixou ir embora depois de ver que ele já tinha forças para continuar a jornada.Olhando de novo através da vidraça, avistou uma mulher na estrada coberta de neve. Foi buscá-la, e abrigou-a na choupana. Fez com que sentasse próximo à lareira, deu-lhe de comer, embrulhou-a em sua própria capa... Não a deixou partir enquanto não readquiriu forças suficientes para a caminhada.A noite começava a cair... E nada de Jesus!Já quase sem esperanças, o aldeão novamente foi até a janela e examinou a estrada coberta de neve. Distinguiu uma criança e percebeu que ela se encontrava perdida e quase congelada pelo frio... Saiu mais uma vez, pegou a criança e levou-a para a cabana. Deu-lhe de comer, e não demorou muito para que a visse adormecida ao calor da lareira.Cansado e desolado, o aldeão sentou-se e acabou por adormecer junto ao fogo.Mas, de repente, uma luz radiosa, que não provinha da lareira, iluminou tudo! Diante do pobre aldeão, surgiu risonho o Senhor, envolto em uma túnica branca!- Ah! Senhor! Esperei-O o dia todo e não aparecestes, lamentou-se o aldeão...E Jesus lhe respondeu:- Já por três vezes, hoje, visitei tua choupana: o vendedor ambulante que socorrestes, aquecestes e deste de comer...era Eu! A pobre mulher, a quem deste a capa...era Eu! E essa criança que salvaste da tempestade, também era Eu... O Bem que a cada um deles fizeste, a mim mesmo o fizeste! Leon Tolstoi

Publicada por Helena em 5:51 Etiquetas: Leão Tolstoi Conto de Natal

Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.— Que é?O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:— Porcaria...Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.— Péra aí...

Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.— Vamos ver aqui...Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!— Mulher!Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.— Péra aí...Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.— Não...Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.— Eh, mulher...Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.— Oh, graças a Deus...Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.— Eu acho que o jeito...O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!— Natal?Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:— Eh, pai, vem vê...— Uai! Péra aí...O menino Jesus Cristo estava morto.

Texto extraído do livro "Nós e o Natal",Artes Gráficas Gomes de SouzaRio de Janeiro, 1964, pág. 39.

Publicada por Helena em 5:40 Etiquetas: Rubem Braga A árvore de Natal na casa de Cristo

Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino já ganhava a rua.

Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos cavalos que galopam; através da neve friável o ferro dos cascos tine contra a calçada;toda gente se apressa e se acotovela, e, meu Deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não vê.Eis uma rua ainda: como é larga! Esmaga-lo-ão ali, seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam, comem e bebem alguma coisa. Eis ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não podem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar - de verdade - e, se não se ouve nada, é por causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança: "Podia jurar que eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"- Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto

árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não, são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.- Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes beijos.- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.

Dostoiévski

Publicada por Helena em 5:31 Etiquetas: Dostoiévski 2 3 / D E Z / 2 0 0 8Bom Natal, Pai Natal

Não é nada fácil a vida de um Pai Natal. Se não acreditam, prestem atenção àquilo que vos vou contar. As peripécias são muitas e os azares ainda mais. É por isso que as minhas barbas estão cada vez mais brancas. Brancas da neve, que, em flocos, nelas vai pousando, mas também das preocupações que não me dão sossego.Querem saber como é que se chega a Pai Natal? Então eu vou explicar-vos. Pode ser-se Pai Natal de muitas maneiras. Eu, por exemplo, não escolhi esta profissão. Foi ela que me escolheu, sim porque os ofícios também podem escolher as pessoas e não o contrário.Durante muitos anos eu fui carteiro numa pequena cidade do Norte, onde a invernia durava mais de seis meses e onde a luz do sol era caprichosa e fazia muitas caretas antes de aparecer.Toda a gente me conhecia e eu conhecia toda a gente. Nessa altura não me chamava Pai Natal e sim Thor, um nome comum nos países do norte da Europa, que tratam por tu o gelo, o frio e a solidão dos grandes espaços brancos onde só há renas e bonecos de neve com narizes feitos com cenouras geladas como estalactites.As pessoas costumam gostar dos carteiros, sobretudo nas terras pequenas, porque eles, mesmo quando trazem más notícias, também são capazes de deixar uma palavra amiga e um abraço de consolo.Vi nascer famílias inteiras. Vi desaparecer os mais velhos. Vi as crianças tornarem-se homens e mulheres e partirem para as cidades grandes em busca de trabalho. Vi coisas boas e más, alegres e tristes e, muito antes de ser Pai Natal, também vi o mal que as guerras podem fazer a quem quer viver em paz.Como qualquer carteiro que gosta do seu ofício, eu acompanhava a vida das notícias que levava e que trazia. Uma lágrima de tristeza no rosto de quem as recebia dizia-me que podiam ser bem melhores do que eram. Um sorriso largo mostrava-me que elas tinham trazido felicidade a alguém. E eu estava sempre ao lado de quem sofria ou de quem ficava contente, sim porque os amigos são isso mesmo. São aqueles com quem se pode contar tanto nas horas boas como nas más.— Thor, vê lá que notícias nos trazes hoje! — diziam-me, à passagem, as pessoas que moravam na pequena cidade de província, com casas de madeira, usando um tom que era de brincadeira, mas também de ameaça. Elas sabiam que eu não lia nem podia ler as cartas que lhes entregava, mas, no fundo, acreditavam que eu podia fazer alguma coisa para tornar mais agradáveis as notícias tristes e ainda mais alegres as notícias boas. Acho que é assim que os carteiros são

vistos um pouco por toda a parte e eu não me importava que isso acontecesse comigo, até porque me dava a sensação de ter um poder que realmente não tinha. Acreditem que era uma sensação agradável, principalmente para um modesto carteiro cujo único poder era o de ler os endereços nos envelopes e de os entregar às pessoas certas sem demora.Com a idade, comecei a sentir dores nas pernas e nas costas e o exercício matinal de andar vários quilómetros ao frio deixou de ser agradável e estimulante. Passei a caminhar mais lentamente e algumas pessoas começaram a protestar porque a entrega da correspondência se fazia cada vez mais tarde.— Desculpem, mas melhor do que isto já não consigo fazer — lamentava-me eu, com pena de que o meu serviço estivesse a perder qualidade.Houve mesmo pessoas que não eram da cidade, mas que para lá foram entretanto viver, que pediram ao chefe da estação de correios para me substituir, mas ele, que era meu amigo e que sabia como eu era estimado, sorriu e limitou-se a responder:— Enquanto ele puder andar e quiser continuar a ser carteiro, o lugar é dele. Portanto, a sua substituição está fora de questão.Fiquei-lhe agradecido por aquele gesto de amizade e de confiança, mas devo confessar que, a partir dessa altura, comecei a pensar em retirar-me para ter um fim de vida mais descansado. Mas retirar-me para fazer o quê? Para essa pergunta eu não encontrava resposta, mas ela acabou por surgir.

*

Ao longo da minha vida como carteiro conheci muita gente. Uma dessas pessoas era um simpático sapateiro chamado Andersen, que tinha ideias arejadas apesar de o seu ofício ser modesto. Era casado com uma senhora mais velha e recordo-me bem da alegria que o casal teve quando, num dia do princípio de Abril, lhes nasceu o único filho. Era uma criança pequena e muito metida consigo mesma. Quando ele nasceu, levei cartas para várias cidades e aldeias a dar a notícia da sua vinda ao mundo. Os pais, de tão felizes que estavam, queriam que familiares e amigos partilhassem a sua alegria. Ao menino foi dado o nome de Hans Christian e quando cresceu passei a contá-lo entre os meus amigos. Eu contava-lhe histórias e ele retribuía com outras que a mãe e o pai lhe contavam, e longe estava eu de imaginar que muitas dessas histórias, uma vez postas em livro, viriam depois a torná-lo famoso em todo o mundo.— Não chores que ele qualquer dia volta — foram as únicas palavras que consegui dizer-lhe no dia em que o seu pai partiu para muito longe, para participar como soldado nas campanhas de Napoleão Bonaparte, um imperador francês que ele muito admirava.O pai de Hans Christian nunca mais voltou, nem as histórias que ele contava ao filho ao adormecer. Durante muito tempo ele deixou de querer saber se chegavam ou não cartas de longe com notícias frescas e boas. Ninguém mais lhe poderia dar a notícia pela qual ele ansiava: a do regresso de seu pai. Um dia vi Hans Christian de malas feitas para partir e perguntei-lhe:— Para onde vais, rapaz? Se tu partires, a quem vou eu contar as minhas histórias de carteiro velho?— Vou para Copenhaga. Quero ser cantor, bailarino, actor, talvez mesmo escritor. Tu qualquer dia também vais fazer grandes viagens, como as personagens das histórias de que ambos gostamos tanto.— Mas eu não passo de um pobre carteiro à beira da reforma — respondi-lhe eu.— Mas nada te obriga a teres este ofício até ao fim dos teus dias. Qualquer dia tens uma grande surpresa — disse-me Hans Christian, enquanto subia para a carruagem que o levaria até à capital, para ser famoso e rico.Fiquei a pensar na surpresa de que ele me falou com um sorriso matreiro no rosto magro e pálido, mas, mesmo puxando pela imaginação, não consegui descobrir qual poderia ser.Nas semanas que se seguiram senti saudades de Hans Christian e das histórias que, fora das horas do meu serviço, contávamos um ao outro, dando asas aos sonhos que fazem voar as histórias e as lendas por cima das fronteiras que separam os países e os homens. Ele fez-me muita falta, porque, sem a sua presença, eu sentia-me mais velho, mais cansado e menos capaz de cumprir a minha função de carteiro. As ruas eram agora mais compridas, havia mais casas, rostos novos e eu já não era capaz de conhecer toda a gente, como nos velhos tempos da juventude. Entristecia um pouco mais todos os dias, ansioso por que chegasse a reforma e, ao

mesmo tempo, com a esperança de que ela tardasse o mais possível. Afastado do meu trabalho, eu iria sentir-me inútil e abandonado.Às vezes as crianças, ao verem-me passar, diziam-me:— Em vez de cartas cheias de gatafunhos, bem podias trazer-nos um presente bonito, mesmo que não seja Natal.Foi nessa altura que comecei a receber cartas de muito longe. Primeiro de Itália, depois de Espanha e de Portugal. Era Hans Christian quem as mandava e em todas elas me dava conta dos seus êxitos literários. Os seus livros eram agora lidos em muitos países e as suas histórias contadas a crianças de todo o mundo. Nem podia imaginar a alegria que o seu triunfo me dava. Numa dessas dessas cartas ele fazia-me um anúncio estranho e ao mesmo tempo agradável: “Prepara-te, Thor, porque dentro de pouco tempo vais receber a visita de uma grande amiga minha que te levará boas notícias”.Todos os dias eu ficava à espera dessa visita que tardava a chegar. Mas, como sabia que Hans Christian não era pessoa para mentir, não desisti de a ver chegar à porta da minha pequena casa de madeira, onde as crianças da cidade me vinham pedir que lhes contasse histórias e saber se eu tinha presentes para lhes entregar.Os grandes frios de Inverno deixavam-me cada vez mais abatido e com menos vontade de distribuir correspondência de rua em rua, de casa em casa. Um dia adoeci com gravidade e os meus amigos disseram-me:— É tempo de parares. A partir de agora alguém mais jovem se ocupará da tua tarefa. Tens direito a descansar e a passear pelas ruas e pelas praças sem a obrigação de entregares cartas e encomendas. As pessoas vão sentir saudades tuas, mas podem vir visitar-te a casa.Deitando contas à minha pobre vida, que assim se aproximava do fim, nem me apercebi da presença, junto à minha cabeceira de doente, de uma rapariga de vestido branco e olhos verdes, que parecia ter luz própria, como uma estrela ou uma fogueira nocturna. Quis saber quem era e o que fazia ali.— Diz-me o teu nome e o que fazes aqui?— Não te assustes, porque são boas as razões que me trazem à tua casa. Suponho que Hans Christian, nosso amigo comum, te terá falado em mim.— Ah, então és tu a surpresa de que ele me falava com tanto mistério — exclamei, satisfeito e intrigado.— Não sei se sou ou não uma surpresa, mas sou, pelo menos, uma amiga que te vem ajudar — disse ela.— E posso ao menos saber o teu nome, ou será que não o podes dizer a um pobre carteiro que deixou de entregar cartas e que vê a sua vida a aproximar-se do fim?— Claro que podes saber o meu nome. Eu sou a Fada do Inverno e venho propor-te um outro ofício que, sendo parecido com o que tiveste durante tantos anos, acaba, afinal, por ser muito diferente.— E será que posso saber qual é esse ofício que agora me propões? — quis eu saber, já cansado de tanto mistério.— Venho propor-te que te tornes Pai Natal — esclareceu a fada — e, por aquilo que sei de ti e pelo que sei que as crianças sentem a teu respeito, acho que vais gostar muito do teu novo trabalho.— Mas eu — respondi, balbuciando com a comoção — não sei o que é preciso fazer para se ser Pai Natal e, para além disso, estou com muito poucas forças e a saúde muito fraca. Acho mesmo que estou velho de mais para aquilo que me propões.— Não deves preocupar-te com nada disso — explicou ela — porque, a partir de hoje, vais ter uma saúde de ferro e a idade vai deixar de contar para ti. Em vez de contares os dias, vais contar os natais e ficarás sempre com a mesma idade, porque um Pai Natal não pode ser mais novo nem mais velho do que tu. Tem que ter sempre a mesma idade e o mesmo aspecto.Confesso que a ideia me agradou bastante, mas não me atrevi a acreditar que nada daquilo fosse verdade. Eu devia estar a delirar com a febre e a Fada do Inverno não devia passar de uma alucinação.Foi então que a fada, pegando-me na mão, me levantou da cama e me levou até à janela para ver, cá fora, na rua, a parte mais importante da surpresa.— Vais fechar os olhos — disse-me — e, quando eu acabar de contar até dez, vais abri-los e ver o que está parado à tua porta.

Fiz exactamente como ela disse e, ao abrir os olhos, deparei com um lindo trenó, puxado por quatro parelhas de renas.— Gostas? — perguntou ela.— Claro que gosto — exclamei — mas não acredito que seja para mim e que vá ser eu a viajar nele.— Pois podes acreditar no que vês. A partir de agora serás tu a conduzir aquele trenó e a levar, em Dezembro, presentes a crianças de muitos países. Claro que vais receber muitas cartas e ter que as ler para saber o que querem, de onde são e em que medida podes ou não satisfazer os seus pedidos. Mas é mesmo essa a função de um Pai Natal, e não é muito diferente daquilo que fazias quando eras carteiro. Apenas terás que viajar mais e não te poderás limitar a entregar encomendas.Ouvi atentamente todas as palavras da fada e comecei logo a fazer projectos quanto à forma de realizar da melhor maneira o meu novo trabalho.Dividido entre o sonho e a realidade, senti que ela me tocava na testa com a varinha de condão e que, ao fazê-lo, se desfazia num clarão, desaparecendo do meu quarto sem sequer me dizer adeus. Eu era agora um Pai Natal a sério, com roupa de macia flanela vermelha, gorro da mesma cor com uma borla branca na ponta e com barbas ainda mais compridas do que as que habitualmente usava. Nesse instante deixei também de sentir dores nas pernas e nas costas e a fraqueza que me levara à cama transformara-se num vigor e num bem-estar imensos. Eu nunca me sentira tão bem na minha vida. Tornara-me Pai Natal e não ia ter mãos a medir. Quis agradecer ao meu amigo Hans Christian, mas não sabia a sua morada, nem o seu paradeiro, já que ele andava agora por todo o mundo a visitar cidades, escritores seus amigos e a ver os seus livros traduzidos noutras línguas nas montras das maiores livrarias.Falando com os meus botões, prometi: “No próximo Natal vou deixar-lhe um presente na chaminé”. Alguém havia de me dar a sua morada.No começo tudo foi agradável e entusiasmante, até por ser novidade. Eu gostava muito daquilo que fazia e não havia pedido que não satisfizesse, mesmo que não fosse fácil de atender. E muitos não eram.Ao longo do ano chegavam-me cartas e postais de todo o mundo. Alguns até traziam desenhos bonitos, feitos a várias cores. Outros vinham escritos com uma letra miudinha e cheia de hesitações. Às vezes eu levava horas a tentar decifrar os pedidos que as crianças me faziam. Tive que aprender várias línguas e arranjar óculos com lentes mais fortes. Senti a tentação de satisfazer primeiro os pedidos das crianças da minha cidade, mas não caí nela. Os pedidos eram satisfeitos pela ordem de chegada e primeiro estavam sempre os meninos e as meninas que, ao longo do ano, pouco ou nada tinham recebido. Era uma questão de justiça e eu, se já tinha sido justo como carteiro, agora tinha de o ser ainda mais como Pai Natal.Vi, cá de cima, o mundo a transformar-se: as cidades a crescerem, as populações a aumentarem e a movimentarem-se de uns países e de uns continentes para os outros, as fábricas a aparecerem e a encherem os céus de fumo espesso e escuro, as pessoas a andarem cada vez mais depressa.— Isto nunca esteve tão mal — lamentavam-se os velhos.— Eu gosto de ser criança e tenho vontade de ser feliz — diziam-me os mais pequenos.Tive que perguntar aos gnomos que me ajudavam e que estavam mais atentos às pequenas e às grandes coisas da terra os nomes de estranhos objectos metálicos que eu observava cá em baixo em movimento, e eles responderam-me: “São os automóveis, os autocarros e os comboios, os aviões e os navios”. Eu nunca percebi verdadeiramente para que servia tudo aquilo, porque os meus problemas de deslocação resolviam-se com um simples e rápido trenó. Mas eu sou um Pai Natal e as pessoas como eu não devem andar de carro ou de comboio, ou, pelo menos, ninguém espera que andem, para que não se estrague a magia das histórias que ajudam a sonhar.Os meus maiores problemas foram sempre com os objectos voadores, primeiro com os aviões e mais recentemente com as naves espaciais. Já estive em vias de chocar com alguns e só por milagre isso não aconteceu. Há uns anos, depois de ter evitado à justa a colisão com um avião gigantesco que voava para a Austrália, para a terra dos meus amigos cangurus, ainda ouvi um insulto (digo que era um insulto pelo tom e não porque saiba o significado da palavra) que ainda hoje me dá que pensar:— “Desaparece da minha frente, ovni de uma figa”! — gritou o comandante furibundo, com os olhos a faiscarem de raiva. E eu, como era Natal, nem lhe pude responder, senão ainda lhe teria

dito:— Ovni és tu, meu azelha dos céus. Vai mas é arrumar essa banheira de lata pintada na garagem da tua avó. Ovni é a tua prima!Mas achei de bom tom ficar calado e seguir viagem. É isso que se espera de um Pai Natal, e foi precisamente isso que eu fiz. Era só o que faltava: eu envolvido numa discussão de trânsito!O que mais me tem custado em todos estes anos que levo de ofício e que já não têm conta, porque eu, depois da minha conversa com a Fada do Inverno, também perdi a conta aos anos que tenho de idade, é ver os estragos que as guerras provocam às pessoas e às casas. Até me arrepio quando falo nisto, mesmo não vos contando as coisas terríveis que já vi. Um Pai Natal não pode contar tudo aquilo que vê.Não me chegam os dedos das mãos para contar os natais em que fiquei sem entregar presentes. Levei o meu trenó o mais longe que pude, até perto das casas dos meninos que me tinham escrito cartas e postais, mas, na maior parte das vezes, não os encontrei. Tinham deixado de morar ali, tinham sido levados para campos longínquos onde as pessoas são tratadas como bichos e alguns nunca mais puderam regressar às suas casas. Guardei os seus presentes no meu sótão iluminado, sempre à espera de dias melhores e mais pacíficos. Mas esses dias, quando finalmente chegaram, já estavam fora de tempo. Muitas vezes chorei sobre as cidades destruídas e incendiadas pela guerra e ouvi as minhas renas a perguntarem-me:— Porque choras, Pai Natal?— Por nada, é do nevoeiro e do fumo que sai das chaminés das fábricas — respondi eu com pouca convicção, mas elas perceberam que eu não estava a falar verdade.Ninguém tem tanta sensibilidade como os animais para perceber se estamos ou não a sofrer. As renas conhecem-me há tantos, tantos anos que, mal eu começo a fungar, sabem logo que é uma grande tristeza a tomar conta de mim.— Quando ele está assim triste, o melhor é deixá-lo ficar em paz com os seus pensamentos — costuma ser este o comentário das renas.Mas eu não lhes menti inteiramente quando falei no fumo das fábricas. É mesmo verdade. Cada vez mais andam no ar fumos esquisitos e irritantes, dos que fazem chorar, dos que fazem espirrar e dos que nos deixam cheios de comichões na pele. Para dizer a verdade, eu acho que as pessoas cada vez têm menos respeito umas pelas outras, e, quando o respeito falta, tudo se torna possível. Por isso, os meus ouvidos andam cansados de ouvir tantas queixas, das crianças, dos pássaros, dos peixes, das árvores e dos rios. Há meses até recebi uma carta de um colibri a pedir-me uma máscara contra os fumos de uma grande fábrica que construíram perto do seu ninho. Claro que não pude satisfazer o pedido, primeiro porque não costumo dar máscaras anti-poluição e depois porque não existem nenhumas feitas à medida dos pássaros, sobretudo quando são pequeninos como os colibris.Mas os pedidos estranhos não se ficam por aqui. Antigamente pediam-me ursos de peluche, carros de bombeiros feitos de lata, marionetas e bonecas de pano. Agora pedem-me coisas muito diferentes: jogos de computador, carros telecomandados, leitores de CDs.Confesso que tenho feito um grande esforço para me manter actualizado. Leio livros, jornais, folhetos explicativos e muita outra papelada. Por aí vejo as voltas que o mundo deu.No tempo em que eu contava histórias a Hans Christian e ele mas contava a mim, nada disto existia. Era tudo mais simples e menos confuso. Não quero dizer que fosse melhor nem pior.Acho apenas que era diferente, muito diferente. Eu sei que o mundo não pára e que tudo se transforma. Mas também sei, mesmo sem querer armar-me em filósofo de trazer por casa, que há coisas que as pessoas não podem nunca perder: o gosto de conversar, de estar com as outras pessoas, de ouvir e de contar histórias, de olhar para o céu e para o mar, nem que seja para contar estrelas ou ondas.Aqui, o velho Thor às vezes interroga-se: “Será que os presentes que eu entreguei ao longo da minha vida fizeram bem aos meninos e às meninas que os receberam? Será que não ficaram mais mesquinhos e gananciosos por terem presentes a mais?”Ainda não consegui e se calhar nunca conseguirei encontrar respostas para estas perguntas, mas não faz mal. Às vezes, as perguntas são muito mais importantes que as respostas, porque nos fazem pensar e nos ajudam a fazer pensar os outros. Ainda há pouco abri uma carta vinda não sei bem de onde e, lendo o segundo parágrafo, vi que uma menina chamada Bárbara me pedia um telemóvel para poder falar a qualquer hora do dia com os primos que estão emigrados no Canadá. Vou ver se não me esqueço de satisfazer o pedido da Bárbara, porque é para isso que um Pai

Natal existe, mas, sinceramente, preferia que ela me tivesse pedido um livro de lendas ou uma boneca. Se calhar, são manias que eu tenho.— Pai Natal, este ano tens que me trazer uma televisão gigante para eu ver o que se passa no mundo. Quando o ecrã é grande até as guerras são um espectáculo! — disse-me na semana passada, à passagem por uma aldeia de montanha, um miúdo de cabelos negros e olhos muito vivos, e eu respondi-lhe:— Em vez da televisão, este ano vou oferecer-te um livro muito bonito. Não leves a mal, mas presentes desse tamanho já não cabem no meu trenó.

Eu sei que, às vezes, me torno um desmancha-prazeres, mas prefiro dizer o que penso e o que sinto. Quanto a dar televisões de presente, prefiro fazer outras escolhas. Não tenho nada contra a televisão, mas, como sou do tempo em que ela ainda não tinha sido inventada, tenho saudades das noites e dos dias em que havia paciência para sonhar e para inventar histórias. Pode ser que eu esteja a ver mal as coisas, mas, se aqui estivesse o meu amigo Hans Christian, era bem capaz de me dar razão.

*

Embora todos ou quase todos sonhem com o Pai Natal quando são pequenos, eu gostava de vos dizer que o Pai Natal também tem sonhos e gosta muito de sonhar. De resto, eu não sei mesmo o que seria a vida de um Pai Natal se não fossem os sonhos que o acompanham por toda a parte.Ainda esta noite tive um sonho. Sonhei que recebia a minha própria visita. Eu estava a dormir, ainda menino, na minha terra fria do Norte, e de repente bateram à porta e era eu que vinha entregar um presente a mim mesmo.Como vocês sabem, nos sonhos tudo, ou quase tudo, é possível, até sonharmos que recebemos a nossa própria visita. Olhei para aquela cara e confesso que ela não me pareceu nada estranha. Era eu menino a olhar para mim já velho e a sentir simpatia por aquele homem de barbas compridas e brancas que me trazia um presente de muito longe e de um sítio secreto no fundo da noite. Sentei-me na cama e tentei tocar-lhe nas barbas, mas, como sempre acontece nos sonhos, senti que tinha os movimentos presos, que não conseguia sequer mexer um músculo, que estava mais rígido que um pedaço de granito numa montanha. Sentei-me na cama e perguntei-lhe:— Que presente me trazes?— Trago-te um trenó pequenino para tu poderes viajar nele quando tiveres a minha idade — respondeu-me o Pai Natal.— Mas quem foi que te disse que eu ia querer um trenó para usar quando tiver a tua idade? — perguntei eu, em tom de menino esperto e inquiridor.— Ninguém me disse, fui eu que adivinhei. Eu sei que quando tiveres a minha idade, barbas tão compridas como as minhas e este ar cansado e errante com que hoje me vês, vais precisar de um trenó como aquele que agora te ofereço, só que muito maior e com renas verdadeiras.— Mas como podes tu saber a meu respeito coisas que eu nem sou capaz de imaginar?— Se calhar é a vantagem de ser Pai Natal. Mas eu vou tentar satisfazer a tua curiosidade. Esta madrugada, antes de vir bater à tua porta, eu passei pela casa de um outro menino chamado Hans Christian, que me pediu para não me esquecer de ti nesta noite de todos os presentes e de todos os afectos. E foi isso que eu fiz. Vim até à tua casa para te oferecer este pequeno trenó. Sempre que olhares para ele, hás-de lembrar-te de mim e hás-de lembrar-te daquilo que irás ser quando tiveres a minha idade.Olhei, em sonhos, ainda com a idade de ser um menino, para aquele Pai Natal que era eu com os anos que hoje tenho, e senti uma grande ternura. Não por mim, mas por todos aqueles a quem consigo dar um pouco de alegria com o recheio mágico do meu saco iluminado.E pronto, tinha chegado o momento de acabar o sonho. Eu ia fechar os olhos, mergulhar numa escuridão profunda e preparar-me para ser apenas aquilo que sou nesta história que hoje vos conto na primeira pessoa: um Pai Natal vindo das terras geladas e brancas do Norte, cheio de coisas para contar e de presentes para entregar.Agora eu pergunto: será que é real o que vos estou a contar nesta história? Será que há histórias verdadeiras? Será que um Pai Natal, mesmo quando conta a sua própria história, não é sempre uma figura mágica, nascida da imaginação de quem já foi menino e de quem, sendo menino, recebeu, na altura certa, os presentes da alegria e da saudade de ser menino? Podem ter a

certeza que não vou dar resposta a nenhuma destas perguntas. Porque não quero e porque não sei. Um Pai Natal é muito mais interessante quando pergunta do que quando responde. E eu gosto muito de ser perguntador. Gosto de perguntar qual é o melhor caminho para chegar mais perto daqueles de quem gosto. Gosto de perguntar qual é a morada das estrelas que me iluminam o caminho. Gosto de perguntar onde começa e acaba o sonho dos meninos que me inventam em cada noite de Consoada.Agora estou acordado outra vez, e ainda tenho muito para viajar e outro tanto para contar. Sigo o fio de luz deixado por um cometa que atravessa a noite em direcção a lado nenhum. É seguindo estes rastos que eu encontro sempre o caminho que me leva até ao fim das histórias e até à casa de cada um de vós. Porque vocês me inventam e porque eu, ao saber-me inventado, também me sei amado como só os pais, os avós e os grandes amigos podem ser. E, dito isto, só não vos entrego já o presente que trouxe para vos dar, porque isso só pode acontecer no fim da história, e eu ainda tenho um longo caminho a percorrer até lá chegar. Endireito as costas no assento do meu velho trenó e parto para um outro capítulo.— Vamos fazer-nos outra vez ao caminho, Pai Natal. Estávamos a ver que nunca mais acordavas! — desabafou uma das renas.

*

— Atchim! Atchim! — desculpem lá o mau jeito, mas agora passo os dias a espirrar. Nunca sei se é Verão ou se é Inverno, se é Primavera ou se é Outono. As estações do ano andam todas trocadas. Visto o meu casacão de flanela e faz um calor abrasador. Fico em mangas de camisa e sinto um frio de rachar. Vá lá um Pai Natal orientar-se no meio destas mudanças de temperatura!A constipação que agora me anda a incomodar apanhei-a há dias quando me saltou um esqui do trenó e passei ao relento mais de duas horas a repará-lo. Quando cheguei a casa os gnomos que me ajudam notaram que eu tinha o nariz a pingar e os olhos muito vermelhos.— O Pai Natal vai ficar de cama e não pode entregar os presentes — disse-me Adónio, o mais esperto e espevitado de todos eles.Mas eu não me deixei assustar com a perspectiva de ficar de cama. Fui ao armário dos segredos antigos buscar um xarope feito a partir de uma receita da minha avó e hoje já estou bastante melhor. Não tenho medo de morrer com uma constipação, o que não quero é faltar ao encontro com os meus amigos de todo o mundo na noite de Natal.O que me está a preocupar é o mau estado em que tenho o trenó. Os esquis estão desengonçados e as renas, coitadas, cada vez têm que fazer mais esforço para o puxar através das longas e sempre engarrafadas avenidas do céu. Eu bem apito, bem sacudo os guizos e os chocalhos, mas ninguém se afasta para me deixar passar. Estão todos muito ocupados a pensar nas suas vidinhas.Um grupo de amigos meus do País dos Sonhos Azuis decidiu escrever uma longa carta aos governos de vários países, pedindo para me ser dado um trenó novo. Mas as respostas que receberam eram quase todas iguais: “O orçamento deste ano não prevê despesas supérfluas”; “as nossas disponibilidades financeiras estão esgotadas com a compra de dois novos porta-aviões”; “lamentamos informar que a resposta será negativa, mas a verdade é que temos outras prioridades para respeitar”; “porque não tentam uma fundação ou uma empresa de brinquedos? A nossa função não é dar subsídios ao Pai Natal”.Tudo isto é bem capaz de ser verdade, mas também é verdade que quem escreveu estas cartas de resposta gostou sempre, quando era pequeno, de receber as minhas visitas na noite da Consoada. Ai, meus amigos, quem manda às vezes tem a memória curta e esquece-se de que um dia já foi pequeno.Por isso eu vos disse, no começo desta minha história, que tenho passado por muitas peripécias e também por muitos azares. O maior de todos os azares aconteceu-me há dias. Ia eu todo satisfeito a sacudir as rédeas do meu trenó, quando senti que o tapete fofo das nuvens me fugia debaixo dos pés. Senti que me afundava e que, a cair daquela maneira, talvez não tivesse salvação. Foi então que, pela primeira vez em tantos anos, pedi a ajuda da Fada do Inverno que não tardou em vir em meu auxílio. Vi-a chegar em voo picado, de varinha de condão em riste, no meio de um enorme clarão, e achei-a tão bonita e tão luminosa como na primeira luz em que nos encontrámos, quando eu dava os primeiros passos no meu novo ofício.— Pronto — gritou-me ela — ainda não é desta que vais deixar de ser Pai Natal!

— Obrigado, Fada do Inverno, pela tua ajuda, mas será que posso saber o que me aconteceu? — perguntei eu, cheio de curiosidade de saber como tudo aquilo tinha acontecido.— Meu querido Pai Natal — esclareceu-me ela com a sua voz doce e bonita — o que aconteceu foi que caíste no buraco do ozono, que é uma das últimas maldades que os homens conseguiram fazer a este pobre planeta.— Mas o que é o buraco do ozono? — quis eu saber, de tão desnorteado que estava com a prolongada queda.— É o resultado de todos os males que os homens têm feito à atmosfera, usando e abusando de “sprays” e de outros produtos químicos que poluem e estragam. Quanto mais o buraco do ozono se alargar, piores serão os efeitos do sol sobre a pele dos seres humanos, sobre as culturas e no próprio clima.Esclarecido, mas preocupado, ajeitei a minha amarrotada fatiota e fiquei a saber que existe mais um problema que todos vamos ter que resolver: o do buraco do ozono. Era só o que nos faltava!Está a aproximar-se a grande noite da distribuição dos presentes e eu, como sempre acontece, encarrego-me pessoalmente de verificar se tudo está em ordem: os endereços, os laços nos embrulhos e as mensagens nos cartões que acompanham cada pacote. Nunca deixei essa tarefa em mãos alheias, porque um Pai Natal tem que ser cuidadoso com todas as etapas por que passa o seu trabalho.Batem-me à porta e vou abrir. Quem me procura é um senhor de idade, muito pálido e magro, vestindo roupas escuras de um século anterior àquele em que eu nasci. Traz um velho cavalo preso pela rédea e parece estar muito cansado.— Eu sou aquele que nunca teve Natal — diz-me — e venho aqui pedir-vos um grande favor.— Faça favor de dizer — respondo-lhe, surpreendido com tão inesperada visita.— Quero pedir-lhe que, neste Natal, junte a cada um dos presentes que entregar um saquinho de sonhos e de mistérios. É que os homens esqueceram-se de como se sonha e isso tornou-os muito mais tristonhos e carrancudos, tal como eu.— Com certeza que vou satisfazer o seu pedido, embora não saiba onde posso encontrar esses saquinhos de sonho e mistério.— Essa é a parte mais fácil de tudo isto — respondeu o homem — porque eu trago nos alforges do meu cavalo centenas de sacos desses. Têm dentro um pó luminoso de magia e algumas sílabas encantadas que só se usam nas palavras das fadas e dos adivinhos.— Venham os saquinhos — propus eu — e logo me encarregarei de os distribuir.— Nunca pensei que um homem que nunca tem Natal desse com a minha morada — comentei.— Não foi difícil, Senhor Pai Natal, porque nós agora pertencemos ao mesmo mundo, que é o do sonho e da fantasia. Dar com a sua casa foi tão simples como sonhar. Fechei os olhos, pensei que tinha esse desejo e, quando os abri, estava aqui a bater à porta. Nada mais simples.Ainda quis convidá-lo para beber um chazinho de tília, mas ele já estava de partida com a sua montada, a caminho de qualquer lugar que eu nunca serei capaz de encontrar no mapa.Fechei os olhos e adormeci, exausto de tantas peripécias e visitas inesperadas. Logo à noite vou mais uma vez distribuir presentes de Natal às crianças de todo o mundo, no meu velho e esvoaçante trenó. E só espero que a protecção da Fada do Inverno, a quem devo o ofício que hoje tenho, me impeça de cair de novo no buraco do ozono.O velho cavaleiro que nunca teve Natal já deve estar muito, muito longe. As minhas renas começam a ficar impacientes com a proximidade da grande viagem através dos céus da noite. “Calma, meninas, que vai ser só mais uma viagem para entregar presentes. Não fiquem nervosas. Vão ter uma boa recompensa de erva fresca, cenouras e açúcar e muito tempo para descansar”, digo-lhes num tom calmo e afectuoso. Toca o telefone e eu atendo. Do outro lado está Hans Christian, que me diz:— Quero desejar-te um bom Natal e pedir-te que nunca te esqueças desta noite. Ainda vou precisar de ti para entrares em muitas das minhas histórias.— Obrigado, Hans Christian — respondo. — Desejo que tenhas também uma boa noite de Natal. Quanto às histórias, podes contar comigo. Logo à noite passarei pela tua casa para te deixar uma lembrança. Quando ouvires os guizos das renas, já sabes que sou eu que estou a chegar.

José Jorge LetriaPorto, Edinter, 1996

Publicada por Helena em 6:34 Etiquetas: José Jorge Letria 2 1 / D E Z / 2 0 0 8Natal Chinês

A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar, embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por fim à mesa.A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.Nesses dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da senhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.Baixa, seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria constantemente, falava inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.Nessa noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora. Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão. Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas espreitavam, curiosas.Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse.Com um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à superiora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo, com chocolate quente.O chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.Ficávamos, assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.Creio que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que chegava ali por portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os bolos de sésamo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.O vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto à senhora Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de Paris», bebia dois cálices.Entretanto, Aldegundes, a criada macaense mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares, fartes e coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a velha generosamente.

Quando por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.A menina sabia... ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha.... E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria.Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta.Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas.Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha ?Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria.

Maria Ondina Braga, A China Fica ao Lado

Publicada por Helena em 6:10 Etiquetas: Maria Ondina Braga O Conto das Artes Diabólicas

Era uma vez um padre que tinha um afilhado.De maneira que pediu ao compadre que lhe deixasse ir o afilhado lá pra casa, que o queria educar muito bem-educado.O compadre disse-lhe que sim, que levasse o afilhado.Foi o rapaz pra casa do padrinho, e o padrinho pô-lo à escola, e o rapaz aprendeu a ler na ponta da língua.Quando o rapaz já ia sendo crescido, começou ele a ver fazer artes ao padrinho, que o padrinho fazia artes diabólicas.Fazia artes diabólicas o padrinho, e o rapaz tudo era querer aprender, e fartava-se de espreitar oque fazia o padre!Até que uma vez encontrou um livro e pôs-se a ler – e viu que dali estudava o padrinho as artesque fazia.Começou o rapaz a praticar, e já ia fazendo algumas coisas. O padrinho, como deu notícia que o rapaz ia já fazendo algumas coisas, mandou-o embora para casa do pai.O pai era pobre, e não tinha sequer que lhe dar de comer; mas vendo-o o filho tão apaixonado e adivinhando logo a razão por que era, diz-lhe o rapaz:– Pai, não tenha fezes! que amanhã saímos, e verá que arranjamos muito dinheiro!No outro dia prepararam os dois um burrinho que tinham, e foram-se para o campo.Depois de chegarem ao campo, diz o filho:– Pai, eu agora faço-me num cão e vou à caça, e as lebres que vir apanho-as todas!De maneira que o rapaz fez-se num cão, e começou logo a andar caçando. Todas as lebres que apareciam, todas apanhava!Carregaram o burro de lebres, e vieram-se embora a vendê-las à terra, e passaram à rua do rei.Vendo o velho com tanta lebre a carregarem o burro, todos se admiravam!– Oh! Tanta lebre que leva aquele velho!Diz-lhe o rei:– Ó velho! Como apanhaste tu tanta lebre?!– Isto, senhor, foi o meu cão!Diz-lhe o rei:– Hás-de-me vender o teu cão.– O meu cão não vendo eu, não senhor, que o meu cão é o meu governo!De maneira que o velho foi-se embora a vender as lebres.No outro dia voltaram à caça, e o burro tornou a vir outra vez carregado de lebres!Diz o rapaz:– Pai, olhe que o rei há-de-lhe dizer para me vender; mas vossemecê peça muito dinheiro, demodo a nunca vender senão as lebres.Passa o velho pela porta do rei, e vão dizer logo a Sua Majestade:– Ali vai o velho outra vez! E outra vez com o burro carregado!Diz-lhe Sua Majestade:– Ó velho, não passas sem me vender o teu cão.– O meu cão não vendo, não senhor, que o meu cão é o meu governo!– Pede o dinheiro que quiseres, que eu to dou pelo teu cão.Pediu uma quantia que a ele lhe pareceu, e o velho levou o dinheiro e o rei ficou com o cão.Um dia determinou o rei sair à caça, e levou com ele todos os companheiros, para verem o cão apanhar as lebres.Assim que chegaram ao campo, começou logo o cão a andar à busca.Levantou-se uma não tardou nada, e ele mete-se a correr atrás dela – e dali a pouco já o não avistavam.Assim que percebeu que já o não avistavam, o cão fez-se num homem, e deixou-se ficar muitobem parado.Correram todos a uma altura para avistarem o cão, e como vissem um homem perguntaram-lhe:– Você viu pra aí algum cão atrás duma lebre?Diz ele:

– Vi! Lá vai ele a correr, lá baixo! Lá vai ele já muito longe!Ora até agora eles correm, a ver se descobrem o cão!De maneira que trataram mas foi de se ir pra o palácio – e o rapaz para casa do pai.Chegou:– Então, pai, já temos que comer?!– Isso sim! O que me deu o rei, ladrões o levaram. Roubaram-mo!– Deixe! Logo se arranja mais!Torna o filho a dizer ao pai:– Pai, vai vossemecê ver como se arranja mais! Agora faço-me num cavalo, e vossemecê vai à feira a vender-me; mas quando me vender, tire-me o freio.De maneira que o velho marchou para a feira, com um cavalo que era uma lindeza!Quem havia de ele encontrar?O compadre!Viu logo que tinha o afilhado diante dele, feito num cavalo.Diz:– Ó compadre! Quer-me você vender o cavalo?Diz:– Vendo! Mas vai-lhe custar muito dinheiro!O padre deu-lhe todo o dinheiro que ele lhe pediu, porque a sua vontade era apanhar o cavalopra em seguida dar cabo dele.O pai recebeu o dinheiro e entregou o cavalo – mas não se lembrou de lhe tirar o freio!Apanha o padrinho o cavalo e monta-se nele – e agora verás quem há-de fugir – e da corrida ia-orebentando!Até que se apeou à entrada de um povo.Prendeu o cavalo a uma árvore, e antes de ir onde tinha de ir disse para o animal:– Quieto ai! Com outra corrida hei-de-te arrebentar! Ali perto havia um poço, onde as mulheres iam à água. Passaram duas que iam para lá, e o cavalinho, assim que as viu, tudo era querer ir também direito ao poço.Diz uma:– Aquele cavalinho tem muita sede. Vamos-lhe levar uma caldeira de água, a ver se ele bebe.Levaram-lha e ele não podia beber.Dizem as mulheres:– Tira-se-lhe o freio.Foram elas, tiraram-lhe o freio.Mas apanha-se o cavalinho sem freio – e agora verás quem há-de fugir!Vem o padrinho e faz-se noutro cavalo mais forte, e mete atrás dele.Quando viu que o padrinho já o agarrava, faz-se numa lebre.O padrinho fez-se num galgo, e ele aí vai atrás da lebre!Tanto que viu que o padrinho já a agarrava, faz-se numa pomba e larga a voar. O padrinho faz-se numa águia, e mete logo atrás da pomba.Tanto que viu que o padrinho o agarrava, fez-se num anel – e caiu!Onde havia de cair o anel? Na varanda do palácio do rei!Foi a princesa até à varanda, e achou o anel, que era muito bonito; – e o padrinho, esse nunca soube para onde foi o rapaz, porque não viu onde caiu o anel.A princesa quando o viu:– Olá! Um anel tão bonito aqui na varanda?!Apanhou-o e meteu-o no dedo.A noite, quando a princesa se foi deitar, não quis tirar o anel e deitou-se com ele.O anel fez-se-lhe num homem deitado com ela – que mal o vê começa a gritar.Corre o pai ao quarto da filha, a ver o que era: – mas ele torna outra vez a fazer-se em anel e meteu-se logo no dedo da princesa.Diz-lhe o pai:– Tu que tens?!Diz:– Ó meu pai! que tenho um homem dentro da cama!O pai buscou e não viu nada, e disse para a filha muito alterado.– Isso são loucuras! Vê lá agora se ainda tornas!

E foi-se para o quarto e meteu-se na cama.Mas estaria o rei a pegar no sono, o anel que torna outra vez a fazer-se num homem, deitado aopé da princesa!Ela, com medo do pai, já não gritou; e quando foi de manhã ao levantar, o homem fez-se outra vez no anel, e a princesa meteu-o no dedo....Começou a andar muito soado um anel que tinha a princesa!O padrinho, que ouve falar tanto no anel, desconfia, e diz:– Oh! Aquilo é o meu afilhado!...E foi e disse à princesa se lhe vendia o anel.Ela disse-lhe que não – que lho não vendia.Foi-se embora o padre pelo mesmo caminho, e o anel diz à princesa:– Aquele homem que veio aí pra tu me venderes é o meu padrinho. Ele anda pra ver se dá cabo de mim, e ainda cá há-de voltar pra que me vendas, e tu vende-me – mas quando me passares para a mão dele, deixa-me cair no chão.Outra vez foi o padre onde à princesa:– A Senhora Princesa há-de-me vender o seu anel. Vende?Vendo, não vendo... – sempre lhe disse:– Vá lá! Vendo!Trataram o preço, e ele deu o dinheiro.Mas ela a desenfiar o anel – e a deixá-lo cair no meio do chão!Cai o anel no meio do chão – e faz-se logo numa romã, toda esbugalhada!Faz-se o padrinho numa galinha, com muitos pintos, e deitam-se todos a comer nos bagos.Escapou um bago que os pintos não viram!Era ele – que se fez numa raposa e comeu a galinha, e os pintos matou-os todos!Ali acabou o padrinho com a existência, e ele ficou feito anel no dedo da princesa....Com que não sei se o anel ainda existe ou se já levou fim – porque eu vim-me de lá embora enunca mais o vi.

Trindade Coelho, Os meus amores

Publicada por Helena em 5:56 Etiquetas: Trindade Coelho: Os meus amores 2 0 / D E Z / 2 0 0 8Conto de Natal

Todos os anos, pelo Natal, eu ia a Belém. A viagem começava em Dezembro, no princípio das férias. Primeiro pela colheita do musgo, nos recantos mais húmidos do jardim. Cortava-se como um bolo, era bom sentir as grandes fatias despegarem-se da areia, dos muros ou dos troncos das árvores velhas, principalmente da ameixieira. Enchia-se a canastra devagar, enquanto a avó ia montando o que se chamaria hoje as estruturas, ou mesmo infraestruturas, junto da parede da sala de jantar que dava para o jardim. Eram caixotes, caixas de chapéus e de sapatos viradas do avesso, tábuas, que pouco a pouco ela ia cobrindo de musgo, ao mesmo tempo que fazia carreiros e caminhos com areia e areão. Mais tarde os rios e os lagos, com bocados de espelhos antigos, de vidros ou mesmo de travessas cheias de água. Até que todos os caixotes, caixas e tábuas desapareciam. Ficavam montanhas, planícies, rios, lagos. Era uma nova criação do mundo. Aqui e ali uma casinha ou um pastor com suas cabras. E todos os caminhos iam para Belém.Não era como o presépio da Igreja que estava sempre todo pronto, mesmo antes de o Menino nascer. A cabana, a vaca, o burro, os três reis do Oriente. Maria, José, Jesus deitado nas palhinhas. Via-se logo que era a fingir. Não o da avó, que era mais do que um presépio, era uma peregrinação, uma jornada mágica ou, se quiserem, um milagre. Nós estávamos ali e não estávamos ali. De repente era a Judeia, passeávamos nas margens do Tiberíades, andávamos pelo Velho Testamento, João Baptista baptizava nas águas do Jordão e aquele monte, ao longe, podia ser o Sinai ou talvez o último lugar de onde Moisés, sem lá entrar, viu finalmente a terra onde corria o leite e o mel. Mas agora era o Novo Testamento. A avó ia buscar as figuras ao sótão, eram bonecos de barro comprados nas feiras, alguns mais antigos, de porcelana inglesa, como aquele caçador que a avó colocava à frente dizendo: Este é o pai. Seguia-se a mãe, de vestido comprido, dir-se-ia que ia para o baile, mas não, saía de cima de uma mesinha da sala de visitas e agora estava ao lado do pai, olhando levemente para trás onde, entretanto, a avó já tinha colocado figuras mais toscas, eu, a minha irmã, os primos, alguns amigos, todos a caminho de Belém.- E a avó?, perguntava eu.- Eu já estou velha para essas andanças.De dia para dia mudávamos de lugar. E todas as manhãs deparávamos com novas casas, mais rebanhos, pastores, gente que descia das serras, atravessava os rios e os lagos. Os caminhos ficavam cada vez mais cheios. E todos iam para Belém. À noite tremulavam luzes. Acendiam e

apagavam. Mas ainda não se via a cabana, nem Maria, nem José.Então uma noite, entre as estrelas do céu, aparecia uma que brilhava mais que todas.- Esta é a estrela, dizia a avó.E era uma estrela que nos guiava. Na manhã seguinte lá estavam eles, os três reis do Oriente, Magos, explicava o pai, que também não dizia Pai Natal, dizia S. Nicolau, talvez por influência de uma misse de origem russa que em pequeno lhe falava de renas e trenós e de S. Nicolau atravessando as estepes.Cheirava a musgo na sala de jantar. Cheirava a musgo e a lenha molhada que secava em frente do fogão. E os Magos lá vinham, a pé, de burro, de camelo. Traziam o oiro, o incenso, a mirra. Às vezes nós, os mais pequenos, juntávamo-nos e cantávamos: “Os três reis do Oriente / Já chegaram a Belém.”- Não chegaram nada, atalhava a avó, ainda não.Estávamos cada vez mais perto. E também nervosos. Confesso que às vezes fazia batota. Empurrava-nos um pouco mais para a frente, para mais perto de Belém e do lugar onde eu sabia que mais tarde ou mais cedo a avó ia pôr a cabana. Mas ela descobria.- Não lucras nada com isso, podes apressar toda a gente, não podes apressar o tempo.Cada vez havia mais luzes na Judeia. Por vezes surgiam novos lagos, eram mistérios da minha avó. E a estrela lá estava, a grande estrela de prata que brilhava mais do que todas as outras, às vezes eu ia à janela e via a projecção daquela estrela, ficava confuso, já não sabia se era a estrela da sala ou uma estrela do céu, era uma estrela nova, uma estrela de prata, era uma estrela que nos guiava. No céu, na sala, na Judeia, talvez dentro de nós.Até que chegava o primeiro dos grandes momentos solenes. A avó chamava-nos ao sótão ( nós dizíamos forro ), abria uma velha arca e desempacotava a cabana. Depois, muito comovida, quase sempre com lágrimas nos olhos, as figuras de Maria e José.- Não há nada tão antigo nesta casa, já eram dos avós dos meus avós.Impressionava-me sobretudo o manto muito azul de Maria e o rosto magro, quase assustado, de José. A avó limpava-os com muito cuidado e mandava-nos sair. Nunca nos deixou ver o resto.À noite, quando regressávamos da missa do galo, a que a avó não ia, chegávamos a casa e finalmente estávamos em Belém. A estrela brilhava intensamente sobre a cabana, Maria e José debruçavam-se sobre o berço, onde Jesus, todo rosado, deitado nas palhinhas, agitava os braços e as pernas, envolvido pelo bafo quente dos animais, enquanto os três reis do Oriente, agora sim, chegavam a Belém para depositar aos pés do Menino o oiro, o incenso, a mirra. E vinham os pastores, e vinha o pai, de caçador, a mãe, de vestido de baile, e vínhamos nós, eu, a minha irmã, os primos, não éramos de porcelana nem de barro, estávamos ali em carne e osso, era noite de Natal, uma estrela nos guiava, brilhava sobre a Judeia e sobre o presépio, brilhava cá fora entre as estrelas, brilhava dentro de nós. Naquela noite, naquele momento, nós não estávamos na sala de jantar em frente do presépio, tínhamos chegado finalmente a Belém para adorar o Menino ao lado de Maria e José e dos três reis do Oriente, Magos, não conseguia deixar de corrigir o meu pai. Mas mágica, verdadeiramente mágica era a avó. Era ela que fazia o milagre da transfiguração, trazia o Natal para dentro de casa e levava-nos a todos até Belém. O cheiro a musgo e a lenha. Os montes, os vales, os rios, os lagos. Caminhos e caminhos que iam para Belém. E a estrela de prata, a estrela que nos guiava. Era uma estrela no céu, dentro de casa, dentro de nós. Pela mão da avó ela brilhava. Pela sua magia Belém estava dentro de casa. E a casa também ia até Belém.Mais tarde, muito mais tarde, eu estava no exílio. Na noite de Natal os revolucionários ficavam tristes e nostálgicos. Talvez recordassem outras avós, outros presépios, outros lugares. Reuniam-se em casa deste ou daquele, improvisava-se uma árvore de Natal, trocavam-se presentes. Mas ninguém, nem mesmo os mais duros, os que faziam gala em dizer que o Natal para eles não significava nada, nem mesmo esses conseguiam disfarçar uma sombra no olhar. Saudade, dir-se-á. Mas talvez fosse mais do que saudade e solidão e o pior de todos os exílios que é o de se sentir estrangeiro no mundo. Talvez fosse a consciência de que, para lá de todas as crenças ou não crenças, havia um irremediável sentimento de perda. Muitas vezes me perguntei o que seria. Mas não conseguia responder. Sentia o mesmo aperto, o mesmo buraco por dentro, o mesmo sentimento de algo para sempre perdido.Uma noite de Natal, em Paris, eu estava sozinho. Comprei uma garrafa de vinho do Porto, mas não fui capaz de bebê-la assim, completamente só, num quarto de criada de um sexto andar numa velha rua do Quartier Latin. Peguei na garrafa e fui até aos Halles. Procurei o bistrot onde

costumava comer uma omelete de fiambre. Felizmente estava aberto. Pedi a omelete e abri a garrafa. Havia mais três solitários no bistrot, um velho de grandes barbas, um tipo com cara de eslavo, um africano. Convidei-os para partilharem comigo a garrafa de Porto, que não resistiu muito tempo. Encomendámos outras bebidas.- Conta uma história de Natal do teu país, pediu o velho.- Só se for a do presépio da minha avó.- Então conta.Eu contei. Era já muito tarde e o patrão disse-nos que queria fechar. Chegados à rua o africano apontou o céu e disse-me: Olha.E eu vi. Uma estrela que brilhava mais que as outras estrelas. Era uma estrela de prata. A estrela da avó. Brilhava no céu, brilhava outra vez dentro de mim, quase posso jurar que brilhava dentro dos outros três.Então eu perguntei ao africano como se chamava. E ele respondeu:- Baltazar.Perguntei ao velho e ele disse:- Melchior.E sem que sequer eu lhe perguntasse o eslavo disse:- O meu nome é Gaspar.Era noite de Natal e talvez ainda por magia da avó eu estava na rua, em Les Halles, com os três reis do Oriente, Magos, diria o meu pai.- E agora? perguntei a Baltazar.- Agora, respondeu o africano apontando a estrela, agora vamos para Belém.

Manuel Alegre

Publicada por Helena em 6:00 Etiquetas: Manuel Alegre 1 4 / D E Z / 2 0 0 8Um porco de estimação

O Ruça e o Zeca têm em sua casa um porco de estimação, o "Carnaval". Um dia prometeram levá-lo à escola.Até que chegou a hora de se cumprir a promessa.A mãe avisou-os de que no dia seguinte ela e o pai iriam almoçar fora. E que a comida deles ficaria pronta. Recomendava-lhes que levassem a chave.Então o plano foi traçado e, mesmo nesse dia, os dois irmãos mais o Beto conseguiram arranjar um carrinho do supermercado. Trouxeram-no para casa e guardaram-no num vão escuro da escada. Para disfarçar, cobriram-no com sacos.Esperaram que a mãe saísse e quase nem comeram. "Carnaval" consentiu na imobilização e as patas ficaram bem amarradas. Camuflaram bem o suíno e arrastaram o saco até ao patamar. Cá em baixo, Beto estava preparado com o carrinho de cargas.E na escola a grande festa começou.Ruça segurava a trela. Zeca fez uma cócega na barriga do porco; o bicho ficou logo dei-tado de pança para o ar e a mexer as patas, num quase entendimento das palavras. Depois, pesadão, rodava a cabeça, farejava e mais outro miúdo queria cocegar-lhe a barriga. Até que a professora surgiu na varanda da escola e bateu as palmas.— Está na hora, meninos! Qual quê! Ninguém lhe ligou.Ela desceu, veio ao pátio e quis saber o que se passava... Ruça afagou a espinha do bicho e contou que "Carnaval" era um porco que tinha aprendido a fazer habilidades.— E os pais dele? — perguntou um dos miúdos. E outro respondeu:— Devem ter morrido na guerra contra os talhos. E todos desataram à gargalhada.Então o porco exercitou as habilidades que aprendera e os miúdos ficaram contentes com a professora a dar atenção àquelas brincadeiras.— A camarada professora pode tocar na barriga dele que está limpa. Toma banho todos os dias.Aí a professora cocegou também e os miúdos bateram palmas. Foi quando despontou uma lembrança:— Zeca, solta a corda. Vamos fazer uma roda e deixar o "Carnaval" no meio! — sugeriu Beto.

O porco andava de um lado para o outro, a dar encontrões aos miúdos, e voltava para o meio do círculo em velocidade de corrida. Fazia uma pausa, abanava as orelhas e voltava a tentar furar a roda. Os garotos enxotavam e ele repetia a cena, até que numa arranca-da veloz passou no meio das pernas da professora e fugiu.

Manuel Rui, Quem Me Dera Ser Onda

Publicada por Helena em 9:17 Etiquetas: Manuel Rui: Quem Me Dera Ser Onda 1 1 / D E Z / 2 0 0 8O senhor Nicolau

O pai queria fazer dele um homem. Por isso, mal o pequeno acabou a 4.ª classe em Pedornelo, Guimarães com ele!Mas não havia padre Macário capaz de endireitar semelhante criatura. Nem a puxões de orelhas e a golpes de régua se conseguia evitar que o rapaz saltasse a toda a hora pelas janelas do colégio e desaparecesse pelas serras a cabo, aos grilos. Trazia já o vício da terra; mas, com a idade, em vez de a coisa melhorar, piorava.De palha na mão, era vê-lo à torreira do sol. Metia a sonda em cada agulheiro que encontrava, punha-se a esgravatar, a esgravatar, e o pobre do habitante do buraco não tinha outro remédio senão vir à tona.Só quando o estômago dava horas das grandes regressava a casa com vinte ou trinta bichos daqueles. O reitor mandava-o ir ao gabinete, punha-lhe a cara num pimentão, mas de pouco valia. No dia seguinte, lá fugia ele outra vez.Tinha o quarto transformado em viveiro. Em vez de retratos de actrizes e de cowboys, gaiolas de todos os tamanhos dependuradas nas paredes, com folhas de alface e de serradela metidas nas grades. E era num tal cenário que o prefeito o encontrava - quando o encontrava -, abstracto, alheado, fora do mundo.- A lição?- Estou a estudá-la...Na aula a seguir é que a coisa se via: um estenderete!

Contudo, como inexplicavelmente na cadeira do Dr. Rodrigues só tirava vintes, e o professor gorava de grande prestígio entre os colegas, ano sim, ano não, lá passava. A nota de Zoologia podia muito. E os outros mestres, apertados, davam o 10 e desabafavam:- Vá lá... Como sabe tanto de grilos.... No fim do curso do liceu, Coimbra. Para médico. O pai sonhava com ele em Pedornelo a curar maleitas.Mas quando, ao cabo de seis anos, o velho julgava que tinha ali o Paracelso dos Paracelsos, a folha corrida do rapaz registava apenas uma enigmática distinção em ciências naturais e reprovações no resto.Deus não quis, todavia, matar o santo homem com a punhalada duma desilusão. Nas vésperas de o cábula regressar, mandou-lhe piedosamente uma broncopneumonia, que o levou desta para melhor, juntamente com as esperanças que depositara no filho.E foi assim, herdeiro das ricas terras do pai, e com a Arca de Noé sabida de cabo a rabo, que o Sr. Nicolau voltou definitivamente a Pedornelo.Andava então pelos trinta anos. Alto, seco, pálido, delicado, veio pôr na veiga e nos montes da terra uma nota que até ali não havia: a mancha lírica dum cidadão de guarda-sol branco a caçar bicharocos.- O Sr. Nicolau passou bem?- Bem, muito obrigado, tio Armindo...E abaixava-se a agarrar uma louva-a-deus. Tirava um frasco do bolso, pegava na infeliz com mil cuidados, não lhe fosse quebrar um braço, e bojo do vidro com ela.A princípio, todos arregalaram os olhos, num justo e desconfiado espanto. No que dera o filho do Sr. Adriano Gomes! Mas apenas lhes arrendou, por umas cascas de alho, os bens de que passara a ser dono, e o viram contente com a transacção, mudaram de ideias e puseram-se a vender-lhe quantos insectos havia nas redondezas. Bastava chegar ao pé dele e mostrar-lhe uma joaninha, para que a comprasse logo por um tostão. De modo que semelhante maluqueira era uma mina, vista por qualquer lado.Só o mestre-escola, o velho Sr. Anselmo, que já na instrução primária se vira e desejara para meter naquela cabeça tonta as contas de multiplicar, se mostrava renitente na aceitação de tão grande desgraça. E, quando acabou por dar o braço a torcer, foi desta maneira:- Enfim, do mal o menos. Se lhe dá para coleccionar burros, tínhamos a aldeia transformada numa estrebaria...Mas o Sr. Nicolau resistia a tudo. Às ironias do antigo professor e ao egoísmo do povo. E, mal o sol apontava na serra de Alijo, lá ia ele pelos restolhos fora.Vivia sozinho. Além da Gertrudes, que vinha de vez em quando lavar-lhe a roupa e fazer-lhe um caldo, ninguém mais lhe entrava em casa, a não ser pelo S. Miguel, na altura do pagamento das rendas. Viam-no então no escritório, entre grandes armários, onde, desde as pulgas às carochas, dormiam o sono eterno quantos seres a sua paciência e os seus vinténs conseguiram agarrar em Pedernelo e cercanias.Tinha-os em caixas de papelão, aos centos, em fila, catalogados e suspensos num alfinete que lhes entrava nas costas e saía na barriga. Havia-os de todos os tamanhos e de todas as cores possíveis. Grandes, pequenos, pequeninos, amarelos, brancos, pretos, azuis, vermelhos, um ou dois de cada qualidade e de quantas qualidades fora capaz a imaginação divina.Calmamente, amorosamente, à medida que o tempo andava, crescia o cemitério. E, calmamente, o coveiro, o Sr. Nicolau, ia envelhecendo entre os mortos.O seu mundo fechara-se ali, concêntrico, sem horizontes, murado pelas estantes envidraçadas, onde o sonho se conservava em naftalina. As nações desabavam, sucediam-se guerras, a própria aldeia oscilava nos gonzos. Mas o senhor Nicolau, alheio às paixões humanas, continuava a povoar os dias de libélulas e borboletas.A certa altura, o boateiro do Fagundes lançou a atoarda do próximo casamento do lunático.- E com quem? - perguntou o professor, carregado de inocência.Mas como ninguém lhe soube dizer o nome da noiva, rematou ele:- Talvez com alguma lesma... E bem é. Fica tudo em família. . A balela foi por assim dizer o derradeiro sinal que Pedornelo deu de que não se esquecera inteiramente da vida social do Sr. Nicolau. Porque, apenas o mestre disse a ironia, e todos acabaram de se rir à vontade, o desgraçado saiu da lembrança da povoação. Logo a seguir, quando passavam, ou já nem o cumprimentavam, ou lhe davam os bons-dias com o mesmo automatismo com que tiravam o

chapéu, às Trindades. Nem que ele atravessasse o largo com uma ruga funda e desesperada na testa, se lembravam de o lamentar. O nome do amalucado, agora, significava o mesmo que carrapato, ralo, formiga ou coisa assim.Era um bicho. Um inofensivo bicho, igual aos milhares quê tinha no escritório embalsamados.Às vezes, a ruga tinha profundidade. Minava-o um desgosto tão verdadeiro como o de qualquer vizinho aflito com os estragos de uma trovoada. Mas cinquenta anos de alheamento colectivo tiravam-lhe o direito de ser compreendido por homens. Quem podia admitir que fossem motivo de desespero a tenaz quebrada dum besoiro ou qualquer sinal de traça numa bicha-cadela?! A sensibilidade de Pedornelo não reagia aos estímulos de tão subtis calamidades. Ali, a respeito de sofrimento, entender, só fome, febres e facadas.Quis finalmente o Dr. Saul olhar aquele ser como habitante da terra e criatura de Deus. Chamado à pressa pela Gertrudes, que fora encontrar o velho encolhido como um feto no sofá do escritório, veio, auscultou, tomou o pulso, pôs o termómetro, e resolveu por fim entrar pelo corpo dentro do moribundo com uma agulha que lhe enterrou na espinha.Mas o sr. Nicolau, agora, estava de todo integrado no destino dos seus companheiros. Delirava. Sentiu vagamente a dor na coluna, lembrou-se do que tinha feito aos milhares de irmãos, e pensou:- Má técnica... Era éter acético primeiro, e só então... Oxalá não se esqueça ele ao menos de escrever no rótulo, correctamente, o meu nome em latim...E daí a nada, depois da última contracção, sereno e de olhos fechados, ali ficou quieto e feliz, à espera que o metessem na sua caixa.

Miguel Torga, Os Bichos

Publicada por Helena em 5:56 Etiquetas: Miguel Torga: Os Bichos Maria Moisés

A Tomás Ribeiro

São passados dez anos depois que vieste aqui. Foi ontem: e a pedra onde gravei o teu nome está denegrida como a dos túmulos antigos. Debaixo dela estão dez anos da nossa vida. Jazem ali os homens que então éramos. Estou vendo Castilho encostado ao friso da coluna tosca; estou ouvindo os teus versos recitados em nome de meus filhos... Ah! é verdade... Tu não os recitaste porque tinhas lágrimas na voz e no rosto. – Que faria de ti a política, meu querido, meu poeta da pátria e da alma?S. Miguel de Seide, Novembro de 1876.

Primeira parte

O pequeno pegureiro contou as cabras à porta do curral; e, dando pela falta de uma, desatou a chorar com a maior boca e bulha que podia fazer. Era noite fechada. Tinha medo de voltar ao monte, porque se afirmava que a alma do defunto capitão-mor andava penando na Agra da Cruz, onde aparecera o cadáver de um estudante de Coimbra, muitos anos antes. O povo atribuíra aquela morte ao capitão-mor de Santo Aleixo de além-Tâmega, por vingança de ciúmes, e propalava que a alma do homicida, de fraldas brancas e roçagantes, infestava aquelas serras. O moleiro das Poldras contrariava a opinião pública, asseverando que a avantesma não era alma, nem a tinha, porque era a égua branca do vigário. A maioria, porém, pôs em evidência o facto psicológico, divulgando que o moleiro era homem de maus costumes, tinha sido soldado na guerra do Rossilhão, não se desobrigava anualmente no rol da igreja, nem constava que tivesse matado algum francês.Era por 1813, meado de Agosto, quando o pastor chorava encolhido, a um canto do curral, e pedia ao padre Santo António com muitas lágrimas que lhe deparasse a cabra perdida.João da Laje, o amo, assomou à porta da corte, e bradou:– Perdeste alguma rês?

O rapaz tartamudeou, tiritando de medo.– Perdeste, ladrão? Vai em cata dela, e, olha lá: se a não trouxeres, não me apareças mais, que te arranco os fígados pela boca.E deu-lhe dois valentes pontapés à conta.Este João da Laje era homem de princípios menos maus, assentados em religião e pátria; havia matado dois franceses doentes nas ambulâncias retardadas, e acreditava que o fantasma era a alma do capitão-mor e não a égua branca do vigário.O rapazinho deitou a correr, e lá foi caminho da serra. Tendo de optar entre os malefícios da alma penada e a biqueira do tamanco do amo, preferia encontrar o defunto capitão-mor. Ainda assim, ia rezando alto quanto sabia da cartilha: os Pecados Mortais, as Obras de misericórdia, os Sacramentos da Santa Madre Igreja, tudo. À saída da aldeia, recuou estarrecido. Vira um fantasma branco a destacar das trevas, e agachado na raiz de um castanheiro.– Ó Zé da Mónica, és tu? – perguntou o suspeito fantasma.– Sou eu, tia Brites – respondeu o rapaz suspirando ofegante. – Credo! Que medo você me fez!– Tu onde vás a esta hora?!– Vou à cata de uma cabra. Você viu-a?– Eu não. Olha lá, a tua ama Zefa também anda à procura da cabra?– Àgora! A senhora Zefinha está doente há mais de mês e meio na cama.– Isso sei eu; mas havia de jurar que a vi saltar agora o portelo da cortinha do rio! Se não era a Zefa era o demo por ela!O rapaz tornou a tolher-se de medo, e perguntou a meia voz:– Seria a alma?– Do sr. capitão-mor? Não me pareceu; que ela ia de saia escura, e levava um saiote pela cabeça.Neste comenos, descia o moleiro do lado da serra pela barroca escura com dois jumentos carregados de foles, e vinha cantando:

Já fui canário do rei,Já lhe fugi da gaiola,Agora sou pintassilgoDestas meninas d’agora.

– P’ra pintassilgo estás muito fanhoso, ó Luís! – disse galhofando a Brites do Eirô.– Olá, sua bruxa, que feitiços está você a fazer aí? – respondeu o veterano do 2º regimento do Porto. – Não me meta medo aos burros que eles já estão estacados a olhar p’ra você. Deixe passar os parentes.– Eu não sou da tua família, ouviste, jacobino? – replicou a velha; e fazendo-lhe duas figas, acrescentou: – Toma, que te dou eu, herege!– Ó tio Luís! – perguntou o pegureiro – Vossemecê viu aí na Agra da Cruz uma cabra?– Não a vi, rapaz, mas ouvia-a berrar lá para o rio. Mete aí pela cangosta do Estêvão, e vai pela beira do rio abaixo que a topas lá para a Várzea das poldras ou na Ínsua.– Está mesmo indo... – interveio a tia Brites. – Boa hora é esta para um rapazinho se meter à cangosta do Estêvão!– Então que tem?– Que tem?! Vai perguntá-lo à Zefa do João da Laje, que ficou lá tolhida uma noite e nunca mais teve saúde.– Sim, sim, tia Brites; você lá sabe desses tolhiços, e eu também sei como as raparigas se tolhem nas cangostas. Tens medo, rapaz?– Tenho, sim, senhor.– Espera aí que eu venho já.E, tangendo os burros que espontavam o tojo dos valados, foi descarregá-los, encheu-lhes a manjedoura de erva, gargalaçou da borracha uma vez de vinho, e voltou onde o esperava o pastor, a quem a tia Brites contava casos vários de almas penadas.– Vamos lá, pequeno – disse o moleiro –. Conheço bem o teu amo, e sei que ele à conta da cabra, se tiver meio quartilho de aguardente no bucho, é capaz de te quebrar os braços; por isso é que eu ta vou ajudar a procurar. De que tens tu medo, rapaz? É da alma do capitão-mor? Não sejas tolo. As almas boas dos que morrem são de Deus, não fazem mal a ninguém; e as más são do diabo, que as não larga das unhas.

– Arrenego-te eu! Este homem está vestido e calçado no inferno! – murmurou a tia Brites, erguendo-se indignada, benzendo-se de ombro a ombro, e do alto da cabeça ao umbigo.– Que está você a rosnar, mulher! Que este rapazelho seja parvo, tem desculpa; mas você, com mais de setenta anos na carcaça, já tinha tempo de ter juízo nesses cascos. Você já viu almas, ó criatura?– A mim não me empecem, graças a Deus! – respondeu Brites com desvanecimento. – Elas bem sabem com quem se metem.– Não se metem no seu corpo? Pudera... – redarguiu o veterano sempre risonho. – Eu, se fosse alma penada, topando com você, desatava a fugir. A alma que se metesse nesse corpo devia sair suja como a ratazana dum cano.– Vai-te, vai-te, jacobino; cruzes, diabo, cruzes! – exorcismou a tia Brites com dois dedos em cruz, e meteu-se em casa às arrecuas.

*

– É o que te digo, rapaz. Deixa lá asnear o povo. Olha se te guardas de alguma sacholada de teu amo, que das almas do outro mundo te livro eu.O moleiro ia conversando com o pastor pela pedregosa cangosta do Estêvão. Apesar das palavras animadoras do veterano, o rapaz, ao passar nos lanços mais escuros do pedregal, ia orando mentalmente fragmentos da Cartilha. Os vaga-lumes fosforeavam entre os silvedos, e às vezes um melro assustado batia as asas na ramagem das sebes. O pastor então maquinalmente agarrava-se ao braço do moleiro, que lhe metia a riso a covardia.Ao fundo da viela, que desembocava no rio, havia dois portelos, um à direita para uma várzea de milho espigado com grande folhagem, outro à esquerda para um panascal que entestava com a corrente do Tâmega. Saía então do rio para a cangosta um grande vulto alvacento chofrando na água com pernadas longas e mesuradas. O rapaz expediu um ai rouco e, agarrando-se aos suspensórios de couro do moleiro, gritou:– Ó tio Luís, ó tio Luís!...– Que é?– Vossemecê não vê?– Vejo, pedaço de asno, vejo; é a alma do capitão-mor que anda a pescar bogas com chumbeira... Não vês que é um homem em fralda? Abre esses olhos, bruto!Era o caseiro da quinta de Santa Eulália, que vinha batendo com a chumbeira as angras do rio por onde o escalo costumava acardumar-se.– És tu, ó Francisco Bragadas? – perguntou o moleiro.– Sou.– Ouviste por’í berrar uma cabra?– Há pedaço, berrava ali no bravio do Pimenta; mas já depois a ouvi lá p’ra baixo na Ínsua.– O peixe cai? Dá cá duas bogas para eu cear.– É má noite. O peixe meteu-se aos poços. Anda coisa má por aqui... Vou-me chegando a casa.– Coisa má? Topaste algum avejão no rio? Olha que a alma do capitão-mor anda na serra; mas talvez viesse tomar banho, que a noite está quente.– Homem – volveu o pescador escrupuloso –, deixemo-nos de graçolas. Aí bem perto donde tu estás, para lá desses salgueiros, ouvi eu, quando passei p’ra riba, uma coisa que parecia uma criatura a chorar e a gemer.– Isso era coruja ou sapo – replicou o moleiro com a intemerata certeza das ciências naturais. – Se tens medo, vou contigo; mas hás-de repartir do peixe que levas... Lá está a cabra a berrar, ouves, rapaz?– Já passou para além do rio – disse o da chumbeira –; havia de ser pelo açude. Tendes que fazer. Adeus, Luís.– Má raios partam a cabra! – praguejou o moleiro. – Temos de ir passar às poldras. Olha que espiga! Eu antes queria pagar a rês a teu amo que ir agora além do rio!Neste momento, ouviram gemidos, que pareciam pouco distantes, à beira do rio.O pastor, com as mãos fechadas sobre a boca, e pondo-se de cócoras, disse:– Ai Jesus!– Aquilo é cousa! – observou o veterano com pachorrenta reflexão. – Bem dizia o outro. Não é coruja nem sapo... Agora é!

– Então que é, tio Luís? – perguntou o rapaz com a rouquidão afónica do pavor.– É uma mulher a chorar, tu não ouves? Vamos ver quem geme antes de mais nada.Transpôs o moleiro de um pulo o valado, tossindo de maneira que significava coragem neste bravo do Rossilhão, mas que em outros bravos que tossem não tem sempre o mesmo significado. O pequeno seguia-o tão de perto que o trilhava nos calcanhares.Seguiu bem rente a ourela do Tâmega; de vez em quando ouvia os gemidos, mas pareciam-lhe mais longe ao passo que mais se avizinhava, porque a voz ia esmorecendo em soluços abafados. Ao cabo do ervaçal adensava-se uma moita de álamos e salgueiros, e lá no interior o rio espraiava-se, formando lençol de água murmurosa, onde os pescadores colhiam com a chumbeira as bogas no tempo da desova. Ao chegarem ali, ouviram estas palavras:– Quem me acode, que eu morro sem confissão!– Ela é a senhora Zefinha! É a minha ama! Valha-me Deus! – exclamou o pastor, e com incrível ânimo rompeu a direito por entre a ramaria do salgueiral, e saltou, sem arregaçar-se, ao rio, que lhe dava pelo joelho. O moleiro seguiu-o. Com meio corpo a água e os braços enroscados no esgalho de uma árvore, entreviram, mal distinto na escuridão cerrada da ramagem, aquele vulto de mulher, que repetia as palavras:– Quem me acode, que eu morro sem confissão!– Ó senhora Zefinha! – disse o rapaz – É vossemecê? – e deitou-lhe os braços ao peito erguendo-a para si. – Ó ti Luís, ajude-me que eu não posso!– Eu cá estou – disse o moleiro, levantando-a a custo, porque ela tinha as mãos recurvas e os braços rijamente hirtos no tronco do salgueiro, como se em ânsias de asfixia se houvesse agarrado nele.– Isto que foi, Josefa? – perguntou Luís, tomando-a nos braços, e galgando a custo o valado que se esbarrondava cedendo aos pés vacilantes de Luís, molhados pela água que escorria dos vestidos.A filha de João da Laje, estorcendo-se nos braços do moleiro, dizia com palavras soluçantes:– Não me leve para casa, pelas almas benditas. Deixe-me deitar na terra, e vá chamar o sr. vigário para me absolver, que eu estou a expedir.– Tem paciência, moça; aqui não te deixo, que estás toda ensopada em água, e tens a cara a arder... Tu caíste ao rio, Josefa? Que vieste aqui fazer tão de noite?– Jesus valei-me! Jesus acudi-me! Jesus salvai-me! – murmurava ela perdendo o alento, e tiritando em calafrios.Luís, receando que a convulsa rapariga lhe expirasse nos braços, atirou-a para o ombro direito, e apertou o passo por entre o ervaçal, dizendo ao rapaz que fosse adiante avisar o amo.No momento em que transpunha o portelo com o embaraço do peso e do estorvo que lhe fazia o vestido molhado, teve de colher as saias com a mão esquerda; e, neste lance, sentiu nas costas da mão um contacto de líquido quente com fartum enjoativo de sangue. Então pensou que ela estivesse ferida, e perguntou:– Tu feriste-te, Josefa?Ela não respondeu, nem gesticulou levemente. Os braços pendiam inertes ao longo das costas do moleiro, e a cabeça balançava maquinalmente conforme os movimentos variados que ele lhe dava ao corpo ajeitando-o para saltar a parede escadeada. Vencida a dificuldade, e conseguindo assentar o pé no trilho pedregoso por onde viera, sentou-se esbofado no respaldo duma fraga; e, como gelado do terror do cadáver que lhe parecia resfriar nos braços, tremia, descendo do ombro para o regaço a mulher que efectivamente estava morta.Chamou-a, agitou-a, invocou as almas à míngua dos recursos humanos; e, encostando-a à ribanceira, enxugava com a rama de fetos secos o suor que lhe gotejava das faces ao peito.Poucos minutos depois, João da Laje, o vigário e outras pessoas, atraídas pela curiosidade ou pela compaixão, desciam a cangosta do Estêvão com fachos de palha acesos. A Brites do Eirô, que os vira passar, ajuntou-se ao grupo dizendo que, ao toque das Trindades, tinha visto Josefa saltar para o campo da Lagoa e meter para o lado do rio, com o saiote pela cabeça.Na extrema da viela encontraram o Luís moleiro sentado à beira de Josefa que, vista à luz dos archotes, parecia viva porque tinha os olhos abertos.– Que é isso, rapariga? – perguntou o pai.– Não lhe perguntes nada, João, que ela está com Deus – respondeu Luís.O vigário, apalpando-lhe as mãos e o rosto, confirmou:– Está coberta de suor frio. Que foi isto? – ajuntou ele voltando-se para o João da Laje – Você há-

de saber pouco mais ou menos porque esta boa rapariga se deitou a afogar!– Eu não sei – respondeu o pai com a serenidade de um estranho narrador. – Ela estava doente há mais de mês e meio; mandei chamar o boticário de Friúme; ele receitou-lhe não sei que barzabum de xaropadas que a rapariga nem p’ra trás nem p’ra diante. Ora vai hoje ali pela sesta fui achar a minha Maria a chorar, mas nada me disse. Depois, fui regar um campo de milho, e, quando tornei a casa à noite e perguntei por minha mulher, soube que ela estava ainda no palheiro. Fui-me onde a ela, perguntei-lhe o que tinha, e ela já me não respondeu, porque estava sem acordo; peguei nela e deitei-a na cama; e agora, quando lá chegou o rapaz com a notícia, ia eu mandar chamar o barbeiro das Vendas Novas a ver se ma sangrava.Nesta conjuntura, voltaram-se todos para um dos campos por onde vinha correndo a mãe da morta, chamando a filha a grandes brados.Os archotes erguidos ao alto alargaram a penumbra e condensaram mais a treva por onde o vulto da mulher vinha crescendo com as mãos na cabeça. A Brites aconchegava-se do vigário a fim de, no caso de intervenção diabólica, se encostar à coluna da igreja. Luís meditava nas revelações do lavrador, e João esperava quieto, silencioso e estúpido a chegada da mulher.Ela saltou do campo à barroca por cima do tapume de espinheiros e silvas, foi direita à filha, deitou-se sobre ela a beijá-la, a sacudi-la, a chamá-la com gritos de louca, e ali perdeu os sentidos entre os braços brutais do marido que se esforçavam por desprendê-la da morta.

*

Vinte e quatro horas depois, o cadáver de Josefa de Santo Aleixo, a loura mocetona, desceu à cova, porque o fedor da podridão obrigara a alterar o estilo das quarenta e oito horas sobre a terra. Maria da Laje, a mãe, diziam que dava em louca, porque não comia, nem bebia, nem chorava; e, durante a noite, fugira para o lado da serra. O pai da defunta, aborrecido dos interrogatórios impertinentes que lhe faziam os vizinhos e parentes acerca das causas que levaram Josefa a matar-se, fechou-se na adega; e, nas securas da sua ardente aflição, é natural que bebesse.O leitor urbano mal imagina como são estes pais e maridos rurais quando lhes morrem as filhas ou as mulheres. Os mais lúgubres, se estão seis horas no forçado jejum a que os obriga a funeral lareira apagada, começam a cair num sentimentalismo de burros com fome. Nunca vi uma lágrima luzir nestas caras. Às vezes, morrem mães que deixam um grupo de crianças ali a chorar num canto da cozinha. Os viúvos olham para os pequeninos de través, e ralham-lhes brutalmente. A estupidez é mais valente que a morte. Se falta a luz que adelgaça e rompe a treva do homem bárbaro, à mistura com a velhacaria que a civilização lhe tem dado, o cérebro e o coração são umas empadas de massa inerte, umas substâncias granulosas ou fibrosas contidas em sacos membranosos. Não há nada mais bestial que o homem sem a alma que se faz na educação. A mulher já não é assim. A maternidade é uma ilustração que lhe dá a intuitiva inteligência do amor e das grandes tristezas. Essas, em toda a parte, a chorar, são mulheres; e, ainda na derradeira curva que atasca em lama a espiral da degradação, é-lhes concedido remirem--se pelas lágrimas. Estas reflexões não são todas minhas: quem fazia algumas era um escrivão do juiz de paz, que fora desanojar o João da Laje; e, posto a um canto do sobrado, conversava com um minorista da Póvoa, que assistira aos responsos.– Você conhecia esta rapariga, padre Bento? – perguntou o funcionário ao minorista.– Vi-a uma vez na romaria de S. Bartolomeu, fez um ano em 24 de Agosto. Assisti-lhe aos exorcismos na capela do Santo.– Ah! Conte-me isso... Ela tinha demónio no corpo? Note você, padre Bento, que os espíritos maus quase sempre se ferram nos bons corpos!O tonsurado entreabriu um sorriso de forçada complacência, e não deu azo a que o espírito forte abrisse a válvula dos sarcasmos, por causa dos quais havia sido expulso de um convento graciano onde noviciava, e também porque sabia francês, e lia O Citador de Pigault Lebrun, e chamava à carniceria da revolução francesa a grande operação da catarata social. Dizia cousas como os socialistas de hoje, que estão a chocar o ovo de uma cousa pior, que há-de ser os socialistas de amanhã.– Bonita era ela... – concordou o estudante de teologia dogmática; e, movendo pausadamente a cabeça como quem confirma uma recordação dolorosa, acrescentou: – Bem sei eu quem foi a causa deste suicídio...

– Sabe? E está calado com isso...– Estou, e... estarei – respondeu discretamente.– Já sei quem foi a causa de se suicidar a Josefa – acudiu o escrivão.– Sabe?... Então quem foi?!– Foi você, padre!– Não me diga isso nem a rir! – acudiu o teólogo com semblante mortificado.– Estou a brincar, padre Bento. Sei quem é o meu amigo; sabe-o toda a gente; mas conte-me essa história se confia em mim.– Lembre-se que essa pobre mulher ainda está quente na terra. Conversaremos outro dia.O minorista ergueu-se, quis despedir-se de João da Laje, que se fechara na adega com a sua dor, e saiu acompanhado do escrivão, que o não largou até lhe arrancar o segredo às relutâncias do escrúpulo. O futuro presbítero compreendia cristãmente o dever da caridade; mas, vencido pela pertinácia do amigo, disse o que sabia, encarecendo o melindre da revelação. Sumariamente contou o seguinte:Que Josefa, quando foi exorcismar-se à capela de S. Bartolomeu, a Cavez, não tinha no corpo o espírito imundo; e acrescentou entre parêntesis que não duvidava da existência de demónios súcubos e íncubos (1).E demonstrou que havia obsessos, autorizado com S. Gregório, Santo Anastásio, Santo Hilarião, que lutou com eles em forma de mulheres. O escrivão replicava que todos os homens eram Hilariões, e cada qual era o demónio de si mesmo; porém não citava autor digno de crédito; toda a sua erudição neste importante assunto era um fragmento de má e velha poesia francesa que dizia assim:On se livre à la voluptéParce qu’elle flatte et qu’on l’aime;Et, si du diable on est tenté,Il faut dire la vérité:Chacun est son diable à soi-même.

O minorista, ouvida a tradução da quintilha, confundiu o adversário com latim; e, a respeito da filha de João da Laje, continuou:– Não era possessa; era a paixão que a desnorteava. O sr. Maurício conhece o morgado de Cimo de Vila?– Se conheço! Aquele cadete de cavalaria de Chaves que estudou primeiro para frade crúzio, e assentou praça quando ficou senhor da casa por morte do irmão!... Esse rapaz foi para a corte com o pai... Foi ele então quem na apaixonou...– Foi. Há quem os visse no bosque de amieiros da Ínsua, defronte da Granja. O senhor sabe...– Conheço esse bosque. O meu padre mestre de latim chamava-lhe a Ilha dos Amores; foi lá que todos os bons latinistas meus condiscípulos leram a Arte de amar de Ovídio; e o cadete, pelos modos, aplicou as teorias do Sulmonense...– Não vamos tão longe, sr. Maurício – emendou o minorista. – O que se diz é que ele passava o Tâmega nas poldras, com a cana de pesca e o cacifro; depois, metia-se na Ínsua, e a Josefa ia lá ter.– Tudo isso é inocentemente pastoril. Depois ele fazia de Felício, e ela de Florisa, como os pastores de Fernão Álvares d’Oriente, e altercavam os seus queixumes ao som do arrabil... Vamos ao fim do conto: a rapariga, frágil e bonita...– Devagar – atalhou o prudente moço. – Não inventemos culpas, atidos à lógica dos delitos. É necessário atender aos temperamentos das pessoas, quando não quisermos extremá-las pela virtude.– Padre, eu não o percebo. Quer dizer que eles se amavam honestamente? Diga isto assim pelo claro, que eu acredito tudo quanto há virginalmente extraordinário em um cadete de cavalaria de Chaves.– Digo o que sei e presumo sempre o melhor quando não tenho provas do pior. E, quando as tenho, calo-me. O que afirmo é que o morgado de Cima de Vila, chegando há dois meses de férias de Coimbra, onde estuda matemática, pediu ao vigário de Santa Marinha que o casasse com Josefa de Santo Aleixo. O vigário recusou-se e avisou Cristóvão de Queirós, pai do cadete. O fidalgo saiu, como o senhor sabe, com o filho para a capital; e lá, como o cadete quisesse fugir-lhe, ou mesmo recusasse obedecer-lhe, meteu-o no Limoeiro. Entretanto, Josefa suicida-se.

Agora, seja qual for a causa que levou esta mulher morta à desesperação, a caridade o que aí vê é uma desgraça, e a religião chora uma alma condenada.– Adivinhei o que o padre não sabe...– Nem quero saber – acudiu o minorista; e retirou-se, agitando rapidamente ambas as mãos com gestos negativos.

*

A nossa curiosidade, nesta época de escalpelo, vai além dos limites que o teólogo abalizou à sua. Desenterre-se o cadáver, e venha para o anfiteatro anatómico.Josefa não fora caluniada pelo escrivão, quando ele lhe malsinou a inocência nos sinceirais da Ínsua. Uma cousa verdadeira, que os maus homens quase sempre têm, é a crítica mordaz dos costumes. Percebem e farejam os actos mais abscônditos da sociedade, como se a sociedade fosse obra deles.As pessoas cândidas e boas vivem constantemente logradas, e andam tão vendidas nesta feira de pecados como o Serafim do auto de Gil Vicente. Enlevadas no especulativo, pairando ao de cima destas ambulâncias em que todos gememos amputados na alma ou no corpo, quando cuidam que é virtude e resguardo a ignorância das cousas mundanais, vem o Mercúrio do poeta jogralesco de D. Manuel, e diz-lhes:

Muitos presumem saberAs operações dos céus,E que morte hão-de morrer,E o que há-de acontecerAos anjos e a Deus,E ao mundo e ao diabo.E o que sabem tem por fé;E eles todos em caboTerão um cão pelo raboE não sabem cujo é.

Isto, que diz aquele grande realista do século de quinhentos, é verdade. Os que se derem a parafusar operações do céu, quando mal se precatarem, são filados, onde quer que seja, pelo mastim da ironia que lhes crava o dente canino da chufa. Estes bons corações passam entre nós mordidos, espavoridos, com os dedos no nariz, e vão deixando os paletós nas mãos incontinentes das Zuleikas.Maurício, o escrivão, tinha no corpo a nevrose que aumenta o calibre da retina, e lhe espelha imagens através de corpos opacos. Raciocinou com a lógica dos corruptos, que é a arte de pensar bem. Quem pensava mal era o teólogo, imaginando que o cadete e a loura de Santo Aleixo, emboscados no choupal da Ínsua, eram mais inocentes que os pássaros. Não se pode ser perfeito hoje em dia sem se ser um bocadinho idiota. A esta saudável ignorância das misérias do próximo chamava o meu padre Manuel Bernardes «trevas claríssimas».

*

Ora vamos à história, já que me coube em sorte arpoar com pena de ferro, no fundo lodoso deste tinteiro, as frases do meu tempo.Era pescador e caçador António de Queirós e Meneses. Viu no monte a filha do lavrador de Santo Aleixo. As serras têm sombras do infinito. O coração aí é maior que as dimensões do peito. O homem, como se vê só, no cabeço de um fraguedo, dá-se grandeza extraordinária, mede-se pelo comprimento de horizonte a horizonte. Se o amor lhe rutilou aí como um relâmpago que fulgura numa vasta cordilheira de montes, é um amor olímpico, titânico, imenso, que, disparado sobre a modéstia e singeleza de uma rapariga montesinha, faz lembrar Camões:

.................. Qual será o amor bastanteDe ninfa que sustente o dum gigante?

Andava ele cursando retórica em Coimbra para ir vestir o hábito de frade fidalgo em S. Vicente de Fora. Tinha vinte e dois anos, e aspecto pouco de bernardo. Era magro e pálido, da palidez dos que amam, segundo o preceito ovidiano: Paleat omnis amans. Tinha êxtases nos píncaros das serras, como se ouvisse as harmonias das esferas. Sentia o grande vazio que a retórica lhe não enchia. Queria o amor, não queria tropos; preferia uma mulher feia, se as há, à mais nítida metáfora de Cícero ou Vieira.Nestas ideias o encontrou Josefa da Laje, nos montados da sua freguesia. Coraram ambos. Este rubor era o primeiro lampejo do incêndio. Depois, à volta de poucos dias, o fogo levou de assalto aquele combustível edifício de inocência, cheio de fluidos inflamáveis. A serra tinha penhascais, bosques, cavernas, insinuando o amor selvagem. Rodeava-os uma natureza contemporânea do homem vestido da pele do seu confrade em civilização, o grande urso e o grande veado. A forma selvática e antiga do proscénio deu-lhes jeitos de antigos actores da vida animal. Ninguém que os visse, ninguém que lhes lesse os grandes livros do padre Sanches acerca do matrimónio. Oh! A solidão, entre dois amantes, faz os poetas; mas talvez primitivos demais, algum tanto gaélicos, normandos, alheios a tudo o que é epistolografia amorosa – peles-vermelhas no rigor antropológico, à vista do modo como a gente em honesta prosa costuma casar-se.Assim seria; mas eles adoravam-se.– Não serás frade – disse-lhe o coração a ele.– Assim que meu pai morrer – disse ele à filha do lavrador –, caso contigo. Vou sentar praça, quer meu pai queira quer não. Sou o morgado, porque meu irmão mais velho morreu.Ela, para ser feliz até às lágrimas, não precisava destas esperanças. Preferia tê-lo e amá-lo nas matas chilreadas, nos desfiladeiros dos montes, no sinceiral da Ínsua, nas alcovas de ramagem que só eles e os rouxinóis conheciam nas margens do Tâmega.Foi por aí que deslizaram três meses do estio e outono de 1812. Ele foi para Coimbra, com farda de cadete.O velho fidalgo de Cimo de Vila ponderou na mudança de ideias do filho. Escodrinhou razões secretas que o movessem; todavia, não o contrariou. Tinha meninas para conservar a raça dos Queiroses e Meneses; mas a casta varonil iria pelas gerações além menos sujeita a reparos de genealógicos.Nas suas pesquisas descobriu que o filho, vindo a férias do Natal, passara o Tâmega e caçara nos montados de Santo Aleixo. Foi visto. É que os arvoredos estavam desfolhados; os choupos da Ínsua mostravam as grimpas curvadas à flor da corrente arrebatada; nos recôncavos das penedias, em vez dos froixéis da relva, havia lençóis de neve, palmilhada pelos lobos. Como não tinham florestas confidentes, foram vistos à beira do rio, ali mesmo, na cangosta do Estêvão, sentados naquela fraga onde o Luís Moleiro encostou o cadáver de Josefa. O velho não deu a mínima importância à denúncia, logo que lhe disseram quem era a rapariga.– Antes por lá que pelas criadas da casa – disse o assisado fidalgo. – É rapaz, e precisa de se divertir.No último quartel da vida, os pais... e até as mães – santo Deus! – dizem aquilo. Precisam divertir-se os filhos: levem a desonra onde quer que seja; mas não corrompam a disciplina doméstica, não embarrem pelas criadas, não perturbem o serviço da casa. Com que zelo estas matronas veneram a moral da cozinha, da salgadeira e da despensa!

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Nas férias de Páscoa, António de Queirós viu chorar Josefa. Não eram lágrimas de amante magoada, nem de filha malquista de seus pais: eram lágrimas de mãe. Entrara-se de uma terrível vergonha e confusão. Ninguém a suspeitava; e ela, se alguém a encarava a fito, estremecia. A mãe era cruel com as mulheres manchadas. No seu serviço não entrava jornaleira de má nota. Não se ajoelhava na igreja à beira de criatura de ruim vida. Dava-lhe este direito haver sido filha humilde e esposa honrada do homem com quem a casaram, o João da Laje, que era vesgo, cambado, lanzudo e bêbedo.O pai viu de longe, uma tarde, Josefa a conversar em uma barroca com o fidalguinho, e disse-lhe:– Se tua mãe o sabe dá-te cabo do canastro, rapariga.Não lhe bateu, porque estava sempre às avessas da mulher. Se ele imaginasse que a mãe fechava os olhos às toleimas da moça, então com certeza lhe dava.A rapariga tremia pois da mãe, e queria fugir; mas o cadete, cheio de bons propósitos, jurou-lhe

que viria casar com ela, antes de cinco meses. Dizia o cirurgião que o velho tinha uma anasarca, e não viveria mais de três. O estudante contava com isto, e dizia-o com uma sossegada fleuma como se se tratasse da esperançosa morte de um parente desconhecido para onde houvesse de lhe vagar a administração de um vínculo. Pobres pais! A verdade é que o fidalgo tinha as pernas inchadas, e prometia não incomodar muito tempo a sua família.Passados os cinco meses aprazados, Cristóvão de Queirós desinchou ao contrário da Josefa da Laje. Parecia castigo um pouco zombeteiro! O estudante, quando recebeu esta nova com os parabéns do cirurgião, foi à terra; e, como disse já o minorista, expôs ao vigário o estado melindroso da rapariga, e pediu-lhe que os recebesse. Já sabem que o vigário denunciou ao velho o propósito do jovem doido que pensava envergonhar seu pai, não só descendente de Bernardo del Carpio, ilustríssimo galego, sobrinho d’el-rei D. Afonso, o Casto, mas também representante de Fernão de Queirós, castelhano que entrou em Portugal a servir el-rei D. Fernando contra o de Castela, – um renegado da pátria.O fidalgo, quando tal ouviu mandou selar as mulas dos lacaios e pôr aos varais da liteira a parelha dos nédios machos. O filho recebeu ordem de acompanhar seu pai à corte, onde não havia corte nesse tempo. A surpresa abafou a reacção do moço; mas o velho, em todo o prumo da sua soberba, se o filho reagisse, iria à sua panóplia – que era um feixe de montantes e partazanas ferrugentas encostadas a um canto da tulha – e seria capaz de lhe meter um ferro de lança no degenerado peito! Assim fizeram sempre Queiróses, os bons, entenda-se; porque há em Portugal outros Queiróses, que não vêm de Bernardo del Carpio – o qual matou o rei dos Longobardos em Itália –, e estes fazem o que lhes parece, porque não são dos bons, nem têm diplomas de assassinos desde o século X (2).Chegados à capital, o solarengo provinciano, sem consultar o filho, agenciou-lhe noiva entre as mais estremes do sangue germânico das Astúrias. Isto de esposas, quanto mais bárbaras na origem, melhores. Quem puder hoje provar, com trinta e seis quartéis, que seu trigésimo avô era celta, ibero, huno, vascónio, ou gépida, tem barrigadas de orgulho de raça; mas bom será que tenha doutras para a digestão. Os árabes eram inteligentes, civilizados e finos; porém vão lá filtrar em uma neta de Pelágio ou Cid uma gota de sangue muçulmano! É uma árvore podre, uma genealogia estragada; porque pode ser que alguma dessas Urracas, Ortigas ou Gelorias antigas passasse pelo harém do amir de Córdova, Al-horr-Ibn-Abdur-rahman-Ath-Thakefi, sujeito que foi muito amado pela melodia suavíssima do seu nome.Não estava no rol das infelizes senhoras de raça mista a destinada esposa de António de Queirós. Era Teles de Meneses, mas dos bons, oriundos de uma D. Ximena, filha de Ordonho 2º, que fugiu ao pai com um cavaleiro, que a abandonou em um bosque donde a mísera foi dar ao sítio que hoje é Turgueda, na comarca de Vila Real, e aí casou com Telo, lavrador do casal de Meneses (3).– Escolhi-te mulher – disse Cristóvão. – É ainda tua parenta por Meneses. Não é herdeira; mas o irmão morgado está ético, e o segundo-génito é aleijado e incapaz para o matrimónio. Virá ela portanto a herdar os vínculos. É preciso que a visites hoje comigo.– Meu pai – respondeu António com respeitosa serenidade –, pode V. S.ª dispor da minha vida; mas do meu coração já eu dispus. Ou hei-de casar com uma rapariga de baixa condição a quem prometi, ou não casarei nunca.O velho pôs a mão convulsa nos copos do espadim, arquejou largo espaço, e disse:– Duvido que você seja meu filho. Proíbo-lhe que se assine Queirós de Meneses. Adopte o apelido de algum dos meus lacaios.António levantou o rosto e redarguiu:– Não se ultraja assim a memória de minha mãe.O velho lutava entre a cólera e a vergonha. Estendeu o braço, e apontou-lhe a porta, rugindo:– Espere as minhas ordens no seu quarto.Ao outro dia, um mandado da regência ao intendente geral da polícia ordenava a prisão do cadete de cavalaria António de Queirós e Meneses no Limoeiro.

*

Josefa esperava confiada, mas aflita. Não sabia escrever, não tinha ninguém a quem pedir a esmola de uma carta. A mãe olhava para ela com atenção, mas sem desconfiança. Fazia-lhe

umas perguntas da maior naturalidade, e inferia das respostas que a rapariga não estava sã. O cirurgião da terra, que matava pelo Portugal Médico e pelo Mirandela, receitava-lhe emplastos de ervas orjavão e semprónia, fervidas em um quartilho de aguardente. Ao fim de quatro meses, João da Laje, que matava o bicho todos os dias, e tão copiosamente como se tivesse no estômago a arca de todas as bestas-feras diluviais, queixou-se rusticamente das sangrias que sofrera o pipo. A mulher refilou; e, no apuro da sua indignação, bradou-lhe:– Ainda eu te veja como está a rapariga!– Salvo tal lugar! – retrucou. – Rebentada te veja eu a ti!O cirurgião continuou até ao quinto mês; depois, sorrindo com certa velhacaria, tocou brandamente na face da doente, e disse-lhe a meia voz o que quer que fosse muito semelhante ao que uma comadre, pela boca de Gil Vicente, havia dito três séculos antes a Rubena:Isto é cousa natural,E muito acontecedeira,Se nunca fora outra tal,Disséramos que era mal,Por serdes vós a primeira.A vida íntima é cheia de passagens ridículas. A gente, que escreve casos tristes, se lhes não joeirasse a parte cómica, não arranjava nunca uma tragédia. Estava ali aquela desgraçada mulher sobre as brasas do seu suplício, e à volta dela a bruta vida de seus pais – ele a esconder o pipo da aguardente de medronho, a mãe a pisar a erva semprónia e a pedir sinceramente ao céu que lhe levasse o marido em uma das suas frequentes borracheiras.Josefa já não saía da cama, a fim de evitar que a vissem. Expedia gritos de indizível angústia, estorcia-se em frenesins. Tinha alanceada a alma pelo tormento da desesperação. António de Queirós não chegava!Um dia, porém, uma mulher não conhecida de Maria da Laje, muito velha e bem agraciada de semblante devoto, perguntou-lhe no adro, ao sair da missa, como estava a sua Josefa. A lavradeira disse mal humorada o que sabia da doença, e perguntou-lhe quem era. A curiosa respondeu que era de além-Tâmega, e viera àquela freguesia por causa de um sonho que tivera. E, dizendo isto, levou os olhos para o céu, e baixou-os logo para a terra com humildade de pessoa indigna das mercês do alto.– Então que sonhou você, tiazinha? – perguntou Maria da Laje aconchegando-se da mulher com bastante fé.– Em sua casa lho direi, pois que a sua casa é que venho.E deixou cair uma das contas de pau preto, que, batendo na imediata do rosário, fez o soído de umas castanhetas.Quando entraram no quinteiro, saía o lavrador da adega, onde pela terceira vez fora matar o bicho, aquela hidra de Lerna que botava cabeças todo o santo dia no bucho hercúleo de João da Laje. Vendo a companheira da esposa, perguntou-lhe:– Quem é essa criatura, ó Maria?– Que te importa? Se havias de ir à missa, ficaste a beber, borracho! Entre cá p’ra dentro, santinha.– Guarde-o Deus, sr. João – disse a hóspeda.– Vossemecê não é a Rosária, a mulher do Manuel Tocha, caseiro do sr. sargento--mor da Temporã? – perguntou João, infitando-se nela.– Sou, sim senhor.– Valha-a o demo! Custou-me a conhecê-la! Você vem assim a modo de quem anda a pedir p’ra uma missa! Se quer beber, entre cá. Você parece esmaleitada, mulher!– Deus lhe dê saúde; agora não é preciso. Vou cá dentro conversar com a sua companheira à conta dumas meadas.– Meadas? Vocês lá as arranjam... – disse ironicamente João, ao que a mulher retorquiu:– Vai-te deitar.Ele não se ofendeu, porque, em verdade, foi-se deitar, como quase sempre ia, nos fenos do palheiro, onde tinha visões como nunca tiveram os narcotizados califas de Damasco, ressupinos em almofadas da Pérsia...Entretanto, a mulher de Manuel Tocha revelava à mãe de Josefa que sua filha estava doente de morte, se lhe não acudissem...– Tenho-lhe posto cataprasma de orjavão e semprónia, há quatro meses a eito todas as noites –

atalhou Maria da Laje.– Isso não lhe faz nada, é o mesmo que pô-las na barriga daquela cadela – e apontava para uma perdigueira que uivava, ouvindo tocar ao longe uma requinta.– Raios partam a cadela! Isto é agouro! – exclamou a dona da casa, remessando- -lhe um canhoto às pernas com grande cólera.– Sua filha está enfeitiçada, tia Maria – prosseguiu a outra.– Eu já a levei ao sr. São Bartolomeu – contraveio Maria.– O santinho tira o cão tinhoso, mas não desfaz os bruxedos – replicou Rosária Tocha. – Vamos ver se ainda lhe podemos valer.– Deu-lhe p’ra inchar! – observou a mãe da enfeitiçada.– Não qu’ele é isso quando o feitiço adrega de pegar d’ostrução – explicou suficientemente Rosária.– Vejam vocês! – volveu a outra assombrada, cruzando os braços. – Quem ma tolheu?– Isso agora! – e olhou para o tecto. – Vamos, leve-me onde a ela, que eu preciso requerê-la. Aqui levo as arrelíquias p’ra lhe deitar ao pescoço.E mostrou dependuradas de um negalho surrado e sebáceo as seguintes, entre outras cousas cabalísticas: duas figas de azeviche, duas pontas de vaca loira, um canudinho de latão como um agulheiro, outro como um dedal, o sino-saimão aberto em placa de chumbo. Dizia ela que os canudos continham ossos das sete irmãs santas naturais de Basto, de S. Cucufate de Braga, de S. Pascásio, bracarense também, e de S. Rosendo, do Porto, cidade que ainda não deu outro santo, nem promete. E, exibidas as relíquias, acrescentou:– Preciso ficar sozinha com a doente, e vossemecê enquanto eu lá estiver não me corte o ar, entende?– Olhe que eu não sei o que vossemecê diz, santinha, lá disso de cortar o ar, salvo seja.– Não abra a porta do quarto em que a tolhida estiver comigo, percebe agora?– Ah! quanté isso, vá descansada. Feche-se por dentro no sobrado, que ninguém lá vai. Venha daí com Deus.E, encaminhando a suposta benzedeira no sobrado alto em que estava a filha, entrou com ela e disse a Josefa:– Aqui te trago a saúde, rapariga! Mal haja quem te meteu no corpo o feitiço! Tantos diabos o levem...– Credo! Credo! – atalhou a benzedeira. – Vá vossemecê rezar sete salve-rainhas, e não fale no berzabum. Nada de chamar quem está quedo.

*

Fechada com Josefa, Rosária escutou à fechadura os passos da outra que descia; e, abeirando-se à doente assustada pela inopinada visita, disse-lhe com o maior e mais desbeato desempeno:– Eu venho aqui com um recado do fidalgo novo de Cimo de Vila.– Ele onde está? – exclamou Josefa em ânsias de alegria.– O sr. Antoninho está preso em Lisboa.– Ai, meu Deus! Preso!– Não barregue, fale baixo, que, se nos ouvem, lá vai tudo com a breca. Eu lhe conto, Josefinha. O fidalgo escreveu de Lisboa ao filho do meu amo, que é o sr. sargento-mor da Temporã, a dizer-lhe que o pai o metera em ferros d’el-rei porque ele não quisera casar com uma menina de lá, e diz que o não tira da cadeia enquanto ele teimar que não casa. Olhe que diabo de homem, Deus me perdoe! E vai ao depois, o sr. Antoninho escreveu ao meu patrão novo a contar-lhe isto e aquilo e aqueloutro, p’r’aqui, p’r’acolá, e escreveu-lhe então a dizer-lhe que a sr.ª Josefinha estava nesse estado, e coisas e tal, como o outro que diz, que em bom pano cai uma nódoa. E vai depois o meu amo foi onde a mim, e contou-me resvés tudo, e até me leu a carta, que as bagadas me caíam quatro a quatro por esta cara abaixo (e alimpava a cara enxuta ao avental). Ó filha, as mulheres nasceram para os trabalhos! Não chore, criatura, que eu vou dizer-lhe ao que venho e vossemecê vai ficar alegre como uma levandisca. O meu patrão mandou-me chamar, leu-me a carta, e disse-me que viesse eu falar com vossemecê, custasse o que custasse, e lhe dissesse que fugisse quanto antes de casa e fosse ter à quinta do Enxertado, que é do sr. Antoninho, e lá seria recolhida pelo feitor até ele vir de Lisboa. Ora aqui tem.– Pois sim – exclamou Josefa com exaltação e profundamente abalada. – Eu fujo amanhã, porque

tenho medo que minha mãe me mate, se desconfia. O pior é que eu não sei o caminho para o Enxertado.– Não tem que saber...E explicou-lhe o trilho que devia seguir passadas as poldras do Tâmega; mas, para se não enganar, disse que mandaria o rapaz das cabras esperá-la na encruzilhada do Mato, ao pé da caixa das alminhas, e não descobrisse ela quem era ao rapaz, e que lhe dissesse somente: «anda lá».Rosária embiocou o rosto no lenço, enfiou as camândulas no pulso esquerdo, e desceu as escadas. Maria da Laje saiu-lhe da porta da cozinha com a boca aberta e cheia de interrogações:– Então?– É o que eu lhe dizia, criatura – respondeu Rosária. – Pegou-lhe deveras; mas tem cura. Vá vê-la que já não parece a mesma; tem outro doairo na cara, está com uma pele de rosto que parece uma rosa, benza-a Deus!– Pois ela sãzinha e escorreita é como não há muitas; e então virtude? Isso é que nenhuma, nem na mais pintada! As outras por aí na freguesia todas têm rapazes que lhe rentam, e algumas... sabe Deus o que elas fazem. Cala-te boca! (e, estendendo os beiços, esbofeteava-os). A minha Josefa nunca tolejou tanto como isto.Andaram aí atrás dela os fidalgos de Agunchos, a mais os filhos do sr. capitão-mor, Deus lhe fale na alma, que é um que dizem que anda a penar na Agra, vossemecê há-de ter ouvido dizer...– Sim, sim, Deus o despene!– Pois é verdade, e a rapariga teve bons casamentos falados, e lá quem na tirasse das suas devoções, de ir lavar ao rio e de guardar as ovelhas era matarem-na. Pois olhe que esses feitiços são invejas das desavergonhadas que não podiam levar à paciência a virtude da minha Josefa. Havia de ser a brejeira da Rosa da Fonte e aquela tinhosa da Bernarda do Manel Zé! Cala-te, boca! Enfim, vossemecê agora há-de mastigar um bocado de presunto para beber uma pinga do velho.– Deus lho acrescente, sr.ª Maria: eu jejuo para ganhar o jubileu. Vou-me indo que são horas. Adeusinho, se for preciso que eu cá torne, não tem mais que mandar-mo dizer.Maria galgou as escadas, e foi topar a filha sentada na cama a desengrenhar os seus loiros e bastos cabelos com uns meneios largos de braços e um atirar de tranças para trás que parecia uma alegre amante a pentear-se para ver passar o noivo amantíssimo.– Ora ainda bem! – exclamou a risonha velhota. – Foi o meu padre Santo António que trouxe cá a santa da mulher! Vais-te prantar a pé, rapariga? Há cinco semanas, fá- -las amanhã, que não sais desse ninho! Queres tu comer? Vou-te buscar uma tigela de caldo, uma posta de presunto e um pichel de vinho. Bebe-lhe, cachopa, e mal hajam as invejosas que te fizeram a mandinga. Hão-de roê-la! Sabes quem foi?– Quem foi o quê, senhora mãe?– Quem te fez o feitiço? Ninguém foi senão a Bernarda do Manel Zé que te veio aqui pedir um dia – lembras-te – o teu jaqué amarelo com botões azuis. Foi para te fazer o feitiço no jaqué.– Àgora foi, coitada da pobre rapariga que é tão boa! – contradisse Josefa.– Então quem foi? – interpelou a mãe com azedume. – Quem foi?– Eu sei lá, senhora mãe! Quem foi o quê?– A mulher que aqui esteve contigo não te disse que era feitiçaria o teu mal?Josefa, caindo em si, respondeu balbuciante:– Ah! sim, isso disse ela, mas...– Mas quê? Não foi outra senão aquela tísica que não quer que haja outra mais bonita na freguesia. Pões-te a pé ou não?Josefa, com o pente na mão direita descaída e inerte, e a cabeça encostada à mão esquerda, sentia-se como cansada, esvaída de alento, e esmorecida como se o súbito incêndio de felicidade fosse um lampejo de estopas que se inflamam e nem faúlhas deixam. É que ela nesse momento sentira uma dor física, desconhecida, não forte, mas acompanhada de um calefrio. A mãe, vendo-a mudar de cor, atribuiu o desmaio à fraqueza, e correu a trazer-lhe uma farta malga de caldo fumegando por entre uma floresta de couves recheadas de feijões vermelhos. Quando entrou no quarto, viu a filha fora da cama, vestindo as saias com agitação febril, e chamando Jesus, com os dentes cerrados.– Que tens tu, mulher? – exclamou a mãe.– Estou aflita, muito aflita! Jesus, valei-me! – dizia Josefa entre gemidos, sentando-se, erguendo-

se, e fazendo até uns gestos diante da mãe como se quisesse ajoelhar-se-lhe com as mãos erguidas.– Que tens, mulher? – bradava a mãe, seguindo-a espavorida naqueles trejeitos frenéticos. – Dói-te alguma coisa?– Tenho uma dor muito grande... muito grande...E, como levasse as mãos aos quadris no ímpeto da dor aguda, a mãe quedou-se como estupefacta a olhar para ela. Neste instante fez-se-lhe luz na alma a um clarão infernal. Aqueles gritos e contorções recordaram-lhe que havia sido mãe: viu, como nunca vira, os sinais exteriores do crime nem sonhado; os modos suplicantes da filha confessavam o crime.Fez-se uma desfiguração improvisa e medonha nas feições de Maria da Laje, quando, crescendo para a filha, com as mãos fincadas nas fontes, bramiu:– Tu que tens? Tu que fizeste, amaldiçoada?Josefa ajoelhou-se, com as mãos no rosto lavado em lágrimas, e murmurou:– Deixe-me chorar, minha mãe, que eu à noite vou-me embora.– Vais-te embora, malvada? Então p’ra onde vais tu? Morta te veja eu antes de à noite! P’ra onde queres tu ir? Quem foi que te botou a perder? Respondes, mulher perdida? Olha que se me gritas de modo que alguém oiça, dou-te com o olho de uma enxada na cabeça! Pois tu! Pois tu!... Ai que eu endoideço! ai que eu endoideço!...E, com as mãos na cabeça, partiu a fugir escada abaixo, e foi sumir-se no palheiro, dando gritos com a cabeça metida no feno para os abafar.Entretanto, João da Laje, entrando à cozinha para jantar e não vendo ninguém, foi bater à porta da filha.– Que é de tua mãe, rapariga? – perguntou de fora, porque a língua da chave estava corrida.– Não está aqui, sr. pai.– Hoje não se come? Cá vou ver o que está na panela: quando ela vier, diz-lhe que eu cá m’arranjei.E, de feito, extraindo do pote um naco de toicinho com que fez uma enorme e pingue sanduíche entre duas talhadas de broa, foi para a adega, sentou-se ao pé da cuba, e murmurou: «Aguenta-te, João, que tua mãe não faz outro».Este homem tinha em si algumas faíscas do génio de Diógenes, um tudo-nada do espírito de Epicuro, e o mais era espírito de vinho. Viveu assim largos anos, reformando-se sempre para pior, e morreu aos 80, como lá dizem, coberto de musgo, que era o sarro interior que lhe porejava na casca. Com alguma sentimentalidade no coração e frugalidade no estômago, morreria na flor dos anos.

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Com toda a certeza, Maria da Laje sofrera punhalada que rasga profundas fibras em peitos de mães honradas. Era dura de condição, tinha o orgulho selvagem da honra, compreendia barbaramente o dever da mulher, e julgava-se com direito a murmurar de todas as frágeis, sem discriminar as infelizes. O seu ódio às mães tolerantes com os desatinos das filhas era entranhado, convicto e implacável. Da caridade cristã só entendia o preceito da esmola. O confessor não lhe ensinara outra interpretação da terceira virtude teologal. Não perdoava cegueiras de amor porque não amara nunca. Se imaginava que a filha podia desvairar uma vez, sentia nas mãos as crispações nervosas de quem estrangula um pescoço. Como era deslinguada e mordacíssima nas fraquezas alheias, impunha tacitamente à filha o dever de a sustentar na sua soberba inexorável. Uma ligeira camada de verniz social não sei o que faria desta mulher. Ainda um destes dias contavam as gazetas de uma ilustre dama parisiense que matou a ferro frio uma neta que conspurcara a sua raça em amores abjectos. Em tempos tenebrosos, os mosteiros portugueses eram o dragão com os colmilhos abertos para esta espécie de vítimas que os pais lhe atiravam: se o cubículo claustral as não amordaçava, havia o tronco, a enxerga e a fome; depois a sepultura; mas o brasão limpo. Se há inverosimilhança na crueldade das mães como Maria da Laje é lá onde são raras as que podem ler às filhas o livro da sua vida honesta.Ao entardecer daquele dia de Agosto, a mãe de Josefa, segundo o marido contou ao vigário na cangosta do Estêvão, foi levada em braços para a cama; e, naquele lance, João, ouvindo dizer que o pegureiro perdera uma rês, deixou a mulher a escabujar no catre, e foi interpelar o rapazinho, reclamando-lhe a cabra ou os fígados.

Ao mesmo tempo, Josefa era mais um dos inumeráveis exemplos da força prodigiosa da mãe, quando a soledade e o desamparo a obrigam a socorrer-se de si mesma. Ninguém lhe ouviu os últimos gritos dela nem os primeiros vagidos da criança. Quem ler, em um tratado de obstetrícia, as regras, conselhos e desvelos que a ciência agrupou à volta de uma puérpera, e souber da inutilidade da arte e dos preceitos, quando o infortúnio ou o acaso interceptam o menor auxílio à mãe, nivelando-a nesse lance às espécies irracionais, convence-se de que a mulher do período quaternário (vou assim longe porque na Bíblia se conhecem de nome as parteiras Séfora e Fua) não carecia de mais assistência que a loba das cavernas. E observa também que os encarecimentos e demasias da arte a enfraqueceram e melindraram, privando-a da confiança pessoal, da consciência da força própria e de algum modo estorvando as influências directas da natureza.Josefa, quando descia de manso a escada do seu quarto, amparando-se à parede, trazia debaixo do braço um berço com o filho; era o mesmo berço em que a mãe a criara, uma canastrinha de verga urdida tão densa e solidamente, e com o fundo fasquiado de madeira tão impermeável, que poderia estancar a água sem transudar. Um saiote de baeta dobrado envolvia a criança, deitada sobre a velha enxerga de serradura.A mãe era robusta; sentia-se esvaída, mas contava consigo, se tomasse algum alimento. Na cozinha não estava ninguém quando ela atravessou de passagem para o quinteiro. Olhou para a lareira a ver se acharia um pouco de caldo. Não o queria para si; era para o converter no leite da sua filha. Pousou o berço no escano; ia levantar o testo do púcaro; mas neste instante ouviu os brados da mãe, cuja cama era na tulha, no mesmo plano da cozinha. Estremeceu, cuidando que fosse apanhada; pegou da criança, e fugiu, lançando a saia de pano azul pela cabeça, e apertando o berço contra o peito.O seu destino era o abrigo que o pai da sua filha lhe dera. Da parte de além- -Tâmega, logo à ourela do rio, pediria que a fossem guiar no mau caminho da grande légua que a distanciava da quinta do Enxertado. Lembrou-se de José da Mónica, o pastorinho que lhe era muito afeiçoado; mas, ao atravessar o quinteiro, ouviu a voz do pai a praguejar contra o rapaz, que perdera a cabra. A Brites do Eirô reconheceu-a a saltar para o campo da Lagoa; o pescador da chumbeira ouviu-a chorar na cangosta do Estêvão, quando amamentava a criança, e lhe parecia que a filha, não achando leite, se lhe estirava hirta nos braços como morta. Atormentavam-na dores outra vez, e sentia-se torvada, desfalecida e sem forças para transpor as poldras, que não estavam perto. Havia de atravessar o ervaçal que o moleiro e o pastor percorreram um quarto de hora depois. Quando ouviu vozes, ao longe, no alto da barroca, ergueu-se cambaleando, saltou a vala, invocando o auxílio das almas benditas. Era o Luís moleiro que vinha descendo com o rapaz. Ao avistar as poldras que alvejavam puídas e resvaladiças ao lume d’água, teve vertigens, e disse entre si: «Eu vou morrer». Pôs o berço à cabeça, esfregou os olhos turvos de pavor, e esperou que as pancadas do coração sossegassem. Depois, benzendo-se, pisou com firmeza as quatro primeiras pedras; mas daí em diante ia como cega; a corrente parecia-lhe caudal e negra. Quis sentar-se em uma das poldras; e, na precipitação com que o fez para não cair, escorregou ao rio. A água era pouca, e a queda de nenhum perigo; mas o berço caiu na veia da corrente, que era bastante forte para o derivar. Quando ela estendeu o braço já o não alcançou. Arremessou-se então ao rio; mas os altos choupos da margem, encobrindo a baça claridade das estrelas, escureceram o berço. Neste lance, perdido o tino, a desgraçada cortou de través para a margem, onde um claro de areia se lhe afigurou o berço.Quando aí chegou, caiu; e, na queda, agarrou-se ao esgalho do salgueiro em que o pastor e o Luís moleiro a encontraram moribunda.Sabem os sucessos posteriores, desde que ela expirou nos braços do veterano até que o escrivão do juiz ordinário nos deu o exemplo da dissecção daquele cadáver. Viram que Maria da Laje, rompendo sozinha pelo escuro da noite, quando ouviu dizer que a filha se afogara, foi mãe naquela já tardia explosão de angústia e amor. O remorso pôde mais com ela que a selvajeria da sua virtude; mas ainda viveu seis anos com reveses de demência, e morreu em casa de seus irmãos em Santa Maria de Covas de Barroso, repelindo o marido desde que lhe ouvira dizer: «A rapariga faz-me falta porque não tenho quem me governe a casa».

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António de Queirós soube no Limoeiro, por carta do seu amigo da Temporã, que Josefa de Santo

Aleixo se suicidara no mesmo dia em que ele conseguira enviar-lhe o aviso para a fuga. O informador, espantado do sucesso, atribuía à demência repentina a resolução da infeliz que ainda na manhã desse dia se mostrara contentíssima com a deliberação da fugida para a quinta do Enxertado.O vigário de Santa Marinha também avisou Cristóvão de Queirós do suicídio da rapariga. O fidalgo conferenciou com a regência, e o intendente geral da polícia mandou passar alvará de soltura ao cadete de cavalaria.– Vamos para a província, se não quer casar – disse Cristóvão ao filho.– Nem caso nem vou para a província, meu pai – respondeu António de Queirós.– Tornará para o Limoeiro.– Irei já enquanto lá tenho a minha bagagem.– Para onde quer ir?– Para o Rio de Janeiro: seguirei lá a vida militar.– Sabe que é o sucessor dos meus vínculos?– Disponha V.ª S.ª deles se quer e se pode; a mim me bastariam a felicidade, a mocidade e a alegria que me matou.– Com quem cuida você que fala? – interpelou o fidalgo com Bernardo del Carpio às cavaleiras que lhe esporeava as ilhargas com o direito de avô.Afuzilavam-lhe os olhos, como ao seu antepassado quando matou o rei dos longobardos em Itália.– Com quem cuida você que fala? – repetiu o convulso velho.– Com V.ª S.ª, um homem que eu sinceramente temo, porque tem a minha liberdade e o Limoeiro à sua disposição.– Não é meu filho! Vá para o Brasil, vá para onde quiser. Sua mãe teve cinco mil cruzados de dote. Dessa sei eu que você é filho. Recebê-los-á hoje, e amanhã partirá.

Segunda parte

Francisco Bragadas, o timorato pescador de chumbeira, despedindo-se do moleiro, com certas apreensões agoirentas, teria dado trinta passos rio abaixo com a rede já enrolada, quando ouviu no recanto escuro ou angrazinha da corrente, que espraiava para dentro de um algar, o choro abafado de uma criança. À primeira esfriou de medo; mas esperou a reacção do bom senso. Pé ante pé, acercou-se do lugar sombrio donde vinha a toada incessante daquele ríspido chorar. Ele, que era pai de muitos pequenitos, não podia confundir os vagidos de um menino com os guinchos das desdentadas bruxas, as quais, por via de regra, costumam cacarejar casquinadas de riso quando lavam nas claras águas das ribeiras os seus indecentes arcaboiços.Estendendo a mão, tocou na face tépida da criança. O berço quedara-se enleado na ramagem de um salgueiro vergado pelo peso de uma rede ou pardelho, como lá dizem, que dali, atado nele, atravessava para a margem da Ínsua, – um bosque de choupos assim chamado. As bóias arfadas pela corrente chofravam nos flancos do berço. Francisco Bragadas exclamou levantando a canastrinha:– Oh! Pobre menino! Atiraram-te ao rio! Ainda eu mais verei neste mundo? – E, apalpando-lhe o corpo por baixo do saiote, disse maravilhado: – E nem sequer está húmido! Isto é milagre!Como a chumbeira lhe pesava, escondeu-a em uma lura do valado, e deitou a correr para casa, com o berço debaixo do braço.A mulher de Bernardo, sentada à porta da cozinha, embalava uma filha com o pé, enquanto amamentava a mais nova.– Cá tens mais um, mulher! – disse ele, quando a avistou.– Um quê, homem?– Um crianço que pesquei no rio.– Tu estás tolo, Bernardo?– Aqui o tens tal qual o topei engasgalhado num amieiro, berço e tudo. Olha que desgraça, ó Isabel!A mulher benzeu-se; foi buscar a candeia; convenceu-se que era uma criança viva, pôs as mãos, olhou para o céu com profunda mágoa, e exclamou:– Ó homem, o mundo está a acabar!– Dá-lhe o peito quanto antes, senão o mundo acaba-se para ele. Aqui to deixo, que eu vou contar aos fidalgos este caso.

– Ai! – exclamou ela examinando a criança – É uma menina e ainda não tem cortada a invide!Queria dizer que ainda não estava ligado o cordão umbilical. Isabel tinha a ciência prática da mãe de onze filhos, todos nascidos sem mais auxílio que o do seu homem e o da sua serena coragem naquele acto. Confessava-se na véspera, comungava de madrugada, e depois, com o maior sossego de alma e muita conformidade com as dores, matava uma galinha e dizia ao marido:– Vamos a isto, Bernardo.Depois, lá prestava os cuidados à criança, ela mesma a lavava, não na queria enfaixada; dava-lhe aos braços toda a liberdade, todo o alento aos pulmões. Era como as mulheres de Israel, de quem as parteiras egipcíacas diziam ao Faraó: «As mulheres de hebreus não são como as dos egípcios; porque elas mesmas se sabem partejar, e, antes de nós chegarmos, parem» (Bíblia, Êxodo, cap. 1º, vº 19). E, dois dias depois, mandava o homem para a lavoura, e ela ia para a labutação da cozinha, dos cevados, da maceira, com umas cores rosadas que parecia uma noiva na véspera de ser esposa.O caseiro atravessou um campo de hortas e pomares na extrema do qual estava a casa nobre, onde os fidalgos de Santa Eulália costumavam passar o estio para se banharem no Tâmega.Esta família era do Arco de Baúlhe, gente nobre e antiga. Duas senhoras de outros tempos com seu irmão desembargador aposentado, homem erudito em história pátria, sabendo de cor a Monarquia de Brito. Estava hóspede na casa o cónego de Braga João Correia Botelho; ainda frescal, grave, falava muito no Pentateuco, e asseverava que o primeiro e mais verídico historiador do género humano fora Moisés – asserto que ninguém lhe contestava. D. Maria Tibúrcia e D. Maria Filipa eram solteiras. Passavam dos cinquenta, idade em que o sexo principia a descaracterizar-se, período equívoco em que a mulher, se não tem filhos que lhe afirmem uma serventia retrospectiva, parece que foi sempre assim, uma coisa melancólica, embalsamada, e presa à bisca sueca pelo espírito e à caixa do esturrinho de 1813 pelo nariz.Haviam sido feitas de modo e feitio pouco vulgar, mas muito honestas, posto que não antipatizassem com Cupido. Gostavam de alguns sujeitos que fingiram ignorar o sentimento involuntário que acendiam. Elas tinham fogo latente no peito; mas, por causa da má cara que possuíam, tornaram sagrado aquele fogo de que elas mesmas eram as vestais. Para estas senhoras não tinham significação estas palavras do padre Manuel Bernardes: «Mui íngremes e costa arriba são as veredas da castidade!» Eram castas estas duas irmãs como as melancias são frescas e os tremoços sensaborões: – era o seu feitio e a sua natureza. Na folha de inventário cabia a cada uma dez mil cruzados; porém, nunca exigiram quantia notável de seu irmão, senhor de grandes prazos, o doutor Teotónio de Valadares, que também era solteiro, mas menos casto que as manas. E era isso não pequeno desgosto para elas. O mano doutor tinha servido lugares de magistratura, desde juiz-de-fora até corregedor, em várias comarcas, e por todas elas deixara prole ilegítima. Umas filhas eram freiras franciscanas, outras eram mães; alguns filhos seguiam as letras, outros as armas: tinha filhos para todos os ofícios e artes. Era o D. Sancho povoador de seis comarcas, mas povoador de sua lavra, moto próprio e propagação pessoal.

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Quando o caseiro, a deitar os bofes pela boca, apareceu a dar notícia do achado da criança no Tâmega, estavam as senhoras e mais o cónego e o irmão a jogar a sueca. Largaram as cartas a um tempo. O cónego ergueu os óculos de tartaruga para a testa, e exclamou:– Parece um caso bíblico!– Há factos análogos na história da Lusitânia – observou o desembargador, recordando-se.Enquanto os dois pilares da história sagrada e profana porfiavam em erudições respectivas ao caso, D. Maria Tibúrcia disse ao ouvido de D. Maria Filipa:– Olha que isto é marosca, mana!...– Marosca?– Sim. Deixemo-nos de tretas... A criança é filha do mano Teotónio.– Credo! Tu que dizes, mana Tibúrcia? O mano doutor não mandava atirar ao rio a criança...– Isso sei eu; mas arranjava esta comédia com o caseiro. O Bragadas vem ensaiado por ele, e talvez pelo cónego.– Eu sei! – duvidou a outra. – O mano Teotónio não precisava de estar com estas endróminas... E quem há-de ser a mãe?– Faltam elas por aí...

– É necessário – disse o cónego Botelho – baptizar a criança amanhã, que não vá ela morrer, que é o mais natural. Madrinha há-de ser uma de vossas senhorias, minhas senhoras; padrinho há-de ser o sr. desembargador.– Prontamente! – anuiu o doutor Teotónio.– Vês? Não é ele o pai – disse D. Maria Filipa à irmã a meia voz.– Será ele o cónego? – redarguiu D. Maria Tibúrcia.– Não sejas má língua! Olha quem! Coitado do homem...– Então qual é madrinha? – perguntou o padre.– Pode ser a mana Filipa – disse a outra.– Serão vossas senhorias ambas, porque madrinhas têm lugar de mães, ou mãezinhas, que é o diminutivo de madres, mães.– Matercula, de mater – acrescentou conspicuamente o doutor.– Isso – confirmou o cónego, enquanto as duas irmãs estavam a ver se percebiam o modo como eram mães por um figurado esforço de latinidade.– E na qualidade de mães substitutas que o sacramento lhes confere, visto que a recém-nascida não tem mãe conhecida, tem de ficar a criança a cargo de seus padrinhos, pois que o Francisco Bragadas tem onze filhos... – acrescentou o cónego.– Serão doze – atalhou o agricultor – mas, se vossas senhorias tomarem conta da enjeitadinha, boa esmola lhe fazem.– Sim, Francisco – disse o desembargador –, tomaremos conta da enjeitada. Amanhã iremos a S. Salvador baptizá-la.O caseiro saiu alegre, a pensar que Deus lhe olharia pelos seus pequenos, em paga de ele acudir àquela criança que, depois de baptizada, se morresse, já teria asas que a levantassem até ao paraíso. Ele não era teólogo, nem conhecia o limbo.– Como há-de ela chamar-se? – perguntou o cónego.– Maria, já se vê – respondeu D. Tibúrcia. – A mana é Maria.– Bem sei, minha senhora; mas há-de acrescentar-se-lhe um sobrenome indicativo da circunstância em que foi encontrada, num berço sobre o rio. Muito bem sabe o sr. desembargador o que a Bíblia refere. O ímpio Faraó mandara matar as crianças do sexo masculino, dizendo: «Lançai ao rio todo o que nascer macho, e não reserveis senão as fêmeas».– Sim – conveio o desembargador –, vai o cónego contar-nos o caso de Moisés.– Justamente, Moisés foi achado no rio, e vinha à flor da corrente deitado num berço. Parecia-me, portanto, que a menina se chamasse Maria Moisés, em comemoração de tão estranho sucesso.– E porque não há-de chamar-se Maria Ábidis? – perguntou o doutor.– Ábidis?! – disse o padre invocando a memória. – Que é isso de Ábidis?!– É um caso semelhante da história portuguesa, sr. cónego. Leia, leia o meu Bernardo de Brito. Não lhe tenho eu dito cem mil vezes que a nossa história é um tesouro de ricos acontecimentos aplicáveis filosoficamente a tudo quanto há mais extraordinário?! Eu lhe conto de memória: e, se ela me falhar, irei buscar o tomo I da Monarquia Lusitana, que é livro que nunca me larga. – E, tomando do esturrinho de D. Tibúrcia, continuou com ênfase: – Górgoris, rei da Lusitânia, no ano 2806 da criação do mundo, foi o inventor do mel.O cónego sorriu-se.– O senhor ri-se – acudiu o doutor.– Eu cuidei que o inventor do mel houvesse sido o inventor das abelhas – explicou o padre.– Essa não me parece de homem que lê! Esse casaco que o senhor tem vestido quem o inventou? Quem é que inventou os casacos, pergunta a minha curiosidade.– Eu não sei.– Se o cónego quer que o inventor do mel haja sido o inventor das abelhas, responda que o inventor dos casacos foi o inventor dos carneiros que dão a lã dos estofos.– Tem razão – conveio ironicamente o cónego. – Vamos à história de Górgoris.– Que por inventar o mel se chamou o Melícola.– Meli e colo: não o inventou, cultivou-o: são coisas diversas – reguingou o padre.– Inventou, de invento – eu acho. Achou-o.– Ai que fazem sono à gente com a seca dos latinórios!... – atalhou D. Maria Filipa. – Vá, mano, conte lá a história.– É melhor – obtemperou o hóspede. – Eu não interrompo mais seu mano, minhas senhoras.– Interrompa quanto quiser, que eu cá estou. O rei da Lusitânia Górgoris teve uma filha que se

apaixonou por um homem de baixa extracção. O que denunciou estes amores foi, diz Bernardo de Brito, em uma palavra de cunho português de lei, foi a «emprenhidão».– Credo! Que palavra! – exclamou com engulho D. Maria Tibúrcia.– Não parece palavra de pessoa eclesiástica! – notou a outra senhora não menos escandalizada.O mano Teotónio, como tinha piscado o olho direito ao cónego, ria-se; e o cónego, com a maior gravidade, disse:– Minhas senhoras, os antigos faziam as coisas e diziam-nas; hoje em dia a civilidade não permite dizê-las. Ande lá com a filha de Górgoris, sr. desembargador.– Deu ela à luz um menino, que o avô deitou às feras; e, como as feras o não comessem, atirou-o ao Tejo. Foi o menino encontrado no sítio que hoje chamam Santarém; e, como quer que uma corça lhe desse o primeiro leite, chamou-se o menino Ábidis, e daí veio chamar-se ao lugar Esca Abis (manjar de Ábidis), e, corrupto, Scalabis, etc.– Tudo isso me parecem vocábulos corruptos e interpretações corruptíssimas, –objectou o cónego Botelho – e, ainda que as entendesse, fábulas de Brito não me engodam. Esse frade, se não inventou o mel como Górgoris, inventou Laimundus, e Mestre Menegaldo e Pedro Aládio, que existiram tanto neste mundo como o tal Ábidis. Enfim, sr. doutor Teotónio de Valadares, permita-me que eu repugne a que a enjeitada tenha um sobrenome procurado na fábula (4) .Quando os sinos de S. Salvador festejavam com três repiques o baptizado de Maria Moisés, os sinos de S. Aleixo dobravam a finados. A criança saía da pia baptismal, ao mesmo tempo que o esquife da mãe, posto no lajedo da igreja, entre quatro círios, era responsado por alguns clérigos que franziam os narizes ofendidos dos miasmas da carne podre. A opinião dos padres e dos assistentes ao ofício era que a suicida praticara aquele crime porque devia ter chagas de lepra que a corroíam. O vigário consentia que a enterrassem em sagrado, porque a moribunda, segundo o testemunho do moleiro, pedira fervorosamente a confissão.Quando a família de Santa Eulália ia a caminho de casa com a afilhada, o cónego, ouvindo além-Tâmega o tanger a finados, disse:– Uns nascem e outros morrem... Não saberei eu dizer quais são os mais felizes...– Eu cá por mim antes queria nascer que morrer – disse D. Maria Tibúrcia com a energia explosiva dos dizeres sentenciosos e finos.Conversaram a respeito da enjeitada, até toparem um homem de Santo Aleixo a quem perguntaram quem lá morrera. Contou ele que se deitara ao rio a filha do João da Laje.– A Josefa? – perguntou Isabel, a mulher do Bragadas que levava a menina. – Você que me diz, homem? A Josefa, que era a virtude em carne e osso! E então bonita, fidalgas? Faz p’rá semana santa dois anos que ela foi de Madalena na procissão do enterro. Ai, senhoras, que eu não quero que haja mais lindo anjo do céu!– Por que se matou ela? – perguntou o desembargador.– Saberá vossa senhoria que até esta manhã não se dizia nada ao certo. Uns diziam que ela não podia aturar o pai que, com licença de V.as S.as, é um bêbedo.– Eu dou licença – disse o cónego rindo.– Outros – prosseguiu o informador – dizem que lhe subira o flato ao miolo; mas o que por lá corria agora é que ela... Enfim, morreu, acabou-se... Deus lá sabe.– Mas que é que dizem? – instou o doutor.– Enfim, V.ª S.ª manda... O que dizem é que aí pelo verão ia por lá um fidalgo... O sr. Antoninho de Cimo-de-Vila...– Não queremos saber disso... Misérias, misérias... Vamos embora... – atalhou D. Maria Tibúrcia.– E abandonou-a? – perguntou o cónego.– Nada; o que dizem é que o fidalgo velho meteu, à conta dela, o filho no Limoeiro, e ela então, isto é o que dizem, atirou-se ao rio. Eu digo o que ouvi, que eu não sei nada... Sim, eu não sei se isto que dizem se assim é nem se não é. Deus lá sabe.O desembargador foi discorrendo acerca da corrupção dos costumes, que atribuiu a Voltaire, a Rousseau e a Helvetius, posto que nunca os lesse, o que ele confessava com honrada jactância. Deu como prova da corrupção das aldeias um suicídio e uma tentativa de infanticídio no mesmo dia e na área de um quarto de légua. Fez ao propósito reflexões políticas e até proféticas. Previu o advento monstruoso das ideias jacobinas. Disse que, na qualidade de desembargador, lavraria a sentença de morte dos portugueses que militavam na França com o tigre da Córsega. Citou os generais portugueses que deviam ser enforcados; e, num rapto de vidente, exclamou:– Quem viver dez anos há-de ver caída a inquisição, ó sr. cónego!

– Deixá-la cair – disse o padre.– Deixá-la cair? E a fé?– Qual fé? A estátua que está no frontal da Inquisição no Rossio? Deixá-la cair também, contanto que nenhum de nós esteja debaixo.– Falo na fé, no dogma, sr. cónego!– Ah! Isso é outra coisa... Cuidei que me falava da Fé de pedra, sr. desembargador (5).

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Este cónego, cujo retrato eu vi há dias, em Braga, na galeria dos benfeitores do hospital de S. Marcos, não era, como se vê, um estrénuo defensor do Santo Ofício, nem acreditava nas invencionices de Bernardo de Brito, mas dava aos pobres inválidos e enfermos parte de suas rendas e estimulava, como há pouco presenciámos, a caridade dos seus hospedeiros amigos, em benefício da enjeitada. Folguei de ver aquele ridente aspeito em que reluzem uns olhos sagazes, posto que já desvidrados pelo puir dos setenta anos. Estava ao pé de mim o nonagenário provedor da Misericórdia que me disse ter ainda conhecido aquele alegre ancião com a sua cabeça veneranda à gelosia de uma casinha na rua d’Água. Foi ele quem recolheu no convento das Teresinhas de Braga, aos quinze anos, Maria Moisés, quando já eram falecidos o desembargador, e uma das irmãs, a madrinha da enjeitada.Pelo que respeita a D. Maria Tibúrcia, não sei se me acreditam, mas a minha obrigação é atirar para aí com as pérolas da verdade sem me preocupar com o destino delas. D. Maria Tibúrcia, preenchidos os cinquenta e sete anos, casou com um mancebo, que estudava teologia moral com tanta incapacidade, que preferiu D. Tibúrcia com 10.000 cruzados ao Mestre Larraga com a ciência do céu. Este moço fazia sonetos e madrigais. Conhecia toda a simbólica das flores; mas não as comia como Esdras, a única pessoa, que eu saiba, que se sustentou catorze dias de flores. Manducabis solummodo de floribus, disse-lhe o anjo; deu-se bem o florífago, e – acrescenta Isidoro de Barreira – tornou a comer outros sete dias flores, e a sustentar-se (6). A idiossincrasia do marido de Tibúrcia não eram flores; eram boi e leitão, frigideiras de Braga e morcelas de Arouca.O desembargador quis pôr a irmã por demente; mas ela, que perfazia quatro emancipações completas, não lhe refilou os dentes, porque os não tinha, mas safou-se de casa e desmaiou cheia de pudor e denguice nos braços do seu bardo e marido.A outra, D. Maria Filipa, injuriou-a até ao extremo de lhe dizer, cara a cara:– Estás uma carcaça e queres casar! Não tens vergonha! Põe um cáustico nessa cabeça, doida!Depois, fez testamento, e deixou 5000 cruzados a sua afilhada Maria Moisés, representados na quinta de Santa Eulália, na margem direita do Tâmega.O tutor e director da recolhida, o cónego Botelho, desejou residir um verão na quinta de Santa Eulália para repassar tristemente na memória os vinte estios que aí folgara com o seu amigo Teotónio e com as duas irmãs, que ele, em dias de alegre humor, chamava as duas biscas, como quem diz que só tinham préstimo para a sueca. Maria, a herdeira da quinta, acompanhou-o, resolvida a não tornar para o convento. Ideara um viver muito diverso do monástico. Não podia conventualmente exercitar umas estranhas humanidades que lhe agitavam o coração desde que sua madrinha lhe legara recursos para as realizar.Assim que chegou a Santa Eulália revelou ao cónego o seu pensamento: era criar meninos enjeitados!Era bom e caridoso o padre; mas achou tão original e extravagante aquela ideia em uma menina de dezoito anos, que lha desaprovou em termos enérgicos. Sabia o cónego que uma anónima viúva francesa abrira um asilo de expostos perto de Saint- -Landry; não ignorava que uma respeitável matrona, Isabel Lhuiller, auxiliara S. Vicente de Paulo em dar abrigo às crianças abandonadas; mas uma menina solteira a lidar com enjeitados afigurou-se-lhe exercício menos consentâneo com a pureza e candura de anos tanto em flor. Além disso, Maria Moisés, sozinha, sem família, sem auxiliares, e desprovida de recursos bastantes, em que espécie de serviço aos enjeitados empregaria a sua caridade? Indo buscá-los à roda para os criar em sua casa? Assoldadando amas para a criação física e mestres para a criação moral? Mestres para as letras e para os ofícios? Em que veios de imaginário ouro se alimentara esta utopia que poderia ser virtuosa se não fosse indiscreta?Ela ouviu silenciosa o cónego, depois de muito instada a explicar o seu propósito, e disse

singelamente:– O meu desejo é dar aos enjeitados a caridade que eu recebi.– Mas tencionas procurá-los?– Isso não; espero que a divina Providência os leve onde eu estiver.– És uma virtuosa criança, Maria – replicou o padre – mas vieste tarde à procura dum mundo que passou. Exercita a caridade quanto as tuas forças to permitirem; porém, não vás além do que te rende esta quinta. Oito carros de milho, quatro pipas de vinho e dez almudes de azeite é o teu rendimento. Contam-se milagres de multiplicação que talvez se possam repetir no teu pouco; mas o mais prudente é contares pela aritmética que eu te ensinei. Quem tem seis por ano e gasta sete, ao fim de seis anos tem só um. Gasta os seis, Maria, os seis somente em obras justas de misericórdia, e não dês alento aos costumes depravados tomando a teu cargo os filhos que as mães abandonam.– Também eu fui abandonada – disse ela.Ora, passados alguns dias, Maria Moisés tinha em casa dois meninos na primeira infância. O velho Francisco Bragadas, que era agora caseiro da enjeitada que encontrou no rio, contou-lhe que a moleira da Trofa, viúva de um soldado que estava lá para as Ilhas com o irmão do sr. D. Miguel, morrera de cambras deixando dois filhos pequenos, que não tinham migalha de pão.– Vê, sr. cónego? – disse ela – Já tenho dois!– Esses dois iria eu buscar-tos, se o reumatismo me deixasse, menina.– Então vou eu?– Pois vai, Maria, vai... Assim, acredito eu que a divina Providência tos manda. E olha que são mais dignos de compaixão os órfãos que viram morrer sua mãe do que os enjeitados que a não conheceram.

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A filha que Isabel, mulher do Bragadas, amamentava, quando o marido lhe levou a enjeitada, era agora uma guapa moça de quem Maria se afeiçoara fraternalmente. Joaquina, posto que pobre, fora pedida por um lavrador abastado de Cavez; deviam casar no S. Miguel, depois das colheitas; mas na noite de 24 de Agosto, quando em Cavez se festeja o S. Bartolomeu, os festeiros do Minho brigaram com os de Trás-os- -Montes, segundo o bárbaro estilo daquela romagem. O tiroteio de ambas as margens do Tâmega principiou às dez da noite. Ao romper da alva, os turbulentos acometeram-se peito a peito de clavinas engatilhadas, e dos dois valentes que caíram mortalmente feridos na ponte, um era o noivo de Joaquina. A rapariga ainda o viu moribundo; quis despenhar-se da ponte, e foi levada sem alento para casa da mãe do morto, que a tratou com o amor que tinha ao filho. Volvidos alguns dias, tornou para casa de seus pais. Maria Moisés deu-lhe uma cama em sua casa, e fez-se a sua enfermeira moral; todavia as angústias da rapariga recresciam, e o propósito do suicídio revia-lhe nas meias confidências à sua benfeitora.Uma noite, acorçoada pelo amoroso desvelo de Maria, a filha do Bragadas, com mais lágrimas que expressões, revelou que estava perdida, porque o pai de seu filho já não podia remediar a sua desonra.A enjeitada quedou-se a olhar para Joaquina com muita tristeza e espanto. Do seu próprio nascimento inferia ela uma desgraça semelhante à de Joaquina; mas o pudor, a religião, a repugnância congenial da sua vida pura sofreram uma dor íntima com a inesperada confissão. O coração decerto as tinha, mas não lhe inspirou de pronto palavras confortadoras. Separou-se dela fundamente magoada e pensativa; mas não adormeceu. Alta noite ouviu ringir a porta do quarto de Joaquina. Ergueu-se alvoroçada pelo pressentimento de que a infeliz rapariga ia matar-se. Não a encontrou no quarto; correu à porta da sala de espera que ela nesse momento abrira. Reteve a desvairada, e disse-lhe abraçando-a:– Onde vais?Joaquina, com a vista vaga e turva de quem chorou até que a demência lhe secasse as lágrimas, sentindo-se apertada ao seio daquela a quem se confessara mãe desonrada e perdida, balbuciou:– Não diga a ninguém a causa da minha morte, que meu pai está muito acabado; e, se ele o souber, morre de paixão...– Fala baixinho, que não ouça o sr. cónego – disse Maria apontando para o quarto do hóspede. – Vem para o meu quarto, Joaquina, e lembra-te que eu sou aquela enjeitada que teu pai pôs no colo de tua mãe quando tu lá estavas. Vem; e, se és minha amiga, não chores, nem me assustes.

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No começo do inverno, Maria Moisés saiu de Santa Eulália, e pediu aos seus caseiros que deixassem ir com ela a sua filha.– Para onde vai a senhora então? – perguntou o Bragadas.– Vou passar o inverno em Braga, onde tenho as minhas amigas do convento. Aqui lhe deixo os meus órfãos, que já podem ir à escola. Trate-os como costuma tratar os filhos que não têm mãe, sim?– Vá descansada, mas, ó senhora, isto de escola p’ra que monta? Eu também não sei ler, nem nunca me fez minga. Lá se eles tivessem que comer, vá; sabendo ler, não era mau; mas o que eles carecem é de se pegar ao trabalho, guardarem uns cevados enquanto não podem ir para o monte com a rês, e depois é agarrarem-se à enxada e à rabiça do arado.– Não quero, sr. Francisco. Quero que aprendam, e depois veremos. Talvez os mande para o Brasil.– Ah! A senhora está a ler! Qué-los fazer brasileiros? Boa vai ela! Se vai nesse modo de vida, queira perdoar-me, mas a minha ama dá conta do que tem. Olhe que os milhos este ano quase que não espigaram, e as oliveiras estão tolhidas da ferrugem. Vinho, então, não se enche a cuba pequena.– Paciência. Para nós e para os pequenos sempre há-de chegar.Na primavera seguinte, Maria e Joaquina voltaram à quinta. O caseiro, quando viu apear uma mulher desconhecida com uma criança nos braços, perguntou à filha:– Aquilo que é, ó moça?– É uma enjeitada de que tomou conta a senhora. Puseram-na no pátio da nossa casa, e a senhora não a deixou deitar à roda.– Está bem aviada a senhora! – tornou o Bragadas com bastante rabugice e algum zelo pelas comodidades da sua ama. – E tem de pagar e dar de comer à mulher que o cria?– Pois ela!...– Ora adeus, adeus! Isto assim vai tudo pela água abaixo. O melhor é dizer que a quinta dos fidalgos do Arco é agora a roda dos enjeitados. Esta senhora carece de tutor, quando não, daqui a poucos anos, está a tocar ao viático.– Olhe que ela ouve, meu pai.– Deixá-la ouvir...– Ralhe, ralhe, tio Francisco, que eu não me ofendo – disse Maria Moisés, sorrindo. – Que tem que eu morra pobre? Acabarei como comecei. Já nasceu alguém mais pobrezinha que eu? Não se arrependa de ter sido quem deu causa a que eu fosse a dona desta quinta. Se eu ficar sem ela, tio Francisco, é porque a reparti por muitos pobres; mas a melhor porção há-de ser a minha, porque o prazer de dar é muito maior que o de receber.– Sim, sim... – obtemperou ironicamente o Bragadas, com o seu frio egoísmo de velho. – A senhora lá sabe o que lhe convém. O que eu lhe digo é que, se se espalhar a notícia de que a senhora recolhe os enjeitados, verá que lhe chovem em casa como a praga do Egipto. E olhe que está em terra azada para meter em casa mais garotos do que andam na escola do Farripas, em Santo Aleixo. Isto por aqui é um louvar a Deus de mulheres perdidas... Já não há pais que saibam criar as filhas com pão e pau...Joaquina afastou-se com os olhos manejados de lágrimas, e Maria Moisés, retirando-se, cortou a diatribe que o pai austero vociferava contra a dissolução dos costumes.

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O cónego Botelho, no estio de 1835, fez a última visita à quinta de Santa Eulália.– Venho despedir-me – disse ele –, despedir-me de ti, e destas árvores que eu vi plantar. Este olmo que ainda tem um sinal de letras, fui eu que o plantei há vinte e três anos. Chamava-se a árvore do cónego. Lá pela vida fora, Maria, quando te sentares neste banco de cortiça, lembra-te do teu amigo. E, para que possas mais alguns anos possuir a tua quinta e ser a dona da árvore do cónego, saberás que no meu testamento reparto entre ti e a Misericórdia de Braga os meus

poucos haveres. Receberás quatro mil cruzados. É o mesmo que deixá-los a um hospício de infância desvalida. Aplica-os segundo o teu plano caritativo; mas não sacrifiques o passadio da tua velhice. A esmola é boa mas a prodigalidade é má, ainda quando se quer justificar com o título usurpado de caridade. De vez em quando, Maria, vem sentar-te aqui onde agora estamos, quando eu já estiver dormindo o sono eterno, e imagina que me ouves estes conselhos que te deixo.

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Faleceu o cónego João Correia Botelho em 1836. Maria Moisés, neste ano, transcendia de júbilo, porque a profecia de Francisco Bragadas se realizara; três expostos lhe pusera a Divina Providência no pátio, durante o ano. Como conforto à saudade do seu benfeitor, dera-lhe Deus a alegria dos três enjeitados, pobremente enfaixados em pedaços de lençóis velhos e baetas rapadas. Lavava-os e vestia-os, baptizava-os e alimentava-os com leite de ovelha enquanto não apareciam amas. As amas desciam das terras de Barroso, vermelhaças, grossas, de grandes peitos e quadris. O velho Bragadas dizia que a patifaria era tal que as amas eram as próprias mães dos enjeitados que regateavam o ordenado da criação antes de darem os seios exuberantes aos filhos. E, declamando contra a estragação dos costumes, exceptuava sempre as suas filhas, dando-as como exemplo. Joaquina ouvia com a alma confrangida as exclamações do pai; mas a dor e a vergonha eram bem remuneradas pelo prazer de abraçar um gordo rapaz que lhe chamava tia.Por toda a corda de Basto e Ribeira de Pena, por todo o Barroso e Cerva, d’aquém e d’além-Tâmega, propalou-se que uma senhora de grande riqueza e caridade aceitava enjeitados em sua casa.Onde chegou a nova foi também o sobrenome da senhora: chamavam-lhe a santa Moisés, sem respeito a processos de canonização. Da confluência de expostos à quinta de Santa Eulália pode inferir-se que a virtude e a castidade de uma mulher era um afrodisíaco para a fecundidade das outras.Principiou a inquietar o ânimo de Maria o receio de não poder com tamanho encargo. Assaltavam-na a cada passo as reflexões do cónego Botelho. Quando se assentava à sombra do olmo, ouvia-o com saudade, e pedia a Deus que a ensinasse a responder aos argumentos do padre, e lhe desse meios para ver criados os dez enjeitados que tinha em casa, e os que mandara criar fora.Os filhos da moleira já tinham ido para o Brasil; outros andavam na escola; as meninas tinham mestras, que eram Joaquina em coisas de costura e Maria no ler e escrita.A herança do cónego e os rendimentos da quinta, na verdade mal administrados, supriram ainda assim as despesas no transcurso de dez anos. Maria, com a sua fama de santa, era havida em conta de tola pelos velhacos. A falsa piedade explorava-a. Festas de capela, votos de missas pedidas, resplendores para uns santos, capas para outros, esmolas para entrevados de longe, esmolas para aleijados que iam a caldas e ao mar, esmolas para rapazinhos que iam para o Brasil, para cabaneiros a quem o incêndio devorou a choça – com verdade ou impostura – ninguém ia da sua porta com as mãos vazias.– Eu também sou pobre – dizia ela.– Tem a graça de Deus que lhe dá tudo – respondiam os pedintes, com a certeza de que ela já havia pedido alguns centos de mil réis sobre a quinta.As irmandades, que lhe emprestavam o dinheiro a juro, pediam-lhe donativos para reformar paramentos de sacristia, e madeiras para os vigamentos das igrejas.Como só de per si já não podia cuidar na educação dos enjeitados, Maria Moisés pedia às pessoas abastadas que a auxiliassem, não com dinheiro, mas com a caridade de se encarregarem de alguns. Assim foi que o abade de Pedraça tomou para si aquele pequenino que se chamou Álvaro, e depois legou ao filho natural do visconde de Agilde o farto ouro que parecia trazer consigo o condão de virtude da enjeitada de Santo Aleixo (7).

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Em 1850, trinta e oito anos depois que saíra de Portugal, chegou à sua casa de Cimo-de-Vila em Ribeira de Pena, António de Queirós e Meneses, reformado com a patente de general no império

brasileiro. Tinha sessenta anos. Não casara, nem granjeara família de ordem nenhuma. Viera só, mais velho que a sua idade, cheio de condecorações e mais nada. António de Queirós era rico em Portugal. Os vínculos não pôde o pai desviá-los da linha varonil, nem os mordomos por ele encarregados da fiscalização dos grandes bens lhos depreciaram. As irmãs, casadas com pequenas legítimas, assim que chegavam navios brasileiros com a notícia das febres devastadoras, sentiam um vago contentamento na hipótese de ser Deus servido levar-lhes o mano general. Como viviam casadas com uns fidalgotes de meia escudela, fragueiros, brutos e forçados, à míngua de recursos, a matarem coelhos para matarem o tempo, aquelas senhoras mandavam deitar as cartas a uma criada velha para saberem se lhes viria alguma herança. Entretanto, o irmão, de vez em quando, ordenava ao mordomo que lhes desse porção das suas rendas supérfluas.O general chegou inesperadamente, recolheu-se à casa onde nascera; e tão funda amargura o avassalou que se arrependeu de voltar à terra natal, onde lhe entraram redivivas e pungentes ao âmago da alma as recordações de Josefa de Santo Aleixo, – a sombra plangente que lhe seguira todos os passos da vida.Perguntou pelos seus amigos da mocidade: todos eram mortos, exceptuado Fernando Gonçalves Penha, da casa da Temporã, aquele que, a seu pedido, enviara a astuta caseira a Santo Aleixo com o recado da fuga. Este mesmo, que seguira a carreira das letras, era juiz em uma das Relações do reino. Escreveu-lhe Queirós, noticiando-lhe a sua chegada. Vem, para que eu não morra sem ver um amigo da juventude – dizia ele.Gonçalves Penha foi pressurosamente. Os dois velhos abraçaram-se a chorar. Reconheceram-se pela voz. Era tudo o mais uma transformação em que os vermes do sepulcro já pouco teriam que destruir. António de Queirós, o esbelto cadete de cavalaria que o outro conhecera de cintura feminil, e olhos negros docemente ameigados por alma apaixonada, era agora um ancião de grandes barbas brancas, olhos apagados, e faces angulosas, a tiritar de frio, no amplo casacão de baeta.– Há quantos anos me não escreveste? – dizia Gonçalves Penha.– Há trinta e sete. Recebi duas cartas tuas, que ainda tenho, datadas de Coimbra.– Só duas? Escrevi-te mais; porém, depois que teu pai morreu me disseram teus cunhados que entre os papéis dele apareciam cartas que eu te escrevera falando-te daquela rapariga de Santo Aleixo. A omnipotência de teu pai chegou a subornar o fiel do correio de Vila Pouca de Aguiar. Parece-me – prosseguiu o desembargador reparando na comoção de António de Queirós – que ainda te sangra o coração...– Ainda. Nunca, nunca se fechou a ferida. Está essa infeliz diante dos meus olhos como a vi, tal qual ela era, há trinta e oito anos. Que me dizias tu nessas cartas que eu não li?– Posso lá lembrar-me agora!... Isso vai tão longe... Só me recordo... deixa-me ver se reúno umas ideias vagas... Sim... eu mandei lá a minha caseira...– Recordo-me, e Josefa respondeu alegremente que fugiria para o Enxertado na noite do dia seguinte; mas, nesse mesmo dia à noite, 27 de Agosto de 1813, suicidou-se.– Ah! vou-me lembrando... Esse suicídio é que eu punha em dúvida nas minhas cartas que não recebeste.– Porquê? Então mataram-na?!– Já não vive há muitos anos o cirurgião que a tratou; eu saí daqui há trinta e cinco e nunca mais o vi; se ele vivesse, poderia ajudar-me a recordar. Espera lá... Como a velhice nos varre tudo da memória! Ah! uma circunstância... o aparecimento de uma criança no rio...– O quê?– Espera, António, não me quebres o fio das recordações.Gonçalves Penha tapou a cara com as mãos, curvou-se bamboando a cabeça, ergueu-a com ímpeto, e disse:– Parece que vejo reviver o passado... Olha, Queirós, na mesma noite em que essa rapariga apareceu moribunda no rio, um homem que andava à pesca encontrou uma criança viva num berço levado à tona da água. Falando eu a este respeito com o cirurgião, me disse ele que a Josefa talvez não se suicidasse; mas que morresse quando ia a fugir com a criança para tua casa.– Não pode ser – atalhou António de Queirós.– Porque não pode ser?– Era cedo para ter já nascido o filho.– Isso mesmo disse eu ao cirurgião, contando-lhe o que sabia da tua carta escrita do Limoeiro,

porque tu, se bem me lembro, dizias-me que...– Faltava um mês.– Justamente; mas o cirurgião convenceu-me de que bastava a alegria de fugir, quando se julgava abandonada, para lhe produzir um forte abalo. E espera... outra circunstância... a minha caseira foi disfarçada a uma quinta onde estava a criança que apareceu, e soube com certeza que foi achada nesta mesma noite, e que...– Onde era essa quinta? – interrompeu o general.– Ó filho! Isso é que te não posso dizer já; mas deixa estar... a caseira deixou filhos que ainda são meus caseiros. É natural que eles a ouvissem muitas vezes falar do caso milagroso da criança que apareceu deitada num berço de junco. Eu te direi o que souber. Ó Queirós! – exclamou o juiz com entusiasmo. – E se tu descobrias agora o teu filho!– Não me passa pelo espírito esse devaneio, meu amigo. Eu quisera antes que a morte dessa infeliz não fosse um acto de desesperação; mas, pensando bem, Gonçalves, porque havia de suicidar-se ela?...– Sim, tendo-me dito a caseira que a rapariga chorava de alegria? António... recordo-me eu agora perfeitamente de que, nas minhas cartas, te dizia que o teu filho podia existir... E foi por isso mesmo que teu pai as subtraiu... Não te parece?– É possível; mas... que novas dores a esperança me está gerando na alma! A esperança! Que posso eu esperar das transformações de trinta e sete anos, meu amigo?– Tens razão... Ainda mesmo que o pequeno encontrado fosse o teu filho, há que anos terá morrido o homem que o encontrou no Tâmega? Que destino levaria o rapaz? Ainda assim, olha que eu sei de casos de mais dificultosa averiguação que se tiraram a limpo. Os processos por causa de sucessões estão cheios de factos que parecem novelas, e nas genealogias há muitos dessa espécie.

*

Ao outro dia, o general Queirós de Meneses saiu, pela primeira vez, do seu carrancudo solar, e caminhou a pé e sozinho na direcção do Tâmega. Os homens antigos, quando o viam ao longe, descobriam-se e paravam. Ele parava também diante deles, mandava-os cobrir, e perguntava quem eram. Alguns haviam sido seus companheiros na caça, outros brincaram com ele na infância, e lembravam-se das travessuras do fidalguinho. O general recordava-se daqueles nomes, dava esmola generosa aos necessitados, e oferecia a sua amizade aos outros.Chegando à ourela do Tâmega, parou defronte da Ínsua. Era ali que Josefa esperava o juvenil aspirante embrenhada no choupal. Um conhecido amieiro de tronco esgalhado em ramos recurvos já não existia. Nesse lugar estava uma azenha, com uma barca de passagem amarrada a uma argola de pedra chumbada na parede.À porta do moinho apareceu a moleira a perguntar-lhe se queria passar para além.– Quero.Já dentro da barca, perguntou-lhe se aquela azenha ali estava há muito.– Há nove anos, meu senhor. Ali mais arriba havia um moinho que a cheia me levou. Fiquei com dois filhos pequenos, sem modo de vida, nem uma choupana; mas a mãe dos pobres acudiu-me. V.ª S.ª há-de conhecer a senhora da quinta de Santa Eulália.– Não conheço.– Então, ainda que eu seja confiada, não é de cá.– Sou; mas tenho estado longe.– Lá isso sim; que dez léguas em arredor toda a gente conhece a senhora de Santa Eulália. Não há outra assim no mundo. Só de enjeitadinhos tem onze de portas a dentro.– Onze!– É o que lhe eu digo, senhor.– Bom é que haja uma santa onde há tantas mães que abandonam os filhos.– Não que ele também há muita desavergonhada por esse mundo de Cristo. Mulheres más por aqui é uma casa sim e outra não à ida para cima; mas à vinda para baixo são todas.O general sorriu-se e disse:– Bem faz você em viver perto da ilha: quando a corrupção for geral, fuja para lá.– Pudera! Mas a mim já me não pega o andaço. Tomara eu pão para os meus filhos. Trabalho

muito, e o corpo não me pede folia. Tenho esta barca a meter água, e Deus sabe quando terei outra. A mãe dos pobres já me prometeu a madeira; mas eu até já tenho vergonha de lá ir.– Pois não vá. Amanhã vá você à casa de Cimo-de-Vila, pergunte pelo Queirós, e receberá dinheiro para a sua nova barca.– Bendito seja Deus! Então V.ª Ex.ª é o sr. general que chegou há dias?– Adeus, apareça, mulherzinha.Saltou à margem.– V.ª Ex.ª quer que eu espere? – perguntou a barqueira.– Não, que vou passar às poldras de Santo Aleixo.E caminhou pela orla do Tâmega até saltar o combro que descia para a Cangosta do Estêvão. Como ia fatigado, sentou-se, enxugando o suor, na fraga a que o moleiro encostara o cadáver de Josefa, e lembrou-se que ali mesmo haviam estado sentados ambos em uma tarde de Julho. Em baixo murmurava a corrente agitando as franças dos salgueiros, coaxavam as rãs, e às vezes um escalo de ventre prateado saltava à flor d’água. Ele parecia ver e ouvir; mas via e ouvia no passado o rosto e a voz de Josefa, e embebia no lenço as lágrimas.Subiu o íngreme barrocal da Cangosta. Entrou na aldeia de Santo Aleixo, e sentou-se no adro. O cansaço ansiava-o. Da casa da residência saiu então um clérigo ancião, apoiado na bengala, e sentou-se à sombra do plátano do adro, com o breviário debaixo do braço. Reparando no desconhecido, cortejou-o e ofereceu-lhe a sua residência.– É o reitor desta freguesia? – perguntou o general.– Sim, senhor. V.ª S.ª não é d’aquém-Tâmega?– Não sou. Está aqui reitor há muitos anos?– Há vinte e sete.– Aqui é aldeia de ricos lavradores, ao que parece.– Há proprietários muito ricos, os Pimentas, o tenente-coronel, o antigo capitão- -mor, etc.– Se lhe não custa, sr. reitor, pois que é tão atencioso com os forasteiros, iremos dar um passeio por esta aldeia que me parece muito pitoresca.– Da melhor vontade.O reitor dizia-lhe os nomes dos possuidores dos melhores edifícios. Chegaram a um recanto onde se viam ruínas de uma casa de lavrador muito espaçosa. O general parecia querer reconhecer o sítio e a casa.– Aqui – disse o vigário – morou um lavrador que morreu há três anos com mais de oitenta. Chamava-se o João da Laje. Bebia um quartilho de aguardente todos os dias, e chegou a idade tão provecta! Fiem-se lá nos médicos! Desta casa tenho eu uma recordação muito funesta. Há que anos isto vai!... Perto de quarenta... Em 1813, quando eu era minorista, vim aqui assistir com a minha sobrepeliz aos responsos de uma pobre rapariga que se afogou no Tâmega, uns disseram que por vontade própria, e outros disseram que por desastre. Era uma flor a moça. Ainda me recordo que, morrendo ela à noite, foi preciso enterrá-la ao outro dia, porque não se podia sofrer o cheiro do cadáver. Como a morte em poucas horas transformara uma criatura linda como os anjos num charco de podridões!– Que motivo se deu para o suicídio?– Não tenho a certeza; tenho a suspeita; porém, perdoai aos mortos, dizem os livros sagrados. O nosso dever é orar por eles, e não os chamar a contas.O reitor, que assim falava, era aquele padre Bento da Póvoa que já em anos de indiscretas verduras queria que o escrivão respeitasse o cadáver ainda quente da suicida.O general absteve-se de interrogações; todavia, o padre acrescentou:– Esta casa vai desaparecer daqui. João da Laje morreu pobre. Devia tudo às irmandades e à fazenda. Gastou trinta mil cruzados, desde que a mulher lhe morreu de paixão lá para Barroso. Um brasileiro comprou esta quinta, que esbeiça lá em baixo com o rio, e está arrasando a casa para fazer um palacete.Ainda acolá se vê de pé um sobrado onde eu vim para acompanhar a morta à igreja. Ali é que ela dormia. Parece que V.ª S.ª está magoado com a história da pobre moça... – disse o vigário atentando nas lágrimas represas do ancião.– Todos os velhos são fáceis em chorar... Continuemos o nosso passeio, sr. vigário. Daqui desce-se para as poldras?– Sim, senhor, por esta viela; depois, lá ao fundo, salta-se ao campo da direita. Eu acompanho-o até lá, porque vou ver uma doente que mora à beira do rio.

Quando chegaram às poldras, perguntou o general:– O sr. vigário nunca ouviu dizer duma criança que apareceu por aqui num berço ao de cima da corrente?– Foi muito perto daqui, talvez cem passos, onde o rio faz uma enseada. Essa criança recordo-me eu muito bem que apareceu na mesma noite em que a Josefa da Laje se afogou. Deu muito que pensar e que suspeitar tal coincidência; mas eu reprovei que se fizessem juízos temerários. Esta terra, ainda mal que teve sempre pecadoras das que cuidam esconder-se aos olhos de Deus, quando podem aparecer, sem os filhos que enjeitaram, aos olhos do mundo.– Ouvi dizer que a criança fora salva.– Sim, senhor, foi encontrada sã e enxuta num berço de canastra por um homem que andava pescando: era o caseiro dos Valadares de Santa Eulália. Deitaram-se muitas inculcas, mas nunca se soube quem era a mãe.– O homem que encontrou a criança já é falecido?– Nada, não é; chama-se o Bragadas, e nasceu nesta freguesia. Ainda há dias vi no livro dos baptizados que ele fez já oitenta anos. Mas há aqui um caso que parece conto de romance. O Bragadas é hoje caseiro da mesma enjeitada que ele achou!– Como?! – exclamou António de Queirós.– Tem razão de se espantar, meu senhor; mas a verdade é esta. O enjeitado era uma menina de que tomaram conta os fidalgos, que a baptizaram com o nome de Maria Moisés, por ter sido achada no rio como o santo legislador dos hebreus. Depois, uma das senhoras, que foi madrinha, deixou-lhe a quinta de Santa Eulália. Saiu um anjo a criatura de Deus; chamam-lhe a mãe dos pobres; e recolhe, ensina e dá modo de vida a quantos órfãos e enjeitados a mão da desgraça lhe leva ao seu regaço...– Parece – atalhou o general – que são muitas as probabilidades a confirmar a hipótese de que essa enjeitada seja filha de Josefa... Não concorda comigo?– Eu já disse a V.ª S.ª que todos os juízos temerários são venialmente pecaminosos quando redundam em desdouro de vivos, e muito mais de mortos que não podem justificar-se. Não sei... E o que eu não sei para mim é apenas possível. Seja de quem for filha, Maria Moisés é uma mulher que faz lembrar as antigas santas.– Conhece-a, sr. reitor?Nunca a vi, mas ouço dizer que tem no rosto a formosura da alma, e que parece ter vinte anos, andando já perto dos quarenta; sim, não há-de ir longe... de 1813 a 1850...– Trinta e sete...– É isso, trinta e sete. Pena é que os poucos recursos lhe não permitam ir tão longe como o coração lhe pede. Alargou mais do que podia a área da caridade. Acudia a todas as desgraças com mais liberalidade que prudência. A santa cegueira não a deixava prever os limites das suas medianas posses. Os rendimentos da quinta são escassos e talvez mal pagos pelo caseiro a quem ela não pede contas, ou aceita as que ele quer dar--lhe, porque foi ele quem a salvou. A pouco podiam montar. Verdade é que um cónego de Braga, santo homem que eu conheci, lhe deixou alguns mil cruzados com que ela custeou por bastantes anos as despesas de alimentação e educação de enjeitados e órfãos. Afinal o dinheiro acabou-se, mas a caridade na alma da santa mulher é que não esmoreceu. Não pede nada; mas, se sabe que um fidalgo ou abade rico ou viúvo sem filhos está no caso de poder aceitar-lhe um órfão ou enjeitado, escreve-lhe a pedir pelo amor de Deus que o aceite e sustente com as migalhas da sua mesa. E assim tem conseguido arranjar bastantes; e dalguns se conta que foram para o Brasil e lá estão bem encaminhados.– Sabe então o sr. reitor que Maria Moisés está pobre agora?– Pobre de todo não direi, porque a suprema riqueza é a graça de Deus; mas necessitada de recursos para continuar a sua santa dedicação aos infelizes, com certeza está; porque eu sei que ela deve mais de três mil cruzados a várias confrarias; e na porta da minha igreja está um aviso anunciando que quem quiser comprar a quinta de Santa Eulália fale com a dona da mesma. É uma bonita propriedade; mas ninguém lhe dá o que ela vale, porque não há dinheiro, e quem o tem fecha-se com ele, por medo das revoluções que são umas atrás das outras. Os cabralistas querem dinheiro, os patuleias querem dinheiro; agora dizem que os saldanhistas vão sair com a procissão porque querem dinheiro, e quem não for uma das três cousas há-de pagar para todos os três partidos. Eu não sei com quem tenho a honra de falar, mas sou franco; o que eu digo é que Deus traga o sr. D. Miguel I a ver se Portugal se endireita de vez.O general ouvira apenas a toada confusa das fortes razões por que o inofensivo reitor de Santo

Aleixo queria o sr. D. Miguel. Era febril o desassossego de António de Queirós; como que o afligia o sobressalto da esperança; sentia na sua ânsia a alegria desconexa de um sonho feliz, mas com o inverosímil e desatado das felicidades sonhadas. Abraçou o padre, e convidou-o a passar um dia o Tâmega para ir a sua casa.– Mas eu não sei com quem tenho a honra de falar... – disse o vigário.– Eu sou António de Queirós e Meneses, da casa de Cimo-de-Vila.– Santo Deus! – exclamou o reitor. – Com quem eu tenho falado!... V.ª Ex.ª não estava na América?– Estive: há oito dias que cheguei.– Eu conheci-o em rapaz, sr. Queirós! Olhe que somos ambos da mesma criação, e ainda fomos condiscípulos alguns meses de 1809 em latim na aula do padre mestre Simão no Vale de Aguiar, quando V.ª Ex.ª estudava para crúzio, antes de sentar praça. Veja se se lembra do Bento Fernandes, da Póvoa.– Bento Fernandes... – repetiu o general.– Que V.ª Ex.ª e outros patuscos chamavam Beatus Benedictus, ora pro nobis.E o bom velho casquinhava a rir; mas, de súbito, reveste o semblante duma gravidade misteriosa, e diz como em segredo:– Agora é que eu compreendo as suas lágrimas de há pouco, em frente do quarto onde viveu e foi amortalhada Josefa. V.ª Ex.ª procura sua filha?Suspeita que Maria Moisés seja a sua filha? É, tenha a certeza que é.– A certeza? A certeza? Veja o que me diz, sr. vigário! – exclamou o general apertando-lhe as duas mãos nas suas com arrebatada alegria.– Folgo de o ver assim excitado por um sentimento que me demonstra que tem sido infeliz e nunca esqueceu a desgraçada Josefa. Deus me perdoará, se eu nesta hora transgredir o sigilo da confissão; mas, neste caso, seria absurda a observância de um preceito que envolveria um segredo prejudicial à sua felicidade à de sua filha. O senhor Queirós denunciou ao vigário da Santa Marinha a gravidez de Josefa, quando lhe pediu que o casasse clandestinamente...– É verdade.– O vigário denunciou a seu pai o bom intento de V.ª Ex.ª. Daí resultou a sua ida para a capital, e depois a prisão. O vigário, pensando que me dava o exemplo de um bom feito, contou-me o que fizera. Fiquei eu sabendo um segredo que nunca revelei, posto que, falecida Josefa, se divulgou por boca do cirurgião e de uma caseira da casa da Temporã. Para mim era ainda duvidoso se Josefa já era mãe quando acaso se afogou ou determinadamente se matou; mas, em 1817, fui eu mandado paroquiar na freguesia de Santa Maria de Covas de Barroso, onde vivia com seus irmãos a mãe de Josefa. Esta mulher tinha intermitências de loucura; mas, nos períodos de lucidez, passava mais amargurada porque chorava sempre pela filha. Em 1818 fui chamado para ouvi-la de confissão, nas vinte e quatro horas que precederam a sua morte. Estava a moribunda então no perfeito uso das suas faculdades; e, coberta de lágrimas, me disse que sua filha, na tarde do dia em que morrera, dera à luz uma criança. Perguntei-lhe se era menino ou menina, lembrando-me do aparecimento de Maria Moisés. Respondeu-me que não sabia, mas que tinha a certeza que ela, quando fugiu de casa, levava uma criança, porque, indo ao quarto da filha depois que a vira morta, achara no sobrado uns embrulhos que estavam dentro de um berço de vime, e, procurando o berço, não o achara. Perguntei-lhe se não ouvira dizer que nessa mesma noite fora encontrada uma menina no rio dentro de um berço de vime; respondeu que, apenas dera pela falta do berço, caíra como morta, e quando voltara a si, fugira para casa dos irmãos, onde não sabia como viveu muitos meses, e passara temporadas de que não lhe restava a menor lembrança. Para mim – concluiu o vigário – está provado que Maria Moisés é filha de Josefa.O general estreitou ao peito o padre Bento, beijou-lhe as cãs, e exclamou com a alegria de uma criança:– Havemos de ter uma velhice muito feliz... Eu hei-de viver muitos anos, e o padre Bento, o meu condiscípulo, vai ser o meu capelão, e o director da caridade de minha filha!

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Ao outro dia, António de Queirós e Meneses, acompanhado do desembargador Fernando Gonçalves Penha e dum tabelião do julgado, passaram o Tâmega, em frente da quinta de Santa

Eulália. Tiraram pela sineta do portão com força.Francisco Bragadas, que estava na eira, de barriga ao sol, recozendo os seus oitenta anos, quando ouviu tilintar a sineta, disse a um neto:– Vai ver quem é. Teremos mais algum enjeitado? Estou a ver quando começa o desaforo de os trazerem mesmo de dia!Aberta a porta, entraram os três sujeitos. Francisco, para os ver quando subiam por entre a álea de faias e olmos, pôs a mão na testa contra o sol, e disse entre si: «Querem ver que temos penhora na quinta?» E, levantando-se encostado a um forte tanchão de sobro, perguntou:– Querem alguma coisa?– É este cavalheiro que quer comprar esta quinta – disse o tabelião.– Vai dizer isso à senhora, rapaz – mandou Bragadas, com grande tristeza, e acrescentou: – A quinta não se dá menos de dez mil cruzados.– Dez mil cruzados! – disse o tabelião espantado. – Nas hipotecas está avaliada em seis.– Não quero saber disso; as hipotecas é isto; são dez mil cruzados, livres para a vendedora – resmoneou o ancião.– Vossemecê é o sr. Francisco Bragadas? – perguntou o general.– Para o servir. Não conheço a sua pessoa.– É o sr. general Queirós, da casa de Cimo-de-Vila.– Ah! Bem me lembro dele quando era moço, ali como aquele meu neto. Quantas vezes nós conversámos no rio! Eu andava com as redes, e ele pescava à cana na Ínsua. Está muito acabado; e mais V. S.ª não é velho. Velho sou eu que já tenho dois carros e mais um (8). Neste comenos, chegou o rapaz que levara o recado, dizendo que a senhora mandava subir para a sala.Queirós, subindo as escadas, amparava-se no braço de Gonçalves Penha, e dizia- -lhe ao ouvido:– Nunca me senti neste abatimento nos combates do Recife e do Lima. As batalhas do coração são as piores. Esta impressão para mim vem tarde.– Então, coragem! – alentou o desembargador.Pouco depois que entraram à sala, apareceu Maria Moisés. Ergueram-se todos; mas o general apenas fez um gesto. Não pudera, e sentara-se, balbuciando palavras que não se perceberam.Maria era alta, refeita, loura e bela como Josefa de Santo Aleixo; mas de uma beleza mais senhoril, menos rica do colorido da saúde e das insolações tépidas, e do ar puro das serras. Tinham passado por ela alguns anos de convento, e uma vida longa de domesticidade, que desmaia a epiderme compensando-a nas graças mórbidas da beleza aristocrática.Mas, como quer que fosse, era o retrato de sua mãe, favorecido pela palheta de artista caprichoso que desadorasse as fortes e vivas cores das formosuras do campo; era Josefa de Santo Aleixo, depois de respirar em dez invernos o ar do teatro de S. Carlos, e em dez estios o ar latrinário dos Passeios de Lisboa.E aí está a razão por que o general, colhido de sobressalto quando esperava a filha sem presunção antecipada da sua figura, entreviu a mãe. O desembargador, para encher o vácuo do silêncio que se fez, disse que o seu amigo, o sr. general Queirós de Meneses, desejava comprar a quinta de Santa Eulália.– São dez mil cruzados – repetiu Francisco Bragadas que já estava encostado à ombreira da porta.– Visto que aqui está a dona, esta senhora dispensa procurador – observou o tabelião.– O meu caseiro diz a verdade – confirmou Maria Moisés com tristeza e irresolução. – Eu não dou a quinta por menos de dez mil cruzados.O tabelião ia replicar com a coarctada das hipotecas, quando o general, fazendo- -lhe um gesto de silêncio, perguntou a D. Maria:– Aceitando eu a quinta pela quantia que se pede, poderei hoje fechar este contrato? Já trouxe comigo o sr. tabelião para lavrar a escritura.– Preciso ver os títulos – disse o funcionário.– Vou buscá-los... Então – perguntou ela ao general com hesitação e visível mágoa – V. Ex.ª quer ocupar a quinta imediatamente?– Não é forçoso isso. Quero comprá-la simplesmente... Depois...– É porque eu tenho uma numerosa família de crianças que por aqui se criaram e estão educando.– Desejo vê-las – disse o general com os olhos cheios de lágrimas.– Pois não, sr. general! – acudiu Maria alegremente. – Ó tio Bragadas, diga à sua Joaquina que

mande cá os pequenos.– A canalha toda? – perguntou o velho.– Oh! Que ingranzéu eles aí vão fazer! – tornou o Bragadas, indo cumprir as ordens de má vontade.– Parece-me que está com saudades da sua quinta, senhora D. Maria – disse António de Queirós.– Pode-se dizer que nasci aqui, ou pelo menos aqui vi a luz e o amor de uma madrinha que me criou e me deixou esta propriedade por esmola, porque eu nada tinha... Fui enjeitada, e tenho querido dar aos infelizes que não têm mãe nem pai o bem que recebi dos meus benfeitores. Infelizmente os recursos não me chegaram. Empenhei a quinta, e agora sou obrigada a vendê-la porque os juros são grandes e mais tarde ou mais cedo as confrarias hão-de tomar conta disto tudo. Vendendo eu a quinta por 10.000 cruzados, pago cinco e tanto que devo, e poderei com o restante amparar alguns anos mais estes pobrezinhos.Neste instante, entrou um rancho de treze meninos e meninas. Os rapazes vestiam uniforme de cotim escuro, e as meninas de riscadinho azul. O mais velho tinha onze anos, e era aleijado, encostava-se às muletas, e entrara muito contente, saltando na única perna, com uma alegria de idiota. Cumprimentou os circunstantes com desempeno de grande sociedade, e retirou-se às recuadas para a frente do grupo.– Este aleijadinho é o que ensina os outros a ler; tem muita habilidade, e ajuda-me muito – disse Maria, e acrescentou: – Eu vou agora buscar os títulos.– Não é urgente, minha senhora. Os títulos depois – disse o general. – O sr. tabelião lavra a escritura, enquanto eu vou dar uma vista de olhos por estas janelas – e encostando-se ao desembargador, segredou-lhe: – Preciso ar.– Sr. general – disse Maria Moisés.– Minha senhora.– Se V. Ex.ª há-de ter caseiro nesta quinta, peço-lhe que conserve aquele velhinho, que tem muitos filhos e netos.– Sim, minha senhora – respondeu ele com a voz tremente das lágrimas.– Devo a vida a este homem... Foi ele quem...– Está bom, está bom – atalhou Bragadas, limpando as lágrimas com a manga da jaqueta.– Foi ele quem a encontrou no rio... – acrescentou o general.– É verdade.– Num berço de vime – ajuntou António de Queirós.– Que eu ainda conservo – disse ela sorrindo – porque é a herança de meus pais; pelo menos, é possível que minha mãe tivesse aquela canastrinha na mão...– Parece incrível que o naviozinho não fosse a pique! – disse o desembargador.– É muito bem tecido – explicou ela. – Eu já fiz experiências no Tâmega com os meus enjeitados, e não foram ao fundo pondo-os eu à flor da água dentro do meu berço. Se VV. Ex.as querem vê-lo?– Estimava – disse o general.– Vai buscá-lo, Joaquina.– Chegue-se cá, sor Bragadas, – disse o general – você é meu caseiro e há-de dar- -se bem comigo, esteja certo disso.– Olhe, senhor, o que eu queria era ficar perto da minha ama – disse o velho.– Já não sou sua ama, tio Francisco; mas sou sempre a sua amiguinha – e abraçou o ancião, que sacudia a cabeça porque o importunavam os soluços.Chegara o berço. O general parecia examiná-lo atentamente; Maria Moisés sorria--se ao reparo do fidalgo, e dizia:– Está já muito velho o meu berço; quando olho para ele é que eu conheço que já tenho muitos anos.– Esteve este berço nas mãos de sua mãe... – disse António de Queirós.– Talvez – observou ela – mas quem sabe? Pode ser que nem ela me visse... Custa a crer que minha mãe, com suas próprias mãos, me entregasse à corrente de um rio...

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Estava lavrada a escritura.

O desembargador Gonçalves Penha contou dez mil cruzados em soberanos sobre a mesa onde o tabelião escrevera.– Aqui está a quantia estipulada – disse Queirós. – A renda desta quinta continua o sr. Francisco Bragadas a pagá-la à mãe carinhosa dos enjeitados.– À minha ama?! – bradou o ancião.– À sua ama.– Mil anjos o acompanhem na vida e na morte, sr. general! – exclamou Maria.– Mil anjos são muitos – disse ele. – Um anjo só me basta na vida, e esse quero eu que me assista na morte. – E, tomando as mãos de Maria, prosseguiu: – Se eu morrer debaixo da luz dos teus olhos, Deus me chamará a si, não pelos meus merecimentos, mas pelas virtudes de minha filha. Pedirás então a Deus por teu pai, Maria?– Eu! Jesus! Eu sua filha! – exclamou ela, pondo as mãos convulsas, quando ele a beijava na fronte.Maria caiu de joelhos, pendente dos braços do pai; e os velhos, e as crianças ajoelharam também, trementes e extáticos, sob a faísca eléctrica daquele sublime lance.

Tomás Ribeiro, com o teu coração, se tens nele uma lágrima, imagina este quadro e descreve-o, se podes, que eu não posso, nem quero, porque o último feitio das novelas é não pintar, com o colorido gótico dos românticos, os quadros comoventes que rutilam na alma a faísca do entusiasmo. Agora somente se pintam as gangrenas com as cores roxas das chagas, e com as cores verdes das podridões modernas. Nos literatos o que predomina é o verde, e nas literaturas é o podre.

Camilo Castelo Branco, Novelas do Minho

O Conto da Infeliz Desgraçada A D. Maria Calheiros Veiga

Era uma vez um rei...

A minh‘alma por ti morre,A tua por mim não sei...

Enviuvou e ficou-lhe uma filha, da idade de quinze anos. A passar já de algum tempo, impeça o rei a dizer prá filha:– Filha, casa-te! Casa-te, que eu já estou cos pés prà cova, e então quero-te deixar amparada quando morrer!A princesa não pendia a casar e vivia com algum desgosto, e todos os dias ia à missa a fazer as suas orações.Mas um dia a princesa estava muito apaixonada, a lembrar-se das fezes que lhe dava o pai por amor de a casar, quando ouviu uma voz que dizia assim:– Isabel! Diz a teu pai que te casas, mas que há-de ser com um homem que tenha dentes de marfim, e que se os não tiver que não casas!A filha assim o disse ao pai, e o pai mandou logo deitar bando pelas outras nações, para ver se havia algum homem com dentes de marfim – e que se o houvesse que lhe dava a filha.Vieram muitos homens com dentes de marfim; mas quando se iam a examinar, conhecia-se logo que eram postiços; mas afinal sempre apareceu um que os tinha de raiz, e foi esse que casou com a princesa.A passar tempos de casado, diz-lhe o marido:– Isabel, temos que ir à minha terra, a ver a minha família.Ela disse-lhe que sim, e tratou logo de se aprontar para ir com o marido.Vindo Isabel a descer as escadas, ouviu uma voz que dizia assim:– Isabel!Diz ela:

– Valha-me Deus! Quem me chama parece mesmo que está na estrebaria!Foi ela e assomou-se à porta da estrebaria, e estava lá dentro um cavalo cardano de clinas pretas, e diz-lhe o cavalo:– Isabel! Diz a teu pai que já lhe fizeste o gosto de te casares, também ele te há-de fazer o gosto de te deixar levar o cavalo cardano das clinas pretas – porque se me não levas estás perdida!Ela foi, e disse ao rei:– Meu pai, fiz-lhe o gosto de me casar; agora também me há-de fazer o gosto de me deixar levaro cavalo cardano das clinas pretas.O pai disse-lhe logo:– Pois sim, filha, leva-o.Ela tratou logo de mandar arrear o cavalo, e montou-se nele e o marido noutro, e lá foram.Já com duzentos dias de jornada, e mais sete, e eles que não chegavam à terra! Mas vai um dia, caminhavam os dois por umas serras, que eram umas montanhas tão fragosas que se não via senão céu e mato, olha a princesa para trás e não avista o marido! Diz ela!– Valha-me Deus! Que é isto?! Desapareceu-me o meu marido da vista dos olhos!Diz-lhe o cavalo:– Isabel! Volta para trás!A princesa voltou logo com o seu cavalo, e o cavalo largou dali a quanto podia! Onde parou ao pé dum monte, e diz-lhe o cavalo:– Isabel! Apeia-te! Sobe àquele monte, e entra na casa que lá encontrares – mas não olhes para lado nenhum. O que lá vires apanha!Ela foi, coitadinha, sempre muito assustada, e quando entrou na casa inda teve mais medo; masreparando para trás da porta viu dois canudos, e um papel que estava enrolado, e apanhou tudo e retirou-se logo.Chegou ao pé do cavalo, e diz-lhe o cavalo:– Anda que sempre olhaste... Ela montou, e toca a fugir!Quando lhe a ela pareceu, olhou para trás.– Ai que desgraça, que aí vem o meu homem!Diz-lhe o cavalo:– Atira com esse papel!Ela foi e atirou com o papel. E logo ali se armou um nevoeiro, mas um nevoeiro que era tão cerrado, que o marido se atrasou no caminho, e não a alcançou.Mas quando depois passou a névoa, e já se via, o marido que larga outra vez atrás da princesa, a ver se a podia agarrar. Mas ela que o vê lá atrás, e grita logo:– Ai que desgraça, que aí vem o meu homem!Diz-lhe o cavalo:– Atira com um desses canudos!O canudo estava cheio de agulhas. Tancharam-se todas logo no chão, e armou-se um rochedo tão grande que o marido não podia passar. Arrodeou muito o pobre do homem, que não teve outro remédio; e quando se viu para além do rochedo, que largou outra vez atrás da mulher, ela ao vê-lo e a gritar logo:– Ai que desgraça, que aí vem o meu homem!Diz-lhe o cavalo:– Atira com o outro canudo!O canudo estava cheio de água. Armou-se num rio muito grande, que o marido não pôde passar – e o remédio foi voltar para trás!Caminhou a princesa com o seu cavalo, sem saber pra onde, até que lhe diz o cavalo:– Isabel! Vai além àquela casa, e que te vendam um fato de homem, ou que to troquem pelo teu se to não venderem.Ela foi; e pediu aos da casa o favor e esmola de lhe venderem um fato de homem, e que se lho não vendiam que lho trocassem.Tiveram dó dela os de casa, e deram-lho. E ela veio ao pé do cavalo e disse:– Cá está o fato!O cavalo:– Veste-te agora em trajo de homem, e despreza o que trazes vestido.Ela vestiu-se em trajo de homem, e montou a cavalo; e foram ter a uma terra que não conheciam, porque já não era o reino dela, mas onde havia também um rei.

E passando por aquela corte, a fazer uma grande gala no seu cavalo porque não havia outro que fosse mais lindo, todo o mundo lhe mirava o cavalo.E foram dizer ao rei que passava ali um cavalo muito bonito – e logo o rei se prantou à espera de o ver passar.O cavalo disse à princesa:– Isabel! Olha que o rei está à espera de me ver passar. Ele há-de-te chamar, e dizer-te se me queres vender – mas tu não me vendas, senão olha que estás perdida!Quando passou pela rua, que o rei o viu, mandou-o chamar e disse-lhe assim:– Ó rapaz! De quem é esse cavalo?– O cavalo é meu!– Hás-de-mo vender.– Não vendo, não senhor.E retirou-se logo – e mais cavaco não deu ao rei.Depois disse-lhe o cavalo:– Isabel! Olha que o rei inda te manda chamar, e há-de ateimar contigo para que me vendas; e logo que tu não queres, há-de-te concertar para o seu jardim, por fazer gosto em me lá ter em palácio. E tu concerta-te, mas olha não te esqueças de mim!Como assim foi: o rei mandou-o chamar e disse-lhe assim:– Ó rapaz! Então tu não me vendes o cavalo?– Não vendo, não senhor!– Então concerta-te comigo cá prò jardim.– Pois sim me concerto!O rapaz concertou-se, e pergunta-lhe o rei:– Tu como te chamas?– Eu chamo-me José.O rei mandou-o para o jardim. Mas, como solteiro, Sua Majestade ia todos os dias ver as flores, e começou a olhar muito para o rapaz e a dizer consigo:– Não parecem olhos de homem... Parecem olhos de mulher...Ela indo tratar do seu cavalo, diz-lhe o cavalo:– Isabel! Olha que o rei anda desconfiado que tu és mulher, e vê lá agora se lhe dás cavaco...O rei já ia ao jardim a todas as horas, e começava a conversar com ele, mas ele não lhe dava cavaco.O rei sempre desconfiado, foi-se ter com uma feiticeira já muito velha, e disse-lhe assim:– Ó sua velha! Você há-de-me aqui dizer se o rapaz do meu jardim é homem, ou se é mulher.Respondeu a velha:– Sua Majestade convide-o para ir jantar ao palácio, e prante-lhe uma cadeira alta, e ao pé prante-lhe outra baixa. Se se sentar na baixa, é mulher; e se escolher a mais alta então é homem.Ela indo tratar do seu cavalo, diz-lhe o cavalo:– Isabel! Olha que o rei manda-te convidar para ires jantar ao palácio. À mesa pranta-te duas cadeiras, para te experimentar se és homem ou mulher. Mas tu escolhe a mais alta. – E assimaconteceu.O José depois veio-se embora; mas o rei, sempre duvidoso, foi-se outra vez ter com a velha:– Você há-de-me dizer se o rapaz do meu jardim é homem ou mulher! Senão, morre.– O que quer Sua Majestade que lhe eu diga?! Como quer saber, convidei-o para ir dormir ao quarto de Sua Majestade, «porque tem medo de dormir só».Ela indo tratar do seu cavalo, diz-lhe o cavalo:– Isabel! Olha que o rei há-de-te convidar para ires dormir ao quarto dele, «que tem medo dedormir só»; e tu vais, que não tens mais remédio. O que ele quer saber é se és homem ou mulher, mas tu não te esqueças de mim!Como assim foi, disse-lhe o rei:– José! Tens que ir esta noite dormir ao meu quarto, porque tenho medo de dormir só.José disse:– Pois irei.Como foi, dormir ao quarto de Sua Majestade.Depois de ter o quarto bem fechado, diz-lhe o rei:– José, eu desconfio que tu não és homem.Mas agora aqui é que mo hás-de dizer! Es homem ou és mulher? Responde!

– Sim! Sou mulher!O rei mandou-a logo mudar de fato, mas ali passaram a noite.Sendo já muito de dia, e o quarto ainda fechado, foi a mãe do rei e bateu à porta. Ele veio abrir, e diz prà mãe:– Mãe! Não lhe dizia eu que os olhos do José que não eram de homem, mas de mulher?!A mãe ficou muito contente por ver que era uma cara linda, como princesa que era – e o rei tratou logo de casar com ela.A passar algum tempo já de casados, veio uma embaixada ter com o rei para ir vencer uma batalha. O rei disse-lhe:– Isabel, tenho que te deixar. Vou para a batalha e levo o cavalo cardano. Fica tu em palácio com minha mãe, que nada te há-de faltar.O rei caminhou para a sua batalha; e a dias de lá estar, teve a mulher dois meninos que eram duas caras muito bonitas; e foi a mãe e escreveu-lhe uma carta mandando-lhe dizer: – «Filho, cá teve tua mulher dois meninos que são as caras mais lindas que têm aparecido!»E a carta foi remetida por um soldado, e o soldado caminhou um dia todo, e foi-lhe anoitecer perto de uma casa onde pediu pousada por uma noite. Disseram-lhe que sim, que entrasse.O soldado entrou e sentou-se, e não viu mais que foi um homem naquela casa. Ali conversaram um bocado ambos-e-dois; e perguntando ao soldado que caminho levava, disse-lhe ele que ia levar uma carta ao rei que andava em batalha.Depois preparou a cama para o soldado, e o soldado deitou-se e deixou-se dormir.Ele assim que apanha o soldado a dormir, deu-lhe volta à mochila, e tirou-lhe a carta e esteve lendo. Depois começou a escrever outra em vez daquela, dizendo: – «Filho, cá teve tua mulher dois bichos, que não há quem possa parar em palácio, e então vê o que determinas dela.»Fechou a carta e meteu-a na mochila e o soldado não deu notícia.Assim que amanheceu, o soldado levantou-se e foi-se embora. Chegou ao sítio onde era a batalha,e entregou ao rei a carta que levava.O rei abriu a carta e esteve lendo, e assim que leu começou a chorar. Ele queria muito à sua mulher; e assim escreveu logo a mandar dizer: – «Mãe, deixe estar minha mulher em palácio até eu ir.»Remeteu a carta pelo dito soldado, que foi dar à mesma pousada; onde lá encontrou o companheiro que lhe fizera a cama, e ali dormiu também essa noite.O soldado pegou no sono mal se deitou; e ele mal viu o soldado pegado no sono, dá-lhe logo volta à mochila, e tirou-lhe a carta, e depois de a ler queimou-a, e escreveu outra a mandar dizer: – «Mãe, logo que esta receba ponha minha mulher fora do palácio, que a não quero encontrar quando daqui for.»E meteu a carta na mochila do soldado, e o soldado não deu notícia.No outro dia caminhou o soldado para o palácio; e assim que chegou, entregou a carta à mãe do rei.Ela abriu a carta, e viu o que vinha dizendo.E disse:– Jesus! Isto que é?! O meu filho endoideceu!Assim começou a andar muito triste, e um dia diz-lhe a princesa:– Ó minha mãe! O que tem que anda tão triste?!– Nada! Não tenho nada! O teu homem que endoideceu! Manda-te prantar fora do palácio – «que te não quer encontrar quando voltar».Ela, coitadinha, disse:– Ai que sorte tão desgraçada! que só vim ao mundo prà desgraça! Logo que o meu homem me manda prantar fora do palácio, então vou-me já embora!Muito chorava a mãe; mais chorava ela por se ver assim; – e pegou nos seus dois meninos, um em cada braço, e caminhou pelos campos sem saber para onde, e disse:– Seja o que Deus quiser, que eu vou caminhando sem destino, que não sei onde irei parar!O rei continuava em batalha, mas muito apaixonado por ter recebido uma tão ruim nova. Não bastava só isso, senão deixar fugir o cavalo cardano! Eram duas paixões que o matavam! Mas deixemos o rei, e vamos à infeliz desgraçada, que se viu sozinha numa montanha, com os seus dois meninos.Vai a olhar, e viu vir o cavalo cardano, que vinha a quanto podia; e depois olha e vê também o seu

marido primeiro, que vinha para a matar! O cavalo chegou ao pé e diz-lhe:– Isabel! Ai o teu homem primeiro que te quer matar! Mas não te mata, que eu brigo mais ele, e ele mata-me a mim e eu mato-o a ele, e tu em me vendo morto mete-me a mão dentro da boca, e tira o que lá achares e segura-o no chão!O cavalo cardano brigou mais o dito indivíduo, e por fim caiu cada um para seu lado, ambos mortos. E ela assim que viu morto o seu lindo cavalo, meteu-lhe a mão dentro da boca, e apanhou-lhe a língua e a firmou no chão. Formou-se-lhe uma torre, e ela dentro mais os seus meninos; e tinha tudo quanto lhe fazia falta.O rei que chega da batalha, e pergunta à mãe novas da mulher. A mãe responde:– Ingrato! que a mandaste deitar fora do palácio, e agora perguntas por ela!Ele disse:– Não há tal! Para onde foi a minha mulher?!Quero ir em busca da minha mulher!E correu logo a correr, e perguntando se alguém lhe dava notícia de uma infeliz desgraçada. Soube por notícia o pai da princesa que a filha andava desgraçada, e tratou também de a procurar, a ver onde a iria topar.Como andavam de terra em terra, encontraram-se os dois numa pousada, o pai e o marido, à procura ambos da mesma pessoa; mas não se conhecendo um ao outro, e dizendo um que andava em pergunta de uma infeliz, dizia o outro que procurava também uma desgraçada!Ali se fizeram os dois muito conhecidos, e trataram de marchar caminhando juntos um dia todo, até que lhes anoiteceu. Não encontrando quem procuravam, onde se haviam de eles agasalhar? Vendo brilhar uma luz, dirigiram-se logo direitos a ela, e viram que era de uma torre; mas pondo-se ambos de roda dela, à pergunta da porta, foi coisa que não encontraram! Ele ouvindo falar em baixo, assomou-se à janela; e observando e conhecendo quem era, deitou uma escada de corda para subirem, porque a torre não tinha porta.Eles subiram; mas não se conhecendo um ao outro e ela conhecendo-os a ambos, obsequiou-os muito, e prantou a mesa para comerem todos – e avisou em segredo os seus meninos:– Vocês em acabando de comer hão-de rezar, e depois tomar a bênção àquele homem mais moçoprimeiro, e depois também àquele mais velho.Os meninos isso fizeram. Mas o rei moço admirou-se muito e diz assim:– Oh! Uns meninos tão bem-educados, e não têm preceito de pedir primeiro a bênção ao mais velho?! Vieram-na pedir primeiro ao homem mais moço?!Diz-lhe a mãe:– Os meus meninos têm muito preceito, que o preceito é tomar a bênção primeiro ao pai e depoisà mãe e depois ao avô.Foi quando eles se conheceram, e se abraçaram todos com muito choro! E como então já se conheceram, determinaram logo ir-se dali embora – e a torre desapareceu.

Trindade Coelho, Os meus amores

História da Gata Borralheira Durante alguns parágrafos o narrador alonga-se na DESCRIÇÃO do tempo, do espaço, do ambiente em que decorre a acção, utilizando alguns recursos expressivos.Destaca alguns exemplos.

DESCRIÇÃO DE: A noite A casa O ambiente da festa

RECURSOS EXPRESSIVOS UTILIZADOS:Adjectivo

Verbo Comparação Personificação

Publicada por Helena em 6:43 Etiquetas: Fichas; Sophia de Mello Breyner: Histórias da Terra e do Mar História da Gata Borralheira Parte I

1. No texto de Sophia de Mello Breyner Andresen, que personagens se podem associar à Gata Borralheira e à fada do conto tradicional?

2. Indica o nome dos três objectos que, na tua opinião, são fundamentais para a compreensão do conto em estudo.

3. Localiza, agora, a acção no:-tempo;-espaço.

4. Já no interior, Lúcia foi praticamente ignorada pelas amigas da dona da casa.4.1. Indica a passagem do texto que melhor ilustra a afirmação acima apresentada.

5. Lúcia começa a aperceber-se de que algo a distingue das outras raparigas. O quê?

6. A dado momento a narração é interrompida.6.1. Identifica as expressões que marcam o início e o fim da analepse.6.2. Que ficamos nós a saber sobre a personagem?6.3. Explica então a função da analepse.

7. Lúcia mira-se no grande espelho da entrada.7.1. O que lhe pareceu a sua imagem?7.2. Como classificou a rapariga loira o espelho?

8. Lúcia acaba por despertar a atenção de um rapaz.8.1. Que pressentimento tem o rapaz?8.2. O que aconteceu à heroína enquanto dançava?8.3. A protagonista nega a sua identidade. Como?

9. A personagem toma uma decisão que altera a sua vida. Qual?

Parte II

1. Resume o que aconteceu à personagem nos vinte anos seguintes.

2. Que significado tem o facto de o segundo baile ocorrer no mesmo dia do primeiro e na mesma casa?

3. Que efeito provocou Lúcia quando entrou na sala?

4. Lúcia volta a mirar-se no espelho atrás da porta como há vinte anos.4.1. O que vê ela no espelho?4.2. Refere-te à simbologia do espelho.4.3. Qual é a prova definitiva da verdadeira identidade de Lúcia?

5. Que explicação encontram as pessoas para:5.1. A morte de Lúcia? 5.2. O desaparecimento do sapato de Lúcia?

5.3. O aparecimento do sapato roto?

Partes I e II

1. Procura indícios do desfecho trágico do conto:-na descrição inicial;-nos reflexos de Lúcia nos espelhos;-nas falas do rapaz e da rapariga loira (parte I);-na coincidência de datas e de espaços.

2. Atribui um título a cada uma das partes.Recursos expressivos:1. Completa o esquema abaixo, retirando do primeiro parágrafo do texto as palavras ou expressões que apontam para a personificação da noite.Comparação; Verbo; Adjectivo; Verbo + Advérbio - expressão

2. A passagem da descrição à narração é também perceptível na mudança dos tempos verbais.2.1. Indica o tempo verbal predominante na:-descrição;-narração.2.2. Ilustra a tua resposta a 4.1. com exemplos do texto.

Publicada por Helena em 6:39 Etiquetas: Fichas; Sophia de Mello Breyner: Histórias da Terra e do Mar História da Gata Borralheira

Verificação de leitura do conto "História da Gata Borralheira" de Sophia de Mello B. Andresen, in Histórias da Terra e do Mar, Texto Editora, 1992

Lê atentamente o conto "História da Gata Borralheira" de Sophia de Mello B. Andresen. Lê, agora, as afirmações aqui inscritas e coloca à frente das mesmas a resposta " Verdadeiro" ou "Falso" consoante o que leste no conto.

1. O Baile ocorreu numa noite de Agosto. ____

2. Do jardim via-se a casa, grande, cor-de-rosa e antiga. ____

3. Lúcia era uma jovem de dezasseis anos. ____

4. Lúcia foi ao baile com os pais e irmãos. ____

5. A filha da dona da casa não apresentou Lúcia às amigas. ____

6. Lúcia ficou só, ninguém a convidou para dançar. ____

7. O vestido de Lúcia era de seda azul. ____

8. Lúcia achou o seu vestido muito bonito. ____

9. Lúcia sempre sonhara ir a um baile. ____

10. Lúcia encontrou no sótão uns sapatos rotos. ____

11. Um rapaz alto e moreno sorriu para Lúcia. ____

12. Lúcia dançava no meio da sala quando caiu. ____

13. Com vergonha, Lúcia decidiu ir viver só. ____

14. Depois Lúcia casou com um homem muito rico. ____

15. E passaram 15 anos. ____

16. Numa manhã de Maio Lúcia recebe um convite. ____

17. Lúcia mandou fazer uns sapatos bordados a ouro. ____

18. A meio da noite ela voltou à sala onde se escondera há anos atrás. ____

19. Ao clarear do dia, encontraram Lúcia desmaiada no chão. ____

20. Lúcia tinha um sapato esfarrapado no pé direito. ____

Publicada por Helena em 6:34 Etiquetas: Fichas; Sophia de Mello Breyner: Histórias da Terra e do Mar História da Gata Borralheira

3 0 / N O V / 2 0 0 8Abyssus Abyssum Leitura Orientada

1. Após a leitura feita, apreendeste, nas suas linhas gerais, o enredo de «Abyssus Abyssum», Procura, então, resumir a sua história

2. O tema (ou os temas, pois uma narrativa pode ter mais de um tema} é a ideia principal que dá vida ao texto e na base da qual actuam as personagens. Pode ser o amor, a liberdade, a amizade, a ambição, etc.Qual te parece ser o tema predominante deste conto?

3. O título «Abyssus Abyssum» é uma simplificação da locução latina abayssus obyssum Invocat cujo significado fomos procurar no dicionário:abyssus abvssum invocat (lat.), o abismo atrai o abismo: asneira pura asneira; uma desgraça nunca vem só; fig. um erro, uma falta leva muitas vezes a cometer outro erro, outra falta.

3.1 Considerando o seu significado, parece-te bem escolhido este título? Justifica a tua resposta.3.2. Sugere um novo título para o conto.

4. Como verificaste, o narrador deste conto está ausente, isto é, limita-se a narrar os acontecimentos sem neles participar.No entanto, faz sentir a sua presença, por exemplo, quando se dirige directamente aos leitores. Retira exemplos da primeira parte do conto.

5. Como sabes, numa narrativa há momentos determinantes no desenvolvimento da acção. Distingue neste conto:a situação inicial;o desenvolvimentoas peripéciaso ponto culminante;o desenlace.

6.A acção decorre num período de tempo limitado, que esquematizámos deste modo:6.1. Que momentos do dia representam os desenhos?6.2. Em qual destes tempos (momentos do dia) localizas a situação inicial? E o desenlace?Justifica as tuas respostas com expressões do texto.6.3. Que concluis, então, quanto ao tempo de duração da acção?6.4. Classifica esta narrativa:abertafechada6.5. Considerando a resposta anterior, parece-te adequada a escolha de um círculo para esquematizar esta narrativa?

7. Aos diferentes momentos desta narrativa correspondem também espaços distintos.7.1. Identifica os locais e as cores correspondentes a cada parte ou momento.

8. Identifica as várias personagens da narrativa.8.1. Tendo em conta o papel que desempenham, indica:a(s) personagem(ns) central(ais);a(s) personagem(ns) secundária(s).8.2. Descobre características das personagens a par dos seus comportamentos, das suas falas ou da fala i narrador.8.3. Se o narrador não nos dissesse que o António e Manuel eram crianças, a que elementos do texto poderíamos recorrer para confirmar o tipo infantil destas personagens?8.4. Ao longo da narrativa, os dois irmãos experimentam variados sentimentos. Identifica-os.8.5. Qual a função da estrela Vésper no desenrolar da acção?8.6. Que significa a frase «... a estrela feiticeira acabava de cerrar também a pálpebra luminosa!...»? (último parágrafo)

9. O narrador utilizou diferentes modos de expressão.9.1. Indica passos do texto correspondentes a:narração;descrição;diálogo.9.2. Faz o levantamento de pormenores descritivos em que são expressas sensações visuais e auditivas.9.3. Identifica recursos expressivos utilizados pelo narrador na descrição do espaço/tempo do segundo momento da acção.9.3.1. O verbo doer é repetido várias vezes. Que efeito se pretenderá obter com esta repetição?9.4. Aponta marcas de oralidade nos diálogos, no que respeita a:vocabulário;estrutura da frase;interjeições;pontuação.

10. Esta narrativa apresenta-nos um desenlace trágico. O que te propomos é que a modifiques, imaginando um desfecho diferente para a aventura dos dois irmãos. Para tal, suspende a narrativa no parágrafo «Até que por fim, prostrados da fadiga e das lágrimas, de novo se deixaram adormecer, era já alta noite.» e conclui-a com mais duas sequências narrativas, que poderão serO salvamento.A chegada a casa.

Publicada por Helena em 11:52 Etiquetas: Fichas;Trindade Coelho: Os meus amores ABYSSUS ABYSSUM*

*Abismo dos Abismos

Nesse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio. Assim eles tivessem uma coisa boa! … Mas que tentação para ambos, o rio! Ainda lhes soavam aos ouvidos, com todo o seu entono vibrante de ameaça, aquelas terríveis palavras com que a mãe os intimidara, um dia que lhe apareceram em casa tarde e às más horas.— Ouvistes? — ralhara-lhes a mãe. — Olhai se ouvistes! Se voltais ao rio, mato-vos com pancada! Andai lá…Ih! Como ela dissera aquilo, Mãe Santíssima! Colérica, ameaçadora, com a mão em gume sobre as suas cabecitas louras… Lembravam-se de haver tremido, cheios de susto, muito chegados um ao outro, humildes sob aquela ameaça terminante. E então, nesse dia, eles não tinham ido ao rio. Aos pássaros, sim… — lá estavam as calças rotas do Manuel a dizê-lo — … aos pássaros é que eles tinham ido. Ao rio era bom!, a mãe que o soubesse…

Ah, mas então não os deixassem dormir naquele quarto! Logo de manhã, mal abriam as janelas, a primeira coisa que viam era o rio, uma corrente muito lisa e esverdeada, serpeando entre os renques baixos dos salgueiros. Lá estava a ponte velha, de onde os rapazes se atiravam despidos, de cabeça para baixo, e então o barquinho branco do fidalgo — lindo barquinho! —

sempre à espera que o fidalgo o desamarrasse para passar à grande quinta que tinha na margem de lá.De modo que o primeiro desejo que logo pela manhã assaltava os dois rapazes era o de irem por ali abaixo, muito madrugadores, tão madrugadores como os melros, meterem-se dentro do barco, desprendê-lo da praia e deixá-lo ir então para onde ele quisesse, contanto que fosse sempre para diante… Quando fechavam as janelas para se deitar, a sua vista seguia, mesmo através da escuridão da noite, a linha que ia dar ao barco. Era o seu «adeus até amanhã!» àquele pequeno objecto que valia tesouros, que para os dois valia mais que tudo, tudo…Ah, tivessem eles assim um barquinho, que não queriam mais nada…— Mais nada?— Isso não… mais alguma coisa. E a mãe que não ralhasse, está visto.

Mas nessa manhã, bela manhã, na verdade! a mãe viera acordá-los mais cedo. Ia já pela aldeia um claro rumor de vida — gente que passava para os campos, os solavancos dos carros no empedrado péssimo da rua, os patos da vizinhança que saíam em rancho para a digressão pelos prados, grasnando ruidosamente, levantando-se em voos curtos, espantados da agressão acintosa dos rapazes. Havia mais de uma hora que ali perto se ouvia o retintim agudo do martelo do ferrador atarracando cravos na bigorna. Já o reitor passara para a missa, em batina, muito hirto e vagaroso, as chaves da igreja na mão esquerda e na direita a cabacita do vinho. E àquela hora onde iria já a missa! A última beata, encapuchada e lenta, recolhera, trazendo consigo a esteira em que ajoelhara na igreja. Havia mais de meia hora que o João carpinteiro, no meio da rua, dava com valentia num carro cujo eixo ardera na véspera, e que era urgente compor, pelos modos. Até o Ernestinho do estanco abrira já a loja e subira à varanda a regar os manjericos. Começos da labuta diária, enfim; os senhores sabem.Pois como lhes disse, a mãe viera nessa manhã acordar mais cedo os dois pequenos.— Fora, mandriões, vamos! É preciso afazerem-se a madrugar, que tal está! Ai, ai, dia claro há que tempos, vem aí o sol, e os morgadinhos na cama! — E, enquanto falava, ia-lhes abrindo as janelas. — Persignar e vestir, vamos! Calças… colete… os jaquetões… tomem!E pôs-lhes tudo sobre a cama.— Mãe, a bênção! — balbuciaram os dois, tontos de sono ainda.— Deus os abençoe. Que Deus não abençoa mandriões, ouviram? Ora, eu já volto! Queira Deus que não vos encontre cá fora, tendes que ver!Os dois sentaram-se na cama para se vestir, contrafeitos, fechando os olhos àquela hostilidade viva da luz que invadira o quarto num jacto repentino e brutal. Pela abertura larga da camisa assomava-lhes o peito, que eles afagavam numa última carícia, suavemente, docemente. Seria tão bom tornar a adormecer, assim mesmo sentados! O mais novito ainda tentou deitar-se outra vez, pesaroso de ter de abandonar já o aconchego morno da cama, onde se estava tão bem, onde os sonhos eram tão lindos!…

Mas a mãe não tardava ali. Era preciso vestirem-se, que remédio! Foi então que o Manuel, mais esperto do sono, olhando para o campo, o achou encantador, todo resplandecente de verduras.— Bonita manhã, não vês? As árvores parecem mais lindas, repara.Porque será?O outro encolheu os ombros, não sabia; só se fosse por não haver nuvens…Pela janela aberta, avistava-se o trecho de paisagem que a luz viva da manhã fazia muito nítida. As vinhas tinham um verde encantador, muito suave, trepando encosta acima, fazendo contraste com a rama escura das laranjeiras que cerravam alas nos pomares húmidos das baixas. Revestidos de folhagem, ascendiam ares fora os olmos gigantescos. Pedaços de horta estavam em toda a pompa do seu viço e da sua frescura. Viam-se as rodas das noras, latadas compridas a cuja sombra regalam as merendas.Um renque de choupos esguios marcava a borda do rio, que nessa manhã deslizava muito sereno, esverdeado de águas, espelhante sob aquele céu imaculado.— Ah!, ah!… — riu-se o Manuel, contemplando-o. — O rio! Que te parece?! Olha que é lindo, o rio! Ora é, ó António?!— É, lá isso… Mas tamém de que vale? — tornou-lhe com desalento o irmão. — A gente não pode lá ir… Olha se a mãe o soubesse, hã? — E, mirando por sua vez a paisagem, perguntou: — Já reparaste no barco, ó Manuel?— Tão bonito!Os dois riram.— Parece pintado de novo… E nem se mexe, repara!— Pudera!… — explicou o Manuel — … amarrado com uma corda… — E depois, radiante, gesticulando para o irmão: — Mas eu era capaz de o desamarrar…— Ai eras! — disse duvidoso o António, para o incitar.

Calaram-se. Era bom podê-lo desamarrar, lá isso era! Ambos dentro dele, sozinhos, isso é que seria bom! E eles então que estavam mortos por ir às azenhas, e pelo rio era um instante enquanto lá chegavam. O barco! Era tão bom andar de barco! E aquele então era lindo, como não tinham ainda visto outro. Nunca lhes haviam esquecido — olhem lá não esquecessem!— aquelas tardes em que o fidalgo os levara dentro do barquinho, ensinando-lhes como se remava.O Manuel foi o primeiro que se vestiu, e foi logo direito à janela. Passava naquele instante um bando de andorinhas, chilreando.— Está um dia lindo, avia-te.— Olha «avia-te»! para quê? — perguntou o António, torcendo e retorcendo o pé para enfiar o sapato, apoiado com as mãos ambas na borda da cama.O Manuel sorriu-se, triste. Era verdade… Aviarem-se para quê? A mãe não os deixava ir ao rio… E senão, que fossem! — «Mato-vos com pancada se desceis a ladeira.» — Já se vê que depois

disto… E os dois suspiravam, desgostosos. «Que pena serem pequenos!».Nisto o António chegou-se também para a janela. Que lindo, o campo! Mas os olhos dos dois não se desfitavam do barco, fascinados. Demónio de tentação! E para mais tinham-no pintado de novo: sobre o branco, a todo o comprimento, uma faixa azul-clara destacava nitidamente, parece que apenas meio palmo acima do nível da água!— Tate, ó Manuel! E se nós fugíssemos?— Ora! Se fugíssemos!… E depois? A gente tínhamos de voltar…Ora aí está!, isso é que era o pior! A mãe, depois, era capaz de fazer o que tinha prometido. E arregalando muito os olhos, imitando a cólera da mãe: «Se voltais ao rio…». Ai, ai, a triste sorte!Recaíram no silêncio. Ficaram-se por instantes a ver o Sol que rompia ao nascente, numa explosão violenta de luz, acendendo coloridos na largura muito ampla da paisagem.— Mas palavra que o barco parece pintado de novo… — relembrou com alegria o Manuel.— Mas é que está, palavra que está! Agora é que havia de ser bom andar dentro dele!…Os dois riram-se muito àquela ideia encantadora de andarem no barquinho, assim pintado de novo. Diacho!, e porque não? Por isso, cobrando ânimo, o António disse resoluto:— Olha agora o medo! Seguro que nos mata! — E puxando-o pela jaqueta: — Vamos lá, ó Manuel!?O Manuel fez que não com a cabeça e espreitou se vinha a mãe. Como não vinha, disse baixo ao irmão:— À tardinha, hem? Dois pulos e estamos lá. Não é tão fácil dar pela nossa falta, ali à tardi-nha. A gente finge que vai para o adro. Levam-se os piões…— Há-de ser mesmo assim!, à tardinha! — concordou o António. — Eh!, eh!, eu cá desatraco.— E eu remo — disse logo o Manuel com gesto de quem remava.— Ao leme vou eu: o leme é aquilo que regula — explicou.— Pois sim, mas à vinda pertence-me a mim, remas tu. Se queres assim…— Pois está bem, quero! Assim mesmo é que há-de ser!E recapitulando, para melhor ficarem combinados:— Ao pra baixo remo eu, ora remo?— Remas.— E tu regulas, ora regulas?— Regulo.— Ao pra cima é às avessas, ora é?— É.Muito bem, «basta palavra»! E ambos, ao mesmo tempo, um ao outro se impuseram segre-do…— Psiu!…— Psiu!…

***

A tarde descaía límpida. Na vasta cúpula do céu, penachos de nuvens alvejavam, imóveis.Acesas naquela explosão rubra do ocaso, as arestas dos montes franjavam-se de púrpura e ouro, na decoração mágica dos poentes. Começava de cair sobre os campos a larga paz tranquila dos crepúsculos, e uma quietação dulcíssima e vagamente melancólica entrava de adormecer a natureza para grande sono reparador de toda a noite.… E a tarde ia descendo, cada vez mais límpida.Naquela luz indecisa de crepúsculo que mansamente se ia acentuando, os montes do sul tomavam um torvo aspecto de sombras gigantescas, imobilizados num fundo em que se iam apagando ao de leve todos os cambiantes de luz. Os pormenores da paisagem perdiam-se naquela indecisão vaga de noite que vinha descendo, e uma espécie de silêncio confrangedor dominava a natureza toda, recolhida num como espasmo amedrontador e sinistro que dentro de nós evoca a essa hora não sei que vagos receios ou medos inconscientes que fazem com que na imaginação as coisas criem vulto e no mundo exterior obrigam a retina a exagerar as formas às coisas…Muda de gorjeios, atravessando o espaço em voos muito rápidos, a passarada demandava os ninhos onde se acoitasse do frio que acordava. Caíam já pesadas sobre os vales as sombras das montanhas e um fumozito subtilmente azulado nadava à flor das coisas, velando-as para o tranquilo sono em que iam adormecer.

E a tal hora e no meio de tal silêncio, o barquinho branco deslizava mansamente sobre a água tranquila do rio, onde as primeiras estrelas começavam de lampejar. Dentro dele, os dois irmãozitos silenciosos iam-se deixando enlevar naquele ruído suave dos remos abrindo fendas nas águas… Não!, era bem certo que eles não tinham jamais sentido uma tão pode-rosa e viva alegria — alegria doida que lhes transvazava do peito, fundindo-se em energia nos músculos e cristalizando-se nos lábios em sorrisos.Dentro daquele adorado barco, assim no meio do rio, eram senhores absolutos da sua vontade, poderiam ir para onde lhes parecesse, livres de admoestações alheias, sozinhos, independentes. E esta feliz convicção de liberdade alcançada fazia-os agora orgulhosos, além de os encher de alegria. Por certo eles nunca tinham sido tão felizes, e quem sabe se o seriam jamais?!… No entanto, a noite acentuava-se. Espertava nas margens o marulho da água nas raízes fundas dos salgueiros. No céu alto e sereno cintilavam as estrelas em cardumes.— Remas, António? — perguntava o do leme. — Olha se a vês… — E apontava para Vésper, a estrela que mais brilhava.Tinham os dois concebido o estranho desejo de alcançar a estrela cujo brilho diamantino os fascinava. Tão linda!…— Anda-me tu com o leme! — tornou-lhe com intimativa o Manuel.— Ai a estrelinha! Deixa que ela faz-se fina, mas havemos de passar-lhe adiante, só por isso…— Olha o milagre! Ela está queda! — fez o outro, convencido da facilidade da empresa.— Está queda, está queda, mas sempre na frente de nós! Vai lá entendê-la. Olha como brilha, ó António!— Mas rema, que eu cá vou; falta pouco. Ao direito daquela fraga é que ela está.Não era difícil passar-lhe adiante, qual era? Em menos de meia hora era certo alcançá-la.E, engastada no azul-escuro do céu, a estrela parecia brilhar mais, quanto mais a olhavam.— De que são feitas as estrelas? — perguntou o mais novito.— De prata. Pois está visto!Então o outro, lançando um amplo olhar à vastidão infinita do céu, exclamou:— Eh!, tanta prata!— O Sol, esse é de ouro! — disse ainda o Manuel.— Bem de ver! — volveu-lhe convencido o irmão. — Que eu, se me dessem à escolha, antes queria as estrelas! Olha que rebanho!— Pois eu antes queria o Sol. Com licença do teu querer, sempre é mais grande!E enquanto falavam, os dois não desfitavam os olhos da estrela feiticeira que perseguiam. Os remos, no entanto, iam abrindo fenda na água, com certo ruído muito doce… E, lá no alto céu, dir-se-ia que, de instante para instante, a feiticeira estrela mais brilhava, incitando-os.— Vê-la a fazer assim? — e pôs-se a pestanejar, imitando a palpitação crebra e irregular da luz sideral.— É que tem sono! — respondeu o outro a rir.— Olha que não! Aquilo é a fazer-nos negaças, tamém to digo!— Ai é?! Pois que faça as negaças e que se descuide: se malha cá baixo, bem se afoga… — E apontando-lhe um punho cerrado, gritou a rir: — Eh, boieira!Neste momento, uma estrela cadente abriu esteira de prata no azul, sumindo-se rapidamente. Os pequenos ficaram com medo e ambos murmuraram em tom de reza as palavras rituais:

Deus te guie bem guiada,Que no céu foste criada.

— Vês? — disse o Manuel, que era dos dois o mais supersticioso. — Torna a apontar para elas… Eu cá não aponto, que nascem «cravos» nas mãos.— A ti talharam-te o ar, ó Manuel!— Diz a mãe! À meia-noite levaram-me à fonte e esparrinharam-me água para cima do corpo! E a água que havia de estar fria — observou encolhendo os ombros. — Depois, viraram-me para as estrelas e disse então a mãe:

Ar vejo,Lua vejo,Estrelas vejo:

O mal do meu corpoPra trás das costas o despejo.

Riram muito. O Manuel despidinho, coiracho ao colo da mãe, havia de ser engraçado! E então todos de volta, a ver quando se talhava o ar!— Mas talhou-se! Agora, em paga, uma vez por ano (ao menos uma vez por ano) tenho de olhar pelos ralos do lenço pràs cinco chagas, umas estrelas que além estão, e rezar uma ave-maria.— Sempre, sempre?!— Até que morra. Depois de morrer, diz que vou morar três dias com três noites dentro de uma.— Ora! — tornou-lhe incrédulo o irmão. — Tu não cabias lá!— Não sei! Assim é que anda nos livros!… Mas os braços doíam já dos remos, doíam muito…Devia já ser tarde, e eles sem darem fé, enlevados como iam no desejo louco de alcançar a estrela.A noite estava calma, não bulia nas ramagens ramo verde de salgueiro, um silêncio contínuo dominava tudo em volta. E amolentadora e múrmura, a água da corrente ia espumando na quilha, com certo ruído cada vez mais doce.… Mas os braços já doíam mais!…Agora, no céu havia muitas estrelas brilhantes, muitas, mas nenhuma como aquela, ainda assim. Entretanto, os dois pequenos entraram de olhar menos para ela, pois que irresistivelmente a cabeça lhes pendia para o peito e as pálpebras se lhes cerravam, a despeito de todo o esforço.… E os braços sempre a doerem!…Por algum tempo, os remos foram com a pá mergulhada na corrente, cortando-a com levíssimo ruído. Imobilizara-se também o cabo do leme, sem que nenhum dos dois irmãos desse fé do súbito desleixo do outro.… E os braços já não doíam, nem ao de leve sequer…O pequeno barco vogava agora à mercê da corrente, sem impulso algum estranho. Dentro dele, a música levíssima das respirações dos dois pequenos adormecidos…Algum tempo assim. Senão quando, um ruído surdo, e logo um movimento brusco de balanço, fez acordar o do leme.Na grande alucinação do perigo, desvairado pelo medo, gritou imediatamente:— Manuel!, ó Manuel!O remador acordou, sobressaltado.— A estrela? Ainda lá está, olha! — disse, incoerente, estonteado pelo sono.— Uma fraga de cada lado! Ouves o rio?! É já muito tarde! — continuou aflito o António.— Então não lhe passamos adiante? — perguntou ingenuamente o Manuel, referindo-se ainda à estrela.Mas o irmão, sacudindo-o convulsamente, procurando chamá-lo à realidade, de novo lhe gritou, com lágrimas na voz:— Manuel, acorda! Olha que estamos perdidos, Manuel!E, mal conheceram o grande perigo em que estavam, ambos romperam num choro muito violento, agarrados um ao outro, feridos de um terrível susto que a hora e o lugar aumentavam angustiosamente. Parecia-lhes medonho aquele marulhar contínuo da corrente, afligia-os como se fosse o salmodiar monótono e rouco duma legião de espíritos maus, preludiando-lhes as agonias lentas da morte. Aos dois pequenos os rochedos informes das margens afiguravam-se-lhes negros gigantes que num requinte de malvada indiferença houvessem jurado assistir impassíveis e mudos à escura tragédia da sua desgraça.E o barco sempre encalhado, não havia forças que o arrancassem dali. Tinham perdido os remos. Teriam de esperar que amanhecesse e alguém viesse acudir-lhes, alguém que ouvisse de longe os seus gritos de aflição!

Transe crudelíssimo!E então os braços continuavam a doer; doía-lhes agora o corpo todo, ao mesmo tempo que uma tristeza cada vez mais pesada lhes oprimia o espírito, parece que embrutecendo-os.— Mas a estrela sempre além… — notou ainda o Manuel, balbuciante de medo, como se quisesse increpar a própria estrela da sua indiferença criminosa, no meio daquele enorme infortúnio em que por causa dela se haviam precipitado. — Se ela pudesse acudir-nos!

Até que por fim, prostrados da fadiga e das lágrimas, de novo se deixaram adormecer, era já alta noite.Mas, na sua fúria constante, a corrente, que ali era muito forte, não cessava de bater contra as pedras o pobre barco indefeso. Até que, após tamanho lidar, o rio safou-o de repente para um lado onde as águas se contorciam em remoinho, e entrou de girar com ele, violentamente. Quando a água se precipitou para dentro, os dois pequenos, assim de súbito acordados, romperam em gritos lancinantes:— Ai quem acode! Ai Jesus, quem nos vale! Acudam! Acudam!Tinha surgido a manhã, serena, tranquila, cheia de gorjeios e de azul. Mas como ninguém acudisse e a luta no rio fosse desigual, num repelão mais violento o pobre barco esfacelado investiu de proa com o abismo e lá se sumiu para sempre! Feridos de morte, no último paro-xismo da sua enorme dor desesperada, os dois irmãozitos abraçados sumiram-se também com ele!…

… Nesse mesmo instante… — e mais longe do que nunca — … a estrela feiticeira acabava de cerrar também a pálpebra luminosa!…Trindade Coelho In Os meus amores

Publicada por Helena em 11:42 Etiquetas: Trindade Coelho: Os meus amores 10. Uma escritora no Castelo 10

Por causa dos laços de confiança e ternura que as uniam, Inês e Teresa tornaram-se inseparáveis.Decidida a cumprir o que prometera, Inês foi ter uma longa conversa com os pais da sua nova amiga que logo foram tomar as medidas necessárias para que a filha não voltasse a ser maltratada. Deste modo, Inês começou a ajudar Teresa a libertar-se de quem não sabia respeitá-la e que, por essa razão, a fazia ter medo — tanto medo que, ao pensar nessa pessoa, a menina imaginava um dragão e chegava a ficar agoniada, como quando se está doente.Na verdade, os dragões que deitam labaredas pela boca e fumaça pelo nariz não existem (a não ser na imaginação que o medo faz surgir e então parecem mesmo reais). Há, no entanto, quem seja parecido com eles, precisamente por usar a vantagem de ter um corpo de pessoa crescida

para fazer mal a quem é ainda pequeno em idade e tamanho.

Assim, Teresa passou a viver com alegria, indo quase todos os dias ao castelo, lugar que passou a escolher também para estudar e escrever as suas histórias — agora já sem um dragão a aprisionar meninas ou meninos.E a menina foi crescendo, cada vez mais encantada com o mundo de histórias guardadas na sua alma, que ia escrevendo para que outros pudessem lê-las e passar umas horas na companhia daquelas personagens tão diferentes umas das outras: havia-as divertidas e sisudas; de espírito prático e sonhadoras; medrosas e aventureiras; terrestres e extraterrestres...

Um dia, quando Inês já era velhinha, chamou Teresa ao salão e disse-lhe muito calmamente:— Sinto-me cansada. Sabes, já vivi muito tempo aqui... Talvez seja altura de pensar em mudar de casa...— Vais deixar o castelo?! — inquietou-se a amiga. — Mas porquê?— Porque há outro castelo à minha espera, no Céu... — respondeu Inês, com um sorriso daqueles que ela fazia quando estava completamente em paz.Teresa ficou preocupada. Não se sentia preparada para ficar sem a companhia da sua amiga de sempre.— E o que é que eu farei sem ti? — perguntou-lhe, muito triste.— Ora! Sabes que, se quiseres, vais continuar a escrever, aqui no castelo. Tomarás conta da biblioteca para que nenhum livro se perca e mandarás restaurar os que se forem estragando. E, claro, poderás, de vez em quando, receber as crianças que quiserem vir ouvir uma história! Há tantas crianças que nunca ouviram uma história!— Não sei contar histórias como tu...— Mas é claro que sabes! — E Inês voltou a sorrir antes de acrescentar muito baixinho: — Estou a ficar ensonada. E este calor de Verão... Acho que vou adormecer aqui no salão. Abre um pouco a janela, que sempre gostei de adormecer a ouvir os pássaros...Teresa fez o que a amiga lhe pedira.Depois de abrir uma das janelas e de afastar a cortina, voltou para junto da amiga que, entretanto fechara os seus olhos verdes e doces como o canto dos pássaros do jardim.Então, olhando para ela, percebeu que deveria estar a sonhar porque continuava a sorrir...

Na sua viagem rumo ao novo castelo que iria habitar, no Céu, Inês não foi sozinha. Um companheiro de asas grandes, que era certamente o seu anjo-da-guarda, veio ao seu encontro e trazia duas enormes folhas de papel em ambas as mãos. Numa delas estavam escritos os títulos de todos os livros que Inês lera desde a infância... Inês lembrou-se imediatamente das palavras que o velho marquês lhe dissera pouco antes de ir para o Céu: «Mesmo que vivas até aos cem anos, também não vais ter tempo de os ler todos...» O marquês tinha razão, mas ela acabou por conseguir ler muitos mais livros do que supunha. E que bem lhe tinham feito essas leituras! Sim, quase se sentia uma sábia!— Que nomes são esses que aparecem na outra folha? — perguntou ela ao anjo, enquanto subiam pelo azul que se tornava cada vez mais clarinho à medida que subiam e se chegavam a uma fonte de luz muito branca.— Não adivinhas? Estes são os nomes de todas as crianças que, ao longo da tua vida na Terra, ajudaste a crescer e a ser mais felizes... Foi essa missão que te tornou mais sábia. E isso agradou a Deus, que tudo vê e quer que todos sejam felizes!Inês não entendeu logo as palavras do anjo. Lembrava-se dos rostos de algumas das crianças e dos jovens que tinham visitado o castelo para a ouvirem contar ou ler histórias que fala-vam de muitas coisas — umas alegres, outras nem tanto, mas todas muito interessantes. Porém, Inês não se tinha apercebido do quanto tinha sido útil a essas mesmas crianças cujos nomes já nem recordava, a não ser alguns, evidente¬mente: o da menina sardenta filha de um marinheiro, que só queria histórias de piratas; o do menino gorducho que não parava de fazer perguntas e falava com uma pronúncia engraçada; o nome da menina de pele da cor da canela que dissera que nunca haveria de gostar de ler e que, afinal, tinha passado a gostar de tal maneira que veio a ser professora de Literatura... E, como não podia deixar de ser, lá estava na lista, em letras maiores do que os outros, o nome de Teresa, a menina que um dia resolveu escrever para contar a sua história triste e que se transformou numa contadora de histórias alegre e sem medo de nada (bem, de quase nada).Foi assim que Teresa passou a habitar o Castelo dos Livros, a maior biblioteca do mundo (pelo menos do mundo conhecido pelos humanos).Tal como a amiga lhe sugerira, de vez em quando recebia crianças e jovens que vinham ouvir as suas histórias. E todos regressavam a casa com um sorriso e muitas imagens fantásticas a fervilharem na sua imaginação, transformada numa espécie de vulcão capaz de produzir excelentes ideias para grandes aventuras. Alguns tinham até perdido o receio de falar e de escrever sobre tudo o que imaginavam e sentiam!Por outro lado, as quatro torres da biblioteca foram ficando cada vez mais recheadas de livros, alguns escritos pela nova habitante do castelo, que nunca mais parou de escrever.E pronto, aqui tens a história que aprendi na minha visita ao Castelo dos Livros, contada por Teresa.

Agora, talvez possas tu também contá-la, sobretudo àqueles que ainda não sabem como é bom ler e ouvir uma história! Porque quem conta histórias, falando ou escrevendo, acaba por fazer amigos (se calhar, ainda não tinhas pensado nisto...)!

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 8:06 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 9. Amigas verdadeiras

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Era quase meia-noite. Inês não tinha ainda sono porque ficara a pensar na história que Teresa lhe trouxera. De resto, é isto que costuma acontecer quando ficamos preocupados com alguma coisa real¬mente importante, não é verdade?Inês sabia que teria de tomar uma atitude, estava só a pensar em qual seria a mais certa, para poder realmente ajudar Teresa a resolver o seu problema, o problema que vinha contado, de certa maneira, no caderno onde a menina escrevia.Na sua história, ainda por acabar, Teresa falava de uma menina que vivia como escrava de um dragão que não a deixava afastar-se dele e ao qual ela só podia escapar, por pouco tempo, quando ele caía em sono profundo, roncando estrondosamente como um motor. E a menina vivia infeliz, desejando libertar-se daquela vida sem, contudo, conseguir. Então, para escapar à tristeza, punha-se a inventar histórias com que acabava por adormecer o dragão...Teresa e a sua história não saíam do pensamento de Inês. Provavelmente, jamais sairia...Então, encostada nos almofadões da cama, Inês continuou a lembrar-se da parte mais importante do seu dia, com Teresa. Depois de ter lido a história escrita no caderno, fixara o olhar da autora e

perguntara-lhe se havia alguma coisa na vida dela que estava a correr mal.Ao princípio, a menina ficou calada, desviando o olhar para o tapete. Depois, encheu-se de coragem e começou a contar uma história verdadeira: a sua. E era uma história tão triste como a da menina que vivia com o dragão. Na realidade, havia também na sua vida não um animal gigantesco e verde que deitava labaredas pela boca, mas um familiar que a maltratava desde que ela completara seis anos de idade, obrigando-a a fazer coisas que ela não queria e metendo-lhe medo para que ela não contasse nada fosse a quem fosse.

Ora, como ninguém sabia o que se passava, ninguém tinha podido acabar com aquilo, nem mesmo os pais, que não suspeitavam de nada. Na realidade, Teresa não se queixava e ninguém a via chorar, porque, em vez disso, a menina preferia ir sentar-se no seu quarto a imaginar histórias bonitas para afastar os maus pensamentos. Só que esses pensamentos tristes acabavam sempre por voltar...Era, portanto, necessário agir depressa para que a vida de Teresa mudasse e ela fosse uma menina alegre, com uma vida bonita como todas as crianças merecem e devem ter.— Para te ajudar preciso que me digas quem te tem maltratado — pediu Inês com muita suavidade, mais ainda do que quando contava histórias. E acrescentou: — Seja quem for, não vamos ter medo! Lembras-te da lenda que uma vez contei sobre São Jorge?A menina sorriu, mas o seu olhar continuava triste quando respondeu:— Lembro, mas São Jorge já morreu e eu não sei se alguém que morreu pode aparecer montado num cavalo com uma lança na mão para me salvar... — E Teresa deu um longo suspiro. Depois, confessou:— O que eu queria mesmo era que... ele fosse morar para outra cidade e ficasse para sempre muito longe!— Se me deixares, vou tentar ajudar-te — tornou Inês. — Diz-me só quem é essa pessoa, e eu prometo que farei tudo o que puder para que não volte a tratar-te mal. Acreditas em mim?Teresa acreditava, sim. Tinha muito medo de que as coisas não corressem bem, mas confiava em Inês. Já que lhe tinha contado a sua história verdadeira, o melhor era deixá-la ajudar, porque ela era sua amiga, bem o sentia. Além disso, era uma pessoa crescida, podia fazer muitas coisas que ela ainda não podia.Sim, podia dizer toda a verdade à amiga que vivia no castelo, e era isso que ia fazer. Agora, já tinha menos medo. O nó na garganta estava quase a soltar-se. Se conseguisse chorar, o nó soltar-se-ia e ela sentir-se-ia mais leve. Porém, chorar era algo que, de facto, só muito raramente lhe acontecia. Aliás, nem se lembrava já de quando tinha sido a última vez...Compreendendo o que a menina estava a sentir, Inês levantou-se do sofá, foi ajoelhar-se junto da poltrona onde ela estava sentada, deu-lhe a mão e fez um convite:— Vamos agora até ao jardim? Eu estou a sentir uma certa vontade de chorar, mas é de alegria, porque sei que vamos resolver o teu problema! Se não te importares de me ver chorar, podes vir comigo.Teresa levantou-se como se uma mola a tivesse empurrado para fora da poltrona e, sem nada dizer, seguiu a amiga até ao jardim do castelo.Lá fora, sob os últimos raios de sol da tarde, Teresa disse o nome de quem a maltratava já há muito tempo. Então, as duas choraram baixinho, passeando entre as árvores, em silêncio. Porque,

às vezes, é preciso chorar para depois respirar melhor e voltar a sorrir. E as lágrimas choradas na companhia de um amigo têm o poder misterioso de lavar o nosso coração e de o deixar mais leve.Assim, Teresa e Inês choraram sem pressas. E só os anjos e os esquilos as viram e ouviram, mas não fazia mal, porque os anjos são bons e os esquilos vivem lá no seu mundo de avelãs, saltando aqui e ali sem se importarem com o resto.

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 8:01 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros Histórias com dragões 8

O livro que falava do dragão lá estava devidamente arrumado numa estante da Torre Dourada.Ao reler o livro, Teresa lembrou-se da lenda sobre Jorge, um jovem soldado do Império Romano que veio a ser chamado santo e que é o padroeiro de muitos países, entre eles Portugal e Inglaterra, precisamente por ser muito corajoso.Diz a lenda que havia um dragão terrível que assustava os habitantes de uma cidade, saindo das profundezas de um lago e deitando grandes labaredas pelo nariz, como, de resto, os dragões costumavam fazer, o que, diga-se de passagem, não é uma atitude nada civilizada.Aflitas e muito desgostosas, as famílias daquela terra iam perdendo raparigas que o dragão atacava.

Um dia, foi a vez de a filha do rei decidir ir entregar-se ao dragão para ver se, assim, ele pouparia a vida ao povo, para que mais ninguém fosse vítima daquela criatura tão má.Então, subitamente, apareceu Jorge, montado num cavalo branco e vestido com um manto e uma armadura onde se via uma cruz de cor vermelha. Numa mão trazia uma lança e, indo enfrentar o dragão, derrotou-o em combate, salvando a jovem e valente princesa.No fim, Jorge disse a toda a gente da cidade que tinha vindo em nome de Cristo e que gostaria muito que todos os que se sentiam aliviados e felizes por verem que o dragão tinha sido vencido fossem baptizados. A verdade é que, naquela altura, ainda havia pouca gente baptizada e não costumavam sê-lo senão já na idade adulta, provando que acreditavam em Jesus Cristo como Filho de Deus e vencedor de todo o mal do mundo.Inês ficou a pensar na história de São Jorge e na que a pequena Teresa estava a escrever, da qual ela ainda nada sabia a não ser que também falava de um dragão, de uma menina, e não era uma história divertida...Sentia que devia fazer qualquer coisa, mas ainda não descobrira o quê. Precisava de saber o que Teresa tinha para lhe contar.

Poucos dias depois, no fim de mais uma sessão de leitura para as crianças, Inês chamou Teresa e perguntou-lhe:— Como vai a tua história? Tens escrito?A menina fez que sim com um gesto de cabeça e contou:— Não posso ainda terminar a minha história, porque quero que ela acabe bem...Inês compreendeu finalmente que a menina andava a escrever sobre alguma coisa que deveria estar a acontecer na vida dela, alguma coisa que não era boa — talvez um problema difícil que ela não conseguia resolver sozinha. Porque é normal não conseguirmos resolver sozinhos certos problemas.— Eu gostava de ler a tua história, mesmo sem estar ainda acabada — disse ela a Teresa. —

Como conheço muitas histórias, talvez possa ter uma boa ideia para te dar uma ajuda, que dizes?A menina voltou a dizer que sim com um gesto de cabeça e saiu a correr do castelo, animada com a possibilidade de vir a acabar depressa a sua história, como tanto queria.Logo no dia seguinte, depois de sair da escola, Teresa dirigiu-se para o castelo, com a mochila às costas, como Inês tantas vezes fizera quando ainda era criança.No meio dos seus livros escolares, a menina levava o caderno onde andava a escrever a sua história...Como era bom poder contar no papel o que o seu pensamento lhe ditava! Nos primeiros anos de escola, jamais imaginara como escrever podia ser tão importante.O coração de Teresa batia cada vez mais depressa. Nunca tinha falado da sua história a ninguém, mas sentia que chegara a altura certa, porque Inês merecia toda a confiança.É tão raro alguém merecer toda a nossa confiança, não é?Ao chegar ao castelo, antes de ir bater à porta, a menina foi sentar-se num dos bancos de pedra do jardim e pôs-se a pensar...Por um lado, tinha muita vontade de mostrar a Inês o que escrevera, mas, por outro lado, tratava-se de uma história muito importante para ela, porque, apesar de ser imaginada, era, de certo modo, parecida com algo que se passava na sua vida real e que muito a entristecia e embaraçava.

E se Inês não percebesse a sua história?Não, provavelmente perceberia, porque Inês já tinha lido muitos livros e sabia coisas incríveis acerca de pessoas um pouco estranhas, animais e lugares da Terra onde ninguém esteve, excepto alguns cientistas: picos de montanhas geladas, vulcões em actividade, abismos marinhos, grutas misteriosas...Animada com estes pensamentos, Teresa resolveu levantar-se do banco e ir, então, bater à porta do castelo.Estava um dia de Maio muito quente, e a menina tinha as bochechas coradas do calor e da vontade de mostrar à sua amiga mais velha o que tinha escrito.Foi Rudolfo quem veio abrir-lhe a porta. Disse-lhe que Inês se encontrava na oficina, a acabar o trabalho de restauro de um dos livros mais antigos da Torre dos Arrepios, um romance de aventuras passadas no fundo do mar, entre lulas gigantes, baleias, tubarões e outras criaturas marinhas.Inês tinha acabado por aprender com o marquês aquela arte de recuperar os livros que estavam estragados ou em risco de se estragarem e, por isso, a biblioteca do castelo continuava em perfeito estado de conservação. Isto fazia Inês sentir-se satisfeita, porque não queria que nenhum livro fosse destruído pelos ácaros ou pela humidade.— Estou a acabar o meu trabalho de hoje, Teresa — disse-lhe Inês, enquanto acabava de colocar um livro já restaurado sobre um tabuleiro. Depois, sugeriu: — E se viesses comigo guardar estes livros na biblioteca?Um pouco atrapalhada, Teresa mordeu o lábio inferior e contou:— Hoje, trouxe a minha história... Está aqui dentro da mo¬chila...Inês sorriu-lhe:— Tiveste uma excelente ideia! Depois de arrumarmos os livros, vamos sentar-nos lá fora só nós as duas ou, se preferires, vamos para o salão.— Prefiro o salão — disse a menina, enquanto acompanhava a nova dona do castelo até à Torre dos Arrepios. — E que lá fora está um bocado abafado e cá dentro do castelo está sempre fresco.Quando acabaram de arrumar os romances de aventuras no lugar que lhes cabia, Inês disse:— Vamos então sentar-nos no salão, já que preferes assim. Vai andando, enquanto vou preparar um refresco para ambas, queres?A menina disse que sim com um gesto de cabeça e um sorriso, como fazia muitas vezes. Depois, seguiu para o salão e sentou-se numa das poltronas, com a mochila aos pés.Retirou o caderno da mochila, colocou-o no colo e ficou à espera.Aquele era, realmente, um dia importante para si! O dia em que ia mostrar a sua história a alguém em quem ela confiava.Ainda que não soubesse exactamente porquê, parecia-lhe agora que todas as dúvidas já tinham desaparecido da sua cabeça: Inês iria com certeza compreender a sua história! Não havia razão

para receios. Mas então por que seria que as suas mãos estavam a ficar húmidas e não conseguia manter as pernas quietas?...

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 7:56 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 7. A contadora de histórias 7

Como talvez já tenhas adivinhado, o marquês, que já estava muito velhinho e doente, partiu para o Céu. No dia da sua partida deste mundo, foi feliz, porque Inês aceitou ficar a morar no castelo, comprometendo-se a não deixar morrer o seu tesouro: os livros guardados nas suas quatro altas torres — a Torre dos Arrepios, a das Asas, a Torre do Céu e a Dourada, conforme deves lembrar-te.Mais do que tudo, o marquês queria que os seus livros fossem lidos por muita gente e que, ao ficarem gastos ou danificados pelo uso ou por outra razão (como por exemplo a humidade ou o pó), continuassem a ser restaurados. Assim, poderiam manter-se por longo tempo ao serviço de pessoas de todas as idades. Foi isto que ficou combinado entre o velho dono do castelo e a sua herdeira, que merecia toda a sua confiança.Na verdade, Inês rapidamente pôs em prática o seu plano com as crianças da cidade — não todas, claro, mas um grupo que aos poucos se foi formando até serem vinte os meninos e meninas que ali vinham todas as semanas.Nos dias frios, reuniam-se no salão onde havia uma lareira. Nos dias de calor, sentavam-se no jardim do castelo à volta de Inês, que lia para eles ou lhes contava alguma das suas histórias favoritas, que faziam sonhar... que faziam crescer!E a jovem tornou-se uma perita contadora de histórias. Na verdade, até alguns animais da

montanha vinham ouvi-la, ficando meio escondidos atrás das árvores que havia à entrada do jardim. Mesmo as lebres, que costumavam fazer a sua vida a uma altitude mais baixa, subiam até à zona do castelo, atraídas pela voz magnética da contadora de histórias.Então, muitos meninos que nunca tinham lido um livro começaram a descobrir as grandes e maravilhosas aventuras guardadas na Torre Dourada e passaram a gostar de ler! Na verdade, alguns deles, tornaram-se mesmo grandes leitores, como a própria Inês.Uma das meninas que ia todas as semanas ao castelo tinha, porém, uma característica diferente dos outros meninos que ali iam. Ela gostava de inventar as suas histórias, sem dizer nada a ninguém! O nome dessa menina era... Teresa, essa mesma em que estás a pensar, a tal que me recebeu no castelo e me contou esta história toda...Quando Teresa foi ao castelo pela primeira vez, nunca lera um livro. Tinha apenas seis anos e, portanto, ainda nem aprendera a ler. No entanto, Inês cedo percebeu que aquela menina de olhos castanhos, que raramente se ria, ficava longo tempo pensativa depois de ouvir uma história lida ou contada e não gostava muito de falar, embora, de vez em quando, fizesse perguntas curiosas...

Apesar de conversarem pouco, Inês e Teresa começaram a tornar-se amigas, porque descobriram que as histórias favoritas de uma eram também as da outra, como, por exemplo, a história que falava de um pequeno príncipe, vindo de um planeta distante, que estava apaixonado por uma rosa... Era um jovem muito curioso que viera à Terra para descobrir como se faz um amigo, tendo aprendido muitas coisas com uma raposa e ensinado muitas outras a um piloto aviador que estava meio perdido, num deserto.

E havia muitas outras histórias de que ambas gostavam, como aquela acerca de uma princesa que ficara pobre e sem abrigo e era tão incrivelmente sensível que, uma noite, não conseguira adormecer, incomodada por uma ervilha que ficara debaixo do colchão...Um dia, quando já tinha dez anos, Teresa aproximou-se de Inês no fim de uma sessão de leitura e contou-lhe:— Eu também ando a escrever...— A escrever? — perguntou Inês.— Sim, a escrever uma história — disse Teresa. E continuou: — Já tenho várias páginas e sei como quero que termine, apesar de ainda faltar muito para chegar ao fim...— Essa novidade é muito interessante — animou-se Inês. — Não sabia que tinhas inventado uma

história!— Bem, para dizer a verdade, eu já inventei várias, mas esta é a primeira que eu decidi escrever.— E posso saber de que trata a tua história? Não, não digas nada! Deixa-me adivinhar... Ora vejamos, de que é que tu gostas muito?... Já sei! Gostas muito de pensar e... gostas muito... deste castelo! E uma história sobre este castelo?A menina sorriu, com o seu sorriso um pouco triste:— Bem, é sobre um castelo, mas não este. E um que eu imaginei, onde vive um dragão e... uma menina de olhos castanhos, mais ou menos como eu.— Ah... Uma história com um dragão... Parece-me muito empolgante e divertida a tua história.— Mas não é, não — apressou-se Teresa a dizer, abrindo muito os seus olhos castanhos. Depois, ficou pensativa e afastou-se, porque não estava com vontade de continuar a conversa.Inês não lhe fez mais perguntas naquele dia. Sabia que como todos nós, em certas ocasiões, Teresa gostava de ficar em silêncio. Talvez um dia ela lhe contasse mais sobre a sua história com um dragão que, provavelmente, era mau. Porque, como se sabe, até agora não se conhece nenhum dragão bom nem sequer simpático. Na realidade, alguns são até um bocado perigosos.Naquele fim de tarde, Inês voltou para o castelo a pensar na menina que gostava de inventar histórias. O dragão de que ela falara, embora pouco, não lhe saía da cabeça.Ora, como deves imaginar, pode ser muito desagradável ter um dragão na cabeça, de maneira que Inês resolveu ir à Torre Dourada procurar um livro que tinha lido quando era criança sobre um homem muito generoso e valente que tinha combatido contra um dragão e saíra vencedor desse terrível combate... Aliás, lembrava-se de já ter contado aquela mesma história às crianças, num dia de Inverno, junto da lareira do salão.

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 7:49 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 6. Uma ideia brilhante 6

A verdade é que Inês nunca mais deixou de visitar o castelo, onde ia ler quase diariamente.O marquês, o mordomo, Rudolfo, e a cozinheira, Matilde, passaram a ser os seus melhores amigos, sem contar com os livros, claro, porque esses também contribuíam muito para que a sua

vida fosse feliz. Livros que falavam de tudo quanto Deus criou; histórias sobre factos reais e outras sobre coisas imaginadas; aventuras de sereias cantoras, piratas de um só olho, príncipes encantados, princesas encantadoras...E a menina foi crescendo, transformando-se numa rapariga que cada vez sabia mais sobre o mundo. A pouco e pouco, ia conseguindo compreender melhor as tais coisas que via e ouvia e de que não se falava na escola.Ora, como ler também ensina a pensar, Inês foi-se tornando uma aluna brilhante, de tal maneira que os seus pais até ficavam admirados não só com os seus resultados escolares mas com os elogios que alguns professores faziam a seu respeito.A família de Inês achava um pouco excessivo o tempo que ela passava no castelo, lendo e conversando sobre o que lia. Mas, aos poucos, todos foram compreendendo que ela sentia mais necessidade de aprender do que outros jovens da sua idade. O que ninguém ainda sabia, excepto o velho marquês, era que ela estava a tornar-se sábia...Convém lembrar que um sábio não é apenas alguém que sabe muitas coisas, mas também alguém que consegue realizar algo importante para si e para os outros, de modo a que a vida fique mais bonita de viver!No princípio da idade adulta, quando Inês já frequentava a universidade, teve uma ideia que lhe pareceu brilhante e, nesse mesmo dia, foi a correr ao castelo para a contar ao seu amigo

marquês.Ao abrir-lhe a porta, Rudolfo apareceu-lhe com olhos tristes.— O que foi? — perguntou ela.— O senhor marquês está muito doente. O médico já veio vê-lo e não quer que ele se canse — contou o mordomo, com ar preocupado.Inês também ficou preocupada e correu ao quarto onde o marquês estava sentado numa cadeira de braços, com uma manta no colo.— Ainda bem que vieste mais cedo — disse-lhe ele. — O médico aconselha-me a que fique em repouso, de preferência a dormir, mas o que eu quero é ouvir-te!A rapariga sentou-se no tapete, junto do amigo que estava realmente muito velhinho, embora ela nunca pensasse na idade dele (noventa e nove anos), porque a idade não conta entre os amigos verdadeiros.— Hum... Lembra-se de uma conversa que tivemos há muito tempo sobre a importância de ter a cabeça organizada, com as ideias mais importantes à frente e as outras atrás? — começou ela.— Não, não me lembro, mas se estás a querer que eu obedeça ao médico, devo dizer-te que não posso, porque sinto que já não me resta muito tempo e não quero passá-lo a dormir!Inês riu-se.— Concordo consigo, desta vez...— Isso é por eu estar muito velhote?— Não, é porque eu tenho uma notícia muito importante para lhe dar e, se for dormir, não posso...— E que notícia é essa? — interessou-se o marquês.

— Ontem à noite estive a pensar que é uma pena haver crianças que não sabem ler e a quem ninguém conta uma história. Por outro lado, também é lamentável que haja outras crianças que já andam na escola mas que ainda não descobriram que ler um livro pode ser muito divertido!— E então tiveste uma ideia — atalhou o marquês, animado, apesar de se sentir fraco.— Tive... Pensei que posso vir aqui uma ou duas tardes por semana contar histórias a crianças que queiram vir até ao castelo ter comigo e também ler para elas passagens de alguns dos livros de que mais gostei quando era pequena! Não quero que percam tantas aventuras fantásticas que estão escondidas nas quatro torres! Quando estiver frio, ficamos no salão, onde há lareira e podemos aquecer-nos. Nos dias quentes, ficaremos lá fora, no jardim, que é tão bonito!— Parece-me uma grande ideia — aplaudiu o marquês. — E quando vais começar?— Quando estiver melhor, porque não quero que as crianças venham aqui incomodá-lo com algum barulho que possam fazer.— Nada disso, nada disso! Podes começar amanhã. Não te digo hoje, porque já é tarde e, provavelmente, ainda não falaste com os pais dessas crianças.— Então quer dizer que posso realizar os meus planos?! — entusiasmou-se a jovem.— Estás em tua casa, Inês — respondeu suavemente o marquês, saboreando os últimos raios de sol. — E agora, se não te importas, acho que vou seguir o conselho do médico e vou fazer uma sesta...Inês ficou feliz. Então, ajeitou a manta que tapava o colo do velho amigo e saiu, encostando a porta atrás de si.Lá fora, no jardim, Inês olhou os bancos de pedra e imaginou-se sentada num deles, rodeada de crianças a ouvirem contar uma história... E gostou muito do que ali viu com os seus olhos tão treina¬dos para imaginar.Havia mesmo meninos na cidade a quem ninguém tinha tempo de contar histórias, por pequenas que fossem! Esses meninos não faziam ideia de como é bom ouvir uma história divertida e empolgante como as que Inês conhecia!Mas também havia outras crianças que nunca tinham pegado num livro e não sabiam como um livro se pode tornar num amigo para toda a vida...Tinha muito que fazer, pensou Inês. Era preciso falar com os pais das crianças para lhes explicar os seus planos. E era justamente disso que ia tratar sem demora!

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Publicada por Helena em 7:43 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 5. Um lugar de sonho

5

No dia seguinte, mal saiu da escola, Inês encaminhou-se para o castelo, de mochila às costas. Estava desejosa de acabar de ler o livro que começara na véspera! O que iria acontecer à menina que sabia voar?, perguntava-se.Que bom seria falar a língua dos pássaros e pedir a uma cegonha das que todos os anos faziam ninho na torre da igreja ou no telhado da câmara municipal que lhe emprestasse as asas ou lhe dissesse como arranjar umas que dessem para voar! Então, poderia viajar pelo céu fora e descobrir muitas coisas sobre as nuvens, a chuva, o arco-íris...Havia tantas coisas para aprender e tantas aventuras para viver! Talvez os livros lhe ensinas-sem como arranjar essas asas que a fizessem voar ou lhe dessem pistas para desvendar muitos mistérios e compreender algumas coisas que via e ouvia e de que não se falava na escola.Seria bom vir a ter uma vida longa para poder ler todos aqueles livros da biblioteca do castelo. Bem, todos talvez não, mas pelo menos aqueles que tinham as histórias mais interessantes e os que ensinavam exactamente o que queria saber!Ao chegar ao castelo, bateu à porta e foi o mordomo quem veio abrir:— Boa tarde, menina Inês! — cumprimentou-a. — O senhor marquês está à sua espera no salão. Queira seguir-me.E Inês lá seguiu Rudolfo até ao salão, onde o marquês a aguarda' vá, tendo na mesa ao seu lado o livro que a menina começara a ler na véspera.Mal viu o livro, Inês pegou nele e, entusiasmada, ia começar imediatamente a lê-lo, mas o mordomo fez um sinal para lhe lembrar que ainda não tinha saudado o dono do castelo.Vendo que a menina estava desejosa de retomar a sua leitura, o marquês, muito satisfeito por ver nela uma futura leitora, cumprimentou-a com um aperto de mão e disse-lhe:— Podes sentar-te naquela poltrona e fica à vontade. Eu vou para o meu escritório porque tenho uns trabalhos para fazer. Se precisares de alguma coisa, chama o Rudolfo ou vai à cozinha ter com a Matilde, que ela prepara-te um refresco.Inês pousou a mochila no tapete, sentou-se imediatamente no lugar que o marquês lhe indicara e começou a ler o livro na página onde tinha ficado no dia anterior, a qual não estava marcada, mas ela lembrava-se exactamente de qual era.Ao fim da tarde, o marquês veio ao salão.A jovem visitante do castelo estava precisamente a acabar de ler o livro e era fácil perceber que nada a perturbaria. Toda a sua atenção estava posta na página que estava a ler e a sua expressão era a de quem estava noutro mundo, num lugar de sonho...E que os livros têm este poder quase mágico de nos transportarem para outros lugares: sítios onde já estivemos e outros que nunca visitámos nem mesmo em sonhos!Os livros são autênticos comboios a levarem-nos por montes e vales, aldeias e cidades. Outras vezes, são aviões que nos fazem chegar, num instante, a países longínquos. E podem também

ser foguetões, que nos transportam para lá das nuvens e nos levam para o meio de cometas, estrelas e meteoritos, no espaço sideral!Foi enorme a alegria do marquês ao ver aquela menina tão interessada na leitura. Na verdade, nunca tinha visto ninguém tão concentrado a ler senão... ele próprio! Inês fazia-o sentir que tinha valido a pena coleccionar, catalogar e restaurar tantos livros, ao longo da sua já longa vida.E o rosto enrugado do marquês iluminou-se num sorriso de ternura, porque a menina ainda não dera pela sua presença, tal era a sua concentração!Quando, finalmente, Inês acabou de ler o livro — e antes de o fechar — deu um longo suspiro de olhos fechados, saboreando as últimas palavras que lera.Depois, ao ver que não estava só, a menina exclamou: — Ler é extraordinário! Acho que nunca mais vou parar! Posso ir à biblioteca buscar outro livro?— Primeiro, vamos colocar esse no lugar de onde saiu — disse o marquês. — Vem, que vou ensinar-te a fórmula mágica para descobrires o lugar exacto onde deves guardar um livro.E o marquês lá se pôs a ensinar o que significava o código de letras e números que estava na etiqueta colada no livro que Inês tinha estado a ler. A menina compreendeu-o imediatamente e fez questão de ser ela mesma a ir colocar o livro no seu devido lugar, numa das estantes da torre número quatro.— Como estás a ver — disse o marquês —, é muito importante que cada livro esteja correctamente marcado, porque uma biblioteca onde vivem muitos livros deve ser um lugar sempre organizado, assim como a nossa cabeça, onde vivem muitas ideias, deve estar organiza-da.— Como? — quis saber Inês. — Como é que se organiza uma cabeça?— Pois bem, é fácil: por ordem de importância. As coisas mais importantes, aquelas a que damos mais valor, devem estar sempre à frente, em primeiro lugar; as outras são arrumadas atrás. Por exemplo, aquilo que os teus pais te pedem que faças é mais importante do que...— O que pede outra pessoa qualquer — apressou-se Inês a responder.— Assim sendo — continuou o marquês —, o que eles pedem para tu fazeres tem de vir antes de todas as outras coisas que te são ditas pelas outras pessoas, para que te lembres bem desses pedidos.— Estou a perceber — disse a menina, que costumava compreender tudo rapidamente. — Posso agora ir escolher outro livro?— Claro que sim! Fico muito satisfeito por teres gostado de ler! Um dia, se quiseres, pode-mos falar da tua leitura. Mas vejamos agora o que queres ler a seguir... Se bem me lembro, disseste que gostavas de dançar...— E de vulcões! E de trovões! E de relâmpagos!— Hum... Ora bem, nesse caso, posso indicar-te um livro magnífico sobre fenómenos da Natureza, mas teremos de ir à torre número três. Acompanha-me.E Inês lá seguiu o dono do castelo, ansiosa por ver que livro lhe iria, desta vez, parar às mãos. Certamente seria interessante, porque o marquês parecia saber muitas coisas importantes sobre vários assuntos! O marquês — dava para ver — era um sábio...

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 7:39 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 4. O tesouro 4

Estou novamente no exterior do castelo, num bonito jardim com uma vista magnífica para a cidade, lá em baixo no vale.Sentei-me num dos bancos de pedra para aqui te contar o resto da história deste castelo, tal como Teresa ma contou. Bem, talvez não exactamente como ela contou, porque, quem conta um conto aumenta um ponto, mas vou tentar dizer-te toda a verdade.Como eu calculava, a parte mais interessante da história estava mesmo para começar, no momento em que Teresa parou de falar...Estava o marquês quase sozinho no castelo quando teve uma ideia para acabar com a sua solidão e a monotonia dos seus dias: e se mandasse um convite aos habitantes da cidade lá em baixo, para que viessem conhecer o seu tesouro? Sabia que nunca ninguém ali tinha entrado a não ser os seus familiares, amigos e empregados. Certamente, muitos seriam os curiosos a desejarem vir conhecer o castelo e, sobretudo, o que nele se encontrava.Contente com a sua ideia, o marquês mandou o mordomo à cidade para que entregasse, no posto do correio, muitos convites para serem distribuídos pelas casas. Naquela altura, ainda não havia Internet, senão tudo teria sido mais rápido...No primeiro sábado após a entrega dos convites, o castelo começou a receber visitantes logo de manhã. Eram pessoas de várias idades e profissões. Vinham cheias de curiosidade para descobrir o tal «tesouro» de que o convite falava. Provavelmente, tratar-se-ia de barras de ouro, já que o marquês tinha fama de ser um homem rico e o seu pai tinha sido o dono de muitas terras por aquelas bandas. Ou então talvez fossem encontrar jóias extravagantes, expostas em vitrinas:

anéis, colares, pulseiras e até, porque não?, coroas enfeitadas com pedras preciosas — diamantes, rubis, safiras, esmeraldas... Além do mais, já que viviam ali tão perto, fazia sentido que fossem conhecer o monumento mais antigo e bonito daquela zona.Naquele dia, Rudolfo não teve mãos a medir, passando a vida a ir receber os visitantes à porta do castelo e conduzindo-os aos lugares que o marquês queria que eles conhecessem.Porém, ao serem abertas as portas das quatro torres que constituíam a fabulosa biblioteca, os visitantes mostravam-se decepcionados. Então era aquilo o «tesouro» que vinha anuncia-do no convite que tinham recebido?! Seria, afinal, para verem livros, apenas livros, que se tinham estafado a subir a Montanha Azul num dia de Sol?!O marquês ficou triste ao perceber que ninguém estava a dar o devido valor à extraordinária biblioteca recheada de tantos livros e todos — sem excepção! — em excelente estado de conservação, graças ao seu interesse e trabalho. Ainda foi colocar-se no meio dos visitantes dizendo-lhes que, a partir daquele dia, poderiam vir ao castelo requisitar gratuitamente os livros que desejassem ler, desde que se comprometessem a devolvê-los. Na realidade, julgava que a sua oferta ia ser recebida com grande entusiasmo pelos habitantes da cidade, mas verificou que apenas três ou quatro esboçaram um sorriso para se mostrarem agradecidos.— Bem vê, o castelo fica aqui no cimo da montanha, a subida é íngreme — desculpava-se o sapateiro, que coxeava da perna direita.— E, no Verão, faz um calor dos diabos por aqui — comentava o alfaiate, limpando a testa com um lenço branco.— Para não falar das vertigens — queixava-se uma senhora idosa. — Sim, que não nos podemos esquecer de que estamos a quase mil metros de altitude e, se uma pessoa olha para baixo, fica com vertigens!— E há ainda o problema dos mosquitos e das meigas, lá em baixo ao pé do lago, a caminho daqui — lembrava uma senhora com voz de cana rachada.— Eu cá fartei-me de espirrar enquanto subia a montanha. Deve ter sido alergia àquelas flores azuis! — queixou-se uma jovem, entre dois espirros.— Por mim, até gostava de vir buscar um ou dois livros — atalhou um técnico que fazia reparações em televisores. — Mas acontece que não tenho tempo para ler...O marquês estava profundamente desolado com o que ouvira. Calor?! Vertigens?! Meigas?! Mosquitos?! Espirros?! Que desculpas tão esfarrapadas... E como podia alguém não ter tempo para ler, que é uma das coisas mais bonitas e interessantes que há?!Que pessoas eram, afinal, aquelas que moravam na cidade logo ali no vale, tão perto do castelo?Seria que não havia ninguém que quisesse aventurar-se a descobrir o mundo tão grande e fantástico que a sua biblioteca guardava em silêncio?, perguntava-se o marquês.

Quando os visitantes saíram, o anfitrião, que foi despedir-se à porta do castelo, voltou para dentro cabisbaixo, perante o olhar igual¬mente desanimado do mordomo. Porém, ao levantar a cabeça, deparou-se-lhe uma visão que lhe iluminou as ideias e aqueceu o seu coração magoado: uma

menina de uns oito anos de idade, de cabelo doirado, apanhado em rabo-de-cavalo, vestida com jardineiras e uma camisola cor-de-rosa estava sentada no segundo degrau da escadaria que dava acesso ao primeiro andar e tinha entre as mãos um livro... Tão entretida estava a ler, que nem se apercebeu da presença do marquês, tendo ele que tossir duas vezes para se fazer notar. Então, visivelmente contrariada por ter sido interrompida, ela ergueu o olhar para o dono do castelo que lhe perguntou:— Tu gostas de ler, menina de olhos verdes?!— Chamo-me Inês — apressou-se ela a informar. Depois, respondeu à pergunta do marquês: — Ainda não sei se gosto de ler, mas acho que sim... Este é o primeiro livro que estou a ler, quero dizer, sem contar com os da escola. Já ando no terceiro ano!— Hum... No terceiro ano... E que livro escolheste tu da minha biblioteca?— Este que tem uma capa bonita e um título de que gosto «A menina que voava». Sabe, eu tenho aulas de ballet e gosto de dançar, mas o que eu queria mesmo era saber voar... Mas agora, se não se importa, gostava de acabar de ler a história — pediu a menina.O marquês estava encantado. Afinal, alguém se tinha interessado pela sua colecção de livros! E era uma menina que parecia saber bem o que queria!— Eu vou deixar-te ler, sim — disse ele. — Mas não será melhor ires ter com os teus pais? Se vieram contigo, já se foram embora e devem estar preocupados. Toda a gente já se foi embora...A menina de olhos verdes consultou então o seu relógio de pulso e compreendeu que era tarde.— Posso voltar amanhã para acabar esta história? — perguntou ela, levantando-se com o livro na mão.— É claro, é claro. Mas, se preferires, leva o livro contigo e devolves-mo quando já o tiveres lido — respondeu o marquês. A menina ficou a pensar uns instantes e, depois, concluiu:— Acho que é melhor vir ler aqui para o castelo. Em minha casa há sempre coisas para fazer e, além disso, ouve-se sempre o barulho que vem da rua e da minha irmã a reclamar ou a pedir qualquer coisa... Ainda por cima, este lugar é tão bonito!...O marquês ficou contente ao ouvir estas palavras e disse:— O Rudolfo e eu teremos muito gosto em que venhas cá visitar--nos todos os dias, mas primeiro deverás falar com os teus pais. Se eles estiverem de acordo, passarás a vir quando desejares!— E posso ler o que eu quiser?— Evidentemente. Mas, se precisares de algum conselho sobre os livros, fala comigo!— O senhor... já leu aqueles livros todos?!O marquês riu-se:— Para ler os livros todos da minha biblioteca precisaria de ter mais vidas do que os gatos, e diz-se que os gatos têm sete! Não, não li os livros todos, infelizmente, mas li muitos e sei de que tratam os que ainda não li, portanto poderei ajudar-te nas tuas escolhas, visto que tu, mesmo que vivas até aos cem anos, também não vais ter tempo de os ler todos...— Não?! — entristeceu-se a menina.— Não, mas o que importa é que vais ter ocasião de ler muitos e mergulhares nas suas aventuras extraordinárias que farão de ti uma pessoa muito mais sábia e melhor!A menina ficou encantada. Iria ser sábia, que era o seu maior sonho desde que entrara para a escola!— Eu acho que vou ser uma grande cientista — disse ela, entregando o livro ao mordomo. — Adoro relâmpagos, trovões e vulcões! Quero saber tudo o que há na terra, no mar e no céu! Há tantas perguntas que quero fazer, por exemplo: será que Deus ouve os trovões no lugar do Céu onde Ele vive?O marquês sorriu.— Agora, são horas de voltares para tua casa. Se te deixarem, regressarás amanhã, depois da escola.E, muito feliz, o marquês foi despedir-se de Inês, a menina de olhos verdes, dizendo-lhe adeus da porta do castelo.

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 7:33 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 3. A história do Castelo 3

Já no salão, confortavelmente instalada, começo a ouvir Teresa contar a história deste castelo que vim conhecer.— Há muitos muitos anos...— Todas as histórias que conheço começam assim! — reclamo.— Muito bem, então recomeço de outra forma, mas devo avisar-te de que há uma condição para eu te contar a história...— Que condição é essa? — pergunto.— Não poderás interromper-me uma única vez!— Prometo — apresso-me a dizer, para não perder tempo. E repito: — Prometo! — Mas será que vou mesmo conseguir não interromper? Eu tenho sempre tantas perguntas para fazer...Depois de ajeitar a almofada do sofá de veludo cor de mel, Teresa recomeçou:— Era uma vez um marquês... Sim, um marquês. Não era um príncipe, nem um duque, não era um conde nem um visconde... — Teresa olha para mim e percebe que estou a impacientar-me.

Creio que está a pôr-me à prova, para ter a certeza de que não vou interrompê-la. Quanto a mim, neste momento, já não tenho tanta certeza...— Era um marquês biblionário — continua ela, olhando para mim. — As vezes, os escritores inventam palavras, sabias? Esta fui eu que a inventei precisamente para descrever alguém muito rico em... livros! Alguém que possui milhares e milhares de livros. Tal como outros têm milhares e milhares de notas num banco, este marquês tinha milhares e milhares de livros guardados aqui mesmo, no seu castelo. Exactamente! Este castelo foi a casa do marquês durante toda a sua vida. Era um homem invulgar, o Marquês de Genciana. Começou a coleccionar livros ainda muito jovem, com apenas oito anos de idade. E o seu amor pelos livros cresceu depressa, de tal maneira que não podia ver nenhum maltratado, com a capa em mau estado, a lombada descolada ou com algumas páginas descosidas! Por esta razão, uma das primeiras coisas que aprendeu a fazer quando era jovem foi a restaurar livros, isto é, a voltar a pô-los como eles eram no momento em que acabaram de ser feitos. Assim, o jovem marquês mandou construir uma oficina aqui no castelo e foi lá que, até ser muito velhinho, se dedicou ao trabalho de restaurar os livros mais gastos e em mau estado. Sempre que descia a montanha para ir à cidade, ia visitar a livraria e procurava ver todas as novidades. Não trazia tudo, claro, apenas o que lhe parecia interessante, mas, mesmo assim, voltava sempre cheio de livros novos, ou melhor, quem carregava os livros era Rudolfo, o mordomo do castelo, que o acompanhava para todo o lado e, por ser um homem muito forte, conseguia transportar uma pilha de livros debaixo de cada braço! Chegados ao castelo, o marquês e o mordomo iam até à oficina e era lá que o marquês se dedicava à tarefa de catalogar os livros que tinha trazido. O que ele fazia era colar em cada um uma etiqueta com um código, para que o livro fosse correctamente colocado numa das estantes. Por exemplo, se se tratasse de um romance de aventuras, iria para a torre número um, conhecida como a «Torre dos Arrepios». Se fosse um livro de poesia, iria para uma das estantes da torre número dois, que recebeu o nome de «Torre das Asas». Um livro de viagens também deveria ser guardado na torre número dois, mas, claro está, já não nas estantes destinadas à poesia. A Bíblia, que foi o primeiro livro impresso no Mundo, bem como todos os livros sobre a vida de Jesus, dos santos e dos anjos iam para a torre número três, à qual o marquês deu o nome de «Torre do Céu» e, naturalmente, o código de cada um deles indicava que se tratava de livros religiosos. Naquela altura, não havia computadores, portanto este trabalho de catalogar os livros levava muito mais tempo. Também, nessa altura, os escritores escreviam à máquina ou mesmo à mão, portanto, como é fácil de ver, demorava muito mais tempo a ter um livro pronto para ir para as livrarias. Mas, voltando ao nosso marquês, a verdade é que, em cada ano que passava, a sua biblioteca ia ficando mais recheada com livros de todas as espécies e dos mais variados autores do mundo inteiro. E, mesmo já adulto, continuava a coleccionar livros de histórias para crianças, com belíssimas ilustrações, de que muito gostava. Estes eram sempre colocados na torre número quatro, onde ficaram até hoje, e devo dizer-te que nessa torre há apenas livros para crianças e para jovens, mas nem por isso são em número inferior ao das outras torres do castelo. Aliás, à torre número quatro, o marquês chamava a «Torre Dourada». Infelizmente, o único filho do marquês, Edmundo, não se interessava pelos livros nem pela escola. Gostava apenas das aulas de esgrima e tornou-se um atleta nessa modalidade, mas acabou por sofrer um acidente fatal. O marquês e sua mulher ficaram muito tristes, e ele só conseguia animar-se lendo ou relendo um dos seus livros favoritos. E que, como sabes, ler ajuda a afastar a tristeza! Assim foi vivendo até ficar muito velhinho e já lhe custar ler, porque, apesar de usar óculos, ficava cansado. Então, passou a pedir ao mordomo que lesse para ele. O mordomo lia o melhor que sabia, mas, na realidade, o marquês não gostava muito de o ouvir, só o fazendo porque não via alternativa. Não havia mais ninguém a não ser a cozinheira e essa, coitada, nem sabia ler. O castelo foi começando a ficar cada vez mais vazio de pessoas, porque uns tinham viajado para terras distantes e outros, mais velhos, tinham já partido para o Céu, como a mulher do marquês, a Marquesa de Genciana...Teresa calou-se. Uma nuvem nublou-lhe os olhos. Talvez esteja um pouco cansada ainda por causa do livro que acabou hoje de escrever. Ou talvez se tivesse lembrado de alguém querido que também já tenha partido. Resolvi manter-me em silêncio, aliás, foi isso mesmo que prometi fazer.Tenho o pressentimento de que a primeira parte da história deste castelo já foi contada. A parte mais interessante está a chegar, sinto-o e estou desejosa de fazer perguntas, mas... vou ouvir com atenção até ao fim e depois conto-te tudo, prometo!

— Que prazer receber uma visita! Já é raro, nos tempos que correm... Eu sou Teresa, a nova dona deste castelo. Mas senta-te, que vou já sentar-me ao teu lado. Suponho que queres saber a história deste lugar... Na verdade, são muitas as histórias que poderia contar acerca deste castelo, mas acho que vou escolher a que é para mim mais interessante. Espero que a subida da montanha não tenha sido demasiado cansativa, porque, antes de começar a contar a história, tenho de mostrar algo de que ninguém parece estar à espera... Podes seguir-me.Lá vou atrás dela, parando na enorme portaria onde já estive. Confesso que fiquei um pouco decepcionada por não estar antes a seguir uma rainha, uma duquesa, uma marquesa, uma condessa, uma baronesa, enfim...— Como vês — começou ela —, lá ao fundo, há uma escadaria. Do nosso lado direito, estão duas portas e, à esquerda, outras duas. Comecemos pela primeira porta da direita. Vem comigo.Encaminhamo-nos para a porta indicada e, mal ela é aberta, depara-se-nos uma enorme escadaria em caracol, no meio de um espaço quadrangular.Percebo que estamos dentro de uma das quatro torres do castelo... Mas o que é verdadeiramente extraordinário é que, acompanhando a escadaria mesmo até ao cimo, há estantes repletas de livros!Provavelmente, muitas centenas de livros. Uns grossos, outros fininhos; alguns de cores escuras, outros de cores claras e outros ainda quase sem cor...— Devem estar aqui mais de mil livros! — digo eu, sem conter a minha admiração.A anfitriã sorriu.— Oh, sim, muito mais de mil...— Não sabia que era costume haver tantos livros num castelo. — E acrescento, sem parar de observar aquelas estantes que sobem do chão até ao cimo da altíssima torre cheia de livros: — Não fazia ideia de que poderia haver mais de mil livros numa só casa...Teresa voltou a sorrir.— Mas os que estamos a ver não são os únicos livros que há neste castelo!— Não?!Estou cada vez mais surpreendida.Teresa explica-me:— Em cada uma das três torres restantes, há um número idêntico de exemplares...— Todos diferentes?!— Sim, todos diferentes...— Espantoso! Vamos agora ver as outras torres?A actual dona do castelo concorda com um gesto de cabeça. Lá vamos então.Conforme me foi dito, a segunda torre é semelhante em tudo à primeira, excepto, claro, nos livros, que são todos diferentes.Não sabia que podia haver tantos livros juntos, quero dizer, fora de uma biblioteca daquelas que existem nas grandes cidades. Pelos vistos, estava enganada...A terceira e a quarta torres têm o aspecto das anteriores e também estão a abarrotar de livros até ao cimo.— Quem comprou estes livros todos? — pergunto, de cabeça voltada para o tecto.— Ora isso já faz parte da história que quero contar-te — disse Teresa. E sugeriu: — Vamos agora regressar ao salão, porque é onde se encontram os sofás mais confortáveis.— Estou a ver que a história é longa — ponho-me a adivinhar.— Enfim, digamos que é uma história que requer que nos sentemos confortavelmente.Por mim, acho óptimo! Gosto de me sentar confortavelmente num sofá bem fofo e macio, daqueles onde podemos afundar-nos e ficar a magicar ou... a ouvir uma história.Estou desejosa de ouvir Teresa. Não é uma rainha, nem uma duquesa, nem sequer uma baronesa, mas certamente saberá contar histórias, porque é esse o seu trabalho, a forma como vive, aqui neste castelo a abarrotar de livros.

Maria Teresa Maia Gonzalez in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 7:22 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros

1 A Montanha Azul

Começo por te falar de uma montanha que ganha nova cor em cada Primavera, ao ficar magicamente coberta de flores pequenas e azuladas — gencianas e campainhas...Chegou o mês de Maio. É Primavera! A montanha está azul como os olhos dos anjos.Lá no cimo, há um castelo com um portão de madeira e ferro, e quatro torres que quase chegam ao céu. E o Castelo da Montanha Azul.Quem o olhe aqui debaixo, do vale, apenas verá um castelo de pedra, parecido com outros. Porém, quem nele se atrever a entrar encontrará um mundo fantástico, cheio de mistérios, segredos, enigmas e muitas, muitas histórias para contar...Acho que se pode ir bater ao portão do castelo e esperar que nos abram a porta... Sempre tive muita curiosidade em conhecer um castelo habitado, sim, porque os outros, aqueles em que já ninguém mora, interessam-me muito menos.Já decidi: vou ao castelo. É isso mesmo que eu vou fazer. Tu podes seguir a minha trajectória, se quiseres fazer-me companhia nesta aventura...Primeiro, é preciso escalar a montanha, o que não é tarefa fácil, mas tenho o pressentimento de que vai valer a pena.Lá vou eu!Olhando à direita e à esquerda vejo como são mesmo azuis as res que cobrem a terra! Acho que nunca tinha caminhado entre flores assim tão bonitas! Não é à toa que chamam a esta montanha a Montanha Azul!

Ah! Dá mesmo vontade de respirar fundo, que este ar é muito mais puro do que aquele que respiramos lá em baixo, na cidade. Nem se pode comparar!E melhor continuar a subida, que a meta é mais acima.Tão perto estou já do castelo que quase parece que vou chegar ao céu! Como é alta esta montanha! O melhor é não olhar para o lugar de onde vim, senão ainda posso ficar com tonturas...Cheguei! Cá estou, finalmente, em frente do portão. E muito maior do que parecia lá debaixo!Que estranho... está aberto!Vamos entrar?Também ouviste ranger, aí onde te encontras? Não te assustes. E só um portão muito velho, a precisar de um pouco de óleo nas dobradiças.Vê só que portaria enorme! E como é bonito este chão de pedra, apesar de tão antigo e gasto! Está mesmo muito gasto! Quantos pés não devem ter já pisado este chão!...Escuta!... Parece-me que ouço o ruído de dedos num teclado... Na primeira sala à direita está alguém... Vou aproximar-me! Ah-ha, já calculava: é uma escritora, sentada à escrivaninha, em frente de um computador. Deve ter acabado de escrever um livro, porque parece contente, embora um pouco cansada. E, certamente, a pessoa indicada para falar deste castelo, já que tudo leva a crer que mora aqui.A escritora precisa de ir descansar antes de falar comigo. Compreendo perfeitamente. Pede-me delicadamente que espere no salão. Assim farei, enquanto ela vai repousar um pouco.Escrever um livro deve ser muito interessante, mas também é capaz de cansar um bocado...

Maria Teresa Maia Gonzalez, in O Castelo dos Livros

Publicada por Helena em 7:18 Etiquetas: Maria Teresa Maia Gonzalez: O Castelo dos Livros 1 9 / N O V / 2 0 0 8O Conto das três maçazinhas de oiro

Era uma vez um pai que tinha sete filhos. Como não tinha com que os manter, nem trabalho para lhes dar, lembrou-se de os despedir todos por esse mundo fora, para que fossem procurar vida.Chamou-os então, e disse-lhes assim:– Filhos, eu não tenho que vos dar, e nem sequer trabalho; e por isso é preciso que cada um de vós vá tratar da vida, e ganhe para o seu sustento, porque eu já estou muito velho e não posso mais.Os rapazes ficaram todos muito pensativos, mas nenhum deles disse palavra. Quando chegou a hora da partida, o pai chamou o mais velho e disse-lhe assim:– Vê lá, filho, qual queres mais: a minha bênção, ou um bocado de pão para o caminho?– Mais quero o pão – respondeu o filho mais velho.O pai partiu uma fatia de pão e deu-a ao filho, que logo em seguida se foi embora.Chamou depois o seguinte em idade, e fez-lhe a mesma pergunta; e esse respondeu também que mais queria o pão, e responderam o mesmo os outros todos até ao sexto.Veio depois o mais novinho, que tinha só sete anos, e disse-lhe o pai as mesmas palavras:– Vê lá, filho, qual queres mais: se o meu pão se a minha bênção.O pequeno pôs-se a chorar, e respondeu que mais queria a bênção; – e o pai deitou a bênção ao filho mais novo, que se foi embora sempre a chorar.Saíram os rapazes; e cada um tomou por caminho diferente, à procura de trabalho, ou de algum amo para se apreitar. O mais pequeno, esse a bem dizer nem sabia aonde ia, porque nem idade tinha para se governar, e às vezes sentava-se debaixo de uma árvore, e punha-se a chorar já muito cansado. Até que à boca da noite encontrou uma mulher muito bonita, que se voltou para ele e disse-lhe assim:– Menino, tu onde vais?– A ganhar a vida – respondeu o pequeno. – A ver se encontro um amo para me apreitar.– Tão pequenino?!Ele então contou-lhe o que se tinha passado com o pai mais com os outros irmãos, e a aparecida disse-lhe assim:– Queres tu justar-te comigo?...– Sim senhora, quero. Quem me dera! – respondeu logo o rapazinho.– E então quanto queres ganhar?– Eu, o que me der!– Bem, então estamos justos! Mas olha lá que tens de me servir sete anos, e no fim dou-tos três maçãzinhas de oiro, que é a soldada. Queres?– Quero, sim senhora.E o pequeno foi algum tempo detrás da ama.Mas vai senão quando, os dois desapareceram no ar, assim como uma nuvem de fogo! – O pequeno nem tinha desconfiado, mas a ama era Nossa Senhora.Por lá andou o pequeno sete anos, que lhe pareceram a ele só sete dias; e no fim a ama mandou-o embora, e deu-lhe as maçãzinhas do ajuste, que eram três.– Toma! Dá-as a teu pai, e diz-lhe que é para te sustentar com elas, mais aos teus irmãos. Toma.Mas não as dês senão ao teu pai, ouviste?O pequeno foi-se logo embora muito contente, morto por dar ao pai as três maçãzinhas, que haviam de chegar para ele e para os outros irmãos; e quando já ia perto de casa, encontrou dois que já tinham voltado, mas por sinal ambos muito pobres.Os três puseram-se então a conversar; e o mais novo contou aos irmãos a boa ama que tinha encontrado, e mostrou-lhes as três maçãzinhas.Os irmãos ficaram cegos com o brilho do oiro; e logo ali rogaram muito ao mais pequeno que lhes desse a cada um sua maçãzinha. Mas ele respondeu que só as dava ao pai, e o pai que as repartisse por todos como quisesse.À vista disto, e como o irmão não queria dar as maçãs, à boamente, logo ali resolveram matá-lo e tirar-lhas depois, e se bem o pensaram melhor o fizeram; – mas qual não foi o espanto deles, quando viram que nem mesmo depois de morto arrancavam as maçãzinhas da mão do irmão?!Os dois resolveram então enterrar o pequeno, e foram-se para casa depois de o enterrar, e muitocrentes que o seu crime se não saberia, porque ninguém o tinha presenciado. Mas daí a mês pouco mais, um pastor passa por ali, e vê uma cana muito viçosa e muito bonita, que nascia onde o pequeno estava enterrado! Cortou-a e fez uma flauta. – Mas vai senão quando, o pastor põe-na à boca, e a flauta impeça a dizer:

Toca, toca, ó pastor, Que meus irmãos me mataram, P’r amor de três maçãzinhas, E ao cabo não nas levaram.

O pastor ficou muito aterrado com o sucedido, e foi-se dali onde a um carvoeiro, que andava no monte a fazer carvão, e contou-lhe o caso. O carvoeiro, inda mais espantado, pega na flauta e põe-se a soprar, e a flauta que entra logo a dizer:Toca, toca, carvoeiro, Que meus irmãos me mataram, P’r amor de três maçãzinhas E ao cabo não nas levaram.Ficou o carvoeiro que nem sabia donde era! E como estava de caminho para ir para a aldeia, e a flauta tinha a virtude de falar, pediu ao pastor que lha emprestasse, a ver se lá plo povo adivinhavam aquilo.Levou a flauta o carvoeiro, e a primeira casa onde entrou foi a do ferreiro; e logo ali contou o que tinha acontecido e mostrou-lhe a flauta. Mal o ferreiro a pôs à boca, a flauta começou logo:

Toca, toca, ó ferreiro, Que meus irmãos me mataram, P’r amor de três maçãzinhas E ao cabo não nas levaram.A este tempo entrava na forja o pai do morto, que ficou também muito admirado quando lhe contaram o que dizia a flauta! Pega também nela o pobre do velho e põe-se a soprar, e a flauta diz logo assim:

Toca, toca, ó meu pai, Que meus irmãos me mataram, Por três maçãzinhas d’oiro E ao cabo não nas levaram.

O velho pôs-se muito branco, e acudiu-lhe logo que as palavras da flauta diziam respeito à sua família. Nessa ocasião entrava na frágua um dos filhos do velho, que era um dos dois que já tinham voltado, e que trazia carvão para aguçar umas ferramentas. O pai parece que o coração lhe adivinhou, porque, mal o rapaz entra na forja, dá-lhe a flauta para que a tocasse:– Toma! Toca essa flauta!Leva o rapaz a flauta à boca, na boa fé, e ela começa logo:

Toca, toca, meu irmão, Que tu mesmo me mataste, P'r amor de três maçãzinhas Que ao cabo não nas levaste!

O rapaz ficou muito aterrado, e viu-se-lhe logo na cara o sinal do crime. Mas como os filhos do velho eram sete e só dois é que tinham voltado, precisavam saber qual era o morto. Foram-se então dali onde ao pastor, que os levou onde tinha cortado a cana; e cava-que-cava mesmo no sítio, não tardou que aparecesse o corpo do pequeno, e numa das mãos as três maçãzinhas!Por mais que alguns fizeram, não foram capazes de lhe tirar as maçãs; mas mal que o pai lhe tocou, abriu a mão e largou-as logo. Viu-se então que se tratava de um grande milagre; e, levados à presença do cadáver, os dois irmãos confessaram o que se tinha passado – e logo ali apareceu a Virgem Santíssima e arrebatou para o céu o corpo do pequeno, no meio de uma nuvem de fogo!Logo em seguida a terra abriu-se e engoliu os dois irmãos!

Trindade Coelho, Os meus amores

Publicada por Helena em 5:30 Etiquetas: Trindade Coelho: Os meus amores 1 5 / N O V / 2 0 0 8Miura

Fez um esforço. Embora ardesse numa chama de fúria, tentou refrear os nervos e medir com a calma possível a situação.Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria ribatejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!Irreprimível, uma onda de calor tapou-lhe o entendimento por um segundo. O corpo, inchado de raiva, empurrou as paredes do cubículo, num desespero de Sansão.Nada. Os muros eram resistentes, à prova de quanta força e quanta justa indignação pudesse haver. os homens, só assim: ou montados em cavalos velozes e defendidos por arame farpado, ou com sebes de cimento armado entre eles e a razão dos mais...Palmas e música lá fora. O Malhado dava gozo às senhorias...Um frémito de revolta arrepiou-lhe o pêlo. Dali a nada, ele. Ele, Miura, o rei da campina!A multidão calou-se. Começou a ouvir-se, sedante, nostálgico, o som grosso e pacífico das chocas.A planície!... O descampado infinito, loiro de sol e trigo... O ilimitado redil das noites luarentas, com bocas mudas, limpas, a ruminar o tempo... A fornalha escaldante, sedenta, desesperante, que o estrídulo das cegarregas levava ao rubro.Novamente o silêncio. Depois, ao lado, passos incertos de quem entra vencido e humilhado no primeiro buraco...Refrescou as ventas com a língua húmida e tentou regressar ao paraíso perdido.A planície...Um som fino de corneta.Estremeceu. Seria agora? Teria chegado, enfim, a sua vez?Não chegara. Foi a porta da esquerda que se abriu, e o rugido soturno que veio a seguir era do Bronco.Sem querer, cresceu outra vez quanto pôde para as paredes estreitas do cárcere. Mas a indignação e os músculos deram em pedra fria.A planície... O bebedoiro da Terra-Velha, fresco, com água limpa a espelhar os olhos...Assobios.O Bronco não fazia bem o papel...Um toque estranho, triste, calou a praça e rarefez o curro.

Rápida e vaga, a sombra do companheiro passou-lhe pela vista turva. Apertou-se-lhe o coração. Que seria?Palmas, música, gritos.Um largo espaço assim, com o mundo inteiro a vibrar para além da prisão. Algum tempo depois, novamente o silêncio e novamente as notas lúgubres do clarim.Todo inteiro a escutar o dobre a finados, abrasado de não sabia que lume, Miura tentava em vão encontrar no instinto confuso o destino do amigo.Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão, e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes, e arqueou-se, num ímpeto.Desgraçadamente, não podia nada. O senhor homem sabia bem quando e como as fazia. Mas por que razão o espetava daquela maneira?Três pancadas secas na porta, um rumor de tranca que cede, uma fresta que se alargou, deram-lhe num relance a explicação do enigma da agressão: chegara a sua vez.Nova picada no lombo.- Miura! Cornudo!Dum salto todo muscular, quase de voo, estava na arena.Pronto!A tremer como varas verdes, de cólera e de angústia, olhou à volta. Um tapume redondo e, do lado de lá, gente, gente, sem acabar.Com a pata nervosa escarvou a areia do chão. Um calor de bosta macia correu-lhe pelo rego do servidoiro. Urinou sem querer.Gritos da multidão.Que papel ia representar? Que se pedia do seu ódio?Hesitante, um tipo magro, doirado, entrou no redondel.Olhou-o a frio. Que força traria no rosto mirrado, nas mãos amarelas, para se atrever assim a transpor a barreira?A figura franzina avançou.Admirado, Miura olhava aquela fragilidade de dois pés. Olhava-a sem pestanejar, olímpica e ansiosamente.Com ar de quem joga a vida, o manequim de lantejoulas caminhava sempre. E, quando Miura o tinha já à distância dum arranco, e ainda sem compreender olhava um tal heroísmo, enfatuadamente o outro bateu o pé direito no chão e gritou:- Eh! boi! Eh! toiro!A multidão dava palmas.- Eh! boi! Eh! toiro!Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo.Mas o homem que visou, que atacou de frente, cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nuvem vermelha, onde o ímpeto das hastes aguçadas se quebrou desiludido.Cego daquele ludíbrio, tornou a avançar. E foi uma torrente de energia ofendida que se pôs em movimento.Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora. Os cornos ávidos, angustiados, deram em cor.Mais palmas ao dançarino.Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente. Que a sua raiva atingisse ao menos o alvo.O espectro doirado lá estava sempre. Pequenino, com ar de troça, olhava-o como se olhasse um brinquedo inofensivo.Silêncio.Esperou. O homem ia desafiá-lo certamente outra vez.Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair do domínio dos chifres.Agora!De novo, porém, a nuvem vermelha apareceu. E de novo Miura gastou nela a explosão da sua dor.

Palmas, gritos.Desesperado, tornou a escarvar o chão, agora com as patas e com os galhos. O homem!Mas o inimigo não desistia. Talvez para exaltar a própria vaidade, aparentava dar-lhe mais oportunidades. Lá vinha todo empertigado, a apontar dois pequenos paus coloridos, e a gritar como há pouco:- Eh! toiro! Eh! boi!Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, lançou-se-lhe à figura, disposto a tudo. Não trouxesse ele o pano mágico, e veríamos!Não trazia. E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados.Passada a bruma que se lhe fez nos olhos, relanceou a vista pela plateia. Então?!Como não recebeu qualquer resposta, desceu solitário à consciência do seu martírio. Lá levavam o moribundo em braços, e lá saltava na arena outro farsante doirado.Esperou. Se vinha sem a capa enfeitiçada, sem o diabólico farrapo que o cegava e lhe perturbava o entendimento, morria.Mas o outro estava escudado.Apesar disso, avançou. Avançou e bateu, como sempre, em algodão.Voltou à carga.O corpo fino do toureiro, porém, fugia-lhe por artes infernais.Protestos da assistência.Avançou de novo. Os olhos já lhe doíam e a cabeça já lhe andava à roda.Humilhado, com o sangue a ferver-lhe nas veias, escarvou a areia mais uma vez, urinou e roncou, num sofrimento sem limites. Miura, joguete nas mãos dum zé-ninguém!Num ímpeto, sem dar tempo ao inimigo, caiu sobre ele. Mas quê! Como um gamo, o miserável saltava a vedação.Desesperado, espetou os chifres na tábua dura, em direcção à barriga do fugitivo, que arquejava ainda do outro lado. Sangue e suor corriam-lhe pelo lombo abaixo.Ouviu uma voz que o chamava. Quem seria? Voltou-se. Mas era um novo palhaço, que trazia também a nuvem, agora pequena e triangular.Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que avançava, avançou.Deu, como sempre na miragem enganadora.Renovou a investida. Iludido, outra vez.Parou. Mas não acabaria aquele martírio? Não haveria remédio para semelhante mortificação?Num último esforço, avançou quatro vezes. Nada. Apenas palmas ao actor.Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!Calada, a lâmina oferecia-se inteira.Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.

Miguel Torga, Os Bichos

Publicada por Helena em 5:54 Etiquetas: Miguel Torga: Os Bichos 1 4 / N O V / 2 0 0 8O coelho de jade

Contaram-me que, lá muito atrás de todos os séculos conhecidos, houve um tempo de maravilha em que os homens entendiam a fala dos bichos.Quando e como deixaram de perceber o sussurro das formigas, o apelo do gavião, o quei-xume do caracol ou o pausado discorrer dos tigres, na hora de semicerrar os olhos ao sol do meio-dia, quando e como os homens ensurdeceram às outras vozes da terra não sei. Só sei que foi pena.

Pois, nesse tempo, todos os seres animados se entendiam. E alguns, até, pela abundância das suas virtudes, alcançavam o respeito dos demais.Era o caso da lebre, desta lebre da nossa história.Bichinho lesto, acorria com palavras de estímulo e amparo onde fosse preciso. Mas não a julguem lebre pregadora, aos saltos pelo mato, com discursos de fugida e actos de raspão. Não senhor.Nela não havia fingimento, era uma lebre esmoler e piedosa, só entregue ao socorro alheio.Como tinha de benefício a rapidez, produzia numa hora mais acções boas do que outros conseguem juntar num ano. Mas isso provinha da velocidade com que nascera para a vida.Olhem um cágado de carapaça voltada, a espernear de aflição. Vinha a lebre e zumba! - virava-o para a terra.Olhem uma andorinha implume, caída do ninho. Vinha a lebre e zumba! - repunha-a no conchego da asa materna.Olhem um cachorro sequioso, de língua encortiçada e pendente. Vinha a lebre e zumba! - carregava com ele até à beira do riacho.Olhem a abelha trémula, apanhada pelo caminho da noite. Vinha a lebre e zumba! - soprava-a para o cortiço.Olhem dois carneiros de chifres encavalitados um no outro, cansados de uma luta de que já nem sabiam o porquê. Vinha a lebre e zumba! - despegava-os da contenda e punha-os a balir a mesma canção de amizade.Que ela tinha muita força. A força do ânimo e do bem-fazer.Lebre assim, ambulatória, assistente dos fracos, recurso dos aflitos, é raridade. Exemplo semelhante não se encontra em parte alguma, senão, por outras épocas e sítios, nos romances de cavalaria e não em todos.Como se percebe, os outros animais gratamente lhe davam o título de princesa. Ela, coberta de modéstia, recusava a honra. Bastava-lhe ser lebre sem mais quê.

Buda, o que tudo sabe porque escuta o coração dos seres e interpreta a notícia dos ventos, ouviu o que de bom se contava da lebre. Quis conhecê-la. De uma vez em que andava por perto em visita aos seus discípulos, desceu o declive da colina que a lebre habitava. Sozinho e cansado da jornada, Buda estendeu-se à sombra de um penedo.As cigarras zuniam ao calor da tarde. Aos pés da colina encurvava-se o rio, que os bichos do sítio supunham o único do mundo ou, pelo menos, o mais belo de todos.

Confortado com o que vira, Buda adormeceu. Acon-tecia-lhe no sono transmutar-se noutro e, depois, acordar ainda com as vestes e as configurações do sonho. Há muitas histórias de Buda que contam destes feitos.Daquela vez acordou transformado em brâmane, sacerdote mendigo. Descalço e esfarrapado pêlos espinheiros, à beira de muitos caminhos, o brâmane causava pena.- Piedade. Tenham piedade de mim - suplicou.Via-se que aquele brâmane há muito que não conhecia abrigo nem pão.Devagarinho, ora um ora outro, os animais da colina iam-se chegando ao brâmane desolado. Não podiam adivinhar que, sob aquele disfarce, era de Buda que se aproximavam.- Piedade. Tenham piedade de mim - suplicava o brâmane, erguendo os braços.- Como veio aqui ter? - perguntou o rato de água aos bichos da vizinhança. - Estava a dormir na minha toca, quando o ouvi. O coitado não dura muito...Todos achavam o mesmo.- Piedade. Tenham piedade de mim - suplicava o brâmane, estendendo os braços.- Se morrer, será de fome - suspeitou a lontra.- E nós vamos deixar? - perfilou-se a garça.- Piedade. Tenham piedade de mim - suplicava o brâmane, pendendo os braços.Confrangia.Então os bichos correram cada qual para seu lado. A garça pernalta em direcção ao rio. O rato em direcção ao bosque. A lontra em direcção aos seixos da margem.Esvoaçando sobre as águas, a garça pescou um peixe. Vasculhando pelas ramagens, o rato colheu frutos silvestres. Levantando as pedras molhadas da beira-rio, a lontra filou uma cobra.Trouxeram tudo de presente ao brâmane, que desfalecia. Ele que escolhesse. Ele que comesse.Mas, para surpresa deles, o brâmane não tocou em nada.Sugeriu não sei qual:- Faça-se um fogo para assar o peixe, para estalar os frutos, para despelar a cobra.Assim se fez.Mas nem mesmo depois de cozinhados o brâmane os quis.- Algum voto o proíbe de comer peixe, fruta... - pensou, em voz alta, um dos bichos.Estavam desolados. Diante deles o desgraçado definhava. E eles não sabiam como valer-lhe.Mais eis que, atraída pelo lume da fogueira, ao grupo se juntou a lebre.- Quem acordou o fogo? - perguntou ela, movida pela preocupação de acudir e abafar os excessos da Natureza.Explicaram-lhe o sucedido e apontaram-lhe o brâmane moribundo. Compadecida, a lebre debruçou-se sobre o brâmane.- Está muito fraco. Precisa de comer carne de caça fresca para se salvar - sentenciou.Os restantes bichos recuaram. A lebre fitou-os. Agora pasmem com o que lhe ocorreu:- Carne de caça fresca é a da lebre. Quererá ele provar da minha?Perante o pânico da lontra, da garça e do rato, a lebre ia lançar-se à fogueira. Já as chamas rente a ela a cobiçavam, quando se deteve:- Não tenho o direito de sacrificar ao meu gesto os parasitas que me povoam o pêlo.E começou a catar-se.Os seus companheiros de colina estavam paralisados de espanto. Tanta generosidade nunca se vira.O brâmane também a fitava com estranha atenção.Depois de ter limpo de si todos os parasitas, a lebre, sem uma hesitação nos passos, encaminhou-se para a fogueira... E, num impulso, como se as chamas fossem um lago, saltou para o meio delas...Nesse mesmo instante, o brâmane, magicamente desperto da sua prostração, levantou-se e, retomando as forças de Buda, exclamou, de braços erguidos para o céu:- Que tudo torne ao que era: o fogo em tronco seco e a bondade ao seu corpo vivo.Logo ali se aplacou o fogo. Os animais correram para a lebre num alvoroço de alegria...

Conta ainda a lenda que os magos tauístas, recordando o feito da lebre, a imortalizaram numa imagem que ficou conhecida por «O coelho de jade». De curtas patas dianteiras e longuíssimas patas posteriores, a lebre ou o coelho tritura, sabiamente, num almofariz, o «Elixir de jade», remédio miraculoso contra todos os males.

Entretanto, já Buda ordenara que à estóica lebre fosse concedido o panteão lunar.Quem, por desenfado, em noites luarentas, pesquisar a Lua com olhos indagadores há-de divisar-lhe a silhueta debruçada sobre o almofariz. É ela, a lebre incansável,que trabalha.Talvez uns grãos de pó, uns minúsculos grãos de pó se derramem do almofariz e caiam sobre a Terra. Seria bom...

António Torrado

Publicada por Helena em 4:04 Etiquetas: António Torrado 6 / N O V / 2 0 0 8O Lobo Leitura Orientada

1. Após a leitura do conto «O Lobo», de Hermann Hesse, atente nos dois primeiros parágrafos. Certamente, constatou que o narrador nos localiza no tempo da acção, um Inverno rigoroso e inóspito, e no espaço, «as montanhas francesas». Indique as principais vítimas das intempéries, naquele espaço.

2. Face ao clima inóspito, há um grupo de animais que decide emigrar.2.1. Identifique-o.2.2. Descreva o grupo que se dirigiu para o Jura suíço.2.3. Explique a atitude das pessoas quando sentiram a presença do trio de «intrusos» na sua região.2.4. Esclareça a situação que originou o massacre dos animais.

3. Releia os dois últimos parágrafos do texto.3.1. Transcreva excertos do texto que evidenciem o sofrimento do lobo.3.2. Esclareça a oposição entre a dor do animal e o júbilo das pessoas.

4. «Ninguém reparou na beleza da floresta coberta de neve, nem no brilho do planalto, nem na Lua vermelha pendurada por cima do Chasseral, cuja fraca luz se quebrava nos canos das espingardas, nos cristais de neve e nos olhos mortiços do lobo abatido.»4.1. Explique, por palavras suas, o segmento textual transcrito.4.2. Identifique dois recursos estilísticos presentes no excerto.

5. Decifre a possível simbologia da alcateia.

6. Delimite, no conto, um segmento descritivo e um segmento narrativo.6.1. Indique as marcas linguísticas que lhe permitiram concluir que se encontra perante uma pausa na acção ou face a um momento em que a acção progride.

7. O narrador não reproduz o discurso das personagens através do discurso directo. Contudo, percepcionamos, nesta breve história, os pensamentos e sentimentos que dominam homens e animais.7.1. Imagine um possível diálogo entre os camponeses que perseguiram o lobo. Se preferir, escreva o diálogo entre a alcateia faminta e desprotegida.

8. Escreva um breve texto, de cinquenta a sessenta palavras, no qual apresente a sua impressão sobre o conto «O Lobo».

Publicada por Helena em 15:52 Etiquetas: Fichas; Herman Hesse 2 9 / O U T / 2 0 0 8Os Parâmetros da Vida Leitura orientada

A compreensão do texto 1. AS PERSONAGENS 1.1. Cada história tem as suas personagens.1.1.1. Considerando a classificação de personagens em principais, secundárias e figurantes, clas-sifica as personagens da história do ladrão.1.1.2. Aplica o mesmo modelo às histórias em que os narradores são também personagens.

2. O TEMPO / O ESPAÇO 2.1. Sublinha no texto as frases que situam a acção no tempo e no espaço.2.1.1. Que concluis quanto às possibilidades de existência real desse espaço?2.2. "É um mundo onde uma certa -(. ..) -coexistência de passado, presente e até futuro, é possí-vel;" 2.2.1. O que significa a palavra coexistência?2.2.2. Quer então esta frase dizer que este é um mundo onde:-coisas de diferentes épocas se podem passar ao mesmo tempo D -se pode viajar para o passado e para o futuro D -se pode antecipar o futuro D -num determinado momento se podem juntar

pessoas do passado e do futuro D(Escolhe a resposta que consideres mais adequada.>

3. A HISTÓRIA 3.1. Na leitura que fizeste apercebeste-te que estás diante de várias histórias que de algummodo se ligam entre si.Que histórias? Quem as conta?

4. O NARRADOR 4.1. Pela leitura do texto, apercebeste-te, com certeza, que há vários narradores: narrador ausente e dois narradores presentes.4.1.1. Quando a narração é feita por um narrador ausente, em que pessoa te aparece a maior parte dos verbos?4.1.2. E quando o narrador é presente?4.2. Vais anotar, na margem do texto, as entradas respectivas de cada tipo de narrador através do pronome pessoal que o identifica.4.3. Faz agora corresponder o pronome pessoal que indica o narrador presente à persona- gem (ou personagens) que ela representa.4.3.1. Que verificaste?4.4. Compara a maneira de contar do narrador ausente e a do(s) narradore(s) presente(s) quanto à objectividade ou subjectividade das respectivas narrações.

Publicada por Helena em 11:35 Etiquetas: Fichas; Maria Isabel Barreno Farrusco

Dentro da poça do Lenteiro, há rãs. Naquela água coberta de agriões e de juncos moram centenas delas. Mas à volta, na sebe de marmeleiros, silva-macha e alecrim, vive Farrusco, o melro. Sabe-se isso desde que, em certo entardecer de Agosto, a Clara perguntou ao cuco que se pousara num pinheiro em frente: - Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira? A rapariga era toda ela de se comer. E o cuco, maroto, olhou de lá, viu, e respondeu: - Cucu... Cucu... Cucu... Três anos! A moça ficou varada. O Rodrigo acabava a tropa de aí a dias, e prometera levá-la à igreja logo a seguir. Que significava, pois, semelhante demora? Aflita, chegou-se à Isaura, a alcoviteira, mouca como um soco, que a seu lado sachava milho, e gritou-lhe aos ouvidos, desesperada: - Ora vê?! Que lhe dizia eu? A Isaura nem queria acreditar. - Ouvirias mal!... - Olhe lá que não ouvisse! Contei-os bem. E foi então que Farrusco soltou a sua primeira gargalhada. Coisa bonita! Uma cascata de semicolcheias escaroladas, como se alguém rasgasse um pano cru, rijo e comprido, no silêncio da tarde serena, que o desânimo de Clara enchera subitamente de melancolia. Nada mais do que isso. Mas o bastante para mudar o sinal do desencanto. A força virgem daquele riso chamou a vida à consciência dos seus direitos. De parada, a natureza animou-se. Uma aragem muito branda e muito fresca atravessou o espaço. Tudo quanto era mundo vegetal ondulou levemente.

A própria terra, sonolenta do calor do dia, acordou. £ de aí a segundos começou a maior sinfonia que se ouviu no Lenteiro. Chamadas por aquela volatina, as rãs subiram à tona de água e puseram-se a dar força sonora às tímidas vozes ocultas e anónimas que se erguiam do limbo. Às rãs, juntaram-se logo, pressurosos, os ralos, as cegarregas, os grilos, e quanta arraia miúda tinha fala. A esta, a passarada. Até que não ficou bicho sensível e solidário alheio ao Tantum Ergo pagão. Um coro imenso, cósmico e fraterno, que enchia o mundo de confiança. Clara, arrastada pela onda de harmonia, apelou da sentença: - Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira? O que foste fazer! O malandro do pitoniso, se há pouco fora cruel, desta vez requintou. - Cucu... Cucu... Cucu... Cucu... Parecia uma ladainha! A lengalenga não parava mais. Ou de propósito, ou porque o mundo, naquele instante, era um orfeão aberto, o ladrão dava mais anos de solteira à rapariga do que estrelas tem o céu. Desapontada, a cachopa regressou às ervas daninhas do lameiro. E, num amuo justificado, deixou correr as horas. A seu lado, comprometida, a Isaura, que tinha garantido o noivado a curto prazo, falava, falava, sem conseguir adoçar-lhe no espírito o fel da desilusão. E quando a noite se aproximou disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada. Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu. Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias de Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco. Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada. A vida homenageava a vida. Depois continuou tudo a cantar. - O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro se riu!... - Riem-se de tudo, esses diabos... Mas o lusco-fusco começava a empoeirar o céu, e Farrusco ia fechando docemente os olhos, deitado na cama dura. A vida que lhe ensinara a mãe, simples, honesta, espartana, não lhe consentia luxos de noitadas. Pela manhã, ainda o sol vinha lá para Galegos, já ele tinha de estar de perna à vela, pronto para comer a bicharada da veiga, e rir de novo, se alguma tola de Vilar de Celas se fiasse outra vez no aldrabão do cuco.

Miguel Torga, Os Bichos

Publicada por Helena em 5:53 Etiquetas: Miguel Torga: Os Bichos 2 6 / O U T / 2 0 0 8Os parâmetros da vida A linha da rotina diária necessária à sobrevivência instala-se, passando, por certos eixos e fortificações. Para uns essa linha parece longínqua, quase perdida no horizonte dum grande espaço cheio de liberdade e de caprichosos ricos, os saudáveis, os descuidados -outros sentem-se apertados dentro de muralhas asfixiantes. Sim, poderemos figurar esta questão como uma linha militar de defesas contra o inimigo - a morte. Uma Linha Maginot, que tão factual e foneticamente se revelou imaginária.Sim, as nossas linhas de sobrevivência são, em boa parte, imaginárias. Deixando a imaginação -por agora, porque ela nunca nos deixa a nós e voltando ao tema que me propus, eu, velho contador de histórias e que disso fiz profissão, quero hoje contar-vos a história dum rapaz cuja linha de sobrevivência era estrita e rigorosa. Assim pensava ele e era, por isso, um rapaz triste. Ou vice-versa. Antes de me adiantar, esclareço ainda uma outra coisa: parecerá estranha, esta história, situada no presente, mas com um sabor antigo nos seus pormenores. Acontece que ela não se passou neste mundo, pelo menos tal como o conhecem, ela teve sua plena realidade e acontecer num mundo ligeiramente lateral àquele que conheceis: um mundo que faz com este, a que chamais vosso, um ângulo de alguns graus inflectido. Ele não está separado deste agora em que vos falo, muito pelo contrário. É um mundo onde uma certa -mas não total -coexistência de

passado, presente e até futuro, é possível; um mundo que contém este, que considerais vosso, tão querido e tão absolutamente limitado.Pois conheci esse rapaz num dia igual a muitos outros. Eu sentara-me na praça, junto à fonte. Era dia de mercado, muita gente passava, muita gente se atardava, bebendo água, refrescando-se no intervalo ou no fim das compras, planeando, contando o dinheiro. Eu estendera o pano preto à minha frente, como sempre faço, um rectângulo nem muito pequeno nem muito grande, que chame a atenção para não ser pisado, mas que não crie também a interrogação hostil dum espaço grande que obrigue ao desvio dos itinerários naturais. Sabedorias que aprendi, com os mestres e com a vida, com o olhar das pessoas. Estas julgam geralmente que o pano preto apenas se destina a recolher as moedas e assim fixam o seu olhar naquele rectângulo, julgando responder inteiramente ao seu apelo com essa esmola para a voz que ouvem com mais ou menos atenção.Sim, o rectângulo destinava-se à recolha de moedas. Mas, mais do que isso, era um adereço. Tudo necessita duma infra-estrutura. O pano negro era o espaço que separava quem falava e quem escutava. Poderia ser branco, também; vazio intermédio, absorção de todos os possíveis. Para não ser demasiado pomposo direi que o pano rectangular era o necessário ritual.Eu começara a contar a história dum salteador de estradas que um dia sofrera um grande desastre. Caiu do cavalo, dizia eu, quando uma noite fugia, perseguido por homens indignados. Mais do que indignados, desesperados: o ladrão roubara-os vezes sem conta, empestando os caminhos daquela região; perseguindo o ladrão, eles fugiam da miséria, por isso tinham superado o medo e estavam dispostos à morte, sua ou do ladrão. Este, que conhecia bem todos os caminhos e sítios desertos, embrenhou-se por um córrego na encosta dum fundo precipício. Em baixo corriam águas negras e apenas alguns penhascos e árvores raquíticas separavam o galope do cavalo daquelas águas furiosas. Qualquer coisa espantou o animal. Uma víbora, foi dito depois, mas ninguém viu tal víbora ou seu rasto. Há muitas causas misteriosas neste mundo e não vale a pena determo-nos sobre elas, a não ser quando elas nos chamam e se revelam. O cavalo empinou-se, o ladrão caíu e resvalou quase até ao fundo do precipício. Apenas o susteve um penhasco agudo. A queda salvou-o da morte. Os perseguidores perscrutaram as sombras dos fundos. Decidiram que era impossível procurar o ladrão naquela ravina quase a pique, decidiram que certamente ele tinha morrido; pelo menos não sairia dali com vida, por muito longa que fosse a agonia.A queda quebrou a perna direita do ladrão, que conseguiu rastejar penosamente ao longo da ravina, alimentando-se de bagas, raízes e até de caules lenhosos, dias e dias, bebendo das águas furiosas do fundo. A perna soldou, torta, irremediavelmente coxa e dolorosa. O ladrão saiu do desfiladeiro, prisão improvisada, magro, sem cavalo, sem aptidão para saltear nas estradas. Caminhou para longe, coxeando.Chegou a uma aldeia distante e as pessoas juntavam-se à sua volta, com gritos de boas-vindas e hossanas. Admirado, perguntou o que se passava. Reconhecemos-te, responderam-lhe; diz uma velha profecia que um dia chegarias. Pai dos arrependidos, ajudando todos os que querem fugir do mal, coxeando. Ainda perplexo, o ladrão coxo foi acolhido por um alfaiate, que o tornou seu ajudante, considerando uma honra albergar aquele que fora anunciado. O ladrão aceitou tudo isto, pensando nas vantagens imediatas: cama e comida garantidas. Mas com o andar do tempo foi acreditando no significado da sua própria presença ali, foi acreditando na profecia. Como poderia ele, sozinho, pretender desmentir o que fora predito e acontecera? Como várias outras pessoas de similar experiência, o coxo ladrão aceitou os acontecimentos, sua evidência, seu significado, desistindo de opiniões próprias, e foi feliz. Casou com a filha do alfaiate que era feia e dedicada. Teve filhos, herdou o negócio do sogro. Morreu, muitos anos depois, em paz. E antes de morrer, disse aos filhos: aceitem os vossos destinos. O que parece uma desgraça, pode não ser.Algumas pessoas revoltavam-se com a história, sempre assim aconteceu com as minhas histórias. Achavam injusto que um ladrão morresse feliz e em paz. Outras comoviam-se e diziam que Deus é bom e tudo depende de nós aceitarmos as suas oportunidades. Foi então que se aproximou o rapaz triste. Com um sorriso amargo perguntou-me: achas então que o sofrimento torna as pessoas boas? E eu disse-lhe que não. Nada torna as pessoas boas a não ser elas próprias. A vida dum coxo não é igual à de quem tem duas pernas sãs. Não necessariamente pior, não necessariamente melhor.Eu chamei-lhe velho idiota e afastei-me. Tinha nascido de pais que, não sendo ricos, viviam desafogadamente, era saudável, tive uma infância feliz. Ainda adolescente, os meus pais

morreram. Fui viver com um tio, homem nem bom nem mau, apenas com sentido do dever. O meu tio insistia em contar-me quanto lhe custava alimentar-me, vestir-me, pagar-me alguns estudos. Não sou rico, dizia-me, e tenho dois filhos. Todo o dinheiro que vou conseguindo arranjar reparto entre vocês os três, igualmente. Nada mais acrescentava, e eu sentia aquilo que ele queria que eu sentisse: a injustiça daquela igualdade, à qual ele se sentia obrigado, prejudicando os próprios filhos; a necessidade de que tal injustiça fosse reparada por mim. Mas que poderia eu fazer? A minha existência era, só por si, causa de um desequilíbrio. Resolvi desaparecer, pois que parecia essa a única solução. Fiz planos, sem nada dizer a meu tio ou aos meus primos. Se falasse, eles sentir-se-iam na obrigação de me forçar a ficar. Achariam mesmo que O meu propósito não era ir-me embora, mas obrigá-los a insistir para que ficasse junto deles. A vida tem situações destas, em que as linhas se cruzam e dão situações invertidas, como os raios de luz se cruzam e invertem as imagens. A única solução era eu partir sem nada dizer e deixá-los a lamentar a minha ingratidão na minha ausência: estaria então cumprido o dever deles.Fiz planos. Mas era muito novo, não tinha experiência de vida nem certeza quanto à forma de ganhar dinheiro. A minha ansiedade tornou-se muito grande e eu adoeci gravemente. O meu tio e os meus primos trataram-me o melhor possível, com grandes sacrifícios económicos. Eu pensava: talvez morra, e achava que seria uma boa solução. Uma forma de cumprir o meu desejo de desaparecer. Em médicos e remédios se gastaram todas as poucas economias do meu tio, e eu não morri. Mas fiquei com uma doença incurável: para sobreviver em condições satisfatórias teria que fazer uma dieta rigorosa e cara. Tenho poucas forças para trabalhar.Mais algum tempo fiquei com o meu tio e os meus primos, assistindo aos seus óbvios sacrifícios. Sempre rectos, sempre falando dos esforços redobrados a que eram obrigados por minha causa. Até que um dia saí de casa. Deixei-lhes uma carta agradecendo tudo o que haviam feito por mim. Desde aí tenho andado à deriva. Poucos trabalhos sei fazer, poucos trabalhos posso fazer. Como o que calha, durmo onde calha: o meu mal agrava-se de dia para dia. Acho que em breve morrerei. Não sei se é isso que quero, mas também não vejo outra solução. Foi tudo isto o que eu não contei ao velho idiota que contava histórias sobre os benefícios da adversidade.Fiquei muito impressionado. O medo, ou a infelicidade do rapaz era tal que ele nem se atrevia a dizer o nome da sua doença. Isto acontece com muita frequência entre as pessoas: julgam que, dizendo o nome da doença, esta se julgará chamada e avançará com mais rapidez; ignorando-a, julgam desencorajá-la.Quando o rapaz se afastou, eu chamei-o, mas ele não me ouviu, ou fingiu que não. À noite encontrei-o na estalagem, e convidei-o para jantar comigo. Reparte comigo o produto das minhas histórias, que tanto te desagradaram, disse-lhe. O rapaz encolheu os ombros e disse que comia pouco, muito pouco. Talvez seja uma vantagem, respondi-lhe. Não é vantagem, é necessidade. Resumindo o nosso estranho diálogo, ele contou-me que comia pouco para que não se agravasse o mal que lhe atacava as entranhas. E que comendo pouco, ficava fraco, e não conseguia trabalhar para ganhar o suficiente para comer os alimentos de que realmente necessitava. Entre o comer pouco para sobreviver e não sobreviver por comer mal, o seu desejo de sobrevivência oscilava. O que quer você afinal? Perguntei-lhe.Não interessa o que eu quero, mas o que eu posso, respondi-lhe. Aí é que tu te enganas, disse-me o velho, misteriosamente. Podemos sempre tornar pior a sorte, má ou boa, que temos. Sobretudo se insistirmos em nos sentirmos desgraçados. E a nossa conversa acabou aí.Insisti para que nessa noite o rapaz comesse aquilo de que necessitava. Ele dizia-me não vale a pena, um dia, um jantar, não adianta, e eu insistia que a questão não era essa. Consegui que aceitasse o jantar adequado à sua dieta. No fim, agradeceu-me e eu respondi-lhe que não me devia agradecimentos, nem a mim nem a ninguém, porque as pessoas fazem o que querem. Ele disse que não valia a pena discutir comigo e despediu-se.Vários meses se passaram sem que eu o visse. De novo eu estava na praça do mercado, desta vez contando a história da mulher que queimara as mãos ao tentar salvar das chamas uma vizinha maldosa que lançara fogo à própria casa --ao tentar fazer um bruxedo contra alguém, diziam; poderia ter sido outra espécie de desespero? A mulher má foi salva e continuou má, ficando mesmo com ódio especial em relação àquela que a salvara. Esta curou-se, ao fim de longo sofrimento: ficou com as mãos feias, mas úteis. Aparentemente tudo ficou na mesma, concluí eu, excepto pelo ódio e pelas mãos feias. Que história tão estúpida, disse uma mulher da assistência. O que quer dizer? Que as boas acções não dão bons resultados?Quer dizer que os resultados das acções permanecem secretos, disse uma voz no meio da

multidão. Era o rapaz, aproximou-se de mim. Eu soube que ele estava curado. Por isso pôde contar-me tudo o que lhe acontecera.Recordei muitas vezes o que me disseste, e tive medo de piorar ainda a minha sorte. Passei um mau período, até que compreendi que o medo não ajuda a sorte de ninguém. Para fugir do medo comecei a contar histórias: a mim próprio, aos outros.Contava, por exemplo, a história do menino infeliz, órfão e abandonado que um dia encontra uma benfeitora que o ama perdidamente, que é perdidamente generosa. E depois? Perguntava quem o escutava. Depois viveram felizes para sempre. Depois a benfeitora adoeceu e o rapaz tratou-a com desvelo incomparável. O jovem inventava vários finais para a história, justos e edificantes, mas os seus ouvintes maçavam-se. Percebeu que a reacção dos ouvintes eram o sinal da verdade da história -da falta de verdade; não encontrava final satisfatório. Contou então que o menino cresceu rico e descuidado. Tão descuidado que achava longínquo o perigo, longínqua a necessidade. Comprou um carro de corrida, desenfreadamente o guiava, e matou-se num desastre. Chegou a contar esta história em verso, com acompanhamento musical. As pessoas ficavam então junto dele discutindo o final, indignando-se. O que queres provar, diziam. Que a felicidade não dura, que a riqueza é um mal? Davam-lhe também dinheiro ou comida. Mas como ele comia frugalmente e ficava sentado, quieto e calado, tentando escutar as queixas ou alegrias do seu corpo, atento também às reacções dos outros, tomaram-no por um sábio. Ajustou-se mais ao seu corpo.Colocava o rectângulo preto à sua frente porque isso lhe recordava o velho -agora grata memória -e lhe facilitava a concentração. Fitando o negro, as palavras surgiam.Fui visitar meu tio, e beijei-o. Ele comoveu-se muito e chorou abraçado a mim. Entraram então meus primos, que ficaram igualmente contentes por me verem. Que grande alegria deste a nosso pai, diziam. E eu olhava aquelas três criaturas, a quem detestara por me contarem o que faziam por mim, e compreendia quanto eram tímidos e inseguros: apenas haviam temido que eu não os notasse, que eu não notasse a sua dedicação. Queixavam-se porque tinham medo. Medo de não cumprir o que consideravam um dever. Medo da vida. E eu não compreendia como fora possível a minha cegueira. Perdi o medo: se não cuidamos do nosso património de felicidade, certamente que o perderemos, repeti com alegria. A minha doença foi um aviso, e eu reinterpretei toda a minha história.Resolvi então vir ter contigo. Estava curado: quero dizer, a minha doença já não é uma limitação terrível, é uma coisa que me obriga a uma rotina diária, nem mais nem menos penosa do que comer como todos fazem, ou tomar banho, ou lavar os dentes. Bem vistas as coisas, temos todos uma doença incurável: aproximamo-nos da morte todos os dias, e todos os dias temos de tentar prolongar um pouco mais o nosso trajecto.O rapaz aprendeu a contar histórias. Tornou-se meu ajudante. Encontrou assim um trabalho de que gostava; naturalmente que esse trabalho estava também dentro das suas forças. Tal como a sua dieta, que lhe parecera tão terrível; tudo passou a ser condição natural da sua existência; as histórias também. Foi a partir daí que as pessoas passaram a acreditar que o rectângulo de pano preto não servia apenas para recolher esmolas, mas que tinha qualidades mágicas. Quando as pessoas tocavam esse rectângulo, deixando uma esmola, esperando um milagre, o rapaz sorria.É possível que sim: que tenha havido uma cura, e miraculosa. Não é todo o crescimento uma miraculosa cura, do não ser ao ser? É neste mundo de onde vos falo que se situa a fonte dos milagres. Um mundo onde os narradores se misturam, onde todos os espaços, mesmo os mais subjectivos, podem ser visitados, onde o tempo não tem sentido único.Esta é a minha própria história. Como eu me tornei um contador de histórias, depois de uma infância triste e de uma juventude doentia, juntando-me a um velho sonho.

Maria Isabel Barreno, In O Enviado

Publicada por Helena em 11:29 Etiquetas: Maria Isabel Barreno 2 5 / O U T / 2 0 0 8Vicente

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:- Noé, onde está o meu servo Vicente?Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.- Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!... Nada.- Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.- Vicente! Vicente!. Em que sítio é que ele se meteu?Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.- Vicente fugiu...- Fugiu?! Fugiu como?- Fugiu... Voou...Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.

- Noé, onde está o meu servo Vicente?Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.- Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...- Noé!... Noé!....E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lês a lês como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte. Apenas a crista de um cerro a emergir das vagas. Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.Ah, mas estavam «rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu»! E homens e animais, começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação.

Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre.Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

Miguel Torga, Os Bichos

Publicada por Helena em 5:57 Etiquetas: Miguel Torga: Os Bichos A Sombra A um dia assim como o de hoje costumo chamar, no meu calão, de poeta em férias, dia «incoincidente».O céu desde manhã que se conserva azul com gradações cruas de quadro mau; as árvores escorrem verde e chilreios de pássaros; as ruas riscam-se da rapidez das sombras. Uma serenidade tépida cinge toda esta paisagem de trapeiras e de ceroulas a secarem ao sol numa sinfonia natural de cores, pombas, luz e árvores com flores azuis no Largo do Rato.Pois foi precisamente hoje – dia de sol, de andorinhas, de árvores azuis, etc. – que os homens resolveram não coincidir com a natureza. Foi precisamente hoje que todos vieram para a rua com tempestades por dentro, num estoirar de trovoada interior a rasar as almas de lés a lés, como relâmpagos negros nos olhos sorumbáticos e trovões no furor justo daquela mulher, de giga à cabeça, aos berros para uma senhorita encostada ao parapeito da janela do seu terceiro andar com os braços papudos de nada fazer:– Se quiser, venha cá a baixo, sua gulosa!Mal deitei o nariz fora da porta, logo pressenti o desconcerto do dia, bem visível nesta não-coincidência do azul do céu com as carantonhas de palmo e meio das pessoas que me acotovelavam na rua.«A minha também deve estar de meter medo» – pensei. E disfarçadamente mirei-me no espelho lateral duma montra.Mas não cheguei a qualquer conclusão. Limitei-me a verificar mais uma vez o espanto de trazer por fora um ser tão completamente diferente de mim e pus-me de novo a caminho. Agora, porém, já não ia só.Colada ao meu silêncio, com pinchos de tonta, saltitava uma velhota de farripas e chinelos rotos, com uma criança de mama ao colo, enrolada num xaile com rendas de miséria. Não me conhecia, mas falava-me com esse à-vontade dos velhos que já não perdem tempo a fazer cerimónias com a vida:– Veja o que a minha filhinha me deixou nos braços, nesta idade... Coitadinha! Está no hospital toda podre. Até cheira mal!... Tudo por causa da parteira que lhe carregou na barriga e...Ah, não! Hoje não me comoves, velha dos diabos! Hoje faz sol, há céu azul, a alegria canta nas águas das mangueiras dos regadores das ruas e não quero passar todo o dia com o peso do teu menino ao colo dentro de mim. Tenho muita pena, minha rica, lastimo muito o teu pequenino drama (para ti, talvez, o desabar de mil universos num quarto sem janelas), mas basta.Não consinto que venhas, pé ante pé, sub-repticiamente, esmagar-me o coração com essa mão encarquilhada de pobre velha que nunca teve céu azul. E tu vale-me também, Anjo da Fleuma. Salva-me! Pinta-me de frio; avulta mais os vincos desta bendita cara de pau que repele os homens, e tapa-me bem os ouvidos para não voltar a escutar mais confidências lastimosas nem carpires de dramas à guitarra.Mas qual! O queixume persegue-me como um rasto... Até no eléctrico. Logo hoje, em que me apetecia apenas existir como uma coisa qualquer a vegetar ao sol, é que encontrei o 26. Quem é o 26? Sei lá!– Sou o 26 da 4.ª B do Liceu de Camões... Não te lembras de mim, pá?

Lembro-me lá agora. Não me faltava mais nada senão gastar cérebro a recordar-me do passado, com um futuro tão perto. Mas ele em compensação conhece-me bem. Até sabe a minha alcunha desses bons tempos de calções, de jogo da barra e de azedumes no Parque Eduardo VII:– Eras o «Cabeça», pá!... Pois eu sou o 26 da 4.a B. Não te lembras, pá?Não me lembro, mas digo-lhe que sim para não o desiludir. E, abro, com esforço enorme, um sorriso que mal cobre o frio da caveira. Mas ele repara lá no sorriso! O que quer é falar, falar, falar... Desde que deixou o liceu, nada mais de importante (de aristocrático ia eu a escrever) lhe sucedeu na vida, para sempre amarrada àquele passado da 4.a B. Aliás nem chegou a acabar o curso. «O meu pai morreu e...»(Lá vem história – pensei eu. Lá vem história!) E veio. Uma história análoga a milhões de histórias banais, sofridas por milhões de homens também banais, que não têm culpa de que a Dor na vida não possua a fantasia fidalga dos poetas.– Fiquei com toda a família às costas: mãe e três irmãos. Não fazes ideia do que tenho passado, pá! Infelizmente, despediram-me do emprego e...Tudo isso é muito bonito, ó 26, mas hoje não quero afligir-me, percebeste? Escusas de perder o teu latim de queixas comigo. Conta-me partidas do liceu, se quiseres, naquela cerca do passado tão cheia de gritaria, de sol e de joelhos feridos...Mas lá nénias não. Não estragues o céu azul dos outros, 26. Adeus, ó 26! Tenho muito que fazer, ó 26! Desculpa, ó 26!E saltei do eléctrico.Em vão, porém. Hoje acordei com cara de muro das lamentações e não consegui intrujar o Destino.Estava escrito que, durante todo o dia, amigos, inimigos e indiferentes me chorassem no seio amores não correspondidos, tentativas de suicídio, filhos com sarampelo, doenças nervosas, desgraças, carestia da vida, pieguices, «V. Ex.ª quer ter a bondade de me emprestar dez tostões para uma sopa?», destroços, cantochão... E, principalmente, a Lamúria, o lacrimejar, o faduncho da impotência que parece ter substituído de vez o protesto viril, o soco na mesa, o silêncio firme do desespero calcado no coração ou as gargalhadas heróicas daquele meu amigo que certo dia me confidenciou, a rejubilar com os olhos tristes:– Estou contentíssimo. Imagina que me aconteceu um drama à Dostoievski...Não tenho cheta, perdi o emprego e hoje o senhorio deu-me ordem de despejo. Enfim: o coro da choradeira tornou-se tão insistente, tão forte que – confesso – me contagiou também. Pouco a pouco, senti galgar-me o desejo chorincas de desafogar, com a primeira pessoa que encontrasse, a primeira amargura amarela que me viesse à boca.Mas resisti. Alonguei ainda mais esta bendita cara de pau (não me abandones, Anjo da Fleuma!) e no meio da tarde, já febril, decidi regressar a penates, lívido de angústias alheias. Porém, ainda me restava atravessar a prova suprema.Ao dobrar a esquina de certa rua deserta, quando seguia distraído o deslizar da minha sombra no chão, eis que me surgiu de súbito na frente uma mulher alta, gorda, de pele oleosa e formas abundantes mal contidas por um vestido preto a luzir de sebo.Deitou-me um olhar rápido de análise e, de imprevisto, com agilidade de acrobata, agarrou-me nos pulsos, encostou-me à parede, entornou-se-me toda em cima do peito até me tirar a respiração e, apontando-me uma pistola, chorosa na voz implorativa, intimidou-me:– A minha mãezinha está a morrer! preciso absolutamente de 20 escudos. Dê-mos!Zaranza, esmagado por aquela inundação de formas, sufocado com o cheiro a suor da flibusteira, não tive forças para resistir e entreguei-lhe a tremura duma nota de 20 escudos.Contente do êxito, tão fácil, a megera, lobrigando outras notas na carteira, resolveu voltar à carga.Meteu mais alguns cartuchos de lágrimas na pistola, fincou-me outra vez as mãos aos pulsos, entornou de novo todas as suas abundâncias em cima de mim e intimou-me numa voz sem tergiversações:– A minha mãezinha está moribunda. Preciso absolutamente de 42 escudos e 50 centavos para remédios. Dê-me mais 20 escudos.Mas desta vez não me verguei. Cheio duma cólera negra de vergonha que vinha do frio dos ossos, sacudi-a aos urros: não, não e NÃO!E fugi.Fugi vexado, espezinhado, torvo, condoído de mim mesmo, e com vontade trémula de começar também a lamurinhar, em objurgatórias de raiva e cinza nos cabelos:

– Ai que desgraçado eu sou! Ai que triste vida a minha!Calei-me porque me aconteceu então uma coisa extraordinária...(O que vão ler, a seguir, é mentira evidentemente; mas façam de conta que acreditam, para esta reportagem poética fi car com um desfecho digno, sim?)Como ia dizendo, calei-me porque me aconteceu qualquer coisa de extraordinário.De repente, a minha sombra no chão levou um dedo à boca e impôs-me silêncio:– Psiu! Caludinha! Se queres lamentar-te, vai para casa e fecha-te num quarto às escuras para não maçares os outros. Mas caludinha, ouviste?E como ainda lhe parecesse ver nos meus olhos atónitos um lampejo de desobediência, a Sombra não esteve com meias medidas: ergueu-se e esbofeteou-me. E depois, tranquilamente, voltou a deitar-se ao sol no chão, a olhar para o céu azul...O Mundo dos Outros, 1950

Publicada por Helena em 5:52 Etiquetas: José Gomes Ferreira 2 0 / O U T / 2 0 0 8A Choca Ao Senhor Emídio Navarro

Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de ouro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas, fora o mesmo que nada, – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...Só ela, doente, quase já não sabia o que era comer; – e ainda essa tarde, morta de sede, invejara

a gotinha de água que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma pérola.Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, e não podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas, combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos bebedouros, ela mesma se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; – e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado, e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda,– adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...Certo galo, sobretudo, agora já velho, – e, como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também, – quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e, sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos, – e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando..*

À boca da noite, as galinhas todas haviam-se já recolhido; e alguém, de fora, tapara com uma pedra o buraco do poleiro. Esse alguém fora ainda vê-la um instante enquanto as outras comiam, mas retirara-se muito triste; e agora, na quase escuridão do poleiro, pouco a pouco se estabelecera o silêncio, e por fim já se não via nada.Decorria o tempo, mas dormir não podia, a Choca; e, opressa da gosmeira tenaz, afligia-a, mais do que a doença, ora a imobilidade a que se votava por amor dos seus pequeninos, ora esses abalos irreprimíveis de todo o corpo, quando algum acesso mais forte a sacudia.Estava então muito doente, a Choca, e ia talvez morrer! E todavia ela fora toda a sua vida muito prestante, para merecer à sorte um sofrimento daqueles: – e esse mesmo nome de Choca, muito parecido, afinal, com uma alcunha, vinha-lhe das muitas ninhadas que havia chocado, cada uma das quais – e não tinham conta! – lhe havia custado uma doença. Febre que era mesmo lume, nessas três semanas de choco, tantas vezes repetidas; e depois, nas convalescenças esses mil cuidados com os seus pequeninos, para os alimentar, para os guardar, para os ensinar...Episódios, alguns tinha a sua biografia, e certos deles muito heróicos; e aflições então não tinham conta! Certo ovo de pata que ela chocara, deitara um monstro cá para fora; e aquela vez que o viu entrar numa ribeira, – tremendo por ele como por um filho, posto que lhe segredasse a natureza que o não era, a aflição ia-a matando, com a ideia de que se lhe afogava! Depois, quando o viu boiar, que alegria!

Outro se lhe afogara, de outra vez, mas esse era bem seu filho. Descuido, fora-se a beber à pia e lá ficara; e ela, entretida com os mais, quando deu pela falta e o procurou, e quando o procurou e o achou morto, ia endoidecendo com a aflição!Querelas com as vizinhas eram a toda a hora, se concorriam ao que esgravatava, para ela e para os seus; – e agora, prestes talvez a expirar, pesava-lhe na memória uma grande culpa: essa

bicada feroz com que matara um pintainho estranho, de uma vez que o pobrezinho, que tinha a mãe também doente, viera, humilde, debicar-lhe no peito à cata de um grão, ali guardado, como num celeiro, para os que eram dela! Disso pediria ela perdão a Deus; e isso mesmo, em verdade, não fora por querer, e remira-o, pela vida adiante, com muita obra de caridade.De resto, cumprira na sua vida todos os seus deveres, e muitas vezes, muitas, deixara de comer, inclusivamente, para que os seus não tivessem fome. Se se lhe extraviavam, procurava-os, – e aquele que uma vez não apareceu, mais a enfrenesiara, para toda a vida, no ódio aos gatos, que tratara sempre, desde esse dia, como inimigos, – e disso não se arrependia.Chuvadas que no campo havia apanhado, dir-se-ia até que lhe sabiam bem, com os seus filhinhos abrigados debaixo das asas; – e se eriçava as penas e arrastava as asas, à vista de certos cães, viera-lhe isso do que ouvira de alguns, que eram traiçoeiros e comilões, – mas vivera em paz com a maioria.Em suma, para defender os seus filhinhos, nunca fugira, nem mesmo do homem, e a alguns se atirara com bico e unhas; – e pelo que tocava às raposas, muitas a haviam conhecido, mas de longe...*

Mas o que não melhorava, coitada, era a sua gosma! Cansada já de sofrer, ainda por cima sentia-se pior, com o frio da noite! Não tardariam os galos a cantar, – e sentia que o rhom-rhom da gosma, e os acessos que tinha às vezes, e que pareciam tosse, não tinham deixado pregar olho, lá cima, ao companheiro... Má noite, também, para os seus pequeninos; mas os inocentes, cansados e mal comidos, ainda bem que iludiam a fome com o sono que era fadiga...Entretanto, pela noite velha, entrou com ela um tremor de frio. A gosma sufocava--a; – e ela já sentia, um daqui, outro dali, mexerem-se inquietos os seus pequeninos. Ainda não luzia o buraco; mas lá fora, disseminados, ouviam-se já cantar os galos. – «Que é da sua força? que é da sua alegria, que já para ela não tinha encantos, essa alvorada?...» – Coitada, o frio apertava com ela; e uns debaixo de uma asa, e outros doutra, alguns já desabrigados, sentia os filhinhos tremerem com frio, muito inquietos, na escuridão ainda cerrada...– Ah, se ao menos o dia nascesse!

Mas eis que certas intermitências dos sentidos sobrevinham à pobre da Choca! Não dormia, decerto, aquilo não era sono; mas a memória já se lhe apagava, esvaía-se-lhe a luz do instinto; e daí a pouco já não sentia nada. – Inerte instantes depois; e por fim (cantou agora o galo no seu poleiro!) veio-lhe um espasmo e caiu na morte...A esse tempo aclarara a manhã; – e sobre o corpo tépido da mãe, que na própria morte ficara dócil, enovelavam-se agora, piando, os pobres dos pintainhos!

Trindade Coelho In Os meus amores

Publicada por Helena em 11:59 Etiquetas: Trindade Coelho: Os meus amores 1 5 / O U T / 2 0 0 8Os Três Reinos

Era uma vez um rei – é claro, que tinha um reino: o reino do rei. Além disso, o rei tinha dois fi lhos gémeos. A mãe-rainha morrera para os dar à luz. Importa saber que esse era o reino do rei, e que os dois filhos do rei eram gémeos. Desde já, porém, convém acrescentar que o rei tinha ainda um filho adoptivo, ou coisa que o valha. Também a mãe deste morrera, já viúva, deixando fama de um pouco ligeira de costumes (não demais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesãos favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse no palácio, brincando familiarmente com os príncipes, e recebendo educação quase igual à sua. Toda a gente, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas, associando vários factos, muito à boca pequena murmuravam os maledicentes que não era só bonito como compreensível, natural... Adiante se esclarecerá este caso. Evidentemente se torna que, dos dois príncipes gémeos, um havia de ser considerado mais velho, – coisa que pertencia aos físicos determinar – ou, como quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono da coroa, do ceptro, do título de Majestade.O tempo foi passando, e os dois irmãos crescendo. Vieram os melhores sábios indígenas, e até

estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o filho adoptivo, que, como é natural, também ia crescendo.Ao herdeiro do trono eram dispensados cuidados especiais, porque reinar não é coisa fácil; nem de fácil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem príncipe revelava aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelos livros e a sofreguidão da sua curiosidade. Mesmo nas horas de recreio o príncipe se recreava folheando os cartapácios de pergaminho; e a sua cabeça loira dobrava sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando tal não sucedia, caía o príncipe numa espécie de alheamento, ou parecia mergulhar em abstracções, meditações, cogitações talvez não muito próprias dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas não: O Mestre de esgrima, o de equitação e o de dança eram mais reservados nos seus louvores.Por esse tempo, o velho rei decidiu firmar um tratado de amizade com o rei do reino vizinho. Longos anos se haviam guerreado. Agora, estavam ambos velhos. A proximidade da sepultura restringe as ambições e faz embotar os impulsos bélicos. Nesse tratado ficou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria com o sábio príncipe. Ora a princesa noiva era feia, triste, cega dum olho, e até já falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem príncipe – assim sacrificado a razões de Estado. O próprio pai algoz o lamentava. Por fim, todos sorriram maliciosamente. Na corte da noiva feia, triste, cega dum olho e mística, havia donzelas e donas muito belas, de que falavam com entusiasmo os embaixadores. Homem experimentado, El-Rei sorriu também e deixou de lamentar o filho.Só o jovem príncipe parecia indiferente ao que se passava: Era como se nada daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabeça loira pendia sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarrábios, era para olhar não as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe.Finalmente, deu em fechar-se na sua câmara. Dizia-se que andava a escrever um grande livro. E saía de lá com olhos de cego, um ar quase de estátua, um sorriso alheio, feliz, idiota.A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os livros; mas o trato dos homens também; também as experiências pessoais e vivas.Aliás, quase perigava a saúde de Sua Alteza nessa vida sem ar que Sua Alteza levava. Convinha que Sua Alteza se prendesse mais aos costumes da corte, aos jogos e folguedos próprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia de governar. Nisso tomasse exemplo em seu irmão; até naquele que, não sendo seu irmão, mais ou menos fora educado como tal, e tão ladino se mostrava na curiosidade por tudo que à sua volta decorria... O moço príncipe ouvia-o como se o não ouvisse, fitando-o, sem o ver, com os seus esplêndidos olhos de cego.Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O Mestre caiu na imprudência de uma breve alusão ao que de manhã, dissera ao seu educando. Então, o príncipe herdeiro levantou-se e respondeu: «O meu reino não é deste mundo.» Lera isto, num livro que fora de sua mãe. Todos ficaram primeiro atónitos, depois constrangidos. O rei nem repetiu os seus pratos favoritos. Tentou-se falar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com flores perigosas que havia na estufa.Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite. Mais tarde se viu que era um grande livro. Claro que houve gritos, espantos, choros, exéquias magníficas, exposição de grandes veludos negros e galões de oiro. A noiva do morto sempre se meteu monja. «Era o que tinha a fazer!» comentou o seu ex-futuro cunhado «Com aqueleolho vesgo...» E começou ele, o irmão gémeo do morto, a ser preparado para o difícil ofício de reinar. Não, não empalidecia este sobre alfarrábios de pergaminho!Aos catorze anos, já comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas donas um pouco ligeiras de costumes (não demais), só as não comprometia por já estarem comprometidas: pelo menos, com os respectivos maridos; pelo menos.Morrer virgem – não era com este. Como para a sua pessoa se haviam transferido, agora, aquelas particulares atenções que sempre se fixam sobre o herdeiro dum trono, até certos pormenores da sua infância eram agora recordados, repetidos com sorridente complacência: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias de chuva; e lá davam com ele descalço, patinhando nas poças, ou estendido na relva, a apanhar a água do céu. Ou que se misturava com os rapazes da rua para ir aos ninhos, ou jogar à pedrada. Agora, perdia-se por caçadas. Bailava tão bem que nem parecia um príncipe. Conversava familiarmente com os pajens, os

criados, os vilões. Certas noites, escapulia-se disfarçado para ir correr aventuras.Às vezes, fazia-se jardineiro: podava roseiras cantando canções da arraia miúda (nem sempre muito decentes) e até chegava a cavar com uma sachola! Dava esmola aos mendigos por sua própria mão. Duma vez, trouxera às costas um miserável que achara desfalecido no caminho. Era moreno, ágil, tinha bons músculos, um esplêndido apetite. E ninguém como ele para divertir as damas com histórias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e beliscões à socapa.Os seus Mestres resolveram limá-lo, podá-lo como fazia ele às roseiras.Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se-ia fazer um rei como se quer. Todos diziam: «Desta vez, temos homem!» Pelo contraste, um certo dó humilhante recaía sobre a memória do irmão suicida...O príncipe começou a apurar a sua educação intelectual; e, felizmente, o novo herdeiro revelava também aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelas coisas e a viveza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres?Mas não: O Mestre de línguas mortas, o de matemáticas e o de protocolo eram mais reservados nos seus louvores.Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu filho herdeiro do trono. Estava cansado, e sentia que a vida se lhe ia apagando. Mas, durante as cerimónias, o príncipe herdeiro teve excentricidades, liberdades insólitas, saídas de humor que chegaram a provocar o riso na ilustre assembleia, – pouco dignas da solenidade do acto. De modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar da originalidade de seus espíritos.Atitudes há do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciáveis em um qualquer; mas nem sempre convenientes num príncipe real. Urgia que Sua Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamento, em atenção ao alto papel que fora Deus servido distribuir-lhe... O príncipe ouvia-o sem nada dizer. A expressão do seu rosto é que era ambígua, como respirando uma ironia que nenhum dos seus traços acusava. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Então, o príncipe realergueu-se e respondeu: «O meu reino é deste mundo». Não lera isto em parte alguma. Todos ficaram sem compreender, e pouco à vontade. Tratou-se de coisas várias, com uma naturalidade fingida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro tinha desaparecido do palácio. Em vão se fizeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais tarde que fugira numa carroça de saltimbancos nómadas.Claro que houve consternação geral. O rei caiu de cama; já todos temiam que não resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos, habilissimamente retivera nas mãos a governação do seu reino tão policiado, tão submetido, tão dirigido, agora se via sem herdeiro natural que lhe sucedesse, e lhe continuasse a obra. Dois filhos legítimos tivera: gémeos e tão diferentes, senhores de extraordinários dons. Ambos como que o haviam renegado, renunciando à herança para que os preparara. E agora já no seu reino tão disciplinado fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam alastrar. Já as massas pressentiam a senilidade do pulso que tão energicamente as havia refreado.Neste desconsolo, perdidos os seus dois filhos legítimos, ainda foi o tal adoptivo que principiou a fazer-lhe companhia. Já quase o não podia dispensar o rei. Também o moço parecia não se poder afastar do seu leito. Sempre que lhe era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, – nessas práticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o moço instrução idêntica à dos príncipes, tendo sido educados quase no mesmo pé. Em certos assuntos, porém, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que nenhum dos príncipes mostrara. Na história política do reino, por exemplo; na sua geografia humana; nas suas actuais relações com o estrangeiro; na discussão das suas Leis, etc. E a inteligência que no tratamento destas questões manifestava – áridas, como geralmente são, para jovens – por atrevimento que seja afirmá-lo, não ficava atrás da que noutras haviam manifestado os príncipes. Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, chegado El-Rei ao último quartel da vida, vários pretendentes ao mesmo disputavam entre si seus direitos. Já, no palácio, fervia a intriga na sombra. Já os pretendentes e partidários rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lábios, o verdete do ódio nos corações.Um ponto único havia, em que todos se entendiam: a malquerença àquele moço que tão visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um, cada um procurava

desacreditar no espírito do velho rei o seu jovem amigo. Decerto não passava isto despercebido do jovem. E o resultado foi não ser este, mas eles, que eram pessoas da família real, quem o rei afastou da sua câmara, até do seu paço. Por maquinações do jovem? Sustentavam os escorraçados que sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vinganças futuras, – atribuindo àquele moço uma tão diabólica intuição na intriga que suplantava toda e qualquer experiência.A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do moço passar incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque é velho; e a debilidade física do rei não se manifestava mentalmente. Dado o que depois se passou, poder-se-á admitir que «a velha raposa astuta» (como depois, lhe chamavam os seus parentes escorraçados) até apreciara o engenho com que o moço ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes senhores que, por seu turno, o procuravam desprestigiar a ele.Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao fim da tarde, estavam reunidos na câmara real os importantes da corte. O rei para aí os convocara, pois há algum tempo dava grandes sinais de melhoras. («Ainda não é desta!» lamentavam os seus parentes tornados seus inimigos). E diante de todos, que estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegido, dizendo:«Tive dois filhos legítimos, que um após outro sonhei me sucedessem. O reino dum não era deste mundo. O do outro era-o por demais. Tu, qual é o teu reino?»Um silêncio pânico se fez, pois todos achavam estranhíssima esta cena. Talvez o moço hesitasse um momento; não mais que um momento. Logo respondeu: «Que reino pode ser o meu senão o vosso?» Então o rei chamou-o a si, apertou a sua cabeça contra o peito. Como já não podia fugir à sensibilidade dos velhos, teve de fazer um grande esforço para não soluçar. Mais tarde declarou que sempre esse fora, secretamente, o mais amado dos seus filhos, embora filho natural; que esse ia ser perfilhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria no filho o poder real, pois não só estava cansado, como temia ver-se constrangido a fazer por força o que desde já faria de vontade...Isto disse ele sorrindo. Olhava complacentemente o filho. Impossível, porém destrinçar até que ponto no seu espírito de velha raposa astuta, esse conhecedor dos homens brincava ou não. E assim se disse, assim se fez. De nada valeram as conspirações dos pretendentes despeitados. Com a satisfação de ter um digno sucessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pôde viver alguns anos. Morreu de muito avançada idade. Laus Deo.

Há mais Mundos, 1962

Publicada por Helena em 6:08 Etiquetas: José Régio 1 3 / O U T / 2 0 0 8A Senhora do Retrato

Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.

Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.

Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

E depois de um silêncio:

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.Manuel Alegre, O Homem do País Azul, 1989A cerejeira da Lua

A Lua fita-nos quando a fitamos? Não. Nunca. Se a chamarmos, deste canto da Terra, a Dama Toda Branca embuça-se de mistério e faz de conta que é a Bela Adormecida. Presunçosa.Como se toda a gente não soubesse que a Lua deixou de ser inacessível... Botas memoráveis pisaram-lhe a superfície desolada. Satélites zumbem à sua volta. Telescópios potentíssimos perscrutam-lhe todos os socalcos, rugas e verrugas.A Lua é a nossa vizinha defronte. E, ao perto, nada bonita, por sinal.Quem se atreve a dizer-lho? Não contem comigo.Aliás, pouco importa. Ela que nos ignore. Que dirija a atenção para a distância azul da noite. Que recorde outros tempos, antigas glórias. Que sonhe. Deixem-na sonhar.Entre muitas evocações mimosas a Lua sonha com o imperador Meng Uóng, que dela se enamorou. Onde isso vai.

Numa das varandas do palácio imperial, ornamentada de gaiolas de ouro, Meng Uóng, tocado pela tristeza do crepúsculo, dá de comer às cotovias.O sábio Tien-o-Tzê segue-o em silêncio como uma sombra protectora. Foi seu aio, depois seu mestre.Introduziu-o no segredo dos cultos, interpretou, um por um, para ilustração do jovem imperador, todos os conselhos do livro dos veneráveis e pacientemente guiou-lhe a mão inábil de menino sobre o desenho das primeiras letras gravadas em tabuinhas de sândalo.Brilha o esmalte das colunas à luz dos archotes. Criados de sandálias sussurrantes varrem com leques de penas de pavão o fumo do ar, à roda do imperador. Um perfume adocicado de ervas preciosas evola-se dos turíbulos mansamente agitados pela brisa do princípio da noite.Uma pena cinzenta de cotovia esvoaça e como que hesita entre a varanda e o escuro do jardim. Tocada por um raio do luar parece de prata.

Isto mesmo diz o imperador, pensativo, enquanto acompanha o devanear da pena que, depois, se perde por entre a ramagem dos sicómoros.- Tudo à nossa volta aspira à perfeição - comenta o sábio Tien-o-Tzê.O imperador suspira:- Até uma pena de cotovia...- Até uma pena de cotovia - repete o sábio.- Não será um sinal, um aviso da Lua? - pergunta o imperador, subitamente ansioso. O sábio permite-se sorrir.- Se Vossa Majestade assim o quer, será - diz, cofiando a barbicha branca e encerada que lhe escorrega até à cintura.Descem da varanda ao jardim alumiado por grandes lanternas de pétalas roxas. Suspensas, rente ao chão, as lanternas tudo convertem à cor dos sonhos mais imprevisíveis. A relva, as ramagens

baixas dos arbustos e os pés do imperador e do mestre ficam aureolados de roxo e lilás. Parece que caminham sobre nuvens.Porque o sábio não desaproveita uma oportunidade sem retirar um ensinamento que sirva de alimento espiritual ao jovem imperador, logo acrescenta mais esta fala:- Um vosso antepassado, o erudito e judicioso imperador La-long, escreveu na base de uma estatueta de jade, que representava um monge de pálpebras descidas, um luminoso pensamento: «O inatingível está à tua mercê. Queres que os teus desejos aconteçam? Fecha os olhos».Proferidas estas palavras graves, o sábio Tien-o-Tzê, apoiado a um tronco nodoso de cerejeira que lhe serve de bordão, suspende os passos. Fecha os olhos.Encara-o, surpreendido, o imperador.- Estás a desejar alguma coisa? - pergunta. O sábio abre os olhos:- Os meus desejos são os vossos, Majestade. Procurava apenas adivinhá-los.- E descobriste-os?Tien-o-Tzê, em resposta, ergue o bordão e aponta-o à Lua, redonda e enorme, que subia ao céu, logo por trás dos últimos sicómoros do jardim.- Tens razão, genial amigo - exclama, entusiasmado, o imperador. - Quero ir à Lua.- Pois irá - proclama o sábio. - Segure, Vossa Majestade, o arrocho de cerejeira a que me arrimo para as pequenas e grandes caminhadas da vida... Cerre os olhos.O imperador, habituado a confiar no mestre, corresponde ao mandado.- Este bordão, que ambos seguramos, há-de levar-nos à Lua - brada, num acesso de inespe-rada força, o sábio ou mago Tien-o-Tzê. - Não abra os olhos Majestade, que eu vou lançar o bordão ao céu.O imperador Meng Uóng, de pálpebras apertadas, sente, num arrepio, que os pés, calçados com finas babuchas escarlates debruadas a pérolas, se soltam do solo e divagam no vazio como se os tivesse suspensos de um baloiço.- Não abra os olhos, Majestade - torna a recomendar-lhe Tien-o-Tzê.A voz dele ressoa em eco, repercutida por toda a abóbada celeste:- Não abra... não abra... não abra os olhos, Majestade...Vão longe? Vão perto? Por onde voga o bordão a que sábio e imperador se fincam como náufragos que rodopiassem no turbilhão de uma tempestade silenciosa? O imperador pergunta e não quer achar resposta.Um vento ciclónico e cada vez mais frio encortiça-lhe o rosto crispado. É insuportável. Manter os olhos fechados, agora, não custa. Mais custaria abri-los.O vento pacifica-se em aragem. O frio em amenidade.

Aos ouvidos do jovem imperador soam, primeiro indistintamente depois mais nítidos, os acordes de guitarras e vozes femininas, numa fresca melopeia de boas--vindas. De súbito, os pés encontram chão.- Pode abrir os olhos, Majestade - comanda o sábio numa entoação de riso.Ah! Eis a Lua! A seu lado, Tien-o-Tzê recupera só para ele a vara de cerejeira e enterra-a no musgo esbranquiçado do solo lunar, fofo e macio, que dá a cada passo uma cadência de dança.Talvez por isso as jovens que acorrem a receber os visitantes, vestidas com túnicas de cores celestes, têm um andar precioso de dançarinas rituais. Agitam leques, cantam e riem como sinos de porcelana.- Para onde nos levam? - pergunta, aturdido, o imperador, que pela primeira vez sente o peso da sua túnica de brocado azul onde fulgem dois dragões de oiro.Elas rodeiam-nos e empurram-nos brandamente enquanto tangem alaúdes.Levados pelo redemoinho da festa, o imperador e o sábio distanciam-se do lugar onde tinham poisado. Sobem agora uma escadaria de marfim onde, no alto, luminosa, os espera...- Seong-Ngó, a castelã da Lua - exclama Tien-o-Tzê, reconhecendo-a ao primeiro relance.

O sábio não errara. Seong-Ngó reina sobre as selenitas. Ela, que se refugiara na Lua enquanto o seu esposo, Hau-Ngai, se exilara no palácio do Sol, ora toma a configuração de uma rã de três pernas ora se ostenta em toda a sua beleza de imortal.Felizmente que, para receber as visitas, não apareceu sob a forma de batráquio, o que seria deselegante.Sentada num trono de coral, rodeada de fadas dançarinas, Seong-Ngó não profere uma única

palavra, mas eles percebem pelo brilho dos seus olhos maliciosos tudo o que ela tem para lhes contar.Com um gesto insinuante, rodopiando o leque, Seong-Ngó aponta para o cimo de uma colina próxima onde o coelho de jade, diante do almofariz, prepara incansavelmente o remédio contra todos os males. E o elixir da imortalidade. A guardiã da Lua parece dizer: «Querem provar? Apressem-se».Sábio e imperador descem, em corrida, a escadaria e precipitam-se para a colina. Esquecidos das regras de reverência nem agradeceram a generosidade do convite.Antes de alcançarem o coelho, na sua oficina de alquimista, têm de passar por um desfiladeiro obscuro. Cessaram os cânticos de saudação. Sábio e imperador vão sós e estremecem quando lhes chega às narinas um odor áspero de animal feroz, no seu refúgio.Logo em seguida um rugido e, após este, outro e outro ainda, todos assustadores. Um Tigre cinzento e branco assoma ao outro extremo do desfiladeiro. Revi rã os olhos rancorosos e vai saltar sobre os dois viajantes.- Fujamos - grita, apavorado, o imperador Meng Uóng. - O teu bordão, onde o deixaste?- Longe - responde-lhe o sábio, que já corre à frente do príncipe.Tien-o-Tzê, pela primeira e única vez na vida, olvidou, naquele transe, as precedências da etiqueta e o comedimento a que a sua provecta idade obrigaria.Os pés afundam-se no musgo como na neve, o que lhes prejudica o despacho da corrida. Sentem sobre as costas o hálito em fogo do tigre implacável...- Feche os olhos, Majestade. O sonho mau vai passar.À voz entrecortada do sábio responde o imperador, aflito:- E aonde me agarro desta vez? O sábio, sem parar de correr, grita num assomo de impaciência:- Agarre-se à minha mão - enquanto lha estende. -Acabo de descobrir a raiz de um raio de luar que nos levará até à Terra.- Aguentará o nosso peso? - teme o imperador. O sábio repete, soluçando de cansaço, a máxima de La-long:- «Queres... que os teus desejos... aconteçam? Fecha... os olhos». Acredite... acredite, Majestade! Mas o imperador duvida:- E o tigre? O tigre não virá atrás de nós?- O tigre não conhece a máxima e não fecha os olhos - exaspera-se Tien-o-Tzê. - O tigre tem medo de cair. Nós não!De olhos fechados, escorregam pelo raio de luar que se arqueia e alarga até parecer uma estrada de descida suave.Assim, sem sobressalto, chegam ao jardim imperial. A Lua escondeu-se. Os archotes da varanda ardem, inúteis, à luz da madrugada.

Desde essa noite inesquecível que o imperador Meng Uóng tange o alaúde, evocando as melodias que ouviu das selenitas. E entusiasmado pêlos bailados e cânticos das fadas lunares criou uma escola, num pavilhão, no meio de um pomar de pereiras. Aí, os jovens do palácio foram industriados na arte de dançar e cantar como os habitantes da Lua.Assim é justificada a origem do teatro chinês e o nome de lei-un-tchi-tâl, «discípulos do pomar das pêras», como são designados os seus actores.Quanto ao bordão de cerejeira que o sábio Tien-o-Tzê plantara na superfície musgosa da Lua, conta a lenda que ganhou ramos, folhas, flores...Quem quiser ver a cerejeira que olhe para a Lua na noite que precede o décimo quinto dia do oitavo mês lunar, segundo o calendário chinês.Se não conseguir ver, feche os olhos. No espelho da imaginação tudo acontece como nós queremos...

António Torrado

Publicada por Helena em 3:54 Etiquetas: António Torrado 5 / O U T / 2 0 0 8Mau Agoiro A Canada do Búzio era uma bocarra, um deserto. Não se via vivalma. Só as faias da terra e as do norte vingavam ali entre silvas... – suor de sangue! Escorralho do Rei dos Reis coroado por mangação! O lugarejo molhava as suas abas naquele mar podre e morto, a matutar como um tolo nos penedos da Ponta do Cavalo vigiada dos garajaus – ou então, bravo e alto, fora de suas estribeiras, atirando a espuma às poças.Era daí que uns pinheiritos – poucos mas bons e baixos como uma quadrilha de ladrões – se atreviam a subir com os braços cheios de pinhas: uns, cornudos e torcidos; outros, esbracejando direitos no meio da lava e dos faiais. Pareciam talhados nos lombos verdes do mar e atirados vivos à costa. O vento carpinteiro levava-lhes a agulha e o cheiro delicado da resina. Vento excomungado, que parecia falar-lhes ao ouvido: «Abriguem-se vocês! Vá... Abaixem-se aí!»A casa da Cacena ficava plantada neste inferno. A Canada do Búzio parecia uma goela aberta à noite. Vizinhança – nenhuma. Só de verão havia um pouco de alegria e de cor nalguma maçã madura. O mês de Abril começava a consolar quem no via carregado de flores brancas e de botões cor-de-rosa. O pêssego amadurecia tarde, corado duma banda só. A faia do Norte, de casca sardenta, cobria-se de bagas meladas que era um louvar a Deus! Em Setembro as uvas tingiam as pernas dos homens enterrados nos lagares e o vinho esguichava nas dornas, enquanto as cisternas vazias mostravam os fundos cor de telha, e o grilo, nas gretas, era um saudoso namorado. De noite, a lua subia a terraço. De dia, o sol era um rei em seu balcão...Ah! Mas, dobrado o cabo de Todos-los-Santos e dos Fiéis Defuntos, a casa da Cacena era uma barca à flor do mar das vinhas. Turvava-se tudo. O cebolinho de ao pé do forno ficava de cabelo ceifado: Aqueles casebres mais pareciam fojos de bruxas do que tectos de gente baptizada. Se não fosse algum molho de palha que o Menino Jesus sempre acende, o Inverno era frio como a neve e negro como um tição.Ora, seriam umas três da manhã (água, se Deus a dava!) quando João se ergueu do quente da enxerga e disse para a velha:– São horas, minha Mãe! Aqueça-me uma pinga de leite...A Cacena era uma triste mulher, sozinha neste mundo. O Rei, ou lá quem quer que é que bebe o sangue dos pobres, tirara-lhe o bordão da velhice mandando-lhe o filho às sortes e levando-o para o Castelo. De nada serviram os pedidos ao Doutor, a este e àquele: os cambos de ofertas; os presentes; uma ave ou duas debaixo do lenço, algravitadas, bravas nos corredores. Tempo perdido! O rapaz ficou apurado para caçanha. E então veio a recruta, com madrugadas, frios, muito poucas dispensas... As correias da mochila levaram-lhe uma tira do lombo; as botas do Casão fizeram-lhe um calo de sangue. Enfim, já praça pronta, houve apeste numónica em Santa Bárbara e ele foi destacado lá para os quintos...Entretanto a triste Necessidade (a feiticeira!) fazia o seu pé de alferes à porta da casa sem homem. Primeiro, a coivinha atempou; passante disso, morreu a leitoa empachada. E um belo dia, de manhã, um tição de lume queimou as faias da cozedura, o fogo passou-se à copeira, e, emmentes o diabo esfrega um olho (cruzes!), o forro do sótio ardia todo. Acudiu-lhe a vizinhança

em peso (ninguém está livre de trabalhos!) e à força de água e de machado salvaram o resto da poisada – seja pelo santo amor-Deus!.Quando João soube disto, no Castelo, chorou malaguetas curtidas e quase se pôs de joelhos:– Só uns dias meu promeiro! Foi a casinha que me ardeu... A prove da minha mãe stá pràli sozinha, sem ter quem no ganhe...Então o Capitão, com pena dele, fez «cantar à Ordem» aqueles três diazinhos «a benefício dos fundos do caldeiro», como se dizia na Peluda. João andou a tirar umas esmolas para ajuda da casa, com dois amigalhaços, como quem pede para toiros. Um deu vinte tábuas de forro; outro, uma mancheia de telha; outro, os barrotes, de amor-Deus. O Niquinha tirou dois dias de obras, e lá levantaram ambos a cozinha, com frechais e asnas novas.– Que mais quer, minha Mãe? – disse ele, cobrindo a velhota de beijos. – Nem que vossemecê se tornasse agora a casar... Nã l’há-de chover pinga dentro, se Dês quiser!...E, com efeito, não choveu. Mas vem o caim dum pé de vento, uma noite, e leva de guinda o postigo envidraçado para cima duma riça de silvas.– Mais fizera a Nosso Senhor Jasu-Cristo! – cramou a Cacena resignada, de mãos postas. E pôs um rolho de trapos no buraco do seu postigo.Mas desde esse dia reparou que, muito madrugada, mal luzia o buraco, vinha um biquinho esfregar-se melgueiramente no chumaço, e logo, pela calada, três unhinhas de nada riscavam. Aquilo era no batente – ora, se não! O certo era que se não ouvia mais nada senão dali a um pedaço: Umas asinhas miúdas vinham espenujar-se no trapo; uns pios de aflição pareciam picar-nos o juízo como pontinhas de alfinetes.Era ao azular da hora de alva. No quarto da pobre Cacena, por cima da cama, a telha de vidro ia-se enchendo de flor de anil e azulão, a todo o comprimento; e, assim abaulada, cismava-se no caixão de um pagãozinho que um anjo levava para o céu.Três dias e três noites a fio a Cacena malucou naquilo. Afinal... – labandeiras!Eram as labandeiras! São passarinhos brandos de asa, de rabo de forquilha, que às vezes malucam nos caminhos em riba de burgalhaus, e que, ao ouvirem o passo mais à toa, tremem da passarinha, dão duas guinadas de espreita e põem-se ao fresco, todas repatanadas, até encontrarem solidão.Desde menina que a Cacena com elas vivia e labutava, mas benzendo-se:– não porque levem bruxedo, mas porque a triste sina se apega adonde elas apontam os biquinhos. A coderniz é pior. Quando Herodes mandou botar o bando e degolar os Inocentes, que José prantou a Senhora mai-lo Menino na burra e abalou para o Egipto, as codernizes, amassadas nos restolhos, davam fé daqueles santos pelingrinos e, voando baixo, toca a chocalheirar:– «Cá vão eles! Cá vão eles!»Mas as labandeiras vinham e, com a rabadilha em forquilha, lá iam apagando as passadas do santo carpinteiro e os sinais dos cascos da jumenta. Por isso o Senhor disse à paqueta da coderniz:– Deixa tu estar, corsaira, que não hás-de pôr pé em ramo verde! E Nossa Senhora apartou as labandeiras para suas galinhas. Mas lá que têm pitafe, têm. Donde lhe vem, não sei. Têm-no co elas…Agora, de mais a mais viúva e apartada do fi lho, à Cacena pareciam de propósito aquelas andadas dos bicos peneirando-se, salpicando o telhado com as asinhas de rasto, de ponta a ponta do cume.Uma tarde, estando a cardar lã de ovelha, à porta, deu fé de que uma delas aporfiava na dança. Era um gorgulho de ave, de olho vivo. Bateu-lhe as palmas, de cá; pegou numa pedrinha, uma coisa de nada, e varejou-lha rente. Mas o bicho fez a modo um pouco caso e veio tombando duma asa até lha passar rente à boca.– Jasus!Disse isto e, em menos dum amén, o Trigueiro que passa da cidade:– Boa noite, tia Cacena! O sê João lá deu baixa ò espital.– Que me dizes?! Ai, s’o mê fi lho me morre!...– Não se afl ija, serva de Deus! Aquilho não há-de ser nada... Veja mãis é se lhe manda coisa duma quarta de açucre.Essa noite desceu como um fugido à justiça; as cancelas do céu fecharam-se de repente. A terra fi cou como uma furna negra, sem o mais leve clarão; a escuridão das canadas parecia tinta de

escrever. Às vezes, dentro em casa, um vento parecia dançar de porta a porta, que batia, a moda do Pirolito que bate, que bate... Pirolito que já bateu...Como se lhe tivessem dado com um barrote nos peitos, a Cacena meteu-se para dentro de casa e afundou no xailinho a sua triste cisma. A panela da ceia cantava com água choca e feijões. Em baixo, na pedra do lar, a cinza e a sombra do lume jogavam à Pata-Cega.Passaram-se quase oito dias – e o Trigueiro sem trazer notícia de alívios do doente. Às vezes, para não ouvir a velha, furtava-lhe a volta e seguia pelo Rebalde até à Praia. A tia Cacena passava as manhãs no trabanaco, sentada a remendar; à tarde engaroupava-se no xailinho e esperava o carteiro à sua porta. Fazia para a ceia coives espernegadas. Daquela boca para baixo não lhe passava oitra coisa.Enfim, o Natal chegou. Chega sempre. Umas vezes é frio, outras chuva...Há anos sem uma coisa nem outra – e sempre pobreza! sempre desconsolos e lágrimas em casa de quem nas chora! Também há casas sem vagar nem água para vertê-las; outras são tão alegres ou tão tristes, que nem cara têm de coisíssima nenhuma!É na maior parte dessas casas que o Menino Jesus reina entre trigos sem terra, e é aí que se come bolo-rei, figo passado, cabaço, canja de galinha...– Dá Deus nozes a quem nã tem dentes! Ter uma pessoa a mão incarangada a pontos de le custar a apanhar a ponta do xaile se Pele cai, e havê-las senhoronas, que é só chomar a aia que as venha vestir e calçar! Mum grande é o mundo, graces a Deus! E maior ainda a Mezricórdia Devina!«Quem fosse à Missa do Galo!... Galo? «Qu’é dele os esporães? Caldo de frango nunca fez mal a doente, nem a velha. Mãis o poleiro, deu-le o rato... foi-se toda a ninhada da pedrês. João, que é que tens? João, tu oives! A manta de fi ampua está ali na caixa; queres-ia-a? Nã te dou lençóis de linho, que os nã tenho, meu home! Mãis stá calado, fi lho! Stá caladinho, qu’a mãe vai ò mato e já vem, meu amor! Vamos cozer de tarde, pois... ! Nã te dou pão de milho azedo, discansa! O milho amarelo secou no tirante e na burra estes dois meses, filho! Faço-te um esfregalho... Faço-te um esfregalho...«E, vai daí, há casas ricas e casas proves. Deus dá o frio cunforme a roipa. Nosso Senhor Jesu-Cristo nasceu em Belém para nos remir e salvar e, vai, Herodes Antipas manda botar o bando: «Que toda a criença nacida por li seja degolada imcuntinente»... Por isso José pegou no bordão, escanchou a Senhora na burra co anjo de Deus ò colo e se largou prò Egito. Dá-me dali o bordãozinho, não oives? João stá pior... Burra na na tenho, mãis tenho pernas. O Egito será no Castelo? Quem tem boca vai a Roma. Só eu incaranguei .Na Canada do Búzio o Natal desse ano não podia ser mais festejado. As estrelas próprias dum céu limpo e frio brilharam por cima da casinha consertada depois do fogo. Um soldado magro como um cão e de barba de dias deitava a mãe velha e tonta na cama e aquecia-lhe o caldo da panela.

O Mistério do Paço do Milhafre, 1949

Publicada por Helena em 6:22 Etiquetas: Vitorino Nemésio 4 / O U T / 2 0 0 8Com que é que se parece um professor?

Ngunga tinha um princípio: se havia algum problema, ele preferia resolvê-lo logo. Deveria esperar que o Comandante o chamasse. Mas não esperou. Foi ele mesmo falar ao Comandante. Para quê ter medo?O Comandante Mavinga estava divertido com a conversa. Falou:

— És um rapaz esperto e corajoso. Por isso deves estudar. Chegou agora um professor que vai montar uma escola aqui perto. Deves ir para lá, aprender a ler e a escrever. Não queres?Ngunga ficou silencioso. Escola? Nunca vira. Ouvira falar, isso sim. Era um sítio onde tinha de se estar sempre sentado, a olhar para uns papéis escritos. Não devia ser bom.— Prefiro ser guerrilheiro. Se não me querem aqui, então vou para outro sítio.— Ngunga, tu és pequeno demais para ser guerrilheiro. Aqui já te disse que não podes ficar. Andar só, como fazes, não é bom. Um dia vai acontecer-te uma coisa má. E não estás a aprender nada.— Como? Estou a ver novas terras, novos rios, novas pessoas. Oiço o que falam. Estou a aprender.— Não é a mesma coisa. Numa escola aprendes mais. E assim vais conhecer o professor. Já viste um professor? Diz-me com que é que se parece um professor? Vais conhecer a escola. Eu parto amanhã e tu vais comigo.Sem o saber, Mavinga encontrou o que podia convencer Ngunga. Com que é que se parecia um professor? Sim, precisava de conhecer o professor. Se não gostasse da esco-la, o seu saquito era fácil de arrumar. Vendo bem as coisas, não perdia nada em experi-mentar.A escola era só uma cubata(1) de capim(2) para o professor e, numa sombra, alguns ban-cos de pau e uma mesa. Ngunga imaginara-a de outra maneira. Também o professor o surpreendeu. Julgava que ia encontrar um velho com cara séria. Afinal era um jovem, ainda mais novo que o Comandante, sorridente e falador. Esse aí sabia mesmo para ensinar aos outros?Mavinga apresentou-o. Disse que ele não tinha família.— Tem de ficar a viver aqui comigo! — disse o professor — Também já tenho o Chivuala, que veio comigo do Guando. Os outros alunos são externos, vivem nos quimbos(3) e vêm só receber aulas. Para estes dois, vai haver o problema da alimentação.— Não há problema! — respondeu o Comandante — Vou falar com o povo. Quando derem comida para o camarada professor, acrescentam um pouco para os dois pioneiros. O Ngunga precisa de estudar, para não ser como nós. Se se portar mal avise-me. Estás a ouvir, Ngunga? Se não trabalhares bem, eu vou saber. E, se fugires da escola, eu encontrar-te-ei.— Eu nunca fujo! — respondeu Ngunga — Quando quiser, digo que vou embora e vou mesmo. Não preciso de fugir como um porco-de-mato.O professor riu.— Espero então que não queiras ir embora. Vais ver como gostarás da escola.Pepetela, As Aventuras de Ngunga

Notas:(1) cubata — habitação tradicional africana; (2) capim — planta gramínea que cresce espontaneamente nos campos; (3) quimbo — aldeia (termo angolano).

Publicada por Helena em 9:19 Etiquetas: Pepetela: As Aventuras de Ngunga 2 / O U T / 2 0 0 8A Vindima Ao cabo de quatro dias de vindima na Arrueda, o cheiro do mosto embebedava os sentidos. E à noite, na cardenha, o Vitorino, com a namorada ali quase à mão de semear, não parava sobre a palha centeia, o colchão de todos. Era um rolar sem tino para um lado e para o outro, que metia aflição.- Tu que tens? - perguntava-lhe o Rasga, farto de conhecer a causa do formigueiro.- Nada... - e continuava a mexer-se, cada vez mais insofrido.Como troncos derrubados, os restantes homens da roga jaziam estendidos e adormecidos no chão. Apenas os dois amigos velavam, a vigiar-se mutuamente.- Vou até lá fora - disse por fim o Vitorino, sem poder mais. - Não me apetece dormir...E saiu.Pé ante pé, o Rasga foi-lhe no encalço. E o que havia de ver?... Um noivado ao luar, com a terra empapada de doçura a servir de lençol.Passou a mão pelo restolho da barba, numa melancolia de faminto sem pão, e deixou os felizardos na paz do Senhor. Quando de madrugada o outro voltou à cama, só lhe disse:- Valha-te Deus, homem! E agora?- Agora caso com ela, pois então! Isto nem tira nem põe. O que se há-de fazer ao tarde...Pela manhã a vindima continuou. Orvalhados, os bardos de moscatel eram polipeiros de olhos irónicos e coniventes. E a Lúcia, sumida no entrançado de vides e de folhas, enquanto cegava aquelas pupilas abelhudas, parecia um rouxinol:

Eu já vi a Tiraninha A beber numa cabaça, Olha a raça da Tirana Que até no beber tem graça.

Ninguém lhe levava a palma. Desde a saída de Lamares que não se calara mais. À frente da estúrdia, de xaile à cabeça e cesta no braço, atirava com a voz bonita pelos montes a cabo, que nem o pai, no maio, a semear milhão.O harmónio repenicava-se todo em redor dela. Os ferrinhos a dizerem que sim, que sim. E o bombo, apesar da tristeza a que a pele de cabra o condenava, a fazer quanto podia para dar também um ar da sua graça.A lama de cinco meses de inverno, que a primavera apenas endurecera, era agora uma camada de poeira fofa pelo caminho além, a escaldar. O sol, depois de empassar as uvas, queria empassar a terra. Invulnerável, porém, o raio da rapariga rompia por ali adiante, com asas nos pés. E, mal o Doiro apareceu lá em baixo, ao fundo, como uma veia aberta a escoar-se morosamente do corpo ciclópico dos montes, atirou logo:

Foi no Pinhão... Ia a vindimar um cacho, Vindimei-te o coração.

Tinham findado de todo os horizontes largos do planalto, onde a alma corre de fraga em fraga, sempre à vista do céu. Encostas negras, em escada, cobertas de estevas ou eriçadas de zimbro, faziam tudo para entristecer quem lhes passava ao pé. À esquerda, um despenhadeiro de meter medo; à direita, uma penedia por ali acima, que só de vê-la faltava a respiração; ao longe, mortórios escalvados e desiludidos. Mas o grande rio doirado, que a luz da tarde transformara numa barra cintilante, chamava a si toda a atenção dos olhos, e a paisagem emergia do abismo engrandecida e transfigurada.Ou porque trazia dentro o fogo da paixão a aquecê-la, ou inspirada pela beleza do cenário., a Lúcia punha o coração a voar:

A oliveira da serraO vento leva a flor...

Só mesmo por alturas de S. Cristóvão é que esmoreceu. Ao passar diante do cemitério aproado como uma galera de morte no mar verde dos vinhedos, uma tristeza súbita calou-a. Obra dum suspiro, apenas. Daí a nada arrebitou outra vez, e, ao chegar à Arrueda, levava tudo adiante.

Rita, arredonda a saia, Rita, arredonda-a bem...

Nem a cara seca e vermelha do Sr. Berkeley, o patrão, lhe meteu medo. Enquanto os mais, num respeito de escravos, se descobriam ou cumprimentavam aquele símbolo do trabalho e dos ganhos na Ribeira, continuou a cantar como se nada fosse, e à noite, ao deitar, ainda trauteava uma moda.Foi a Guilhermina, já enfastiada, que a mandou calar.- Não estás farta, mulher?! Riu-se e continuou na dela. E agora, ao cabo de quatro dias de azáfama, tinha ainda a voz fresca como uma alface. E com segundas...

Eu hei-de te amar, Tirana, Eu hei-de te amar, eu hei... Eu hei-de te amar, Tirana, Duma maneira que eu sei...

Os dois rapazes riram-se, num mútuo entendimento da significação oculta da cantiga. Depois, maldoso, o Rasga comentou:- O que vale é que a Tirana tem as costas largas...Ergueu o vindimeiro, ajeitou-o na troika e foi juntar-se aos outros companheiros, enquanto o Vitorino ficou a olhar com ternura a rapariga, bem feita, desembaraçada, certamente fecundada já pelo seu amor.Dispersa pela encosta, a roga mais parecia festejar um deus generoso e pagão do que trabalhar. Os geios eram degraus do Olimpo, onde crescia e se colhia o espirito celeste. Cada canção - um

hino de louvor. E os cestos acogulados, que desciam a escadaria de xisto aos ombros dos fiéis devotos, numa fila indiana, sonora e ritual - a dádiva desse amantíssimo Senhor, que só pedia contentamento em troca dos seus frutos.Dir-se-ia que tudo naquele paraíso suspenso se movimentava lúdica e religiosamente. Nenhuma mágoa, nenhum ódio, nenhuma desconfiança do futuro. Alegre, a alma de cada romeiro entregava-se pressurosamente ao esquecimento colectivo que alijara do mundo as misérias e os desenganos. O tear mágico urdia desumanização. E só quando um dos fios da meada emperrava, e havia - um solavanco no ritmo do cerimonial, é que se via que uma vontade prática subjazia ali, vigilante e profana. Ainda o Vitorino não acabara de sair da sua contemplação, já o Seara, o feitor, lhe berrava aos ouvidos:- Tu andas parvo ou quê? Mexe-te! Ergue e espera-me no armazém, que tens que preparar uma vasilha.

Chora videira, ó videirinha; Chora videira, ó vida minha...

Cantavam todos. E o bombo, com a sua voz pesada, como que dava forma à incorpórea harmonia que, descuidada, descia em cascata pelos socalcos.

Chora videira, ó videirão; Chora videira, ó meu coração.

Não havia tristeza que entrasse naquelas almas. Principalmente na de Lúcia, cada vez mais agradecida ao céu pela sua redenção terrena.Entretanto, porque o deus da abundância não se cansava de multiplicar o mosto no lagar, para arranjar onde o meter, o Vitorino deslizava submisso pela portinhola dum tonel, tal as vítimas dos sacrifícios antigos pela boca do dragão.Lá fora continuava o coro. E o Seara, por causa daquele barulho e do ouvido duro do Sr. Berkeley, quando daí a bocado chegou congestionado à vinha e deu a notícia do desastre, quase teve de berrar.Foi então que a voz da Lúcia estacou de vez.Garroteada como a do namorado, a garganta fechou-se-lhe num espasmo de perpétua agonia.Transida e comandada por tão grave silêncio, a roga emudeceu também.Só a Casimira velha, desgarrada numa valeira solitária, que não ouvira nada da morte do Vitorino, asfixiado dentro do bojo da cuba, continuou a agoirar a tarde com o seu lamento fanhoso:

A mulher é desgraçadaAté no despir da saia; Não há desgraça na vida Que aos pés da mulher não caia...

Miguel Torga, Contos da Montanha

Publicada por Helena em 5:25 Etiquetas: Miguel Torga: Contos da Montanha 2 7 / S E T / 2 0 0 8O Noivado Infeliz da Aurélia

Os fatos que se seguem foram narrados numa carta que me escreveu uma jovem da bela cidade de San José.Devo esclarecer que não conheço, em absoluto, a signatária do referido documento, que se assina simplesmente Aurélia-Maria - provavelmente um pseudónimo.A pobre garota tem o coração transtornado pelos infortúnios que vem sofrendo. E sente-se tão perturbada pelos conselhos, uns diferentes dos outros, de amigos ignorantes e inimigos insidiosos, que não sabe mais o que fazer mais para se ver livre da teia do destino, na qual parece encontrar-se presa para sempre.Nervosa, recorre a mim, suplicando-me que lhe dirija os meus conselhos, falando-me com uma

eloquência extraordinária, que tocaria o coração de uma estátua.Ouçamos a sua triste história.Aurélia tinha dezesseis anos - diz ela - quando encontrou e amou, com todo o ardor de uma alma apaixonada, um rapaz de New Jersey, chamado Wilhamson Brockinridge Caruthers, quase seis anos mais velho que ela.Com o consentimento de seus pais, ficaram noivos, e durante um largo período tudo correu muito bem, como se os noivos estivessem imunizados contra os instantes de desgraça que sempre tocam à humanidade.Um dia, entretanto, a face da realidade transformou-se. O jovem Caruthers caiu de cama com varíola, e da espécie mais virulenta e terrível. Quando ficou bom, tinho o rosto desfigurado, a pele marcada pelas bexigas. Já não era o mesmo, porque a sua beleza desaparecera para sempre.Aurélia pensou logo em romper o seu compromisso, mas, por uma questão de piedade para com o infeliz, limitou-se a transferir o casamento para depois, como que dando uma oportunidade ao pobre rapaz.Acontece que na véspera do casamento, Caruthers, quando acompanhava com os olhos um balão que subia aos céus, caiu, distraído, num poço, e quebrou uma perna. Tiveram de amputá-la acima do joelho.Novamente Aurélia teve a intenção de acabar com o noivado e novamente o amor triunfou. O casamento foi transferido e ela deixou que o tempo corresse.Outra infelicidade aguardava o noivo caipora. Caruthers perdeu um braço quando de uma descarga imprevista de um canhão, numa festa cívica. Ainda na convalescença. três me-ses depois, teve o outro esmagado numa prensa agrícola.O coração da pobre Aurélia foi horrivelmente machucado por essas verdadeiras calamidades. Era enorme a sua aflição, por ver seu jovem noivo abandoná-la pedaço por pedaço e imaginar que, com esse sistema de progressiva redação, com pouco nada mais restaria do rapaz. E doía-lhe verificar que nada podia fazer por ele.Em seu desespero, coitada, como um negociante que teima num negócio e tem prejuízo regularmente, todos os dias, Aurélia sentia um grande e profundo arrependimento por não haver casado logo de início com Caruthers. antes que ele sofresse tão alarmante depreciação. Mas, encarando a situação com ânimo firme, resolveu pôr à prova, ainda uma vez, as lamentáveis disposições do seu noivo.Foi marcado o dia do casório e de novo turvou-se o céu com as nuvens da desilusão. É que Caruthers caiu doente com um acesso de erisipela e foi então que perdeu um dos olhos.Os pais e os amigos da moça, tendo em vista que a sua generosa obstinação já excedia os limites normais, novamente intervieram e insistiram para que se considerasse nulo o seu noivado.Aurélia chegou a hesitar, apesar da sua imensa bondade de sentimentos, porém pondeu a todos que, reflectindo direito sobre o assunto, verificara que não tinha nenhuma razão de queixa contra o noivo.Foi transferida a data do casamento, e eis que Caruthers quebra a outra perna.Para a pobre noiva foi bem triste o dia em que, no hospital. viu os cirurgiões mandarem arrastar para um canto o saco que continha mais uma parte do corpo do seu amado.Aurélia sentiu uma emoção cruel, percebendo que mais um pedaço do homem que iria ser seu esposo ia desaparecer. Sentiu, sobretudo, que o campo de suas afeições mais puras diminuía a olhos vistos. Contudo, não atendeu aos rogos dos seus, quanto à anulação do seu compromisso, e só fez mesmo transferir o casamento.Enfim, poucos dias antes da data fixada, aconteceu outra desgraça. Foi o seguinte: durante o ano, os índios de Owen River arrancaram o couro cabeludo de um só homem, e este homem foi Wilhiamson Brockiridge Caruthers, de New Jersey.Ainda assim, o pobre-diabo fez-se transportar imediatamente para a casa de sua noiva, o coração transbordante de alegria, embora tivesse perdido os cabelos para sempre. Apesar de todo o seu desgosto, ainda deu graças a Deus por haver-se salvo, mesmo por esse preço exorbitante.A esta altura, Aurélia está indecisa quanto à atitude que deve tomar. Ainda ama o noivo - é o que ela me escreve em sua carta. O noivo ou o pedaço de noivo que lhe resta. Ama-o de todo o coração, porém sua família se opõe terminantemente ao casamento.Caruthers é pobre e não pode mais trabalhar. Por sua vez, Aurélia não temo necessário para que possam viver os dois juntos, com relativo conforto.- Que devo fazer? - eis o que ela me pergunta, numa indecisão cruel.

Esta é, com efeito, uma questão delicada. Questão cuja resposta deve decidir sobre o destino de uma mulher e de um pedaço de homem.Estou certo de que seria assumir uma grande responsabilidade responder indo além de uma simples sugestão.Quanto custaria a reconstituição de um Caruthers completo? Se Aurélia tem algum recurso, deve comprar para o seu noivo mutilado umas pernas artificiais, um olho de vidro e uma cabeleira postiça, para torná-lo apresentável. Feito isto, seria conveniente que lhe desse um prazo improrrogável de noventa dias, ao fim do qual, se o rapaz não torcer o pescoço, poderá arriscar-se a casar com ele.Não creio que assim procedendo Aurélia se aventure a grande risco, de qualquer maneira. Se Caruthers ainda uma vez cede à tentação estranha de quebrar alguma coisa sempre que se lhe apresenta a ocasião propícia, sua próxima experiência na certa será fatal, e então a pobre noiva poderá ficar tranquila, casada ou não. Casada, as pernas de pau e outros objectos, propriedade do defunto, ficarão como herança para a viúva, e assim Aurélia não perderá nada, a não ser, na realidade, o último pedaço vivo dum esposo honesto e infeliz, que durante a vida toda não fez outra coisa senão contentar os seus extraordinários instintos de autodestruição.É tentar a sorte, portanto. Reflecti bastante sobre o assunto, e este me parece o melhor partido a tomar no caso.Decerto, Caruthers teria agido com acerto se houvesse tentado quebrar o o pescoço logo da primeira vez, tratando de fazer coisa definitiva. Já que escolheu outro método, dispondo-se a prolongar o sacrifício o mais possível, não se pode criticá-lo, por haver feito o que lhe pareceu melhor. Deve-se é procurar tirar o melhor proveito das circunstâncias, sem o menor ressentimento.Mark Twain

Publicada por Helena em 14:17 Etiquetas: Mark Twain Idílio Rústico

A Fialho de Almeida

Quando atravessou a povoação, rua abaixo, com o rebanho atrás dele, era ainda muito cedo. Ao longo das ruas tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e não vinha das habitações o mais

insignificante ruído. Dormia-se a sono solto por todas aquelas casas. Apenas algum cão, subitamente acordado em sobressalto pelo chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadórios de pedra onde ficara de sentinela, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo companhia aos novilhos. De onde em onde, galos madrugadores entoavam matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de boémios, nalguma estúrdia, a desoras…Mas, passadas as últimas casas, o silêncio condensava-se para toda a banda, numa grande pacificação de templo adormecido. Nem vivalma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho em ziguezagues. Fulgiam no céu azul-escuro cardumes prateados de estrelas. A toda a largura, a paisagem era torva e indecisa, imersa numa luz muito mortiça que nem era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No entanto a manhã era calma; nem rumores de brisa pela rama das azinheiras velhas que faziam guarda ao córrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grilos nas ervagens, rãs que coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima do rumor brando dos choca-lhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho que se ia submissamente à mercê do pequeno pastor, parando se ele parava a colher as amoras frescas dos silvados, recomeçando a marcha se de novo ele se punha a caminhar.Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruído de um tiro, que o eco levou para longe.– Não gastes pólvora, António! – recomendou o pastor. – Ouviste?E logo a voz do guardador:– Madrugas hoje, Gonçalo!– Pra que saibas! Cá um homem não tem medo!– Está bem. Adeus!– Saudinha.A esse tempo ia-se já definindo a manhã, na luz, no som, na cor. Invadia a amplidão da cúpula celeste uma tinta alvacenta, onde as estrelas feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira de além, entravam de fazer-se nítidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes rochedos tinham atitudes de uma imobilidade misteriosa e sinistra... Neste assomo de alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras em bandos levantavam-se repentinamente, em voo perpendicular, e cortavam ares fora, chilreantes e alegres, até se perderem de vista por detrás dos arvoredos e cabeços. De cauda em riste e orelhas imóveis, o rafeiro espreitava as ervagens secas, onde algum réptil passasse vagaroso.– Busca, Turco! – fazia-lhe o Gonçalo, que tinha medo às cobras. – Busca, valente!

À medida que descia a ladeira, um marulhar monótono de águas ouvia-se, mais e mais distinto. Era o rio que parecia perto; mas primeiro que lá se chegasse ainda era preciso andar... Era um poder de passos e de paciência, – reflectia o pastor, a quem abor¬reciam de morte os intermináveis torcicolos da vereda. Ia andando, descendo sempre, à frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos começaram de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquele céu ainda estrelado, o Gonçalo desabafou: – Uff! até que enfim! – E pensava aliviado: – Nada mais fácil do que terem-me saído os lobos!...Mas vista àquela hora, e no meio de tal silêncio, a corrente líquida tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava lembranças aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham morrido afogados, numa luta desesperada com as águas, clamando em vão que lhes acudissem, em tamanho transe aflitivo. A margem de lá, especialmente, era toda acidentada de rochedos informes, blocos medonhos por entre os quais no inverno o vento assobiava lúgubre, e as águas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem incautos, num descuido involuntário – simples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara.E então, cabeços enormes de um lado e doutro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitário, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paisagem.A todo o comprimento da margem, o rebanho pôs-se então a beber manso e manso, e sem o mínimo ruído.Foi quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de lá, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia também.– Tate, Gonçalo! Aquela chocalhada...E imóvel, remordendo o lábio, com o ouvido à escuta, pensava:

– Ora se será ela?...Súbito, estremeceu. Ante o seu espírito infantil perpassou, como um clarão de relâmpago, a imagem de uma rapariga, pastora como ele, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito não vira.– Ai, se fosse a Rosária!... – disse consigo.E impondo silêncio ao rebanho, que acabara de beber, pôs-se atentamente à escuta do tilintar dos chocalhos na margem oposta.«O rebanho parecia ser o mesmo, lá isso... Agora o pastor é que podia ser outro que não a Rosária...» Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando para diante o bornal, feito da pele de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôs-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rústica.No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:– Eh lá, Gonçalo, és?O pastor desatou a rir.– Uh lá, Rosária, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!E logo a voz fresca da rapariga lembrou:– Não te esqueceu a moda, rapaz!– Isso esquece ela!... Ouviste, Rosária? – Se outra fosse que ma tivesse ensinado...Neste meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosária. Mas primeiro perguntou:– Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?– Vem tu daí. Por cá sempre é outra coisa p’r’as ovelhas. Han?– Basta!E dando o sinal da partida, o Gonçalo pôs-se em marcha. Daí a pouco entrava, mais o rebanho, pela velha ponte mourisca, toda severa de construção nos seus três arcos lançados sem elegância, atufados de parasitas seculares que a faziam pitoresca, heras, silvas, ortigas bravas.A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno oratório ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devoção rezassem uma velha prece que era como um talismã precioso para livrar de maiores desgraças – naufrágios no rio, e então maus encontros por aqueles caminhos escabrosos que eram um perigo constante para homens e animais.Daí a pouco, as duas crianças estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho.– Ora viva a Rosária! – disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.– Bons-dias, Gonçalo! Então que ventos?Entre os dois travou-se então um longo diálogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquele dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços.– Por sinal que nem rez se vendeu! – lembrou o Gonçalo.– Por sinal! – disse com pena a Rosária.Mas ele contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava. – «Vê-la agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja ele...»– Mas se eu estive tão doente! – volveu triste a Rosária.E como o outro acudiu a informar-se, ela explicou:– Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume, desde manhã até ao escurecer... Uma assim!E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na febre, sonhara com ele, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, – «tal e qual».– Assim te Deus salve, ó Rosária! – atalhou rápido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos daquela pequena amiga.– Assim; pois que dúvida? – tornou-lhe confiada a Rosária.– Não! – disse agastado o Gonçalo. – Não hás-de dizer assim... Dize certo, hás-de jurar direito.– Pois assim me Deus salve…– Como é verdade... Dize, tudo, Rosária! – suplicava o pastor.– Sim – volveu-lhe paciente a companheira – como é verdade que sonhava que nos encontrávamos – concluiu por fim muito risonha.E sem disfarçar o júbilo, prestes o Gonçalo a certificou de que também não a esquecera. – «Tanto

é que tirava da frauta as cantigas todas que ela lhe tinha ensinado.»– Lembras-te?A Rosária fez que sim com a cabeça. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:– Saem daqui sem falhar uma! – E resoluto: Vá feito, Rosária, pede por boca!A Rosária pediu então a Pastorinha.– Eu é da que mais gosto – explicou. – É a mais linda.E levando aos lábios a avena, pôs-se a tocar a Pastorinha, enquanto a Rosária, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a letra:Onde vás, ó pastorinha,Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé...– Sabes essa! É mesmo assim! – disse-lhe a Rosária a rir-se.– É como vês! – afirmou contente o Gonçalo.Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois reba¬nhos, confundidos, andavam na pasta-gem.– Olha as ovelhas juntas! – notou o Gonçalo.– Também nós nos quedámos juntos, – volveu-lhe a pequena, sorrindo. – As pobres dão-se bem, são amigas... – continuou com júbilo.– E nós também, ora também, Rosária?– Também – respondeu afoita a pastora.E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denúncias.

*

A esse tempo, no céu alto e lavado a estrela de alva fenecera por fim, e o horizonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céu em cúpula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias estranhas que iam despertar tudo: a cor da paisagem e a música dos ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de verão, serena, tranquila, dulcíssima. Ia pelo ar um movimento extraordinário de asas – passarada alegre que saía agora dos ninhos e voava a matar a sede à borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em recôncavos de rocha e tomavam para hortejos convizinhos onde a vegetação era mais rica de seiva e mais fácil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em torcicolos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada chó! que se ouvia na outra ladeira. Já nas povoações próximas sinos chamavam para a missa de alva ou tocavam a ave-marias. Nas quintas e casais fumegavam os tectos, dizendo horas de almoço. De modo que o sol quando rompeu, solene e triunfante, no céu imaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a natureza acordada para a labuta interminável do dia. Numa clareira elevada, dominando o rio e um trecho de paisagem para sul, tinham-se sentado os dois pastores e continuavam conversa.Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua cor trigueira levemente pálida desde que tivera as maleitas. Não se lembrava com que santa que ele tinha visto se lhe parecia agora a Rosária...– Mas o cabelo assim cortado... – disse com mágoa, mirando-lhe a cabeça nua, e passando a mão pela dele – é que te não fica bem!«Melhor fora que lhe tivessem deixado as tranças! Negras, de mais a mais, que era como ele gostava...»– Promessa da mãe se eu melhorasse – explicou a Rosária. – Lembranças... A gente quando está aflita...– Quando está aflita... – repetiu como um eco o pequeno. E depois, amuado: – Se te promete os olhos...A rapariga fitou-o, espantada.- ...é porque tos tirava! – concluiu convicto.Houve um momento de silêncio, em que o Gonçalo se pôs a escavar o chão com uma pedra, e a Rosária a torcer um fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar.

– Não falas, Rosária? – perguntou o pastor sem levantar os olhos para ela.– Também tu... – começou com medo a pequena, – logo te zangas! Olhem a lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso, credo! – E depois animando-se: – Já foste à Senhora dos Remédios?O Gonçalo fez sinal que não tinha ido.– Pois foi lá que deixámos as tranças, eu mais a mãe. Num prego ao lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo.O pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a conversa. E para acabar com ela:– Que enfim como melhoraste... – fez que concordava, pondo o bilro a girar. – Olha como dança... – E depois, mais pensativo, batendo com o bilro nos dentes:– Que às vezes as promessas pouco valem... – E interrompendo: – Sabes quem fez este bilro?– Foste tu, aposto!Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lho orgulhoso – «que visse os torneados». Depois continuou:– Vai uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora, os santos! – Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A gente bem rezou e bem promessas fez, mas ela foi-se.E pondo-se de joelhos, começou a procurar pelo rebanho.– Aquela ovelha, a branca, não vês? A que se vai agora deitar... Pois era para Nossa Senhora, repara que é a melhor. – E deitando-se para trás: – Lá anda ela a pastar! – concluiu desalentado. – Mas tinha de ser – volveu-lhe triste a Rosaria, – que as promessas sempre fazem, lá isso...E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o Gonçalo de que sempre valiam as promessas. No entanto, deitado de costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em ângulo tocando-se com os joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o bugalhinho que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do cão que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a Rosária ia entretendo o pastor. Mas quando ela fazia pausa, logo o rapaz acudia, firme na sua objecção:– Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!

*

À medida que o sol ia subindo, no céu glorioso e fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para os sítios mais ensombrados, para se livrarem da estiagem, que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio-dia, que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os pinheirais, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros levaram de conversa quase o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que as horas passassem tão depressa. Ainda armaram aos pássaros, mas foi o mesmo que nada: os demónios andavam espantados e já conheciam as esparrelas.– Olha lá não caiam! – tinha dito o Gonçalo, já cansado de estar à espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo. – Se eles fossem tolos...E foi-se a recolher as esparrelas, dando ao demónio os pássaros. Ela então propôs que jogassem a pocinha.– E o fito, ó Rosária? Sabes jogar ao fito? No adro, aos domingos à tarde, bato-me com qualquer, sabias?E generoso:– Mas a ti dou-te partido: vinte e cinco às quarenta...Como o tempo rendia, jogaram tudo – a pocinha, o fito, as necas, a bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia à mão, era ele que ia buscar o pauzinho, quando zenia para longe.– Turco, traze cá.No entanto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céu esmorecia no seu azul suavíssimo. Em todo o espaço o ar estava tranquilo e sereno, e já começava para poente a decoração fantástica do ocaso. Parece que se ouvia mais distinto o marulhar das águas no rio; já não faiscava assim tão viva a areia branca das margens.Foi quando o Gonçalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as ovelhas, para as terras onde tinham de pernoitar. E fitando fixamente os olhos negros da Rosária, disse-lhe assim:– Mas olha o que prometeste... Inda vais feita no que disseste?«Ora que lhe custava a ela! Já que as ovelhastinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa noite?» – E o mais, ó Rosária? – perguntou de novo com interesse.

A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor não cessava de a olhar, respondeu:– Também. – E sorriu-se. – Pois eu...Só depois desta segunda promessa o Gonçalo se levantou, e deu o sinal de partida, assobiando aos cães.Daí a pouco, estavam de marcha para o curral. Quando passavam a velha ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo areal a sombra dos três arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando à água a sua translucidez normal.– É bonito! – fez notar o pastor.A Rosária explicou logo:– São as mouras a caçar com redes de oiro, sabias?Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam à flor da corrente as cabeças dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da chata que vogava serenamente, a mãe com o mais novito ao colo não os perdia de vista, enquanto o pai, em mangas de camisa, de pé num topo de fraga, lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, três vitelos passavam o rio a vau, muito devagar, parando a espaços, alongando o pescoço para a veia de água serena, bebendo mansamente. Sobre o vitelo das malhas brancas, o guardador cantarolava, acenando com o chapéu ao moleiro – «Boas-tardes! Boas- -tardes!» Ao sair da ponte, o rebanho teve de se afastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas.– Adeus, pequenos! – cumprimentou.– Venha com Deus! – tornaram-lhe ambos.E de novo se puseram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas; confraternizavam os cães como bons e leais amigos. À frente, o Gonçalo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosária cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho, casava-se com a música, fundindo-se numa nota subtil, de um pitoresco ingénuo de balada...Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro, e então, parando um momento, o Gonçalo perguntou, colocando na sua frente a Rosária, e pondo-lhe à cara a flauta, na direcção em que devia olhar:– Vês além?... Neste direito? Resvés do castanheiro, não enxergas?A outra fez que sim com um gesto, e interrogou:– Então é ali?– Ali mesmo – volveu-lhe já de marcha.E repousando a mão direita sobre o ombro esquerdo da rapariga, repetiu-lhe muito contente:– É mesmo além.Numa terra de restolho, um largo quadrado de cancelas marcava o espaço que as ovelhas tinham de ocupar essa noite.– Falta pouco. A gente vai pelo atalho, que é só mau para quem passa a cavalo.E como ele ia expansivo, e a companheira não dava palavra, quis então saber:– Estás triste, ó Rosária?– Triste… não… Já agora... tem de ser – volveu-lhe cabisbaixa.– Huum! Arrependeu-se... – volveu consigo o pastor.

*

Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para dentro e toca a merendar; o que era de um era de outro: ele ainda trazia azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo apontou para a cabana que ficava ali perto, e propôs que se deitassem: estavam moídos da soalheira de todo o dia, e da caminhada agora.Quando o Gonçalo e a Rosária entraram na cabana e se deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um do outro os bornais que faziam de travesseiro, cerrara de toda a noite, e formigueiros de estrelas cintilavam vivezas de prata polida no azul indefinido do céu.– E os lobos? – perguntou a Rosária com medo.– Não há perigo – tranquilizou-a o Gonçalo. – Isso é lá com os cães.

*

Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a música triste dos chocalhos. A ladrar, os cães

faziam eco. O rebanho devia dormir profundamente, imerso no mesmo sono em que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo, num ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga, se deixaram adormecer – quando a história das mouras encantadas ia no seu melhor episódio...E lá no alto céu, mesmo sobre a cabana, a estrela da tarde não era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa daquelas duas crianças...Quando ao repontar da manhã se levantaram, e saíram a ver o céu...– Bonito dia, Gonçalo!– Bonito dia, Rosária! Olha...…na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando... voando...

Trindade Coelho, in Os meus amores

Publicada por Helena em 8:24 Etiquetas: Trindade Coelho: Os meus amores O Arquimortes

A tua boa acção diária... E respondo ao Justino Soares que se vá embora descansado, que estou quase a acabar a crónica sobre política internacional (uns pozinhos do Monde, outros do Nouvel Observateur, deste, daquele), mas puxando a coisa bem mais para a esquerda, por descargo de consciência, aliás inútil, dado que a censura se encarregará de tosquiar esse “para a esquerda”, um “para a esquerda” difícil, de resto: o conflito sino-soviético, como poderíamos imaginar possível, há vinte anos, um conflito assim entre irmãos – mas que mundo é este em que somos obrigados a julgar as coisas nas bases postas pelos outros e não por nós, a aceitar dilemas que talvez sejam simplesmente problemas mal postos? Pois, que não se preocupe, eu trato da necrologia. “Pá – tinha-me ele dito –, combinei um encontro com uma gaja bestial e já estou atrasado ... “ Sim, a minha boa acção diária para que no exame de consciência, que aliás não farei logo à noite (falta-me o tempo!) possa sentir-me de bem comigo próprio, possa dizer-me que não sou um puro egoísta – muito antes pelo contrário sou capaz de sacrifícios (quais?) pelos outros: adio, neste caso, por quinze minutos (e quinze minutos, a brincar a brincar, são um nonagésimo sexto do dia), a minha saída deste antro detestado – mas como aproveitaria eu esses quinze minutos se não tenho como tu, Justino Soares, uma gaja bestial à minha espera (que nem estará à tua espera, pois acabará certamente por chegar ainda mais atrasada do que tu)? E, ao mesmo tempo que nas paredes brancas das casas do outro lado da rua a luz do Sol me obriga a desviar os olhos da janela, pergunto-me se tu, mulher que vais chegar atrasada, saberás que ele te trata por gaja, pergunto-me como te falará ele, como falarás tu – se nesse encontro não porão vocês um pouco de sonho, de palavras grandiloquentemente romanescas, a ilusão de que estão a viver um momento único, jamais vivido sobre a Terra, inesquecível, um momento que irá prolongar-se por muitos anos, que fará do mundo, de todas as coisas, uma doçura verde de erva molhada (sim, uma doçura verde de erva molhada) ou se terão somente a lúcida consciência de colherem da vida o resíduo mais imediato e provisório – resíduo sem memória futura, tão identificado com o presente que até já passou. Ou então, se haverá realmente, Justino Soares, alguma mulher, a calma repousante dum rosto de mulher, duns compridos cabelos de azeviche (que é o azeviche?), dumas palavras que desejas ouvir e nunca ouviste, se não terás falado assim para te safares do jornal, do trabalho irrespirável, e para que eu te inveje, neste fim de tarde, ao pensar daqui a uma hora que enquanto bebo café e converso O arquimortes inutilmente com amigos sobre os boatos que já não há (aquelas velhas revoluções que estavam para rebentar no dia seguinte e que nunca rebentavam), tu, grande maroto!, te esfregas na cama com uma gaja bestial – mas, na realidade, ou porque ela não aparece ou porque nunca existiu, estarás, quem sabe?, a tomar uma cerveja, uma simples cerveja, na mais modesta das leitarias do teu bairro.E se eu te armasse uma ratoeira? Se fosse à tua procura por todos os cafés de Lisboa e ao encontrar-te dissesse cruelmente: “Então essa gaja?” Que me responderias, conquistador imaginário? Mas se essa mulher não existe e tu procuras apenas um pouco de sonho, invocando-me como testemunha para dares mais realidade ao sonho, então porque lhe chamas gaja em vez de princesa das laranjas de oiro, mulher de branco, raio de sol, porque te apostas em sonhar tão baixo?(Penso na Guilhermina, casada com o Eugénio, nas conversas que temos, nos encontros que

evitamos, naquele nosso último diálogo em que elipticamente concluímos que nem sequer valia a pena tentarmos uma aventura fugaz, porque ela acabaria por um fracasso.) Sim, a China, a U. R. S. S., e terminei – a censura que faça o resto, ela decidirá o que o público deve ou não saber, decretará a verdade. Pego depois na lista dos mortos (a tarefa do Justino Soares, a boa acção que hoje me imponho), ouço-me dizer, lendo o primeiro nome (Manuela dos Santos Cruz): “Vamos lá matar esta cambada!”, como se todos aqueles mortos permanecessem vivos até o instante em que eu lhes baixasse os nomes ao papel, tornando público o que até aí fora privado e desconhecido, inexistente, portanto. Ouço-me dizer, falo verdade, porque a frase (“Vamos lá matar esta cambada!”) não a inventei eu, tem uma voz que não é a minha, vou buscá-la ao Arquimedes Meneses e Castro, que tinha a seu cargo a actualização necrológica dos ficheiros do jornal. Para mim, tarefa ao que eu pensava mais, complexa, reservara o registo complementar:os novos heróis que iam nascendo para a glória. Nascendo para a glória! Que sensação estranha a minha, porque não confessá-lo?, quando introduzia um novo nome no ficheiro, um Prémio Nobel, por exemplo, um desses homens que tinham descoberto a dupla hélice, a estrutura última dos genes, que se entretinham a ler no ADN o romance das nossas vidas! E precisarei de acrescentar que, ao incluir no ficheiro esses recém-nascidos para a glória, me sentia igual a um deus criador, como se fosse eu a dar-lhes vida? E a dar-lhes vida já com mais de quarenta anos, aliviando-os assim da tortura sem nome de terem sido crianças e adolescentes, dos tormentosos anos de aprendizagem, do ABC, dos exames, da tabuada, do sarampo, nascidos homens feitos afinal – (e não foste tu, Guilhermina, que me falaste da tua juventude como de uma época terrível?). Mas esta sensação, penso agora, não a tive espontaneamente, autonomamente, ela imitava, até certo ponto, embora ao invés, os sentimentos profundos do Arquimedes.Porque o Arquimedes, que poderia desempenhar a sua função discretamente, esfregava as mãos sempre que alguém morria, dava gritos de satisfação (Olá! Olá!), abria o ficheiro aparatosamente, e mal acabava de escrever com letra gótica as palavras fatais (falecido em tantos de tal de mil novecentos e qualquer coisa) relia-as em voz alta para que tão importante acontecimento a ninguém passasse despercebido. Baixinho, calvo, muito pálido, sessenta anos, era geralmente um homem triste, mas pouquíssimo cheguei a saber da vida dele para além destas simples aparências. Ao que parece e apesar do nome aristocrático, pertencia a uma família extremamente pobre, tirara um curso comercial com grandes sacrifícios e dizia-se que a mulher o enganava, mas provavelmente isto era falso, resultava da comparação do seu aspecto (um homem apagado) com a frescura dela, muito mais nova, mulher aparentemente com sangue na guelra, vistosa (vi-a uma única vez, e pelo braço do marido, a descer a Avenida da Liberdade num domingo de santos populares). Quanto aos interesses do Arquimedes, nunca consegui descobri-los, não discutia futebol, nunca lhe vi um jornal desportivo nas mãos, nem sequer um romance policial, nunca consegui imaginar como ocuparia o tempo em casa, se via televisão, se coleccionava selos, se faria palavras cruzadas ou se votara no general Humberto Delgado.Alegria, alegria verdadeira, só me lembro de lha ver nos dias em que alguma sumidade, dessas que bem ou mal têm honras de arquivo, passava desta para melhor. “Vamos lá matar mais este gajo!”, anunciava-nos, esfregando as mãos, como se fossem àquelas mãos que estivessem presos os ténues fios da vida (aprecia a expressão, Guilhermina, os ténues fios da vida!). Olá! Olá! Alegria que talvez não se tivesse manifestado logo de início, talvez nem ele próprio conseguisse localizar o dia exacto (o morto exacto) em que descobrira a sua verdadeira missão neste mundo, o seu destino mais autêntico, o seu papel sobre a Terra. Eu próprio... Quase direi que nem dera pelo Arquimedes, apesar de trabalharmos juntos todos os dias, porque quando dou por ele, a primeira vez, em suma, que olho para ele com olhos de ver e não como se olha para um simples objecto igual a milhares de outros objectos (humanos?, não humanos? – o ordenado que recebo não dá margem para ver humanidade nos homens que tenho de dirigir), a primeira vez que dou por ele, dizia, que penso nele a sério durante alguns momentos, já o Arquimedes era o que depois vim a considerar ilusoriamente que sempre fora. Decerto, por detrás desse juízo definitivo estavam muitos meses de observação distraída em que ele não me aparecera ainda como um sujeito dotado de certos atributos, mas sob a forma simples dos próprios atributos: não um homem calvo, mas calvície, não um homem pálido, mas palidez, não um homem triste, mas tristeza – sim, essa tristeza, atributo sem sujeito (atributo ao qual eu não dera ainda sujeito) nesses dias em que os mortos, porque eram simples e puros mortais, em vez de imortais (um Picasso, um Stravinsky), não precisavam de ser mortos. Precisamente: dei-lhe um sujeito, descobri-o para além das aparências ao ver que num desses dias de homens mortos-mortais ele folheava desencantado o

ficheiro com a esperança de que algum já lá estivesse, fosse afinal um grande homem (os outros, os homens vulgares, que ao morrer prescindiam dos serviços dele, desprezava-os, considerava-os mortos de nascença). E por vezes surpreendi-o a reler o jornal (a ler até a necrologia, que, toda a gente o sabe, é nos jornais a vala comum dos homens vulgares) na vã esperança de encontrar algum morto-imortal – e o êxito, apesar de tudo, certos dias alcançado, a satisfação com que gritava: “Apanhei-o! Ah, o maroto que se me ia escapando!” O maroto que assim quase se lhe escapara, e que por pouco ia conseguindo ficar vivo ad aeternum, era o Matisse, o Thomas Mann ou o Bertrand Russell, cuja morte, bem à portuguesa, vinha noticiada no mais obscuro lugar da mais obscura das páginas. Muito corado, esfregando as mãos, lia em voz alta a data do nascimento, fazia contas, e se por acaso o morto tinha ultrapassado os noventa anos não escondia a sua indignação. De caminho, invadido por uma suspeita, consultava as outras fichas para saber as idades de quantos se obstinavam em ficar vivos. “Nunca mais os matamos?”, perguntava, como se brincasse, mas a sério – e à espera que eu lhe abrisse a luz verde para a ambicionada hecatombe universal. “O gajo não nos terá escapado?”, insistia, a ficha do Picasso na mão, sofrendo com a ideia de que aquele (ou outro) continuasse clandestinamente vivo. Porque para o Arquimedes, e isto não é insinuar que conhecesse Platão (o Arquimedesera um filósofo espontâneo, tenho de o dizer), o arquivo do Diário da Tarde transformara-se no mundo dos arquétipos, esse mundo longínquo do qual tudo o mais é sombra na caverna.De facto, caso quiséssemos saber com rigor se um Thomas Mann era vivo ou morto, onde, senão no arquivo, poderíamos encontrar a resposta? Certo dia, sujeitou ao meu exame um cálculo perturbador: dez por cento dos mortais-imortais incluídos no ficheiro ainda estavam vivos, o que, explicou, era estatisticamente improvável num arquivo de personalidades que sedistribuíam por cerca de quarenta séculos desde Amenofis IV (não sei bem porquê o ficheiro começava com este adorador do Sol) até o último coronel que fez ontem (ou há-de fazer amanhã) mais uma revolução fascista já não me lembro (ou não sei ainda) em que desgraçado país. Objectei-lhe que o número parecia razoável se o comparássemos com o que sucedia em Lisboa: efectivamente, tanto quanto sei, a percentagem dos lisboetas vivos é bem mais elevada ainda, orçando pelos cem por cento.O argumento perturbou-o e ele não se atreveu a dar-me resposta imediata, mas no dia seguinte contra-atacou, recorrendo sempre a demonstrações de ordem estatística: trinta por cento dos mortais-imortais vivos ainda e registados no ficheiro (no Arquétipo, como diziam os graciosos sem graça nenhuma lá do jornal) já deviam ter setenta e nove anos (média exacta). Recorria à minha comparação com Lisboa: “Acha crível que trinta por cento dos Lisboetas andem à roda dos setenta e nove anos, mais mês menos mês?” Objectei como pude (concedo que o argumento era de peso) e alguns dias depois o Arquimedes propôs-me que matássemos o Picasso, por ser pouco provável que ainda pudesse estar vivo. Limitei-me a uma dúvida: que data havíamos de escolher? (Se nos amamos, Guilhermina, se nos entendemos como tu não te entendes com o Eugénio, como eu não me entendo com a Helena, porque não tentamos a grande aventura? Porque a experiência nos ensinou que o amor passa, que dentro de um ano já não nos entenderemos assim e que portanto não vale a pena ensaiar o que está destinado ao fracasso e que seria somente a repetição de experiências que ambos já tivemos, tu com o Eugénio, eu com a Helena?)Os brincalhões do Diário da Tarde, que já haviam inventado a história do Arquétipo, começaram então a chamar-lhe o Arquimortes (também, por vezes, e com a mesma falta de humor, o Arquimorto). Já então o dia que ele sempre recordava com saudade era uma certa segunda-feira em que nada menos de sete homens geniais haviam morrido. “Hoje vamos aqui matar uma porção deles”, dissera, mal me vira, e associando-me à sua própria alegria, pois falava na primeira pessoa do plural.Felizmente sou um anónimo sem honras de arquivo, um desses homens que nem sequer são sombras na caverna, pois lhes falta o Arquétipo, um desses homens que não chegaram portanto a existir (e que recusam – recusamos, Guilhermina – a vida. Porque ninguém, nem mesmo nós, poderia roubar-nos os próximos meses da nossa aventura, futuro breve que ficaria indestrutivelmente conservado nas nossas memórias. Porque lhe fugimos, porque nos negamos um passado inviolável, nós a quem nada mais resta do que a morte próxima ou longínqua?). Sim, um anónimo sem honras de arquivo – de contrário ficaria horrorizado mal sentisse poisados sobre mim os olhos do Arquimedes. Para ele, a pouco e pouco fui-o percebendo, a vida era a inevitável concessão que um universo imperfeito se vira obrigado a admitir para que a morte, substância de

todas as coisas, pudesse triunfar. Nisto nesta visão niilista, (e profunda!) do cosmos reencontrava-se ele, aliás, embora de forma mais genial e prática, com toda uma família de grandes espíritos que desde a aurora do mundo têm visto no homem um cadáver adiado um momento de negatividade na positividade do nada.Certo dia encontrei-o-na rua, os olhos presos ao Teixeira (o Teixeira, o Álvaro Teixeira, o poeta que tanto admiro, jovem ainda com os seus noventa e dois anos!), e que nesse momento, apoiado na sua bengalinha, conversava já não sei com quem, contribuindo, só porque existia, para um acréscimo de imperfeição no universo. Observei de longe o Arquimedes, antes de me aproximar, e quase posso garantir que lhe vi uma foice, uma longa foice na mão. “Por aqui?”, disse-lhe depois, ainda aterrorizado No azul tranquilo, mas rico de imperfeição, da tarde que anoitecia, vi perfeitamente evolar-se a foice que ele segurava, deixando no céu um ténue rasto de fumo que se prolongou sobre Lisboa por muito tempo (falou-se dessa nebulosidade no boletim meteorológico da televisão). Alguns dias adiante tive de ir ao Arquétipo para lá introduzir um novo gigante acabado de entrar no tablado da fama (com trinta e cinco anos!) e, por acaso, saltou-me à vista o verbete do Teixeira – devidamente falecido, embora no ano seguinte. Um pressentimento levou-me a consultar as fichas do Picasso, do Stravinsky, do Casals, então ainda vivos (ou considerados vivos por toda a gente, incluindo os próprios – mas a opinião destes é evidentemente subjectiva e interessada, não dá quaisquer garantias de verdade). Se o Teixeira fora morto daí a um ano, o Stravinsky fora-o daí a dois, o Picasso daí a três, o Casals... Outro pressentimento forçou-me a procurar alguns nomes por mim recentemente ali introduzidos (o Luria, o Delbrück, etc.), esses novos vivos que as marés do talento iam substituindo aos mortos. O Arquimortes não os matara directamente, limitara-se a retirar-lhes as fichas, negando-lhes assim que tivessem chegado a existir.Ainda perplexo, sem coragem de chamá-lo à ordem, ouvi-o dizer num dos seus raros dias de fraqueza confessional: “Conseguiremos alguma vez pôr unicamente mortos naquela gaveta?” Conseguiremos e não conseguirei, ó irmão!Preciso agora de acrescentar-te, Guilhermina, que o Teixeira veio efectivamente a morrer no ano seguinte, que o Stravinsky morreu dois anos depois, que todos os dias abro o jornal com receio de que o Casals e o Picasso...? Precisarei de acrescentar-te que o proibi de continuar aquela tarefa?Mas a partir de então a alegria varreu-se-lhe do rosto, nunca mais ninguém lhe ouviu dizer olá!, enquanto esfregava as mãos, tornou-se um homem triste (tornou- -se tristeza, atributo sem sujeito), um homem irrealizado, um homem que perdera o ser, alguém que já não podia introduzir no mundo imperfeito um pouco de perfeição, e despediu-se do Diário da Tarde com um argumento sem pés nem cabeça, abandonando assim uma empresa à qual estava ligado havia mais de trinta anos.Leio o nome da Manuela dos Santos Cruz, mulher humilde (ao contrário do Arquimedes sou hoje um matador de gente humilde) e sinto que estou a adiar-lhe a morte, que não morrerá enquanto eu não lhe puser o nome no jornal, que posso até deixá-la em suspenso se não lhe puser o nome no jornal (mas amanhã quantas pessoas protestariam por tê-la salvo? Mesmo sem bens de raiz precisa de ser morta para que os vivos possam herdar-lhe a pobre mobília). Hesito... Poderei matar quem nunca chegou a existir no mundo das essências, no Arquétipo do Arquimortes, quem, portanto, nem sombra da caverna chegou a ser, quem nem sequer era sombra duma sombra? Decido-me, pura ilusão que és, mato-te friamente (vejo as minhas mãos ensanguentadas), agora estás definitiva-mente morta até para aqueles que, por nunca pensarem em ti, não tinham ainda posto outra cruz à frente do teu nome, Manuela dos Santos Cruz. E escrevo, tão pouco!, logo abaixo do título: “Faleceu a senhora D. Manuela dos Santos Cruz, de quarenta e quatro anos, natural da Azinheira, casada, residente na Rua Bragade Melo, 17, 1.º, Esq. O funeral, a cargo da Agência Rebordão, realiza-se amanhã, pelas quinze horas, da sua residência para o cemitério de Benfica.” O nome seguinte... (não, não era o teu, não era o meu, Guilhermina, porque nós já morremos há muito tempo ao desistirmos um do outro), o nome seguinte é o de Arquimedes Meneses e Castro, casado, sessenta e dois anos, natural de Portunhos (costumava dizer que era de Lisboa, receava que o considerassem provinciano).Não, Arquimedes Meneses e Castro, vou passar por cima do teu nome – a ti, até porque já ninguém te recorda e ninguém dará portanto pela tua falta, não serei eu a matar-te, vou deixar-te vivo para sempre, vou deixar-te vivo para a eternidade!

Augusto Abelaira