a palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de clarice lispector

186
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 1/186

Upload: mefistoeninvierno

Post on 04-Feb-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 1/186

Page 2: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 2/186

 palavra

usurpada

exílio

e

nomadismo

na

obra

de Clarice Lispector

Page 3: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 3/186

  ontifíciaUniversidade atólica do Rio Grande do Sul

Chance ler

Dom Dadeus Grings

Reitor:

Norberto Francisco Rauch

Vice Reitor:

J

oaquim

Clotet

Conselho Editorial:

ntoninho Muza

Naime

Antonio Mario Pascual Bianchi

Délcia Enricone

Helena Noronha Cury

Jayme Paviani

Jussara Maria Rosa Mendes

Luiz n tonio de Assis Brasil e Silva

Marília Gerhardt de Oliveira

Mírian O   veira

Urbano Zilles presidente)

Diretor da EDIPUCRS:

ntoninho Muza Naime

Page 4: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 4/186

  láudia Nina

palavra

usurpada

exílio

e nomadismo

n obra

de

Clarice

Lispector

Coleção

MEMÓRI D S LETR S

15

EDIPUCRS

Porto legre

2 3

Page 5: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 5/186

© EDIPUCRS, 2003

Capa:

Maria da Glória Bordini e Maria Isabel

Daudt

Giulian

sobre

detalhe

de

Mulher

na

Varanda

de Edvard

Munch

1924.

Preparação

de

originais:

Eurico Saldanha de

Lemos

Revisão:

Miriam Denise

Kelm

Editoração

e

composição:

Suliani Editografia Ltda

Impressão e acabamento:

Gráfica EPECÊ

Coordenadores da Coleção Memória das Letras:

Regina Zilbennan e Maria da Glória Bordini

Dados Internacionais de Catalogação na

Publicação CIP)

N714p

Ni na

, Cláudia

A palavra usu rpada: ex ílio e nomadismo na obra de Clarice Lis-

pector Cláudia Nina. -Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

18

2p.; Coleção Memória das Letras, 15

ISBN: 85-7430-384-4

I. Literatura Brasileira. 2. Lispector, Cl

arice-

Crítica e

In

terpre-

tação.

3.

Literat

ur

a de Exílio. I Título. II. Série.

Ficha Catalográfica elaborada pelo

Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

Proibida a reprodução total

ou

parcial desta obra

sem autorização expressa da Editora.

EDIPUCRS

Av. lpiranga, 6681 Prédio 33

Caixa

Postal/429

90619-900 - Porto Alegre RS

Brasil

Fone/fax: 51) 3320.3523

E-mai/: [email protected]

www.pucrs.br.edipucrs

CDD

869.937

Page 6: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 6/186

  GR DECIMENTOS

Este é um trabalho sobre o exílio feito no exílio. Pode pare-

cer exagero,

mas

é a mais

pura

verdade dizer que viver longe do

Brasil, por longos quatro anos, ajudou-me a criar o ambiente ne-

cessário, uma espécie

de

laboratório,

para

que

minha

pesquisa

se desenvolvesse com mais densidade. Nunca pensei, antes de

ir, que a experiência real do exílio pudesse transformar a vida

de quem

parte para o exterior, não por opressões políticas,

mas

por

vontade

própria.

Um

exílio voluntário parece

por

demais

tentador

para

quem fica: alguns anos longe

da

rotina, conhecer

um país diferente, gente, língua e cultura novas, etc. No entanto,

o exílio se revelou difícil ao extremo em seus primeiros momen-

tos, só se transformando em algo estimulante depois de um pe-

noso tempo de adaptação aos novos ares. Por isso, o desenvol-

vimento e a conclusão desta tese não teriam sido possíveis não

fosse a participação

de

alguns estranhos estrangeiros ,

que

me

ajudaram ativamente no processo de criação e conclusão

da

pesquisa. Ao final, eles fizeram

parte de

um exílio que, aos pou-

cos, transformou-se em memorável roteiro de viagem.

Prof. Dr. Peter

de

Voogd é

um

deles. Voogd

prontamente

concordou em supervisionar meu projeto, tão logo cheguei à

Ho

landa disposta a fazer o Doutorado. Ele acreditou na minha

proposta e na minha determinação

em

finalizar a tese, oferecen-

do-me inestimável apoio intelectual

pa

ra a i

mp

lementação

de

todos os pl

anos que

eu tinha

em

mente. Acima

de

tudo, acom-

panhou me

nos momentos

de

maior saudade longe do Brasil. A

ele, toda a minha gratidão.

Sou imensamente agradecida ao Prof. Dr. Paulo

de

Medei-

ros

por

sua indispensável ajuda em

dar

forma às minhas idéias,

instruindo-me quanto aos instrumentos críticos a serem empre-

gados. Logo em

uma

de nossas primeiras

reun

iões, Medeiros

sugeriu-me

que

abordasse as obras de Gilles Deleuze e Rosi

Braidotti,

vendo

nelas

uma

conexão direta com o tema que eu

havia proposto. Sem esses insights, certamente

não

teria sido

possível sequer iniciar esta tese.

Aproveito a

oportunidade para

agradecer à

Mar

ta Peixoto e

à Maria José Sommerlate Barbosa, companheiras no estudo de

Page 7: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 7/186

Clarice Lispector, por suas atitudes de incentivo

desde

minhas

primeiras incursões ao tema do exílio aliado à literatura de Cla-

rice. Seus conselhos e sugestões foram extremamente úteis em

todo o processo.

Estes agradecimentos

não

estariam completos se eu

não

in-

cluísse a

minha

família - imenso suporte a distância:

minha

mãe, cuja tranqüil

idade

sempre funcionou como

uma

fonte de

equ

ilíbrio em minha

vida;

meu pai responsável

por

ter

me

apresentado ao mundo da cultura e às línguas estrangeiras, e

meu irmão Alexandre, sempre um

bom

amigo.

Não posso

de

ixar

de

mencionar a Profa. Dr. Maria Lúcia

Campanha

e o Prof. Dr. José Luís Ribeiro, pela permanente ati-

tude

de

incentivo a todos os

meus

projetos intelectuais,

desde

a

graduação.

Também do Brasil, aj

uda

indispensável me fo i dada por

Dona Isabel, Didier e Alan, pessoas essenciais à construção de

minha saúde espiritual e à decisão de dar conclusão a tudo que

eu iniciara em terras estrangeiras .

Minha gratidão estende-se a meu marido, Carlos Gil, o

grande

entusiasta

de

meu trabalho, que me ajudou na execução

de

cada detalhe,

sem

o

que

nada

disto teria sido possíve

l.

Ele é

também co-autor deste livro.

E para finalizar, as professoras Maria da Glória Bordini e

Regina Zilberman foram as pessoas

que

acreditaram, aqui no

Brasil, que o estudo feito no exílio e sobre o exílio, na obra

de

Clarice Lispector, mereceria chegar ao país e se transf

ormar

em

livro . Foram elas qu e mobili

zaram

os esforços e o talento

de

Be-

atriz Viégas-Faria na laboriosa tradução de toda a tese. A elas,

Maria da Glória Regina e Beatriz, a admiração pela condução

do trabalho e um agradecimento todo especial.

Amstel

veen/Utrecht 1997/2001

Rio

de

Janeiro, 2002

Page 8: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 8/186

  umário

INTRODUÇÃO

1 HAIA: UMA VIAJANTE CLANDESTINA

1 1

Introdução

1.2 Em terras estrangeiras

1.3 Laboratório literário

1.4 Conclusão

9

19

19

25

30

31

2 PERTO

DO

CORAÇÃO SELVAGEM DAS PALAVRAS 33

2 1 Introdução 33

2.2 Escritura feminina

35

2.3 No coração

das

palavras 35

2.4 Conclusão 43

3 NARRATIVAS DO SILÊNCIO: PALAVRAS SITIADAS 49

3.1 Introdução

49

3.2 Insiders outsiders 57

3.3 A terra de nenhuma mulher 61

3.4 Grupo do exílio 64

3.5 Palavras

de

sombras: O lustre 70

3.5.1 Sociedade

de

solidão 73

3.5.2 Laços desfeitos

75

3.5.3 A voz do outro 79

3.6 Teatro

de

pantomima:

A

cid de

siti d

83

3.6.1 Em estado de sítio: personagens narrativa

espaço e tempo 86

3.6.2 Silêncio de estátuas

89

3.6.3 Jogo

de

espelhos 92

3.7 Audiência de pedras: A m çã no

escuro

96

3.7 1 prendizado

humano

99

3.7.2 Da companhia das pedras

à interação

com

os outros 104

3.7.3 Como se faz

um

herói 110

3.7.4 Centro

versus

margem 114

3.8 Conclusão 116

Page 9: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 9/186

4 ATRAVESSANDOODESERTO:APAIXÃOSEGUNDOG.H.119

4 1 Introdução

4.2 Aproximando se do outro

4.3

Um

deserto de revelações

4.4 Tornar se

4.5 Vir a ser mulher

4.6 Conclusão

5

ESCRITOS NOMÁDICOS

5 1

Introdução

5.2 Itinerários nomádicos

5.3 Linhas de êxtase e dispersão

5.4

A hora da

estrela:

nos

bastidores da literatura

5.5

Ruínas do texto

5.6 Conclusão

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

BREVI ÇÕES UTILIZ D S

AV

cs

DM

FC

HE

LU

ME

OEN

PCS

PSGH

sv

Água viva

A

cidade sitiada

A descoberta do mtmdo

A

felicidade clandestina

A hora da estrela

O lustre

A maçã

no

escuro

Onde estivestes de noite

Perto do coração selvagem

A

paixão

segundo

G.H.

U m sopro de vida

119

123

128

130

133

136

139

139

143

147

153

160

163

165

171

Page 10: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 10/186

 ntrodução

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-

se a algo ou a

alguém

mais forte -

eu

quero pe

rt

encer

para que

minha

força não seja inútil e fortifique uma

pessoa

ou uma

coisa [

..

] pertenço,

por

exemplo, a

meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele

pertencente a ponto de ser brasileira. [ ..] Sou feliz de

pertencer

à

literatura brasileira

por

motivos que

nada

têm a ver com literatura, pois

nem

mesmo sou uma

li-

terata ou uma intelectual. Feliz apenas por fazer par-

te . (DM, p. 1

0)

Clarice Lispector está entre os autores mais celebrados e es-

tudados da literatura brasileira. Seu nome traz à lembrança os

romances, contos, cartas e crônicas

1

que ela escreveu

durante

quase 40 anos de trabalho literário, desde Perto do coração selva-

gem

publicado

em

1944, até o

póstumo

Um sopro

de

vida

publi-

cado

em

1978. Os críticos tomaram a estréia

de

Clarice como um

marco, principalmente porque a autora trazia algo de novo e re-

vigorante à arena nacional, àquela época identificada com o re-

gionalismo, fértil

porém

limitador, pelo qual a literatura brasi-

leira fora por longo tempo conhecida.

 

Quando a prosa poética de Perto do coração

selvagem

apare-

ceu, a literatura brasileira já vivenciara sua vanguarda espe-

As crônicas de Clarice Lispector foram em sua maioria publicadas no omnl do

Brasil

Alguns dos grandes nomes da literatura regionalista brasileira são Jorge Amado,

Rachei de Queiroz, Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Apareceram entre

1930 e 1945 e estavam fortemente comprometidos com a justiça social e a caracte-

rização típica

do

povo

do

Nordeste. S tegagno-Picchio, 1997)

A palavra

usurpada:

exíl

io e

nomadismo na obra

de

Clar

ice spector 9

Page 11: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 11/186

cialmente de 1922

 

em dian te com Oswald de Andrade e Mário

de Andrade. Ambos, entre outros, ajudaram a construir a então

chamada consciência nacional , por meio de um trabalho de

fortes tons nacionais, contra as fórmulas importadas e artificiais

de

expressões estéticas.

Contudo

a nova experiência

com

uma

linguagem de apelo mais universal só chegaria mais tarde,

com

a geração de 1945,

na

qual

podem

ser encontrados João Guima-

rães Rosa, Clarice Lispector e grandes poetas, como João Cabral

de Melo Neto (Stegagno-Picchio, 1997, p. 589). Com criatividade

e sofisticação, eles redimensionaram a língua

portuguesa

do

Brasil trilhando surpreendentes veredas.

Tão logo o primeiro

roma

nce de Clarice Lispector fo i lança-

do,

surgiu

a premência

de

classificá-lo

dentro

de

uma

categoria

internacional. A epígrafe

do

próprio romance apontava

para

uma

solução: Ele estava sozinho. Estava despercebido, feliz e

perto do coração selvagem da vida (Joyce, 1985, p. 171), Lecho

referente a

A portrait of the artist as a young man  

Esse fato ini-

cial levou os críticos a presumirem com alguma precipitação,

que Clarice Lispector estava tão-somente seguindo os passos de

James Joyce.

Mesmo sem levar

em

conta o

quão

relevantes foram as in-

fluências literárias

que

pavimentaram a trajetória de Clarice, é

importante observar que a autora entrou na cena literária brasi-

leira com a força

de uma

estilista, e não apenas como

uma

boa

escritora.

É

bem verdade

que

Guimarães Rosa fez o mesmo, es-

pecialmente

em Grande

sertão:

veredas

(1956), mas o tema deste

era o mundo rural. Guimarães Rosa abriu

novas

frentes nas rús-

ticas terras brasileiras, para ali inserir

um

homem universal, en-

quanto

a tarefa

de

Clarice Lispector configurou-se mais indivi-

dual

, assim como também o fora

para

Kafka. Ambos esquiva-

ram-se

de

passar

por

paisagens abertas, preferi

ndo

cair

nas

pro-

fundezas de

um

abismo metafísico.

Por estranho

que

pareça, no entanto, após a surpresa causa-

da pelo

advento

de

Perto

do

coração

selvagem seguiram-se a esse

romance alguns

ou

tros de estilo

bastan

te diverso. Clarice Lis-

pector não continuou escrevendo da mesma maneira. Pelo con-

3

É

o ano

da

Semana

de

Arte Moderna no Brasil, marcando o começo oficial

do

movimento estético a favor

da

individualidade e liberdade na arte. (Stegagno-

Picchio, 1997)

1 O Cláudia Nina

Page 12: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 12/186

trário. Depois daquele momento brilhante de sua estréia literá-

ria, ela t

omou

o rumo

de

uma

outra

terra , iniciando então

uma

fase diferente em sua carreira. Enquanto o primeiro ro-

mance

representa

uma ruptu

ra com

padrões

literários tradicio-

na

is, vale

nd

o-se

de

uma

retórica não-mimética e

altamen

te sub-

jetiva, os três romances

que

se

seguiram

ao primeiro constituem

um

outro

momento

de ruptura : uma ruptura

com

o

próprio

estilo de Clarice Lispector, conforme celebrado em Perto

do

cora

-

ção selvagem.

Curioso é

notar que

isso representa

uma

inversão

de sua dinâmica literária inicial, uma mudança

que

classifico

como radical em forma e substância.

O

período

seguinte trouxe O

lustre

publicado em 1946;

A

ci

dade

sitiada

de

1949, e

A

maçã no

escuro

publicado

em

1

96

1

To-

dos os três foram escritos, integral ou parcialmente, durante a

época em que Clarice Lispector estava morando no exterior (Itá-

lia, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos) com seu marido, o di-

plomata Maury Gurgel, de 1944 a 1959. Todas as obras, segundo

a

pe

rspectiva que apresento,

div

idem entre si várias característi-

cas, de acordo com as quais

podem

ser agrupadas como narrati-

vas do

silêncio ou escritos de

exílio.

O exílio é

um

termo associado

à

literatura

desde

a Grécia

Antiga, onde era sinônimo de pena de morte (Queiroz, 1998, p.

39).

Nos

t

empos

modernos, contudo, essa conexão ficou

ainda

mais íntima, uma vez que muitos escritores até

mesmo

busca-

ram de forma

volun

tária experimentar o isolamento

do

exílio a

fim de obter, a partir dos sentimentos evocados a distância, al-

gum ganho artístico. Por isso, é

importante

enfatizar

que

o ter-

mo exílio não é visto aqui como punição,

mas

simp lesmente em

referência

ao

sentimento

de saudade ou

melhor,

de nos

talgia,

que expressa a separação de um

indivíduo

de sua pátria, e ainda

o desejo de retornar a ela algum dia.

Clarice Lispector

não

procurou o exílio;

apenas

concordou

em

acompanhar o

marido

em seu itinerário diplomático. Àquela

época, ela não

tinha

como avaliar claramente as possíveis con-

seqüências que a expatriação traria

à

sua obra. Afinal, em 1944

ela era

apenas

a

autora

de

um

único romance publicado e

não

tinha nenhuma certeza quanto ao seu futuro na literatura.

Mesmo

assim, acredito que Clarice Lispector tenha tirado van-

tagem

do

exílio. Primeiro, porque ela teve a oportunidade de

morar

em outros países e

de

conhecer diferentes culturas, coisa

que obviamente enriquece a sensibilidade de um autor. Segun-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

Page 13: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 13/186

do, porque os anos

de

isolamento (naqueles tempos, as distân-

cias eram bem mais longas do que hoje)

deram

a Clarice Lispec-

tor a possibilidade de aproximar-se de si mesma, longe que es-

tava de ambientes conhecidos, dos amigos e da língua portu

guesa falada nas barulhentas

ruas

brasileiras

ou

nas

rádios. Por

inúmeras razões que serão em seguida analisadas, observa-se

que

o exílio foi um período extremamente fértil

para

Clarice

Lispector, que lá fora produziu um material rico e consistente,

que

merece ser analisado detidamente.

Mas, afinal, o que esses escritos do exílio têm em comum? E

por que se pode

pensar

neles

em

oposição ao que a autora pro-

duzira anteriormente?

Ora, são vários os aspectos a serem observados. Os três são

romances narrados no passado, em grande parte escritos na ter-

ceira pessoa, num clima de nostalgia e imobilização. As perso-

nagens levam vidas sedentárias

em

situação

de

exclus .v ou

de

isolamento social. Ex iste

uma

inegável sensação de desconforto

que

percorre a mente das personagens, que, silentes e melancó-

licas, mal se movem para além de seus domínios. Todas elas

(Virgínia, Lucrécia, Martim, Ermelinda, Vitória e a

mulata

cozi-

nheira) são, de

uma

maneira ou de outra, prisioneiros

da

lin-

guagem , uma vez que mal conseguem enunciar seus pensa-

mentos e sentimentos. São estrangeiros e exilados em seus pró-

prios mundos

interiores,

um

nicho estranho para eles mesmos.

Importa pouco, porém,

quão

grandes possam ter sido as co-

nexões entre vida e literatura na obra de Clarice Lispector, pois

não

é

minha

intenção investigá-las segundo a proposta, muitas

vezes superficial,

de

analisar

l

oeuvre

enquanto mera

reflexão

da

biografia

de um

autor no exílio. Meu enfoque coloca-se sobre os

aspectos exílicos que estão latentes na ficção. A questão que me

proponho a responder é a seguinte: o que define um texto como

exílico, e que espécie de elementos lingüísticos e literários são

com freqüência encontrados

em

tal literatura? Esses questiona-

mentos não devem conduzir a uma exaustiva e incompleta in-

vestigação sobre escritores expatriados dentro de uma perspec-

tiva

amp

la,

porque

isso

me

levaria a

empreender

uma

trajetória

sem-fim, e muito já foi feito nessa área. A idéia é traçar um para

lelo entre exílio na ficção e alguns elementos básicos

das narrati

vas

do

silêncio, que refletem a mesma disposição literária.

Organizado o esquema acima, uma das perguntas

que

me

vêm a mente é: como posicionar o romance inaugural de Clarice

12

láudia Nina

Page 14: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 14/186

Lispector - aclamado como uma ruptura com a tradição -

em

confronto com os romances

que

se seguiram? A

mudança

repre-

sentou, a

meu

ver, uma radical reavaliação na recepção da obra

de Clarice Lispector e, por isso, intrigava-me a idéia

de

localizá-

la. O modelo exílico

que

eu

tinha

em

mente necessitava

de

al-

guns outros elementos para justificar

sua

aplicação, opondo o a

Perto do coração selvagem.

Cheguei a uma solução quando verifiquei que era preciso

confrontar os textos de exílio

de

Clarice Lispector não só

com

Perto

do coração

selvagem mas principalmente com

seus

escritos

pós-anos 60, em especial os

produzidos na

década de 70, quan

do

o estilo proclamado na estréia da autora mostrou-se clara-

mente

desenvolvido. Agrupei, portanto, esses textos

no

conjun-

to

dos

escritos nomádicos por apresentarem

uma

dinâmica com-

pletamente diferente àquela que movia a lenta engrenagem das

narrativas do

exílio.

O termo relaciona-se ao estudo do nomadismo na literatura,

em especial às reflexões de Rosi Braidotti em Pattems of disso-

nance:

a study of

women in contemporary philosophy e Nomadic

stu

dies: embodiment

and

sexual difference in contemporary

feminist

the-

ory.

Fundamentando se

nos

trabalhos colaborativos

de

Gilles

Deleuze e Felix Guattari, a autora propõe um itinerário nomádi

co intelectual capaz de refletir

uma

consciência crítica que resis-

te acomodar-se a códigos sociais e a modos de

pensar

e tam-

bém

de comportamento) de centralizadas estruturas falocêntri-

cas de comando, força e hegemonia.

O conceito deleuziano de rizoma é útil para entender tal

movimento. O termo foi tomado emprestado da biologia para

definir diversas e

múlt

iplas formas vinculadas

em

todas

as dire-

ções, em oposição às arvores ou às suas raízes. Deleuze opõe a

idéia do livro-árvore à do livro-rizoma, esquema que representa

o contraste entre os escritos clássicos (belamente organizados) e

escritos rizomáticos , não-estruturais, não-significativos e des-

centralizados. A literatura nomádica,

segundo

tal perspectiva,

caracteriza-se por elementos como a dispersão e as linhas de

fuga , onde nada

a ser interpretado, apenas vivenciado .

Enquanto o modelo livro-árvore imita o

mundo

e a natureza

a

lei

que

a rege é a representação e sua lógica é binária), o ri-

zoma tem como princípios essenciais a multiplicidade

em

n

dimensões, a conexão, a heterogeneidade e a

ruptura. Os

exem-

plos são tirados da fauna e da flora:

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 3

Page 15: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 15/186

O rizoma propriamente dito tem formas as mais diversas, a partir

de sua extensão superficial, ramificada em todos os sentidos até

suas concreções em bulbos e tubérculos. Os ratos são rizomas, os

terriers também o são, em todas as suas funções de

hab

itat, provi-

são, deslocamento, ocultação e ruptura. (Deleuze e Guattari, 1

97

,

p.

18)

Vejo nesses estudos de Deleuze e Guattari

uma

relação

imediata com os escritos tardios de Clarice Lispector: gua viva

(1973),

hora

da estrela (1977) e

Um

sopro de vida (1978). Os três

refletem um projeto literário-filosófico destituído de

um

centro

de

comando

e de uma estrutura formal, fazendo ruir os padrões

canônicos

das

narrativas clássicas. Por várias razões, essas nar-

rativas (altamente fragmentadas e não-representa

ti

vas) são

uma

expressão clara da consciência nomádica que Braidotti defende

e exemplo perfeito

do

conceito deleuziano de rizoma .

A partir dessa perspectiva de confronto - livros-árvore

ver-

sus livro-rizoma -

eu

precisaria decidir se consideraria os

escri-

tos de

exílio

de Clarice Lispector segundo o modelo árvore ou

não. Em caso positivo, por extensão,

eu

teria de considerá-los

romances clássicos . Sim e não. Eu poderia dizer que o ciclo do

exílio

é formado

por

obras

nas

quais a subjeti

vidade

transmite-se

por meio da interação clássica entre a enunciação narrativa e as

personagens que não participam como sujeito

na

primeira pes-

soa , da con

strução do

texto .

Além

disso, a es

trut

ura dessas

obras pretende , de fato, representar o mundo em vez de vi-

vendá-lo . Ex iste, portanto,

uma

lógica clássica , por assim di-

zer, que rege esses mundos narrativos e que se opõe francamen-

te aos

escritos

nomádicos

altamen te esquemáticos, erráticos e

não-miméticos.

O

mode

lo exílico/nomádico, contudo ,

não

estava completo

em minha mente. A mudança de um ponto de vista para outro

parecia-me radical demais. Faltava uma

ponte, um romance

de

ligação entre uma fase e outra. Encontrei o elo em paixão se-

gundo

G.H. (1964), primeiro livro escrito depois do retorno de

Clarice Lispector ao Brasil. Este é um livro que anuncia uma es-

pécie

de

metamorfose

na

estru

tur

a,

na

ling

ua

gem

e

no

estilo

da autora , aproximando a literatura à fi losofia e expl

orando

as

possibilidades de seu elemento comum,

ou

seja, a linguagem.

Esse processo havia se iniciado su tilmente em maçã no es-

curo que fecha o ciclo do

exíli

o A partir de paixão segundo G.H.,

as palavras

do

exílio parecem ter sido liberadas para recomeçar

4 Cláudia Nina

Page 16: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 16/186

o processo

de

se tornarem desenraizadas, nomádicas, livres e

não-representativas. Nesse romance, pela

primeira vez

, Clarice

Lispector estava escrevendo integralmente na primeira pessoa.

A voz do

eu protagonista

- também narrador - aparece em

um

solil

óqu

io,

discorrendo

sobre diversos ti

pos de

ma

téria,

desde

questões

simples e ordinárias, até

temas

metafísicos, reli-

giosos e existencialistas. Parece-me existir aí, a partir de paixão

segundo G.H, um outro momento de ruptura

em que

a natureza

experimental

do estilo

de

Clarice Lispector é

reinventada

ou

resgatada

em sua

plenitude. Não que eu considere esse ro-

mance

como

sendo

da

mesma categoria dos escritos tardios (re-

ferentes

à

década de 70 .

paixão segundo

G.

H.

é, a

meu

ver,

uma passagem

para

os trabalhos posteriores ao colocar

em

discussão

muitos dos

elementos que se

encontram mais

ampla-

mente

desenvolvidos

nos escritos nomádicos tanto

em

forma

quanto em conteúdo.

Para ilustrar o ciclo do exílio eu poderia ter selecionado vá-

rias outras obras, como,

por

exemplo, Laços de

família

(1960), que

é talvez a antologia

de

contos de Clarice Lispector

que

maior

sucesso obteve, bem como a mais

estudada.

Com certeza,

mui-

tos

dos

contos dessa antologia

poderiam

perfeitamente encai-

xar-se na

idé

ia que

ora defendo

sob o rótulo de escritos de exílio

uma

vez que apresentam

personagens

(principalmente

mulhe-

res) aprisionadas

em

suas esferas exílicas

dominadas

pelo am-

biente

doméstic o, do qual sonham escapar de algum

modo.

En-

tretanto, os contos

de

Clarice Lispector são tão ricos e cheios

de

possibilidades de investigação que

merecem

um estudo à parte.

Além

disso,

um

esco

po

mais amplo

alargaria

minha

análise

ru-

mo a direções não-objetivas e imprevisíveis. Por essa razão, op-

tei

por

concentrar-me na tríade

de

romances

que

defino como

exílicos, e explorar um conjunto de escritos que até hoje não fo-

ram

abordados de fo rma consistente.

Apresentar

uma

conexão entre as diferentes fases

de

sua

carreira é, sem

sombra

de

dúvida,

um

importante passo à

frente.

Além disso, os escritos de exílio ainda não receberam atenção de-

vida

por

parte dos

críticos e

permanecem neg

ligenciados se

comparados a Perto do coração selvagem paixão segundo G.H. e

hora da

estrela.

De fato. há um grande número

de

trabalhos críticos compe-

tentes sobre Clarice Lispector

que levam

os leitores a diferentes

direções.

lene Cixous, por exemplo, é

uma

referência impor-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5

Page 17: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 17/186

tante, sobretudo

por

haver apresentado a autora brasileira aos

leitores

europeus

em livros, artigos e seminários que abriram

novas frentes de abordagem à investigação da obra de Clarice

Lispector. Entre os trabalhos de Cixous estão

Coming to

writing

and other essays

que

agrupa

ensaios

de

1979 a 1986, e

Reading

wi-

th

Clarice Lispector publicado

em

1990, que reúne os seminários

ministrados na Université de Paris

VIII.

No campo biográfico,

Rencontres

brésiliennes de Claire Varin,

publicado em 1987

no

Canadá, foi o primeiro

estudo

biográfico

detalhado de Clarice Lispector, baseado em material documen-

tado. Inclui cópias impressas

de

alguns documentos

que

escla-

recem a diferença entre a real data de nascimento de Clarice

Lispector (1920) e a

data que

a autora apresentava como

sendo

sua data de nascimento.

 

Varin

também

publicou

Langues

de feu

em

1992, um importante estudo dos idiomas que cercaram a vi-

da de Clarice Lispector

desde

a infância. O estudo inclui grupos

de obras de Clarice Lispector que

eu

particularmente tomo co-

mo opostos aos que

proponho

no presente trabalho.

Em 1985, Earl Fitz apresentou Clarice Lispector aos leitores

norte-americanos com a obra Clarice Lispector

que

insere a auto-

ra

na

cena literária brasileira

moderna

e analisa seus textos

de

maneira inteligente e perspicaz.

Passionate fictions:

gender narra-

tive and

violence

in Clarice Lispector de Marta Peixoto (1994),

pu

blicado

nos

Estados Unidos, é provavelmente um dos trabalhos

mais maduros e lúcidos sobre Clarice Lispector, cobrindo uma

porção significativa da bibliografia da autora. Clarice

Lispector:

a

bio-bibliography

editado

por Diane Marting em 1993, é

um

estu-

do abrangente, com bibliografia atualizada e comentada, e que

inclui cartas, documentos pessoais e recortes

de

jornais.

Clarice

Lispector:

spinning the webs of passion de Maria Jose Sommerlate

Barbosa (1997), é um trabalho relevante sobre a subversão de

Clarice Lispector

em

relação à autoridade e à questão da autori-

a.

Sommerlate

também

publicou

Sparkling

mutations 1997) , edi-

ção bilíngüe, uma útil referência bioliterária e cronológica que

funciona como

resumo

e breve manual.

Como esclarece Marta Peixoto, em geral acreditava-se que Clarice Lispector fosse

de 1925, enquanto os documentos revelam 1920 como sua data de nascimento. O

motivo de Clarice Lispector para tal troca pode muito bem ter sido vaidade, e

mesmo uma vaidade literária,

um

desejo seu de mostrar-se ainda mais precoce

à

época de sua estréia literária

em 1944.

(Peixoto, 1994, p.

XVI)

5

No

Brasi

l.

a obra foi publicada

em 2002,

pela editora Limiar, com o título

Línguns

de fogo: ensnio

sobre

Clnrice Lispector tradução de Lúcia Peixoto Cherem.

16 Cláudia Nina

Page 18: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 18/186

No Brasil, a edição crítica de

A

paixão

segundo G.H., publica-

da em 1988 e organizada por Benedito Nunes, reúne textos

de

Olga Borelli, Olga de Sá, Antonio Candido e João Cabral de Me-

lo Neto, entre outros, num conjunto abrangente e diversificado

de

leituras

do

quinto romance

de

Clarice Lispector.

A

escritura

de

Clarice Lispector de

Olga

de

Sá, é uma análise detalhada dos

símbolos e epifanias em Clarice Lispector;

da

mesma autora, A

travessia

do oposto fornece

uma

análise cuidadosa dos símbolos

nos textos mais fascinantes porque fora do comum)

de

Clarice

Lispector.

Olga Borelli publicou em 98

Clarice

Lispector: esboço

para

um

possível retrato apresentando uma outra abordagem biográ-

fica,

que

contém as reproduções

de

várias cartas escritas

por

e

para Clarice Lispector entre 1944 e 1957, e assim oferecendo

uma importante fonte para pesquisa

das

conexões entre vida e

literatura. Em 1983, Berta Waldman

publicou

Clarice

Lispector: a

paixão segundo C.L.

uma

abordagem crítica a alguns textos sele-

cionados de Clarice Lispector dentro de

uma

leitura poético-

biográfica.

Em Uma vida que se

conta

publicado em 1995, Nadia Gotlib

apresenta

um

atraente trabalho biográfico,

em

que

relaciona a

vida

de

Clarice Lispector desde a infância

à sua

obra ficcional.

Teresa Cristina Monteiro Ferreira é a autora de Eu sou uma per-

gunta

publicado em 1999, uma das melhores pesquisas já feitas

no campo da biografia, com fontes confiáveis

que

servem

de

guia

para uma

sondagem dos aspectos biográficos mais íntimos

de Clarice Lispector, tendo se constituído em valiosa referência

para minha investigação.

O

Inventário

do

arquivo

Clarice

Lispector

organizado

por

Elia-

ne

Vasconcellos, lista importante material para pesquisa; con-

tém um catálogo do material em exposição

no Arqu

ivo-Museu

de Literatura Brasileira, no Rio de Janeiro, na Fundação Casa de

Rui Barbosa.

6

Clarice

Lispector: o tesouro da

minha cidade

de Ana

Miranda 1996), faz parte

de

um projeto editorial

que

vincula

autores a cidades. O trabalho descreve a relação de Clarice Lis-

pector com o Rio

de

Janeiro, incluindo referências

à

cidade na

obra da autora.

Regina Pontiere publicou em 1999 Clarice

Lispector:

uma

poé-

tica

do

olhar. A obra destaca-se pela investigação que a autora faz

de

A cidade sitiada trazendo à luz aspectos interessantes de um

• A Casa

de

Rui Barbosa abriga o Arquivo Museu de Literatura Brasileira, o que

inclui alguns dos originais

de

Clarice Lispector.

A palavra usurpada:

exílio

e nomadismo na obra de Clarice Lispector 7

Page 19: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 19/186

romance que ainda

não

recebeu atenção crítica merecida. Estrei-

tando a relação entre literatura e psicologia, Yudith

Rosenbaum

publicou em

1999

Metamorfoses do

mal: uma leitura de Clarice

Lis-

pector

análise

cuidadosa

de

algumas

distorções psicológicas

na

obra

de

Clarice Lispector, tais como a inveja e o sadismo.

Levando-se

em consideração todos esses

estudos

críticos,

questiono por que razões não se fez

outro

tanto em relação aos

romances de exílio. Talvez o mais estudado deles seja maçã no

escuro por sua densidade

e contornos filosóficos. E curioso no-

tar, entretanto que,

sendo

tão diferentes do resto da ficção de

Clarice Lispector, esses romances não tenham suscitado um

maior

interesse

por parte dos

críticos. O

esquema aqui proposto

pretende preencher

essa lacuna,

chamando

a atenção

dos

leito-

res para o aspecto

do

exílio, que

é

sem sombra de dúvida

um

elemento

essencial

na

construção

da arquitetura

filosófica des-

ses romances,

escondendo-se atrás

de todas as vozes silenciosas

(e silenciadas)

das personagens

e

no

vazio onde as

mesmas só

muito

lentamente

se

movimentam.

Nas

páginas que se

seguem desenvolvo

a

idéia

de que a

obra de

Clarice Lispector

é

feita de ciclos

de

ruptura

com seu

próprio

estilo,

sendo

o

mais

significativo o

que vem quebrar

a

dinâmica

de

Perto do coração selvagem

(que

em

si

mesmo

é uma

ruptura

com

a tradição), nas narrativas

do silêncio

e o que esti-

lhaça o silêncio em direção aos escritos nomádicos.

É importante mencionar que um movimento só vai existir

em

oposição a

outro

e que o

estudo

de uma fase

se justifica

em relação à outra.

Em outras

palavras: sem os escritos de

exílio

a idéia das obras nomádicas ficaria

sem

sua contraparte. É por es-

sa razão que

é

pertinente

estudar o

ciclo do exílio

sob uma pers-

pectiva que inclua seus movimentos subseqüentes em vez

de

analisar as obras independentemente

de todas

as conexões que

elas tenham

com

o resto da obra de Clarice Lispector.

Acredito

que, desse

modo posso contribuir com

os

estudos

acadêmicos

de Clarice Lispector,

abrindo ampla

discussão acer-

ca dos aspectos de sua

obra que ainda não

foram suficientemen-

te

explorados

e que,

por todas

as razões já

mencionadas desper-

taram o

meu

desejo de

desvendar

novos

caminhos

investigati-

vos.

18

láudia Nina

Page 20: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 20/186

 

Haia

uma viajante clandestina

A felicidade

sempre

iria ser clandestina

para

mim.

FC,

p. 18)

É

um

silêncio

que não

dorme:

é

insone; imóvel

mas

insone; e

sem

fantasmas. OEN, p.

94

1.1

Introdução

O exílio e a

clandestinidade

estão ligados às raízes da histó-

ria

de

Clarice Lispector. A autora nasceu em Tchechelnik, Ucrâ-

nia, em 1920, quando sua família, judia- os pais e duas

irmãs-

embarcava

para

o Brasil,

dando

início a

uma

longa

viagem ru-

mo à América. As duras restrições aos judeus

na

Rússia do pós-

guerra e

da

pós-revolução fizeram

com

que os Lispector esco-

lhessem entre as

duas

únicas alternativas que lhes restavam: vi-

ver como

refugiados em seu país

de

origem

ou

como exilados

no Novo Mundo - Estados Unidos ou Brasil. Pinkas e Mania

Lispector acompanhavam com

apreensão

as mudanças e a ins-

tabilidade política e social que

deixaram desempregados

e mise-

ráveis

muitos

de

seus compatriotas Ferreira, 1999, p. 25). Por is-

so, o casal decidiu-se

pela

segunda opção, elegendo a costa bra-

sileira

como

porto seguro.

Foi

uma viagem

difícil, mas cheia

de

esperança.

Para

chegar

ao destino, a família cruzou fronteiras e fugiu dos guardas

que

as vigiavam,

como

relata

em

detalhes Teresa Cristina Monteiro

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

19

Page 21: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 21/186

Ferreira, na biografia Eu sou uma

pergunta Na

metade

do

cami-

nho para

a terra prometida , em uma diminuta vila perdida no

mapa

na

fronteira da Moldávia, nasceu a terceira filha do casal.

Ela recebeu o nome de Haia, que, em hebraico, significa vida .

(Ferreira, 1999, p.

26

A

verdadeira identidade

de

toda

a família teve de ser ocul-

tada, e os nomes tiveram de ser mudados: Haia virou Clarice;

Pinkas, o pai, seria para

sempre

Pedro; Mania, a mãe, tornou-se

Marieta. O nome da irmã Lea mudou para Elisa, e apenas Tania

preservou

seu

nome

. O primeiro

porto

brasileiro foi Maceió,

no

estado de Alagoas e, três anos mais tarde, a família mudou-se

para o Recife, em Pernambuco,

lugar que

veio a ser para Clarice

Lispector o santuário de uma infância feliz, porém muito pobre.

Quando Clarice tinha 14 anos, em 1934, mudou-se

para

o Rio de

Janeiro, cidade

que

deixou somente depois

de seu

casamento

com o diplomata

Maury

Gurgel,

em

1944. Jamais retornou à

Ucrânia. E a Rússia permaneceria como a distante e misteriosa

terra de seus pais.

O itinerário exílico/nomádico de Clarice Lispector estava

selado

desde seu

nascimento, o que

não

a

impediu de

conside-

rar o Brasil

sua

pátria. Embora não tenha nascido

em

território

brasileiro, ela nunca colocou sob suspeita sua

identidade

nacio-

nal, como deixou claro

em

algumas crônicas de A

descoberta do

mundo

uma antologia de escritos heterogêneos

que

inclui textos

publicados no Jornal do Brasil entre agosto de 1967 e dezembro

de 1973. Esse material é importante

porque

fornece relevantes

aspectos sobre o processo de criação da

autora

e também revela

uma

série

de

episódios autobiográficos.

Quanto

à

sua

brasilida-

de, por exemplo, Clarice afirmou:

Criei-me em Recife, e acho que viver

no

Nordeste ou Norte

do

Bra-

sil

é

viver mais intensamente e de perto a verdadeira

vida

brasilei-

ra que lá, no interior,

não

recebe influência de costumes de outros

países. Minhas crendices foram

aprendidas

em Pernambuco, as

comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empre-

gadas,

aprendi

o rico folclore de lá. Somente

na

puberdade vim

para

o Rio

com minha

família: era a cidade

grande

e cosmopolita

que,

no

entanto, em breve se tornava

para

mim brasileira-carioca.

DM, p. 345

Sua primeira língua escrita foi o português, que acabou se

tornando a língua de sua vida e

de sua

literatura. Clarice escre-

20

láudia Nina

Page 22: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 22/186

veu acerca desse aspecto a fim de evitar maiores controvérsias:

Fiz

da

língua portuguesa a minha vida interior, o

meu

pensa-

mento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a es-

crever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os

em

português

é claro (DM, p. 345).

Na

verdade

dois

outros

idiomas eram falados

na

casa dos Lispector: o russo e o iídiche.

Quando criança, Clarice entendia um pouco e mesmo arriscava

umas poucas palavras dessas duas línguas, embora nunca tenha

desenvolvido um maior conhecimento delas

em

sua vida

adu

l-

ta. Em

Langues

de feu, a canadense Claire Varin defende a se-

guinte idéia: Os pais falavam iídiche em casa; Clarice compre-

endia, mesmo que nunca tivesse falado . (Varin, 1990, p. 26

Claire Varin analisa a confluência dessas diferentes vozes

na

mente

de Clarice Lispector desde a infância e as possíveis

conseqüências de tal emaranhado lingüístico para a construção

da

personalidade

literária

que

a autora viria a desenvolver. A

canadense revela que a língua materna circulava clandestina-

mente

na

casa e garante

que

o choque entre o iídiche e o

portu-

guês que a criança logo começou a falar teria forjado alguns

conflitos de identidade. Como ressalta a crítica canadense:

Nutrida

pelo iídiche, ela apreende o português da terra

adotada

por

seus pais. Suas experiências auditivas fizeram-na mergulhar,

desde o tenro começo de

sua

doce infância,

na

condição de instabi-

lidade de uma língua pura . (Varin, 1990, p.

26

O mame do iídiche, ou o mamãe brasileiro? Em casa, Clarice Lis-

pector gritava mame Fora

de

casa, em território brasileiro ela

aprendeu que mamãe

é

a

palavra

em português para dirigir-se à

sua mãe

judia.

Mame

ou

mamãe?

Detrás

de

qual vocabulário, sob

que

idioma

sua

mãe estaria se ocultando? (Varin, 1990, p. 66

Alguns críticos

sugerem

uma terceira língua: o jeito estra-

nho de

falar

de

Clarice, marcado

por um

leve sotaque estrangei-

ro. Devido a um pequeno defeito de dicção, popularmente cha-

mado

de

língua presa , a fala de Clarice soava com um r for-

te, como o sotaque francês. Por causa disso,

muitas

pessoas sus-

peitavam de

sua

nacionalidade brasileira: Recebo de vez

em

quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me

rodeiam de mitos. Vou esclarecer de uma vez

por

todas:

não há

simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito .

(DM, p. 345)

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 21

Page 23: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 23/186

Outras

línguas

podem

igualmente ser acrescentadas a essa

lista, como as

que

Clarice Lispector

aprendeu

ao longo

de

sua

vida, como o francês, o italiano e o inglês. Contudo, apesar des-

sa exuberância lingüística, a autora escolheu o

português

como

sua

língua literária. Para ela, A língua

portuguesa

é

um

verda-

deiro desafio

para quem

escreve. [

..

] Eu queria

que

a língua

portuguesa chegasse ao máximo nas

minhas

mãos. [

..

] Eu até

queria não

ter

aprendido outras

línguas: só

para que minha

abordagem do português

fosse virgem e

pura

(DM, p.

98 .

Em

eadíng wíth Claríce Líspector Hélene Cixous

também

analisa as

possíveis relações entre as várias línguas

na vida da

autora e

seu

estilo inconfundível. Ela diz:

Clarice fala todas as línguas, inclusive aquelas anteriores ao sâns-

crito, incluindo-se aí os silêncios. É

bom

viver nas línguas sob a

condição

de

que

elas não ditam as leis. [ ..] Clarice trabalha a lin-

guagem propriamente dita e sua relação com o corpo, e trabalha o

paradoxo

que

é a linguagem, de tal modo

que

as coisas sem corpo

nem

realidade são descobertas e ditas com mais facilidade porque

elas não são

nada

mais que palavras, como, por exemplo, as leis.

(Cixous, 1990a, p.

12

Clarice foi, portanto, criada num ambiente

de

línguas mistas

e

identidades

conflitantes. Dentro desse universo

de

exílio e es-

trangeiridade, dois outros aspectos cruciais

devem

ser incluídos

na

biografia

da

escritora: a pobreza e a orfandade. A mãe, doen-

te e calada,

nunca

tinha

tempo ou saúde para

nutrir a ânsia

de

sua filha por histórias, fábulas, enredos, fantasia. Além disso,

ela foi paralítica

durante

toda a

vida

de Clarice, e

morreu

quan-

do

a menina tinha 9 anos

de

idade. O

pai

não tinha

nenhuma

formação artística

em

especial, nem tivera qualquer educação

cultural, embora gostasse de música e de leitura. Sem brinque-

dos ou

bonecas, Clarice teve

de

inventar seus próprios jogos so-

litários numa infância muito pobre, correndo pelas ruas

do

Reci-

fe.

Elisa Lispector (1911-1989), também romancista, escreveu o

parcialmente autobiográfico

No exílio em que

apresenta

uma

versão daqueles primeiros anos, marcados pela

saúde

decaden-

te da mãe e o impacto de sua morte sobre a família. Publicado

em 1948

época

do

nascimento

do

Estado Nacional

Judeu de

Israel), o romance retrata a realidade de uma família russo-judia

perseguida, traçando seu êxodo desde as estepes geladas

da

22 láudia Nina

Page 24: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 24/186

Rússia

até

os trópicos

do

Brasil. Elisa Lispector estreou silencio-

samente

na literatura, aos 34 anos de idade, com o livro Além da

fronteira.

Dona de

uma

personalidade

introvertida,

não

tinha o

hábito de expressar

apaixonadamente seu

desejo de tornar-se

escritora, como Clarice

muitas

vezes o fez. Ao contrário

da

irmã

famosa, Elisa

nunca

alcançou grande sucesso,

apesar

de suas

inquestionáveis habilidades literárias.

Não

obstante a

pobreza

e as dificuldades emocionais, a jo-

vem Clarice Lispector entretinha-se com os livros emprestados

das bibliotecas públicas. Tão logo descobriu o mundo da litera-

tura, também descobriu algo mais ambicioso: o desejo

de

seres-

critora. A criança começou a escrever contos, que enviava aos

cadernos literários

dos

jornais.

Ntmca

foram publicados,

para

constante frustração da pequena escritora. Mais tarde, Clarice

descobriria a razão

do suposto

fracasso: as outras crianças es-

creviam sobre fatos,

enquanto

os textos dela eram apenas va-

gas emoções e sensações .

Em

A felicidade clandestina uma série de contos publicada

em 1971, episódios interessantes

da

infância

de

Clarice são nar-

rados na primeira pessoa, que fala sobre

muitos

assuntos pes-

soais, tais como

sua

formação literária. O conto

que

abre o vo-

lume

é um bom exemplo de como os livros foram importantes

para a autora desde quando, ainda menina, invejava a amiga, i

lha de um

dono

de

livraria. Sádica, a amiga recusava-se a em-

prestar

a Clarice um livro por lonpo tempo desejado: Reinações

de

Narizinho

de

Monteiro Lobato. Somente depois

de

uma es-

pera

interminável, finalmente ela consegue ter em

suas

mãos o

livro. Foi

quando

se

sentiu

transformada em

uma

rainha deli-

cada FC,

p. 18).

À medida que

Clarice Lispector foi crescendo, suas leituras

ganharam naturalmente

um teor

mais

sério,

com

títulos como O

lobo da estepe de Herman Hesse, por exemplo. A jornada interior

de

Jack London deixou impressões profundas e memoráveis na

adolescente. Naquele momento, ela se sentia entrando em con-

tato

com

a

grande

literatura,

que

a chocou por sua intensidade

e força, como ela

mesma chegou

a confessar (Gotlib, 1995, p. 85).

Aos 15 anos, já morando

no

Rio de Janeiro, Clarice

comprou seu

primeiro livro. Foi uma experiência e tanto. Era Bliss de Kathe-

' O

mundo

fantasioso de Lobato influenciou a imaginação

de

Lispector, especial-

mente na

arte das

narrativas

dentro de

narrativas .

A palavra usurpada: xílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 3

Page 25: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 25/186

rine Mansfield. A obra

da

autora inglesa foi

uma

influência con-

siderável sobre os primeiros escritos

da

escritora brasileira,

principalmente no que toca ao uso da sensibilidade e

da

intui-

ção

no

processo criativo. Incluído em algumas das lembranças

de

leitura mais caras a Clarice,

Bliss

e

Perto

do

coração

selvagem

têm em

comum

o sentimento de êxtase e a inesperada sensação

de

descobrir surpresas iluminadas no meio

de

uma rotina banal.

Em Bliss por exemplo, os pensamentos e sensações de Bertha

Young são cuidadosamente descritos:

O que se pode fazer

quando

você tem trinta anos e, ao dobrar a es-

quina de sua própria rua, você é tomada, de repente, de um senti-

mento de êxtase total êxtase

Como

se de repente você tivesse

engolido o brilho

de um

pedaço daquele sol

bem de

finzinho

de

tarde, e ele então pusesse fogo dentro do seu peito, dali enviando

uma pequena inundação de centelhas para cada partícula sua, para

cada dedo da mão,

para

cada dedo do pé? (Mansfield, 1995, p. 60)

No

estudo

Clarice

Lispector

Earl Fitz analisa a conexão entre

as duas escritoras. Fitz conclui que ambas "escreveram contos

que acendem

um repentino e dramático lampejo de insight den-

tro

da

verdadeira natureza de

uma

personagem" (Fitz, 1985, p.

3). Em seus contos, acrescenta ele, a atmosfera envolve-se de um

ar milagroso,

um

arrepiante senso

de

mistério de qualidade

onírica

que

se conecta só parcialmente à realidade

do

dia-a-dia.

Não obstante, Fitz acredita que, apesar da "delicada aura

de

pensamento e sentimento" (Fitz, 1985, p. 3)

de

que se cercam

seus universos ficcionais, as autoras jamais deixam de ancorar

suas histórias na vida cotidiana, localizando-as nas classes mé-

dia e média-alta dos centros urbanos.

Movida pelo desejo de expressar-se na literatura e

nutrida

por constantes leituras, Clarice Lispector começou, então, a es-

crever novos contos

para um

concurso literário enquanto estu-

dava Direito. Alguns desses textos só foram publicados em

1979, em bela e a fera. Sua primeira obra publicada,

no

entanto,

foi o romance Perto

do

coração selvagem

1944)

que

surpreendeu

enormemente os críticos ao mostrar o talento e o estilo

de

uma

auspiciosa romancista. A obra,

que

será analisada

no

próximo

capítulo, foi celebrada como um grande romance, logo inserido

no primeiro plano da literatura internacional.

Após a estréia literária e o casamento com o diplomata

Maury Gurgel, em vez de empreender a viagem independente

24

láudia Nina

Page 26: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 26/186

de Joana ao fim de Perto do coração selvagem , Clarice Lispector

segue o rumo de

uma

jornada itinerante ao lado do marido. Vi-

veria, além de escritora, o papel primeiro de esposa. Muda-se,

então, do Rio de Janeiro

para

Belém, e dali para Nápoles, na Itá-

lia,

em

1944,

dando

início a

um

longo período

em

terras estran-

geiras: Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. Retornaria ao

Rio

de Janeiro somente em 1959.

1.2

m terras estrangeiras

Recife está

todo vivo

den

tro

de

mim. (Clarice Lispec-

tor, em uma entrevista)

8

É natur

al que a história familiar

de

Clarice, incluindo aí a

perda prematura de sua mãe, tenha sido

um

fator determinante

no curso

de sua

carreira e até mesmo

em

s

ua

literatura. Impos-

sível determinar, porém, com certeza o quão estreitos foram os

laços entre vida e obra. Contudo, é importante ressalt

ar

que, du-

rante

os anos

em

que

a

autora

esteve longe

do

Brasil, o exercício

da escrita serviu-lhe como

uma

espécie de refúgio lingüístico .

Em

seu desterro voluntário , ela escreveu várias cartas a au to-

res brasileiros (Manuel Bandeira, Rubem Braga, Paulo Mendes

Campos Lúcio Cardoso e Fernando Sabino

,

expressando an-

gústia e uma grande dificuldade em lidar com problemas de

adaptação no exterior. Al

ém da

correspondência, também pro-

duziu romances: as linhas finais de O lustre e os textos comple-

tos de

A

cidade

sitiada

e de

A

maçã no

escuro

.

O termo exílio não é empregado aqui em seu sentido políti-

co

de

ausência forçada

ou

punição, como aparece definido no

Ox-

ford English Dictionary, mas, antes, no sentido de se viver longe

da pátria

por um

longo

tempo

devido a um motivo especial ou

a

uma

escolha pessoal, como aconteceu com Clarice. Em algu-

mas das cartas a amigos brasileiros , é possível analisar como foi

doloroso

para

a autora

morar

fora do Brasil. Na edição inglesa

de A descoberta do mundo Discovering the world , Giovanni Pon-

tiero faz a seguinte reflexão:

' Entrevista ao suplemento literário

do

Jornal do Comér

c

io,

de

Pernambuco. Cf. Got-

lib, 1995,

p. 481.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice spector 5

Page 27: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 27/186

Por dezesseis anos, Lispector viveria separada de

seu amado

Bra-

sil, à exceção de breves visitas que apenas intensificavam seu sen-

timento

de exílio e saudade. Ela

detestava

as obrigações sociais

exigidas de

uma

esposa de diplomata. Escrever tornou-se cada vez

mais

importante para sua

sobrevivência espiritual. Ela desejava

uma maior privacidade a fim de

poder

meditar e escrever seus li-

vros. Escrever tornou-se sinônimo de solidão e uma forma mais

profunda de existência, e foi só o trabalho e os filhos que a manti-

veram

mentalmente sã

durante

aqueles anos em ambientes estran-

geiros. Discovering the world, p.

23)

Clarice e Maury Gurgel chegaram à Itália em plena Segunda

Guerra Mundial. Uma vez que os museus estavam fechados e os

eventos sociais mostravam-se pouco interessantes, a autora não

encontrou outro entretenimento que não fosse a literatura. Lá se

foi Clarice então rumo às páginas

de

Gide, Proust, Katherine

Mansfield, Dostoievski, etc. Àquela época, ela também

'Stava

escrevendo contos e terminando os últimos detalhes do livro

começado antes de deixar o Brasil: O lustre. Em Nápoles, mesmo

depois do fim da Guerra, Clarice Lispector lutava

para

se adap-

tar ao país

 

e nem

mesmo

a intensa correspondência com os

amigos e as irmãs conseguia disfarçar a tristeza e a solidão. Para

piorar as coisas, os tempos de exílio estavam apenas começan-

do. A próxima parada seria ainda mais deprimente: Berna,

na

Suíça. As primeiras impressões do novo cenário foram-lhe tre-

mendamente

negativas. A autora descreveu o silêncio e o vazio

das ruas

de

Berna como uma espécie de morte em vida .

Enquanto isso, no Brasil, os críticos mantinham-se mudos

frente a O lustre. Foram tempos difíceis

para

Clarice, que, apesar

disso, já começara a escrever seu terceiro romance:

A

cidade

si-

tiada. Mas, mesmo

quando

se concentrava

em

seus projetos lite-

rários, ela não conseguia deixar

de

se sentir fora de lugar em

terras estrangeiras, como

pode

ser visto no seguinte fragmento e

em muitos outros momentos descritos em contos, cartas e crôni-

cas: Tudo é a terra dos outros,

onde

os outros estão contentes.

É tão esquisito estar em Berna e é tão chato este domingo [ .. ]

(Gotlib, 1995, p. 219). No texto Suíte

da

primavera

na

Suíça ,

de

A

descoberta do

mundo

Clarice destilava,

por

meio

de

su

_a prosa

' Em uma das inúmeras cartas que Lispector escreveu da Itália para sua irmã , ela

confessou: Tudo que tenho é a nostalgia que vem de uma vida cheia de senti-

mento

[ ..] Tenho uma alma aflita, e é dela que vêm meus problemas. Pessoas

saudáveis, graças a Deus,

não têm

como entendê-los . Cf. Ferreira, 1999, p. 125.

26 Cláudia Nina

Page 28: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 28/186

profundamente

poética, o

sentimento de desconforto

que o exí-

lio lhe causava:

Onde me

esconder nesta aberta claridade? Perdi meus cantos

de

meditação. Mas se

ponho

vestido branco e saio

na

luz ficarei

perdida

- e de novo

perdida

- e no salto lento

para

o outro plano

de

novo

perdida

- e como encontrar nesta minha ausência a pri-

mavera? Rosa, passa a ferro o

meu

vestido mais negro. Nestes pla-

nos

de

calma

sucessiva-

e mais

no

outro-

e mais

no outro-

serei

o único

eu

possível, apenas móvel

num

século e

no

outro século e

no

outro século desta limpidez silenciosa,

oh

inóspita primavera.

(DM, p. 34)

De

fato,

os anos na

Suíça

marcaram um período de profun-

do silêncio,

inspirado

pelo cenário,

conforme se

constata neste

fragmento das Lembranças de uma primavera suíça :

Com

o vento, vem do campo o sonho das cabras. Na outra mesa

do terrão, um fauno solitário. Passavam-se dias e mais dias. Mas

bastava

um

instante

de

sintonização e de novo captava-se a estáti-

ca farpada

da

primavera [ ] O quê? Nada,

eu não

disse nada .

(DM, p. 339)

A

solidão

em

Berna

é

novamente

encontrada

no

texto

Noite

nas montanhas :

A noite

de

Berna tem o silêncio.

Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo,

pensar

depressa

para

disfarçá-lo.

Ou

inventar

um

programa, frágil ponte que mal nos li-

ga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar

essa paz

que nos espreita. Silêncio tão

grande

que o desespero tem

pudor.

Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. [

um

silêncio

gue não

dorme: é insone; imóvel mas insone; e

sem

fan-

tasmas. E terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo

com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma

cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promes-

sas. (DM, p. 129)

Entre

suas lembranças exílicas,

há diversos textos não

neces-

sariamente

relacionados

com a

experiência do desterro, mas

nos

quais

é

possível detectar

nas

entrelinhas

a

mesma

sensação

de

não pertencer

que

tanto

a

atormentava. Um

exemplo é

justa-

mente o texto intitulado

Pertencer ,

em que

Clarice

escreve:

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me

dar

a

medida do

que

eu

perco não pertencendo. E então

eu

soube:

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

27

Page 29: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 29/186

pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no de-

serto e bebe sôfrego

os últimos goles de água de um canti l. De de-

pois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.

DM,

p.

111)

Todos esses

episódios

na vida

da au

tora, desde o seu nasci-

ment

o

clandestino durante uma

fuga, até a

prolongada

expe-

riência

de

16 anos

no

exterior, marcaram a existência

da

autora

de

modo

con

siderável.

Em um estudo

do

universo

judeu

de

Lispector,

int

i

tulado

assion in search of narrative identity Nelson

Vieira

ques

tiona:

[ ..] era a preocupação estética de Clarice Lispector com o silêncio,

como uma alusão

ao

inefável e às imitações da linguagem vincula-

das aos

se

us própri

os

sentimentos enigmáticos sobre deslocamen

to

e

ex ílio?

[

..

] A busca de Clarice Lispector tem sua nascente num

senso de vín

cu

lo com o exílio, desenrai

za

mento e desabrigo que

inspirou uma afinidade espiritual com seus leitores, cujo próprio

senso de exílio ultrapassava o geográ

fi

co. Vieira, 1995, p. e: J

De fato, a relação entre o silêncio externo e a

necessidade de

escr

ever

tece algumas possíveis conexões entre exílio e a sensa-

ção

de

abandono emocional. Talvez não seja coincidência

que

parte

da

ficção

de

Clarice

traz

narrativas

em que

os

protagonis-

tas

são marcados

por

um profundo sen

timento de

deslocamento

e uma busca espiritual

por

redenção e comunicação. O silêncio é

uma questão crucial em todo o

seu

universo ficcional, especial-

m ente nos escritos

de

exílio ou seja, na tríade de romances que se-

analisada

nes

te

vo

lume como narrat

ivas do

si

l

êncio - O

lustre

A cidade siti

ada

e A

maçã

no escuro- nos

quais

o silêncio está di-

retame

nte vincu lado a uma atmosfera de solidão, imobilização

e,

acima

de

tudo,

a

um

sen

t

imento

de

exílio interior.

Comen

tando

o tema do silêncio na literatu

ra

de Clarice Lis-

pector, Earl Fitz escreve que,

de

fato, um espírito

de

não-

comunicação

que

a tudo permeia (Fitz, 1985, p . 45) persegue o

universo

da autora:

os

protagonistas de Lispector realmente dizem muito pouco, em-

bora ruminem interminavelmente e, assi

m,

suas histórias com-

põem-se basicamente de pensamentos descon

ec

tados, palavras não

pronunciadas, imagens, lembranças e sonhos. Quando falam em

voz alta, suas palavras parecem ter pouco a ver com o que está se

passando em suas mentes. (Fitz, 1985, p. 61)

8 Cláudia Nina

Page 30: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 30/186

Na

realidade, Clarice ultrapassou os muros invisíveis

do

si-

lêncio e da nostalgia

por

intermédio do exercício literário.

Opa-

triotismo é vivido dentro dos domínios das palavras: a língua é

transformada em metáfora da pátria, uma língua portuguesa

perdida

e recuperada,

muito

mais

que

um

endereço lingüístico.

Era, como ela observa, seu domínio sobre o

mundo:

Nasci para

escrever.

A

palavra é meu domínio sobre o mundo (DM, p. 99 .

Refletindo sobre o processo de produção de

A

cidade

sitiada

por

exemplo, a autora esclarece:

O que me salvou

da

monotonia de Berna foi viver na Idade Média,

foi

esperar que

a neve parasse e os gerânios

verme

lhos de

novo

se

refleti

ssem

na água, foi ter um filho

que

lá nasceu, foi ter escrito

um

de

meus livros menos gostado, A cidade

sitiada

no entanto, re-

lendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro

é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele

silêncio aterrador das ruas

de

Berna. (DM, p. 286

Na

realidade, o sentimento de estrangeiridade que sempre

marcou Clarice poderia

não

estar necessariamente vinculado a

um itinerário internacional. Alguns autores

argumentam que

ela continuaria sendo a

mesma

pessoa estranha,

mesmo

que

nunca tivesse saído

do

Recife. Isso, no entanto, permanece sen-

do uma questão aberta. Ninguém pode afirmar com certeza

qual teria sido a qualidade de seus escritos tivesse ela ficado no

Brasil.

Contudo,

o sentimento

de

ser uma estrangeira foi um es-

tigma no espírito de Clarice Lispector, observado pelas pessoas

que lhe foram próximas, como,

por

exemplo, declarou de certa

vez Antonio Callado:

Clarice era uma estrangeira. Não porque nasceu

na

Ucrânia. Cria-

da

desde men

ininha

no

Brasil, era tão brasileira quanto

não

impor-

ta quem. Clarice era estrangeira

na

Terra. Dava a impressão de an-

dar

no

mundo

como quem desembarca de noitinha numa cidade

desconhecida onde

há uma

greve geral de transportes. Mesmo

quando

estava contente ela própria,

numa

reunião qualquer, havia

sempre, nela,

um

afastamento. Acho que a conversa que mantinha

consigo

mesma

era intensa demais. (Gotlib, 1995, p. 52)

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

29

Page 31: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 31/186

1 3

aboratório literário

Escrever

é

uma

maldição, mas

uma

maldição que sal-

va. [

..

] Salva a alma

presa

[

.. ].

(DM, p. 136)

A experiência de viver em terras estrangeiras oferece a escri-

tores e artistas em geral a oportunidade

de

conhecer mais de

perto outras línguas, hábitos e culturas, o que pode influenciar

positivamente suas obras, abrindo amplas perspectivas de cria-

ção. Clarice, por exemplo, trabalhou intensamente durante seu

exílio voluntário

e,

por razões que se verá na seqüência, a matu-

ridade de

seus últimos textos é

uma

lenta decorrência daqueles

anos, que, sem dúvida, serviram à autora como

uma

espécie de

laboratório literário. Ao longo do tempo, Clarice foi transfor-

mando, ou, por outra, metamorfoseando os elementos de sua

própria escrita e fazendo nascer algo de

ainda

mais inovador e

revigorante para o cenário das letras brasileiras.

E difícil separar com barras de ferro as

duas

dimensões- ar-

te e vida-, já

que

na maioria dos casos os dois universos intera-

gem, interpenetram-se,

mesmo

que

de modo

imperceptível.

Como Virgínia Woolf observa

em

A roam of one s own Ficção é

como

uma

teia de aranha, mal fixada talvez, mas ainda assim

atada à vida em todas as suas extremidades (Woolf, 1975, p.

47). A própria Clarice confessou a impossibilidade de ser total-

mente impessoal na literatura - Eu só sei em todas as circuns-

tâncias ser íntima

  . OEN,

p. 118)

Entretanto, a autora reconhecia dois momentos diferentes

no processo

de

criação. O primeiro acontecia quando ela estava

produzindo ficção

e,

o segundo, quando estava escrevendo para

jornais, como ela explicou na crônica Fernando Pessoa me aju-

dando , em A

descoberta do mundo

Na literatura de livros per-

maneço anônima e discreta. Nesta coluna estou

de

algum modo

me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? (DM, p.

139).

30 Cláudia na

Page 32: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 32/186

1 4

onclusão

Clarice Lispector não escreveu autobiografias e, à exceção

das

crônicas

de

descoberta

do

mundo

e

de

alguns

outros

contos

pessoais, seus textos não devem ser vistos ou estudados como

escritos autobiográficos. É por essa razão

que minha

análise não

pretende estreitar os vínculos entre vida e obra. As referências a

alguns

dos

acontecimentos cruciais que pavimentaram a trajetó-

ria da autora constituem

uma

importante fonte de informações

para

que

se

entenda

o universo de criação da

autora

e os ins-

trumentos

de sua imaginação.

Particularmente

sedutor

é

visitar

mesmo que brevemente

- a arena íntima

habitada

por

uma

autora cuja trajetória de

vida

fez-se de muitas línguas, muitos lugares e muitos países e cuja

obra

no

exílio foi tão fecunda. O mais importante,

no

entanto, é

verificar como os longos anos em que Clarice viveu como expa-

triada foram, de certa forma, vividos , no âmbito da

ficção

o

terreno onde centralizo esta investigação, principalmente

nos

textos escritos durante o período exílico, no qual a língua literá-

ria tornou-se

instrumento de luta

contra

um

silêncio

aterrador

e

também um refúgio lingüístico em vizinhanças mais

ou

me-

nos hostis.

O que

penso

haver de mais relevante no exílio de Clarice

Lispector é justamente a constatação - e a surpresa

-

de que

o

período de ausência do Brasil funcionou como uma espécie de

laboratório, quando a autora

mergu

l

hou na

criação parcial

ou

integral de três romances fascinantes - O

lustre

cidade sitiada e

maçã no escuro - e

que

merecem ser analisados

à

luz de uma

nova abordagem, capaz de detectar as características exílicas

que, para

mim, estão

no

centro nervoso de suas engrenagens.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

3

Page 33: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 33/186

Page 34: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 34/186

 

erto

o coração

selvagem das palavras

· ·

As palavras são seixos rolando no rio. PCS, p .

217

Ritmo, dizia Stephen, é a primeira relação estética

formal de uma parte com outra dentro de um todo es-

tético qualquer ou de

um

todo estético com sua parte

ou partes de qualquer parte com o todo estético ou do

qual ele é uma parte. James Joyce, portrait of the

art-

íst

as a yozmg man p. 206

2.1

ntrodução

Perto

do

coração selvagem publicado em 1944, foi escrito entre

março e novembro de 1942 e anunciava uma promissora estréia

no cenário da literatura brasileira. Os críticos,

em

grande parte,

receberam a obra com entusiasmo, e o

nome

de Clarice Lispec-

tor logo sairia do anonimato para a lista dos autores importan

tes

que despontariam

naquele momento, como João Guimarães

Rosa e

seu

Sagarana.

Construído a

partir

de

notas

esparsas, escritas durante dife-

rentes

horas

do

dia e

que

foram

agrupadas em

um

único volu-

me, Perto

do

coração selvagem é a junção de pedaços que, reuni-

dos, resultaram

em

um romance sofisticado, o que levou os crí-

ticos a investigar as possíveis influências por trás daquelas pá

ginas. Era improvável que um estilo tão refinado não tivesse

A palavra usurpada exíl io e nomadismo na obra de Clarice Lispector 33

Page 35: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 35/186

como filiação algum outro texto que lhe servisse, pelo menos, de

inspiração.

De fato, o título vem da epígrafe do romance, tirada de

portraít

of

the

rtist as young man:

Ele estava sozinho. Estava

despercebido, feliz e perto

do

coração selvagem

da

vida (Joyce,

1995, p. 171) -, sugestão do amigo Lúcio Cardoso, o primeiro a

ler o manuscrito. Naturalmente, tão logo o livro apareceu, os

críticos de imediato relacionaram o texto a Joyce, e perguntaram

a Clarice sobre

suas

influências. Ela sempre negou ter lido o au-

tor irlandês antes de escrever seu livro.

10

Perto do coração selvagem

é, realmente, o retrato

de

uma jo-

vem enquanto artista- Joana, a moça inventiva

e

depois, mu-

lher

impulsiva

que ama as palavras tanto quanto a liberdade. O

texto é marcado por longos monólogos interiores, fluxos de

consciência e momentos

de

epifania,

numa

conexão evidente e

direta com o sistema joyceano. Mas, afora as influências, a es-

tréia de Clarice não é, de modo algum, uma redutora imitação

de

estilo. A obra apresenta o encantamento com o

mundo da

in-

venção criado por uma autora de 22 anos, não mais uma adoles-

cente escrevendo

para

concursos literários, e

sim

uma

escritora

genuína, com palavras brilhando em suas mãos.

Alguns dos críticos mais articulados da época manifestaram

sua

impressão positiva em relação ao romance, como, por

exemplo, Antonio Candido, o primeiro a reagir com entusiasmo

a Perto

do

coração selvagem Ele achava que Clarice havia trazido

para as páginas brasileiras a força de um ritmo novo, uma ten-

tativa impressionante

de moldar nossa língua a um

pensamento

carregado

de

mistério (Candido, 1970, p. 125). Sérgio Milliet

também

ficou feliz com a

entrada de

Clarice Lispector

na

litera-

tura brasileira. Apenas raramente um crítico tem a alegria da

descoberta. Desta vez tive uma que me encheu

de

satisfação

(Milliet, 1981, p. 27), escreveu ele, referindo-se ao romance. De

fato, tanto Candido quanto Milliet ficaram tremendamente im-

pressionados com a linguagem literária de Clarice - original e

poética-, dotada de

uma capacidade

de

dar vida às palavras .

(Milliet, 1981, p. 87)

10

A questão das influências é um assunto difícil, pois os autores muitas vezes

afirmam ter lido outros autores apenas mais tarde, e esse parece ter sido o caso

de Clarice Lispector, embora não seja possível garantir a veracidade da afirma-

ção.

4 Cláudia

Nina

Page 36: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 36/186

E a linguagem

é,

de fato, o aspecto mais

importante

do ro-

mance. Sua criatividade, contudo, não está centrada no nívelle-

xical (como acontece nos escritos

de

Guimarães Rosa),

mas

sim

nos contorcionismos sintáticos e nas estranhas justaposições

de

palavras, criando pressões semânticas

que

desestabilizam o

significado de palavras e conceitos (Peixoto, 1994, p. XII . Desta

forma, o romance representou uma ruptura com a tradição lite-

rária e um importante ganho em termos de reflexão sobre a lin-

guagem.

Difícil encontrar uma linhagem nacional à qual pudesse per-

tencer esse primeiro romance, embora cronologicamente ele

pertença

à Geração de 1945.

Na

realidade, para Clarice Lispec-

tor, o modernismo brasileiro, como

um

movimento, fora há

muito

tempo deixado para trás, junto ao complexo ideológico e

estético de 1922, do qual ela jamais fizera parte. Perto do

coração

selvagem

apareceu como um acontecimento que colocou a autora

perto de nomes que

também

estavam isolados , por assim di-

zer,

dentro da

cena literária, entre eles João Cabral

de

Melo Neto

e Guimarães Rosa. (Moriconi, 2001, p. 214)

2.2

scritura feminina

A frase clama por uma palavra. E

uma

palavra

chega

como um pássaro que mergulha no texto. [ ..]A pala-

vra fica separada liberada de suas obrigações familia-

res através de

sua

aparência. Ela aparece

apenas

como

uma palavra .

É

uma palavra que proporciona prazer.

[

..

] Clarice abre as cortinas da linguagem e, de repen-

te, um significante

de

que ela gosta aparece. Ela traba-

lha o significante livre

de sua

família lingüística.

(Hélene Cixous, Reading with

Clarice Lispector

p. 73

Perto do

coração selvagem

conta a trajetória de Joana, desde a

infância até a maturidade

do

casamento. A perspectiva frag-

mentada

embaralha passado

e presente. A história traça a cons-

trução biográfica

de fatias da vida de

uma

mulher em busca

de sua liberdade, no mundo solta e fina como uma corça na

planície (PCS, p. 79 . O enredo, contudo, não é o que de fato

importa, porque os momentos cruciais não são os acontecimen-

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

35

Page 37: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 37/186

tos,

mas

os ecos interiores dos fatos que repercutem

na

mente

da

personagem.

A narrativa oscila

entre

a primeira e a terceira pessoas, e sua

riqueza está, em grande parte, centrada na técnica polifônica

que

a autora utiliza

para

a representação dos

pensamentos

de

Joana. As vozes- do

narrador

e

das personagens-

estão entre-

laçadas, num ritmo dinâmico. Isso marca

um

comando inventi-

va

do

texto, desamarrado , sem que a ação

dependa

exclusi-

vamente

de

um

único centro irradiador de sentido. O centro é a

mente

do

sujeito, capturada pela voz narrativa. O ponto de vista

é oscilante, e as vozes vão se alternando. Por vezes,

um

eu

surpreendentemente irrompe no

texto. A estratégia é de des-

centralização , em oposição aos romances que seguem os pa-

drões

de

representação mimética baseada na estrutura tradicio-

nal de organização da história.

Espaço e t

empo

não existem em seus contornos definidos.

Não há informações detalhadas sobre os lugares

por onde

as

personagens se movem. Elas moram na narrativa , no entre-

palavras , e não se restringem a nenhum lugar em especial. O

tempo também

está dissolvido. Ele

perde sua

função histórica e

não existe como possibilidade de evolução (Schwarz, 1981, p.

35). Dividida em capítulos malconectados entre si, a história de-

senvolve-se em movimentos fragmentados e pode-se compará-

la a um círculo que abre e fecha

de

modo intermitente,

de

acor-

do com o próprio processo de tornar-se alguém de Joana:

Nunca

terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casa-

da. Resvalo

de uma

verdade a outra, sempre esquecida

da

pri-

meira,

sempre

insatisfeita. Sua

vida

era formada

de pequenas

vidas incompletas,

de

círculos inteiros, fechados

que

se isola-

vam uns dos outros . PCS, p. 115)

O livro todo é construído por microepisódios ; na maioria

das vezes, não há qualquer fio ligando-os uns aos outros. A arti-

culação das experiências psíquicas

de

Joana ergue a arquitetura

do

texto a partir

da

técnica do fluxo de consciência. Tudo é feito

de pequenas ilhas isoladas

de

luz (Schwarz, 1965, p. 55), em

que

a falta

de

coerência é o princípio positivo

de

composição

do

romance. Joana tenta desvendar o senso mágico do instante, en-

quanto a própria Lispector promove a demolição - em fragmen-

tos brilhantes - da sólida estrutura dos romances tradicionais.

Como observa Nadia Gotlib, o romance desenha a poética de

Clarice Lispector, refletindo o processo

de

criação literária: Joa-

  6

Cláudia Nina

Page 38: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 38/186

na é a pessoa que inventa. Colocando em

outros

termos, ela é

em parte a figuração

do narrador que

conta a história; e, em

uma outra dimensão, do criador: a escritora. (Gotlib, 1995, p.

167)

O

primeiro

capítulo é ilustrativo dessa poética

de

ruptura

com

os padrões literários tradicionais. O romance começa

com

o

barulho de

uma máquina de

escrever.

Quem

está escrevendo? O

pai,

como

fica dito: A máquina do papai batia tac-tac

..

tac-tac-

tac

...

(PCS, p.

19 .

A menina Joana observa. De repente, ela

quebra o silêncio e diz: Papai, inventei uma poesia (PCS, p.

20). E qual seria o título

do poema?

A resposta, Joana

pronta-

mente a diz: Eu e o sol (PCS, p . 20). A criança interrompe a es-

crita de seu pai a fim de chamar a atenção para o seu

poema

que

começa

com uma voz

do eu ,

interrompendo

o discurso

(os sons

da

máquina

de

escrever) do pai.

É importante

observar, entretanto,

que

o

primeiro autor

ficcional

de

Perto

do

coração selvagem ainda é o pai. Joana, a voz

feminina, tem

de

lutar

para

conseguir atenção, interrompendo

quem

detém

o comando

da

palavra escrita. É uma ruptura lin-

güística

dentro de

um

discurso estabelecido. A autoria

do

pai

(sua

máquina de

escrever é literariamente o

primeiro

som que

se ouve ) representa a lei, com a

qual

Joana precisa romper a

fim

de expressar sua

própria

subjetividade.

Em relação a isso, é relevante trazer para esta discussão al-

guns

aspectos da análise

de

Julia Kristeva sobre a

polaridade

en-

tre sistemas fechados, racionais, e os sistemas abertos, irracio-

nais e dispersos. Kristeva considera a técnica

modernista

que se

encontra em

Joyce, Céline e Mallarmé

um

espaço aberto ao de-

sejo e ao inconsciente, em

uma

franca

ruptura

com o discurso

racional - em outras palavras, com a Lei. O poeta

de

vanguarda

homem

ou mulher, é

aquele

que

subverte

os padrões simbólicos

tradicionais a fim

de

privilegiar a fluência, a semiótica e a brin-

cadeira.11 Ao analisar os poemas

de

Mallarmé, por exemplo,

Kristeva observa

que

os

sons usados

em

alguns

versos asseme-

lham-se a murmúrios de crianças. Ela descobriu que a poesia

modernista

é altamente

dependente

do

semiótico

em

seus

rit-

mos irregulares, sua atenção aos

sonhos

e no modo

com

que

Ver

Desire

in lnngunge:

semiotic

nppronch

to

liternture nnd art Oxford:

Blackwell

1981.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7

Page 39: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 39/186

  rumina seus próprios

processos e

incorpora outras

formas de

escrita (Selden e

Widdowson,

1993, p. 102).

Em Perto do

coração

selvagem em

que muitas

vozes - mur-

múrios- na mente

de Joana

podem

ser

ouvidas,

a criança

pro-

tagonista

é

quem

tenta

romper com

o

discurso

estabelecido

ao

escrever seu poema. Como o poeta

modernista

do estudo de

Kristeva, Joana também está

brincando

de poesia

ao

fazer ver-

sos que,

de

certa forma, perturbam o ambiente, isto

é

descon-

certam

a ordem do discurso do pai, operando uma ruptura

com

o discurso racional. O

novo opera um

exercício de aprendizado

de linguagem em momentos de

êxtase e inspiração,

não de

ra-

cionalidade.

O vocabulário

usado no

texto

também

expressa o feminino

além

dos controles racionais

dominantes

e dos padrões lógicos

binários. Isso,

porém,

é algo de difícil realização.

Como

mencio-

nei anteriormente, de início Joana

não

tem espaço de criação e

expressão. Ela

tem

de

encontrar seu próprio

espaço,

onde

sua

voz possa ecoar, rompendo com a dominância masculina ini-

cial.

Naturalmente,

Joana

tem uma voz

forte, e o texto a

torna

inconfundível.

É

importante considerar, quanto a esse aspecto, a

metáfora da voz .

Como

a heroína francesa Joana D'Arc, Joana

é

aquela que

demais

e escuta demais,

como

se

pode

ler

no

texto: Desde aquele dia,

Joana

sentia as vozes, compreendia-as

ou

não as compreendia.

Provavelmente

no

fim da vida, a

cada

timbre

ouvido uma onda de lembranças próprias subiria até sua

memória,

ela diria:

quantas

vozes

eu

tive .. . (PCS, p. 86)

Esse

romance

também exemplifica aquilo que as críticas fe-

ministas

francesas

chamam de

écríture fémíníne

O

termo

sugere

uma forma de escrita baseada em

um

encontro

com

o outro -

que pode ser

um

corpo,

um

texto,

um

dilema ou

um momento

de paixão e ansiedade (Conley, 1990, p. VII). As críticas feminis-

tas,

entre

elas Hélene Cixous e Luce Irigaray, propõem a cons-

trução de

uma nova

sexualidade, não-falomórfica,

baseada na

fluidez, no risco e na expansão, governada pela economia libi-

dinal

da mulher

em

confronto

com

os

discursos

dominantes,

masculinos.

Em Thís sex whích

is not

one por

exemplo,

Irigaray argumen-

ta que a fala rotineira da cultura e do conhecimento ocidentais é

modelada pela

masculinidade

e concentra-se

naquilo que

é cer-

to, preciso e racional. Ela propõe a mudança

urgente

dessa es-

trutura, indicando outras

formas de comunicação e expressão.

38

láudia Nina

Page 40: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 40/186

Se hesitamos

em

falar,

não

seria porque temos

medo de

não falar

bem? Mas o que é falar "bem"? E o que seria falar

ma

l"? Estamos

em

conformidade com o que exatamente quando falamos "bem"?

Que hierarquia, que subordinação se esconde aí, esperando que-

brar

nossa

resistência?

Que

reivindicação,

para que

nos

alcemos

em

discurso

de

maior valor? Ereções não têm nada a ver conosco;

nós estamos muito bem, obrigada, em terrenos planos.

Temos

mui-

to espaço a ser compartilhado. Nosso horizonte jamais

deixará

de

expandir-se; estamos sempre abertas. Esticando e alongando a nós

mesmas,

jamais deixando

de

nos desdobrarmos, temos

tantas

vo-

zes para inventar a fim de expressarmos a todas nós

em

todos os

lugares, e mesmo

em

nossas lacunas geográficas, que todo o tempo

disponível não será suficiente. Nunca conseguimos completar o

circuito,

explorar

nossa periferia; temos tantas dimensões Se você

quer falar "bem", você se pressiona, torna-se mais estreita à medi-

da

que sobe. Esticando-se para cima, alcançando mais alto, você se

liberta do domínio sem limites de seu corpo. (lrigaray, 1985, p. 213)

[

..

] Apressemo-nos, e

vamos

inventar nossas

próprias

frases. (Iri-

garay,

1985,p.215)

O conceito de é riture féminine define um texto

que

"engen-

dra

uma

nova

arquitetura

em

direção

à

expansão,

recusando

uma luta fálica e edípica até a morte contra o pai, expandindo-se

a si própria rumo

à

multiplicidade" (Yaeger, 1989, p. 191). A es-

crita

das mulheres

fica assim identificada

com

um discurso

que

processa uma

ruptura

com o sistema falocêntrico e com o racio-

nalismo centrado,

sendo

que se nutre em uma fonte infinita de

criatividade e inspiração.

E

de fato, essa é a natureza da liber-

dade

que

Joana vivenda

ao

longo de sua existência, liberdade

essa

que

se reflete

na

fluência das palavras

que

se

expandem

com base

em

gastos", não em poupança; em subjetividade, não

em objetividade; em abertura, inventividade e inspiração.

Entre as críticas feministas, Hélene Cixous é a que mais se

identifica com Clarice Lispector. A crítica francesa

viu

em

mui-

tos dos escritos da autora brasileira

um

território aberto à inves-

tigação da

é riture

féminine Além disso,

houve também

uma in-

disfarçável identificação biográfica: Cixous, também

uma

imi-

grante judia, foi

igualmente

exposta a diversas línguas

desde

a

infância. No campo da crítica literária, o estilo de Cixous tam-

bém é marcado pela

prosa

fluida, transformando a lógica do

discurso

em um

"escrever com o corpo", em defesa da intuição

como uma espécie de conhecimento superior. Cixous sugere

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 9

Page 41: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 41/186

que

escritoras poderosas exercem como

que

um parto das pa-

lavras,

num

ritmo de contrações (Maggie, 1994, p.

94 .

Em seus

textos críticos, assim como em seus seminários, Cixous convida

os leitores a se aproximarem dos textos

de

Clarice Lispector da

mesma

maneira

em que

eles foram produzidos: Claricement .

(Cixous, 1979, p. 41

Marta Peixoto ressalta que a recepção de Cixous

da

obra

da

autora

brasileira inverte a tradicional dinâmica colonial e pós-

colonial,

de

acordo com a qual os escritores latino-americanos

apreciam e

traduzem

títulos da Europa e dos Estados Unidos.

Cixous não só celebra Clarice, mas também afirma que os bra-

sileiros tiveram um impacto decisivo no desenvolvimento de

sua própria

obra. Assim, entre os escritores latino-americanos,

com a exceção de Borges, Clarice Lispector provavelmente foi a

única a ter sido destacada por um escritor europeu- Cixous-

como modelo significativo

de

inspiração . (Peixoto, 1994, p. 40

Assim como em muitos outros escritos de Clarice, Cixous

encontrou em

Perto

do coração selvagem uma importante fonte

de

investigação da écriture féminine O capítulo O banho é um

bom exemplo disso. Lispector explora o escrever com o corpo

de maneira muito clara em um episódio simples e corriqueiro

que se dá numa banheira.

Imerge na banheira como no mar. [ ..] A jovem sente a

água

pe-

sando sobre seu corpo, pára um instante como se lhe tivessem to-

cado de leve

no

ombro. Atenta para o que está sentindo, a invasão

da maré, [ ..] Os olhos abertos e mudos

das

coisas continuam bri-

lhando entre os vapores. Sobre o mesmo corpo que adivinhou ale-

gria existe

água-

água. (PCS, p.

77

Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não sabe o

que

sentir. (PCS, p. 77

O elemento água está íntima e simbolicamente relacionado

ao universo feminino e também é

uma

referência ao nascimento.

É

Hélene Cixous

quem

escreve: A cena da banheira

tem

uma

espécie

de

auto-erotismo, algo

de

uma constituição de

um

cor-

po-sujeito.

É

uma

metáfora

do

nascimento. Ela emerge

da ba-

nheira de águas desconhecidas. (Cixous, 1990, p. 44). A água

que flui também representa o chamado daquilo que é oposto a

seco e limitado. Em

Coming

to writing

and

other

essnys

Cixous,

num estilo tipicamente cixousiano :

40

láudia Nina

Page 42: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 42/186

Nestes tempos violentos e preguiçosos, em que não vivemos o que

vivemos, somos lidas por terceiros, somos forçosamente vividas,

longe de nossas vidas essenciais, perdemos o dom,

não

mais es-

cutamos o

que

as coisas

ainda

querem nos contar, nós traduzimos,

traduzimos,

tudo

é tradução e redução,

não

sobra quase

nada do

mar a não ser

uma

palavra

sem

água: pois nós também já traduzi-

mos

as palavras, nós já as esvaziamos de sua fala, já as secamos,

reduzimos e embalsamamos, e elas não podem mais nos lembrar

de como costumavam erguer-se

das

coisas como se fossem a gar-

galh

ada

de

sua

risada essencial, quando, de puro prazer, elas cha-

mavam

umas

às outras, elas deleitavam-se em seu nome-fra-

grância; e "mar", "mar" cheirava a alga-marinha, ressoava a sal e

nós saboreávamos o infinito ser amado, lambíamos os estranhos, o

sal

da

palavra dela

em

nossos lábios. Mas

uma

voz Clarice precisa

apenas

dizer "O mar, o mar",

para

que minha concha se abra ao

meio, o mar está me chamando, mar (Cixous, 1991, p. 65

É importante enfatizar que,

na

lógica não-racional do dis-

curso clariceano em

Perto

do coração selvagem fortemente domi-

nada pelo fluxo da consciência, Joana é vista como a transgres-

sora, aquela que se posiciona contra a lei e recusa-se a

assumir

papéis femininos tradicionais. Sua atitude em relação à lingua-

gem, e também

em

relação à vida, representa essa luta . A voz de

Joana é forte e rompe

com

o silêncio. Um exemplo

nos vem

do

trecho

em

que ela está

na

casa com seus tios e, de repente, a me-

nina quebra

a monotonia do

momento

com

uma pergunta,

cau-

sando uma pequena perturbação no ar: Armanda não veio?- a

voz

de Joana

apressou

o tic-tac

do

relógio, fez nascer

um

súbito

e rápido movimento na mesa" (PCS, p.

75 .

Curiosamente, ela é

com

freqüência descrita como

uma

"criatura estranha",

uma

diabinha e

uma

víbora". Como descrita no texto, ela é a "dia-

ba" que inverte o significado simbólico de seu nome: Joana é o

nome de uma santa, uma virgem, inocente e pura.

· A trajetória

de

Joana

em

Perto do

coração selv gem

está de

acordo

com

o que Nelly Novaes Coelho descreve como

sendo

a

nova

ficção feminina". Coelho analisa os textos produzidos

por

mulheres

brasileiras

durante

os anos 60-80 e contextualiza a lite-

ratura de

Clarice Lispector no rol

daquela

estirpe

que

se caracte-

riza pela expressão da consciência de uma mulher misturada à

consciência brasileira de um

mundo

novo (Coelho, 1993, p. 22 .

Nesse universo da nova ficção feminina, o amor deixa de ser o

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

41

Page 43: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 43/186

tema absoluto e abre um espaço livre para a investigação exis-

tencial- que não exclui o erotismo.

Em Perto do coração selvagem, Joana é o oposto daquilo que

Virginia Woolf denomina

de

o anjo

da

casa . Em A roam of

one s own,

Woolf chama a atenção

para

o fato

de

que

as mulhe-

res armam um conluio em seu próprio espaço doméstico, como

se fossem um espelho que reflete os desejos dos homens. Es-

creve Woolf:

As mulheres, nestes séculos todos, vêm servindo de espelho, do-

nas

do

poder mágico e delicioso de refletir a figura do

homem

no

dobro

de seu tamanho natural. Sem esse poder, a terra prova-

velmente ainda seria charcos e selvas. As glórias de todas as nossas

guerras seriam desconhecidas [ .. ] Sob o feitiço dessa ilusão,

pensei,

olhando

pela janela, metade das pessoas

na

rua estão indo

para

o trabalho. (Woolf, 1975, p. 37

As mulheres foram historicamente representadas pe1a ima-

gem de um anjo - altruístas, simpáticas e puras. Se quisessem

tomar

um caminho individual, elas tinham de

lutar por

inde-

pendência econômica e social e por igualdade. Somente sob tais

condições elas conseguiriam desenvolver com liberdade seus ta-

lentos artísticos.

No

primeiro romance

de

Lispector, a presença

da

mulher acontece em oposição a homens frágeis, superficiais,

desatentos. .. como ligar-se a um homem senão permitindo

que ele a aprisione? Como impedir que ele desenvolva sobre

seu

corpo e

sua

alma suas quatro paredes? E havia

um

meio

de

ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?

PCS,

p. 40

Joana é fascinada com a aventura

de

estar sempre em busca

de

algo

que

está fora

do

alcance. O mesmo acontece com a obra

de Clarice Lispector, cuja estética modela a tentativa

de

expres-

sar aquilo que ela não consegue descrever por inteiro, como ela

mesma escreve em Agua

viva:

A densa selva de palavras envol-

ve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou

em alguma coisa minha que fica fora de mim . AV, p. 25

42 láudia Nina

Page 44: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 44/186

2.3

o coração das palavras

A palavra estala entre meus dentes em estilhaços frá-

geis [

..

]Neste momento minha inspiração dói em

to-

do o meu corpo. (PCS,

p. 78

Grande

parte dos

elementos mais representativos da poética

clariceana, em seus textos tardios, encontra-se de forma embrio-

nária

em Perto

do coração selvagem.

O romance é

um ponto

bri-

lhante

(Varin, 1990, p. 141) na carreira de Clarice Lispector,

como diz

Claire Varin, posicionando a obra em um triângulo

cujos

outros lados seriam

formados

por

O

lustre

e

A

cidade

sitia

da.

Considerando-se que se

trata de obras

muito

diferentes em

forma e essência, poderíamos questionar tal arranjo. Varin, po-

rém, justifica-se dizendo que, por terem sido produzidos na

mesma década, os três romances

pertencem

à

mesma

categoria

de escrita. A proposta aqui, no entanto, é fazer um outro

agru-

pamento, em que

O

lustre

e

A cidade sitiada

colocam-se em gri-

tante contraste

com

Perto do coração selvagem

como veremos

a

seguir.

Na

verdade,

o

primeiro

romance é realmente um momento

de iluminação na trajetória de Lispector.

Os

adjetivos bri-

lhante

e luminoso falam de um desejo

de

fazer um livro for-

mado

de

ilhas de luz ,

como

Schwarz ressaltou (Schwarz,

1981,

p.

55).

Este trecho, tirado

de um

longo monólogo, é ilustrativo:

Descobri em cima da chuva um

milagre-

pensava Joana- um mi-

lagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um avi-

so

parado: como um farol. O que tentam dizer? Nelas pressinto o

segredo, esse brilho é o mistério impassível que ouço fluir dentro

de mim. (PCS,

p. 78

Se

o brilho das estrelas dói em mim,

se

é possível essa comunica-

ção

distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela

tremula dentro de mim. PCS,

p.

80

Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e

úmida debatendo-se dentro de mim.

(PCS,

p.

81

O

romance marca

a gênese

dos

textos de Clarice Lispector e

o aprendizado

da

escrita. O texto transborda

com

a epifania

da

linguagem,

ou,

melhor dizendo, com

súbitas conscientizações

acerca do próprio ato

de

expressar pensamentos

por

meio

de

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 4

Page 45: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 45/186

palavras. Ao longo de todo o texto, o leitor é levado a realizar o

mesmo

processo

de

repensar a linguagem que Joana realiza

desde a infância, quando então perguntou: Quem disse pela

primeira vez assim: nunca? PCS, p.

23).

Muitas outras passa-

gens também referem-se a esse exercício de transformar a lin-

guagem

familiar em algo estranho, de modo que sua verdade

possa ser percebida mais detalhadamente, como na seguinte

passagem:

Amêndoas

... -disse

Joana, voltando-se

para

o homem. O mis-

tério e a doçura das palavras: amêndoa

..

ouça,

pronunciada

com

cuidado, a voz na garganta, ressoando nas profundezas

da

boca.

Vibra, deixa-se longa e estirada e curva como

um

arco.

Amêndoa

amarga, venenosa e pura.

As três graças amargas, venenosas e puras.

PCS,

p. 187)

O projeto estético de Perto do coração selvagem claramente

pretende

extrair o máximo de cada palavra e apresentdr todas

as possibilidades

de

criar um ritmo poético dentro da prosa.

Epifania aqui está obviamente vinculada a Joyce, que transfor-

mou o conceito religioso da aparição de Deus

ou de

qualquer

entidade sagrada em um

dispositivo literário. Joyce foi

quem

primeiro transformou os momentos mais cotidianos e delicados

da vida em

puros

acontecimentos

literários-

em

Stephen

Hera-

criando

um

instrumento artístico que passaria a ser imitado no

mundo inteiro.

Em

seus trabalhos posteriores, Joyce sofisticou o uso do

conceito; a partir das epifanias de visão e de momentos, ele al-

cançou os mecanismos internos da linguagem. Em Ulysses e

Finnegans Wake, quando acontece

uma

radicalização

de

tal pro-

cesso, Joyce atinge um nível microestético de literatura, e en-

tão a epifania é incorporada ao coração

da

linguagem. Joyce não

mais escreveria de maneira representativa. As palavras passa-

ram a falar por si mesmas.

É

em

Ulysses

e

em

Finnegans Wake

que as epifanias atingem a mecânica da palavra e também

da

le-

tra. A

própria

palavra acaba sendo epifânica

Sá,

1983a, p.

191)

.

Em Perto

do

coração

selvagem,

é possível

capturar

fragmentos

de

epifanias visuais, como no capítulo intitulado O banho ,

quando Joana faz pequenas descobertas no meio

de

um

ritual

diário. Trata-se de

um

ótimo exemplo do interesse da autora

em

revelar as camadas subterrâneas da vida diária:

44 Cláudia Nina

Page 46: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 46/186

Fascinada mergulho o corpo

no

fundo do poço, calo todas as suas

fontes e sonâmbula s

igo

por outro caminho. - Analisar instante

por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de

espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles, como pe-

quenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes.

É

a vida?

(PCS,

p

80)

As epifanias

da

linguagem também estão presentes no livro,

como

na

passagem das amêndoas ,

citada acima. Joana adora

brincar com jogos de palavras. Lalande ,

por

exemplo, é uma

das palavras que Lispector inventa, descrita por Joana como:

Uma espécie de narcisinho, qualquer brisa inclina ele de

um

lado

para

outro. Lal

ande

é

também mar

de madrugada,

quando

nenhum

ol

har ainda

viu a praia,

quando

o sol

ainda

não nas-

ceu (PCS, p. 190). Como Claire Varin diz, em

Langues

de

feu

Lalande é

uma palavra

mágica, uma espécie

de mot magique

de Clarice Lispector, abracadabra de Joana (Varin, 1990, p. 57).

E Clarice Lispector também atinge o interior das palavras:

Do mesmo modo por que em pequena imaginava que, se pudesse

contar a alguém o mistério do dicionário , ligar-se-ia para sempre

a esse alguém

..

Assim: depois do l era inútil procurar o

i

Até o 1,

as letras eram camaradas, esparsas como feijão espalhado sobre a

mesa da cozinha. Mas depois do l elas

se

precipitavam sérias,

compactas e nunca se poderia achar por exemplo uma letra fácil

como a entre elas. (PCS, p. 199)

A reflexão sobre a

linguagem

encontra sua

contraparte

no

silêncio. Embora

não

revestido

de

melancolia, o silêncio aparece

em

Perto

do coração

selvagem

na impossibilidade

de uma

identi-

ficação verbal

mais profunda

entre Joana e

seu

marido,

Otávio,

que não consegue entender

de

todo a sensibilida

de da

mulher.

Se

Joana é

quem

se

aventura

sempre,

entrando em todos

os

palcos (PCS, p. 130), Otávio, por outro lado, apresenta-se lento

e

intimidado.

A interação é

problemática

e envolve Lídia, a

amante grávida

de

Otávio. O ponto crucial do relacionamento,

contudo,

não é a traição,

mas sim

a impossibilidade,

de

parte

de

Otávio, de apoiar a

necessidade

que

Joana tem de surpresas e

descobertas. Como

diz

o texto: Esperava que Otávio visse sua

atitude,

adivinhasse

sua

resolução de não se mover da cadeira.

Ele,

no

entanto,

como

sempre, nada

adivinhava

e

justamente

nos momentos em

que

deveria olhar, distraía-se com

qua

lquer

coisa .

(PCS,

p.

125)

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

45

Page 47: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 47/186

Nos

relacionamentos

de

Joana com outros homens, ela tam-

bém não consegue encontrar o

que

procura. O professor, a prin-

cípio

um

mentor capaz de entender sua sensibilidade, logo tor-

na-se fraco, doente e mudo; o amante, que a abandona no fim,

na verdade não lhe faz falta. O último capítulo reflete a necessi-

dade

que

Joana tem

de

romper com todos os vínculos: ''A jorna-

da .

Esse capítulo representa o movimento final

de

Joana

rumo

à

redenção

que

estava

desde

o início prescrita, na epígrafe

do

ro-

mance, como observa Marta Peixoto: Vale a pena notar

que

a

tradução de Clarice Lispector para a epígrafe joyceana ressalta a

necessidade

de

abandono[

..

] A viagem de Joana, com seu des-

tino não especificado, irá simbolicamente levá-la para mais per-

to de seu próprio coração selvagem . (Peixoto, 1994, p.14)

2 4

onclusão

Não

obstante os evidentes vínculos entre Perto

do

coração

sel-

vagem e a literatura européia dos séculos

XIX

e XX o primeiro

romance de Clarice Lispector não deve ser entendido apenas

por suas influências. O que faz dele uma obra tão especial é que

a autora importou o espírito

da

literatura

moderna

européia,

inspirada pela transformação e invenção, para a linguagem e

sensibilidade brasileiras, algo muito além

de

uma mera imita-

ção.

A

autora

cria

seu próprio

estilo, baseado

na

investigação

da

linguagem, sondando as possibilidades da poesia no espaço

que

é próprio

da

prosa. Como afirma Giovanni Pontiero no posfácio

de sua tradução para o inglês de

Perto

do

coração selvagem: Ela

[Clarice Lispector] traz uma

nova

elasticidade e refinamento pa-

ra a linguagem do Brasil e, como os existencialistas franceses,

acredita que a linguagem é tão misteriosa quanto a própria vi-

da .

Near to the wil

heart, p. 191)

O

uso

de

um

comando assim inovador

da

língua

portugue-

sa

no

romance de estréia muda contudo, nos romances

que

se

seguiram. As narrativas do silêncio apresentam um outro estilo de

escrita, altamente contrastante com o romance inicial

de

Clarice

Lispector, e têm vários aspectos novos que serão abordados sob

a perspectiva do exílio, tais como o fato

de

as protagonistas, di-

46

Cláudia Nina

Page 48: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 48/186

ferentemente de Joana

serem

incapazes de iniciar o rompimen

to com a tradição a fim de expressar suas próprias vozes. Assim

a

viagem

que dá o fecho ao

primeiro

romance de Clarice Lispec-

tor

curiosamente

implica

uma

outra viagem: a trajetória

da

pró

pria autora rumo

a

um outro momento em sua

carreira.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 7

Page 49: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 49/186

Page 50: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 50/186

 

arrativas do silêncio p l vr s siti d s

O coração tem que se apresentar diante do nada sozi-

nho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente nos

ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta

todo nu  nem é comunicação é submissão. Pois nós

não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.

Se

não há coragem não se entre.

DM

  p.

130)

É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão

despovoado. OEN, p. 94)

3 1

Introdução

Muitos

aspectos desenham

o perfil

de um exilado.

Ele é

aquele

que

se encontra social e geograficamente deslocado

por

motivos políticos ou pessoais. Está distante

de

sua

terra natal

e

considera

temporário tal deslocamento mesmo

que

esse

dure

alguns

meses ou

por

toda

uma vida.

Num

estado de

ser frag-

mentado e descontínuo o exilado sente-se desvinculado de sua

história habitando

um lugar

ao mesmo tempo

em

que

sua men-

te projeta-se

para

uma

outra

realidade

ao

sabor

da

memória

da

melancolia

e

da imaginação.

A paisagem

do novo

ambiente co-

bre-se dos ecos

do

passado e o silêncio é tudo que se consegue

ouvir.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

49

Page 51: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 51/186

Os

principais elementos dessa anatomia exílica são as várias

manifestações de nostalgia.

12

Ela pode aparecer de muitas for-

mas: saudade do passado; de casa, da 'língua materna'; das

minúcias

que

significam a experiência daquilo que é familiar

depois que

foi

perdido

(Kaplan, 1996, p. 33).

Como Harry

Le-

vin

escreve em

Literature and exile

o homem

sempre

foi

movido

por

compaixões locais ou

por

ideais coletivos; contudo, foi tão-

somente

em 1688, em uma tese

de

Medicina (apresentada na Ba-

siléia), que Johannes Hofer diagnosticou os sintomas de uma

moléstia

que

hoje é bem conhecida, embora nem todos a reco-

nheçam como

uma

enfermidade: saudade de casa. (Levin, 1996,

p. 70

As conexões entre exílio e literatura são conhecidas

desde

Ovídio até os dias de hoje. Nas páginas literárias, a restrição exí-

lica abre caminho para representar uma categoria de

pensamen-

to, baseado em

uma

espécie de morte em vida . Especialmente

nos

textos clássicos, como A

divina

comédia de Dante, o exílio em

si

encontra-se

no subsolo sobre o qual se erguem os demais

acontecimentos da história. Detido

por

motivos políticos e bani-

do

de sua amada

Florença, Dante escreveu

sua

obra-prima intei-

ramente no exílio. O texto é pontuado pelos sentimentos que

marcam os humores de quem se vê destituído de qualquer an-

coragem, decidido a abordar todo e qualquer tipo de assunto

por

meio de uma perspectiva

distante-

e algo privilegiada. As

habilidades de escrita são enriquecidas por uma criatividade in-

tensificada, que se mistura ao gosto amargo da carência e do

desterro. A nostalgia é definitivamente o tom de muitos dos

versos

de

Dante. (Kristeva, 1991, p. 106)

Nos tempos atuais, a experiência do exílio adquiriu um cer-

to status, a ponto de ser compartilhado por diversos autores,

que buscaram o deslocamento como

um

meio

para um

fim: tirar

vantagem de

um ganho

estético. De fato, imagino

que

a

própria

Clarice Lispector tenha lucrado muito em seu exílio voluntá-

rio,

que

certamente influenciou de forma positiva seu back-

ground cultural. Como

Caren

Kaplan afirma em Questions of

travei

-

post-modern

discourses

of displacement

a

era

moderna

é

fascinada pela experiência da distância e

do

estranhamento, re-

produzindo

essas noções

por

meio de articulações de subjetivi-

12

Nostalgia. Do grego:

nostos  

o voltar para casa, e

algas

uma condição dolorosa.

· (Kaplan, 1996, p. 34

5 Cláudia Nina

Page 52: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 52/186

dade e poética (Kaplan, 1996, p.l). Segundo Kaplan, as ques-

tões do mudar-se questions

of moving na

literatura abrangem

muitos aspectos que devem ser cuidadosamente observados:

A junção

de

exílio e expatriação feita

por

escritores e críticos mo-

dernos pode ser lida não só

no modo

como a distância vem

sendo

privilegiada como a melhor perspectiva por

onde

enxergar

um

as-

sunto

sob investigação,

mas

também

no

discurso relacionado, de

ganho estético

por

meio

do

exílio. Quando o afastamento é pré-

condição para a criatividade, então a desafeição ou alienação en-

quanto

estado da mente torna-se um rito de passagem para o artis-

ta ou escritor

moderno

sério . O modernista busca recriar o efeito

da falta do estado pátrio- esteja ou não o escritor, literalmente, no

exílio.

Como

resultado, mesmo aqueles escritores que

não

se en-

contram realmente exilados podem com facilidade ampliar a metá-

fora. (Kaplan, 1996, p. 36

O tema também é analisado em

Exile

and the narrative imagi-

nation, em que Michael Seidel propõe que a condição exílica po-

de atuar

como um

paradigma para

estratégias narrativas. Ele

sugere que o registro do exílio em forma narrativa fica enrique-

cido pelo deslocamento, e

que

a imaginação realmente habita

domínios exílicos:

Tantos escritores,

não

importa quais fossem seus traumas políticos

ou pessoais,

ganharam

vigor imaginativo a partir do

exílio-

Oví-

dio, Dante, Swift, Rousseau, Madame de Stael, Hugo, Mann, Bre-

cht - que as experiências nativas

à

vida do exilado parecem quase

que

ativadas na vida do artista: a separação aparece como desejo, a

perspectiva aparece como testemunha, a alienação aparece como

novo ser. (Seidel, 1986, p. 10)

Muitos escritores modernos foram expatriados por motivos

pessoais

ou

políticos, entre eles Dorothy Richardson, James Joy-

ce, Albert Camus, Vladmir Nabokov, Samuel Beckett. Fica difícil

traçar

uma

linha entre autobiografia e ficção, a julgar pelo mate-

rial que esses autores produziram no exílio. Na verdade, na

maioria dos casos, os autores transpuseram para as páginas par-

te

de

suas experiências em terras estrangeiras de

modo

subjeti-

vo, embora algumas vezes não diretamente na primeira pessoa.

Da mesma maneira mesmo quando os temas não são os exí-

lios propriamente ditos, é bastante compreensível que o deslo-

camento, e inclusive um certo desconforto geográfico e lingüís-

tico, tenha influenciado seus escritos ou, pelo menos, o modo

de

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5

Page 53: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 53/186

observar e reconstruir o mundo. Para Randall Stevenson, em

Modernist fíction - an introduction

O exílio

na

realidade - geográfico e

não

apenas metafórico -afetou

autores modernistas e

seu

trabalho

de

várias maneiras. Algo

da

experiência pessoal de

Conrad

e James enquanto estrangeiros,

por

exemplo,

pode

estar refletido

no

freqüente interesse que seus ro-

mances têm em uma primeira pessoa

do

singular - alguém que

não

raras vezes é

um

estranho e

um

solitário, gradualmente des-

vendando

as exigências

do

ambiente novo e complexo com o qual

está se confrontando. (Stevenson, 1988, p. 188)

O estudo abrangente de Maria José de Queiroz sobre a lite-

ratura

do

exílio, Os

males

da

ausência

ou

a

literatura

do

exílio

de-

senha um pano de fundo histórico, desde a Grécia Antiga até os

tempos modernos. Maria José analisa as diferentes razões que

levaram os escritores a produzir- ou não- durante a expatria-

ção e coloca a questão

da

linguagem como um dos aspectos

mais cruciais de tal experiência:

O exílio não é apenas a experiência da solidão,

do

afastamento, da

nostalgia.

À

maioria dos indivíduos, o desterro afeta a estrutura da

identidade. A exclusão da palavra, da língua

do

berço, não se vive

apenas como

pena

política, é tormento pessoal. Os escritores que

puderam continuar a escrever salvaram-se desse tormento. (Quei-

roz, 1988, p. 608

Nos tempos modernos, quando as línguas estiveram dire-

tamente conectadas ao surgimento

do

nacionalismo, em diferen-

tes partes do mundo a língua materna, língua primeira, foi al-

çada a

uma

maior dimensão, transformada

em

metáfora

de

um

mundo perdido: a pátria distante.

No

exílio - e isso é pratica-

mente inevitável - a língua que se fala fica intensamente afetada

de

maneiras imprevisíveis. As sombras conflitantes

de

muitos

ruídos e

de

culturas diferentes agem como um incentivo à in-

ventividade verbal ou, por outro lado, ao silêncio; no meio

de

muitas vozes, a fala pessoal encontra-se em risco.

De fato, sabe-se que

não

usar a língua materna com

ames-

ma

freqüência

que

as pessoas o fazem

em

seus ambientes fami-

liares cria

um

outro domínio sobre o

discurso-

uma mudança

para melhor ou para pior. É bastante compreensível que

uma

nova relação com a língua original possa surgir. Além disso,

uma certa dificuldade verbal emerge de um confronto entre a

fala adquirida e os ecos

da

língua materna, como Julia Kristeva

5

Cláudia Nina

Page 54: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 54/186

observa

no

capítulo O silêncio dos poliglotas , em

seu

Étran-

gers à naus

mêmes:

Viver com ressonâncias e raciocínios

que

se desvincularam

da

memória

noturna do

corpo,

desde

o sono agridoce

da

infância.

Carregar dentro de si como

um

cofre secreto,

ou

como

uma

criança

deficiente - apreciada e inútil - a língua do passado que fenece

sem jamais te abandonar[ ..] entre duas línguas, o teu domínio é o

silêncio[ ..] O silêncio não só foi forçado sobre ti, ele está dentro de

ti:

uma recusa a falar, um sono espasmódico dirigido para

uma

angústia que deseja permanecer muda, a propriedade privada de

tua discrição orgulhosa e mortificada, esse silêncio é uma

luz

dura.

Nada

a dizer, o

nada

absoluto, ninguém no horizonte. (Kristeva,

1991, p. 15)

Em

casos em

que

a inventividade lingüística ocorre, em vez

de um

mutismo

estéril, o texto literário é enriquecido pela con-

fluência de diferentes vozes, discursos e culturas

que

cercam o

universo estrangeiro do autor. Os últimos trabalhos de James

Joyce ilustram essa situação. O escritor irlandês

que

abandonou

seu país

para

andar a esmo pelo continente europeu (Itália,

França e Suíça) exercitou

uma

prática lingüística genial

em sua

literatura, na qual palavras e expressões de diferentes origens

constroem

uma espécie de Babel onírica e extraordinária.

Desde

os primeiros escritos de Joyce, assuntos referentes às

línguas - especialmente o contraste entre o inglês (o discurso

dominante

historicamente) e o irlandês - estavam entre seus

temas favoritos, como é possível observar em

portrait

of the ar-

tistas a young

man. Com

os olhos fixos em Dublin, Joyce flanou

pelas ruas da Europa e como

um

expatriado, fez com que a vi-

da e a

alma

de

suas

personagens desfrutassem do exílio, por

assim dizer.

13

No caso de Dédalus e Bloom,

por

exemplo, não há

idéia

de sofrimento e punição no que diz respeito a distância de

seu país natal, na medida

em

que Eles imitam o autor: vivem

no exílio, praticam-no. um

modo

de vida, deliberadamente

ativo . (Queiroz, 1988, p. 344)

Em

Ulysses

e

Finnegans

Wake

Joyce

aprofundou-se

na

pes-

quisa lingüística para criar uma literatura

habitada

por estra-

nhas personagens cujas vozes - como as vozes de diferentes lín-

  As zonas idiossincráticas da lin

guagem

de Joyce não são

usadas

exclusivamente

para refletir a esfera de influência

das

personagens.

mas

também[

..

]

para

indicar

certas idiossincrasias lingüísticas associadas a lugares específicos . (Stevenson,

1988. p. 48)

A

palavra usurpada:

exílio

e nomadismo

na

obra de Clarice Lispector

53

Page 55: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 55/186

guas

e

culturas

- articulam-se num jogo de

imaginação

e inteli-

gência.

Mesmo

não

sendo capaz de

esquecer Dublin,

cidade

à

qual

ele estaria emocionalmente vinculado por

toda sua

vida,

J

oyce

não conseguia mais trabalhar dentro dos domínios

de

uma única língua. Em Finnegans

Wake,

o leitor surpreende-se

ao

ver em cada linha

uma

palavra ou

expressão

que não

se encon-

tra em nenhum dicionário de nenhum

dos

60 idiomas que ele

usou

para

escrever

sua obra-prima

(Medeiros, 2000, p. 47). Co-

mo

observa

Michael Seidel:

Joyce tornou-se

um

exilado; ele intitulou sua única peça

de

teatro

Exiles, e absorveu o mais famoso dos temas exílicos, as

caminhadas

odisseianas,

na

textura

de

seus dois épicos irlandeses.

No

espeta-

culo cômico

de

Finnegans

Wake,

o artista Shem é

um

perpétuo enta-

lhador e

um

perpétuo re-colonizador cujo tema é sua própria so-

brevivência no exílio. (Seidel, 1986, p.

71

Vários escritores,

como Vladmir Nabokov

e

Samuel

Beckett,

trabalharam em outra direção. Parcial ou totalmente, eles adota-

ram

as línguas

adquiridas para

criar seus escritos,

em que os

ecos da

língua

materna- falsamente enterrada-

aparecem

co-

mo

pano de fundo,

enquanto

ecos

do

exílio estão

inquestiona-

velmente nos subterrâneos de cada obra.

Embora o anglo-irlandês fosse a

língua materna

de Beckett,

a maioria de suas obras foi escrita originalmente em francês. Na

verdade,

o autor

que

trocou a

Irlanda

por Paris parecia

estar à

procura de

alcançar uma

economia de

expressão

que

talvez só o

domínio

da língua adquirida

poderia

obrigá-lo a ter. De fato, na

análise

das

personagens

de

Beckett,

pode-se ver que

elas

lutam

em vão para expressar o inexprimível e para nomear o inomi-

nável ;

todas parecem estar imersas em um

profundo

estado

de

incomunicabilidade e melancolia. Quanto ao aspecto lingüístico,

George Steiner

observa

que Beckett costumava

encenar

um

pas

de deux do francês

com

o inglês, acrescido de

uma

forte dose

de

tristezas secretas e misteriosas e de bobagens irlandesas . (Stei-

ner, 1972, p.18).

As

frases

das personagens

são lacônicas e confusas. A co-

municação está em constante risco

de

fracasso. Elas parecem se

esforçar, mas falham, na tentativa

de

atingir o outro. Em

um

fragmento de The unnameable , de Beckett, em que há apenas

uma

voz reverberando num

vácuo, o narrador ilustra esse fra-

casso:

5 Cláudia Nina

Page 56: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 56/186

Isto, agora não tem ninguém aqui a não ser eu, ninguém

ao

meu

redor, ninguém vindo

ao

meu encontro, ninguém conheceu nin-

guém nunca diante de meus olhos, essas criaturas jamais foram,

eu e esse vazio escuro sempre fomos. E

os

barulhos? Não, tudo é

silencioso. E as luzes,

às

quais dei tanto valor, elas também devem

sair?

Sim,

fora com elas, não tem luz nenhuma aqui. Nem mesmo o

cinza, preto é o que eu devia ter dito. (Beckett,

1976, p. 350)

Na

verdade,

na maioria

dos

textos beckettianos,

pode-se

descobrir que as palavras são o ingrediente principal da arte

do

fracasso; elas

formam aquela barreira impenetrável

da lingua-

gem

que para

sempre

nos impede de saber

quem somos, o

que

somos (Coe, 1968, p. 11), escreve Richard Coe em

The

art

of

ai-

lure.

Ele define corno disciplina

masoquista

(Coe, 1968, p. 14) o

exercício desenvolvido por Beckett em

seu

projeto lingüístico:

Apenas quando a linguagem

fica,

por assim dizer, derrotada,

amarrada pés e mãos; apenas quando ela está disciplinada com

tanto rigor que cada palavra descreve exata e quase que cientifi-

camente o conceito preciso

ao

qual ela está relacionada e nenhum

outro, apenas então, com a progressiva eliminação daquilo que

precisamente

é

existe uma remota chance de a mente humana

adivinhar a realidade fundamental que não é. Coe, 1968, p. 13)

A falta de

comunicação

e a solidão estão

realmente

entre al-

guns

dos

elementos

mais comuns

que

com

freqüência

aparecem

na literatura sobre (ou escrita por) exilados.

Em

relação a isso,

um outro autor

a ser

citado

nos

tempos modernos

é Albert Ca-

rnus, cuja

obra

relaciona-se

à

condição exílica

de maneira

dife-

rente

de Beckett.

Em seus primeiros

escritos, corno, por exem-

plo, os ensaios

produzidos entre

1935 e 1936 e

intitulados

envers e l

endroit, o

tom

nostálgico predomina. As reminiscên-

cias

da

Argélia, a terra natal,

são

intensas.

Em alguns

desses en-

saios,

Carnus

faz

um

esboço

do

colapso da comunicação

verbal

quando

estranhos

sons ,

vindos de

ambientes

com

os

quais

o

sujeito

não

está familiarizado,

ampliam-lhe

a condição de es-

trangeiro em medidas

imprevisíveis.

Na

crônica

chamada

La

rnort dans l'ârne , confinado em seu quarto,

Carnus

considera:

Sei

muito

bem

que nada

pode me tirar deste quarto,

onde

che-

gam os ruídos de urna cidade estrangeira, para

me

levar em di-

reção à

luz mais

delicada

de

urna lareira

ou

de

um lugar amado.

Vou chamar, gritar? São rostos estrangeiros

que

aparecerão .

(Carnus, 1995, p. 82)

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

55

Page 57: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 57/186

No campo

da ficção, a literatura de Camus fala de

um autor

cuja condição estrangeira está vinculada à

sua

personalidade,

como fica claro em étranger, em que o status

de

estrangeirida-

de é

abordado

a partir de

um

ponto de vista desesperançado. A

condição

de

estranho/intruso (outsider) é vista através

de

uma

lente que

captura

as últimas conseqüências de

um

sujeito ex-

pulso , que vi vencia ao máximo o absurdo e a complexidade de

sua

situação. É particularmente possível exemplificar o universo

dos exilados no romance La peste, em que as personagens vivem

a situação extrema

de

serem estrangeiros à própria imagem. São

prisioneiros

num mundo

exilado, dominado por uma

praga

que

os condena a viver excluídos, expatriados

de

sua liberdade in-

dividual, numa evidente alegoria

dos

campos nazistas.

Em

grande parte dos demais escritos de Camus, o tema do

exílio

o tom. A solidão é

um

refúgio e

um

tormento ao mes-

mo tempo. A condição metafísica para Camus é a condição de

um exilado condenado a morrer (Ribeiro, 1996, p. 180). Os ho-

mens são exilados e estrangeiros

não

apenas no mundo mas,

sobretudo, em suas próprias peles.

Em

que

sentido relaciono

tudo

isso com as

narrativas

do

si-

lêncio de Clarice Lispector? Primeiramente, porque as persona-

gens desses romances, como mostrarei nas páginas que se se-

guem, são seres estranhados na paisagem com a qual não inte-

ragem

e

também dentro

de si mesmos. Sentem-se incapazes de

empreender uma jornada de autoconhecimento. Numa socie-

dade que

os

despersonaliza onde

transitam em quase total

anonimato, eles se mostram tão indiferentes e passivos que che-

gam

a ignorar a palavra revolta . Vivem (presos

ou

refugia-

dos?) no desconforto exílico e morrem com ele, incapazes de

modificar consistentemente aquilo que os incomoda (dentro e

fora de si mesmos).

Tais idéias estreitam a proximidade entre

uma

literatura di-

ta exílica e a filosofia existencialista. Inúmeras considerações

podem ser feitas nesse campo. Entretanto, há muitos filósofos e

escritores (Sartre, Kierkegaard, Jaspers, Husserl, Heidegger, etc.)

que

expressam diferentes preocupações

quanto

ao existencia-

lismo, de modo

que

o tema não pode ser

estudado

como

um

bloco filosófico único e compacto aplicado a um determinado

grupo

de romances. Os escritos de Camus,

em

particular, ex-

pressam a idéia do exílio sob um ponto de vista existencial que

enfoca especialmente o aspecto da angústia, da solidão e da es-

56

láudia Nina

Page 58: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 58/186

tranheza interior que, a

meu

ver, são alguns dos elementos cen-

trais a serem abordados na leitura dos romances de Clarice Lis-

pector, reunidos no que chamo de o ciclo do

exilio

como mostra-

rei

na

seqüência.

3.2

lnsiders Outsiders

A fala

dupla

revelou-se mais

uma

vez impossível, e

encontrei-me dividido

em

duas metades[ ..

].

(Tzvetan

Todorov, L homme depaysé p. 17

O paradoxo do ator: ao multiplicar máscaras e falsos

selfs , ele nunca é completamente verdadeiro nem

completamente falso [

..

] (Julia Kristeva, Strangers to

ourselves p.

8 .

Ser exilado

não

está necessariamente relacionado a um des-

locamento geográfico. Além disso, as sombras conflitantes de

diferentes registros lingüísticos

podem

ocorrer no domínio de

urna única língua. Franz Kafka,

por

exemplo, jamais foi

um

ver-

dadeiro expatriado, mas viveu sob o signo do exílio desde sem-

pre. Na juventude, passou por urna série de episódios de bani-

mento e deslocamento

em

seu hábitat familiar. Em suas memó-

rias de infância, ele

guardou

muitas lembranças desconfortá-

veis, tais corno aquelas descritas na pungente

Carta

ao pai.

Por várias razões,

mesmo

que

não

sendo exilado de seu país

natal, Kafka verdadeiramente viu-se submetido, ao longo

da

vi-

da, a circunstâncias similares. Ele foi criado em

um

ambiente

de

alienação familiar e social, urna vez que era membro de urna

minoria

de

judeus em sua cidade natal. É compreensível

que

as

obras de Kafka reflitam a marca da angústia, tormento e isola-

mento que representaram a própria luta do autor na vida real.

Este é

um

caso

em

que, definitivamente, não se pode furtar a

urna aproximação vida e obra, tendo em vista as características

muito particulares

dos

escritos do

autor

tcheco.

A experiência do

exílio

seja ele um deslocamento geográfi-

co real ou o exílio feito em casa , o exílio em miniatura ,

por

assim dizer - pode criar vínculos imprevisíveis com a escrita.

Esses alinhavas podem surgir de diferentes modos, disfarçados

sob diferentes máscaras e estratégias narrativas. metamorfose

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

57

Page 59: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 59/186

de Kafka, é um exemplo interessante, que pode sugerir curiosas

conexões autobiográficas. Às palavras-chave

seguidamente

re-

lacionadas com a história, tais como impotência, relacionamento

familiar, doença mental e individualidade outras

podem

ser

acrescentadas,

como

solidão, impotência lingüística, imobilida-

de, expulsão e crise de

identidade

- elementos que estão inti-

mamente

relacionados ao exílio.

A narrativa conta a história de Gregor Samsa, jovem repre-

sentante

comercial

que mora com

seus pais e a

irmã

mais nova.

A rotina de Samsa é literalmente transfigurada

quando

numa

manhã ao acordar, ele descobre que durante a noite transfor-

mara-se

em

um

inseto. E mais:

que

suas

capacidades, gostos e

interesses também começavam a mudar.

Ninguém

consegue en-

tender sua

fala de inseto, e

sua

família -

horrorizada

-

mantém

Gregor num quarto, exilado, recusando-se a interagir com ele.

Sob

uma nova

identidade, ele se transforma

em

um corr

  :;

estra-

nho

à beira de

uma

nova vida. Gregor fica restrito a

seu próprio

habitat,

que

termina

por

se

mostrar

terrivelmente estranho. Soli-

tário, ele vê o desespero crescer

no

espaço limitado de

sua

cama:

Mas havia o mesmo silêncio a toda volta, embora o apartamento,

com certeza, não estivesse vazio. Que vida mais silenciosa esta

família vem levando , disse Gregor para

si

mesmo,

e,

enquanto

fi-

cava lá sentado, olhando para a escuridão, sentia-se verdadeira-

mente orgulhoso de ter sido capaz de oferecer uma vida desse tipo

em um apartamento tão agradável para seus pais e sua irmã. Mas,

e se toda a paz, todo o conforto, toda a satisfação chegassem agora

a um término medonho? Em vez de perder-se em pensamentos

desse tipo, Gregor começou a mover-se, e rastejou de um lado para

outro do quarto. Kafka, 1992, p. 93)

A língua foi um outro assunto relacionado às questões exíli-

cas na vida

de

Kafka. O

autor

era

judeu

tcheco e trabalhou

nu-

ma língua paralela ao discurso dominante. O alemão falado

em

Praga

(a língua menor )

vinha

carregado

de

diferenças e va-

riantes

em

relação ao alemão oficial. Tal deformação , sobretu-

do quando manipulada pelo talento de

um

autor como Franz

Kafka,

resultava em

um

material excelente

para

o exercício lite-

rário, mas, todavia, soava estranho . Gilles Deleuze e Felix

Guattari em

Kafka pour une litterature mineure analisaram a lite-

ratura do autor de A met morfose exatamente quanto a esse as-

58 láudia Nina

Page 60: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 60/186

pecto, num estudo sobre a língua de um grupo minoritário em

relação a uma língua dominante.

Quanta gente não vive hoje em

uma

língua que não é a sua? [

..

]

Problema

dos

imigrantes e, sobretudo,

de

seus filhos. Problema

das

minorias. Problema de

uma

literatura menor, mas, também, de

todos nós: como arrancar

do

próprio idioma uma literatura menor,

capaz de cavar a linguagem e de fazê-la tecer-se por uma linha re-

volucionária sóbria? [

..

] Diz Kafka: é roubar a criança do berço, é

dançar na

corda bamba. Vejamos: a situação da língua alemã em

Praga, como língua ressecada, misturada ao tcheco ou ao iídiche,

irá viabilizar

uma

invenção de Kafka. (Deleuze e Guattari, 1975, p.

35)

O conceito de línguas maiores e menores, entretanto, é

complexo; envolve muitos aspectos lingüísticos e definições que

vão além

do

escopo deste estudo. Contudo, vale a

pena

conside-

rar que línguas maiores também implicam a expressão

de

uma

medida padrão enquanto sistema homogêneo e constante, en-

quanto

línguas menores representam,

em

sua essência, o poten-

cial

de

algo em constante variação. Algo que foi apropriado e

que

está às

margens de

um

sistema (maior) dominante. De certa

forma, é o que o exilado, quando vive em

uma

comunidade lin-

güística estranha, tem

de

fazer: encontrar

sua

própria voz entre

discursos estrangeiros, ou melhor, construir seu modo parti-

cular de falar a língua adquirida ou apropriada .

A urgência por comunicar-se e descobrir os códigos do dis-

curso lingüístico predominante a fim de interagir é

uma

luta pe-

la qual já

passaram

todos os que viveram no exterior, em uma

comunidade

lingüística diferente. A língua criada pelo estran-

geiro nunca está correta, de acordo com os habitantes locais, ou,

se está, dificilmente ostentará o vocabulário exato ou a pronún-

cia precisa. Isso cria

um

certo

grau

de diferença lingüística que

imediatamente identifica a voz estranha entre os nativos.

No

caso

de

Clarice Lispector, como eu disse anteriormente,

o

português

foi sua primeira língua escrita e exceto por alguns

contos

que

ela escreveu para seus filhos em inglês, era só com o

português que

ela trabalhava. Mesmo após ter

aprendido

outras

línguas, palavras estrangeiras dificilmente apareciam

em

seus

escritos. A autora queria moldar a língua portuguesa, enrique-

cê-la consideravelmente. Ela se recusava a aceitar vocábulos fo-

rasteiros em suas obras literárias e recusava-se mesmo a pro-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 9

Page 61: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 61/186

curar editoras que a publicassem no exterior. Assim, Clarice es-

tava na Europa e nos Estados Unidos representando a literatura

brasileira de modo paradoxal: se no Brasil era uma

outsi er

a es-

tranha

e estrangeira Clarice); lá fora, digo, no exterior, ela vivia

apegada às suas raízes brasileiras, fazendo a literatura em por-

tuguês representar a sua voz nacional em terras estrangeiras.

Para a autora, a língua portuguesa não era apenas o instru-

mento

de

sua

literatura,

mas

também a marca

de sua

identidade

brasileira. Acima de tudo, era uma recusa ao silêncio. Nos escri-

tos do

ciclo do exílio,

o leitor encontra no espaço mesmo

da

ficção

os elementos que animam a alma de um exilado, quais sejam,

um

forte e indisfarçável senso

de

estranheza,

aprofundado

pela

solidão do desterro. As personagens retiraram-se para seus pe-

quenos mundos ficcionalizados e limitados, na esperança de

conseguir de

algum modo

um tipo

de

redenção.

Não obstante, Clarice Lispector manipulou o

pr

: Luguês

como se fosse uma estrangeira,

produzindo

uma sintaxe in-

comum com

uma

justaposição nada ortodoxa de palavras e me-

táforas. Enquanto João Guimarães Rosa operava

de um

modo

mais inventiva (no domínio

de

neologismos, onomatopéias e

palavras

portmanteau ,

Clarice trabalhava

por

meio

de

sutis de-

formações sintáticas. Segundo Earl Fitz, as frases

de

Clarice são

realmente algo de especial, que pede por uma abordagem deta-

lhada. Fitz observa que

A sintaxe reside no coração de toda e qualquer discussão séria so-

bre

seu estilo. A deformação sintática imposta por Lispector à sen-

tença tradicional

da

língua

portuguesa

é

produzida

consciente-

mente ou não, para forçar-nos a definir e interpretar o mundo de

um

modo

diferente;

para

exigir, ao conectar palavras de

modos

novos e seguidamente surpreendentes

e

ao

usar

velhas palavras

de

modos

novos ), que o leitor acompanhe hermeticamente a au-

tora em uma viagem de descoberta nos confins não

mapeados

da

realidade e de suas possíveis apreensões. (Fitz, 1985, p. 42)

Um

comando

estranho

da

língua portuguesa pode

ou não

ser

uma

conseqüência

da

mistura

de

línguas

que

cercaram a vi-

da de

Clarice. Para alguns, certamente é uma influência em seu

estilo, como questiona Grace Paley no prefácio de uma edição

inglesa de

Soulstorm:

Às vezes

penso

que é sobre isto que versa o trabalho dela [Clarice

Lispector] uma língua tentando sentir-se em casa dentro de outra.

60

láudia Nina

Page 62: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 62/186

Às vezes há hospitalidade, às vezes há briga [ . . ] A menos que os

pais de Clarice Lispector fossem poliglotas, com um conhecimento

precoce do português, eles com certeza falavam russo [

..

] Deve ter

sido esse encontro das du s línguas, o russo e o português, que

produziu

o tom, os ritmos que mesmo

em

tradução (provavelmen-

te difícil) são tão surpreendentes e certos. (Paley, 1989, p. XI

A distorção sintática tantas vezes citada com relação aos

escritos

d

autora é realmente marca sutil

de

todos os seus tex-

tos. Contudo, nas

narrativas

do sil

êncio  

a linguagem

ssumiu um

p pel distinto. Nesses escritos, a linguagem não é fundamen-

talmente o instrumento estético de um busca ontológica das

personagens, como o é

p r

Joana

em

Perto

do

coração

selvagem.

De

um

outr forma, a linguagem expressa a angústia de perso-

n gens caindo num vácuo. Subjetividades despersonalizadas,

são vozes silenciosas ecoando no vazio

à

su volta e confronta-

d s com seu próprio vazio interior.

3.3

terra de nenhuma mulher

O que acontece qu ndo mulheres tentam quebrar esse

silêncio? (Barbara Johnson, Muteness envy , in:

The

feminist reader   p.

137)

Algumas pessoas como Clarice Lispector parecem ter

nascido com um talento p r a estranheza. (Cixous,

Readings : the poetics of Blanchot, Joyce, Kafka, Kleis,

Lispector

nd

Tsvetayeva, p.

98

É

curioso como os termos exílio e expatriação têm diferentes

conotações p r homens e mulheres. As escritoras vivem a ex-

periência do exílio

de um outro

modo, principalmente devido

à

condição de

um

expatriação interior ,

um

vez que elas sem-

pre foram estrangeiras no continente d escrita,

domin do por

escritores homens. Em Expatriate modernism Shari Benstock ana-

lisa a situação vivenciada

por

mulheres e

homens

no caminho

p r

o Modernismo, enfocando

um

de

suas referências mais

comuns,

ou

seja, o exílio:

Para as mulheres, a definição de patriarcado já pressupõe a reali-

d de de expatriadas in patria; p r as mulheres, essa expatriação é

internalizada, vivenciada como um exclusão imposta a partir de

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

61

Page 63: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 63/186

fora e vivida a partir

de

dentro, de tal

modo

que a separação entre

fora e dentro, entre as máximas patriarcais e o decoro feminino,

não

tem como ser desde cedo distinguida. (Benstock,

1989,

p.

20)

Shari Benstock escreve

que

as modernistas

sempre produzi-

ram na

periferia da cultura moderna, trabalhando contra defini-

ções que tratam o Modernismo corno um todo homogêneo. Ela

cita os exemplos

de

H.D., Gertrude Stein, Sylvia Beach, Djuna

Barnes e Natalie Barney, sublinhando que foram todas impul-

sionadas por urna forte necessidade de fugir a definições cultu-

rais, num sonho de reescrever roteiros culturais (Benstock,

1989, p.

28).

O habitat

em

família representava a atmosfera exíli-

ca

por

excelência: O

que

parecia opressivo a

muitas

dessas

mu-

lheres era a família, especialmente na medida em que a família

polarizava

e

paralisava) o masculino e o feminino. Para essas

mulheres, a fuga para a liberdade muitas vezes significava urna

fuga

das

expectativas implícitas

de

casamento e maternidade .

(Benstock, 1989, p. 28)

Essa condição internalizada de expatriada externaliza-se

por

meio da escrita, porém com grande dificuldade. Corno Virginia

Woolf escreveu

em

1931, vai levar ainda

muito

tempo, penso

eu, antes que urna

mulher

possa sentar-se para escrever

um

li-

vro sem encontrar urna assombração a ser assassinada, urna pe-

dra a ser atirada contra alguma coisa (Woolf, 1993, p. 8). Assim,

se, por um lado, a condição feminina é historicamente exílica,

por outro

lado, as escritoras, corno

argumentou

Woolf,

sempre

tiveram urna batalha dupla a empreender. Para escritoras exila-

das, a situação é ainda mais difícil.

Rosi Braidotti diz que,

por muito

tempo, a

identidade

ferni-

iüna esteve conectada a urna espécie de exílio planetário,

que

se tornou um topos dos estudos feministas (Braidotti, 1994, p.

21). No artigo Difficult joys , Hélene Cixous enfatiza que:

Tem algo

de

estrangeiridade,

um

sentimento

de

não ser aceita

ou

de

ser inaceitável, que é particularmente insistente quando, como

mulher, você

de

repente entra neste estranho país

da

escrita,

onde

a maioria dos habitantes é

de

homens e

onde

a sorte das mulheres

ainda

não

está

bem

estabelecida. (Cixous, 1988, p.

12)

Na trajetória literária de Clarice Lispector, contudo, as coi-

sas se deram de um

modo

bastante peculiar. A autora brasileira

foi subitamente proclamada corno boa escritora com seu primei-

ro livro- o

que

é raríssimo- mas depois disso ela teve

de

andar

62

láudia Nina

Page 64: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 64/186

um longo caminho a fim de estabelecer sua posição na cena lite-

rária.

Não

foi fácil. As obras que se seguiram à sua estréia foram

recebidas pelos críticos com silêncio.

No

exterior, apesar da re-

sistência dos críticos, Clarice Lispector continuou produzindo

sem parar, até mesmo como um meio de compensação para seu

estado exílico, como discuti anteriormente (capítulo "Haia:

uma

viajante clandestina").

No

entanto, em nenhum momento a autora relacionou os

trabalhos que

produziu

em terras estrangeiras O

lustre, A

cidade

sitiada e

maçã

no

escuro

com

seu

exílio voluntário. Mesmo

porque em nenhum desses romances a voz do "eu" aparece co-

mo

a

própria

voz

de

Clarice. Além disso, o universo ficcionali-

zado apresenta personagens bem distantes

da

vida

da

autora. A

restrição exílica é vivenciada nos domínios da ficção; o

mundo

literário

e

definitivamente não-autobiográfico- é a arena onde

o tema do exílio interior se desenvolve.

Com

freqüência, no entanto, os críticos têm vinculado

aspa-

lavras autobiografia e autobiográfico aos trabalhos da escritora.

Penso, todavia,

que

a maioria deles tende a ser por demais im-

pressionista.

É

bem

verdade

que a

própria

Clarice salientou fa-

tos pessoais em vários

de

seus escritos (especialmente as crôni-

cas incluídas em descoberta do mundo e alguns contos, como os

que estão apresentados

em

A felicidade

clandestina,

que reúne al-

gumas

reminiscências dos tempos

de

Recife. Não obstante esses

exemplos, a análise do

tom

autobiográfico na obra de Clarice

requer uma pesquisa mais detalhada, que vai além

da

mera pro-

jeção dos fatos biográficos na ficção.

Além disso, é

importante

afirmar

que

os vestígios íntimos

diminuem

nos romances, em especial os romances do ciclo do

exílio, e não se

pode

vê-los como simples projeções

de

experiên-

cias pessoais. A questão é por demais complexa. Ao mesmo

tempo em

que Clarice Lispector nega comprometimentos auto-

biográficos em alguns de seus escritos, por outro lado ela estrei-

ta em muitos

outros textos o relacionamento com seus leitores,

como fez nas crônicas e em seus últimos escritos, por exemplo:

A

hora

da

estrela, Um

sopro

de

vida,

Água viva.

A leitura

que

Marta Peixoto fez da obra

de

Clarice

em

Pas-

sionate

fictions: gender, narrative,

and

violence in Clarice

Lispector

esclarece essa questão. Nos seus escritos

da

década

de

70, a lu-

ta

com

a narrativa, coisa

que

o trabalho de Lispector põe em

evidência, inclui

uma

justaposição conflituosa

de

gêneros iterá-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 6

Page 65: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 65/186

rios: ela usa a autobiografia para discutir a

suposta

auto-

suficiência

da

ficção e usa a ficção para mascarar e atrapalhar o

impulso autobiográfico . (Peixoto, 1994, p. 13)

A combinação

vida

e literatura não é

um

tema

fácil

de

ser

abordado, especialmente

quando

se fala de Clarice Lispector.

Ela sempre trabalhou a articulação das duas esferas

de

modo

muito lispectoriano , quando não enigmático, que merece ser

cuidadosamente

estudado por

aqueles que

pretendem

aproxi-

mar-se

de

tal abordagem. Como Carlos Mendes de Sousa salien-

ta em A escrita autobiográfica de Clarice Lispector , os ecos bi-

ográficos são o resultado

de

uma busca, e não de

uma

projeção,

num

jogo permanente

de

negações e afirmações,

um

diálogo

que

se concentra na construção

de

um eu

que

procura ir mais

fundo

no

coração

da

própria emergência da escrita . (Sousa,

2000, p 490)

3 4

rupo do exílio

Pois somos como os troncos das árvores na neve. Pa-

recem estar suavemente pousados na superfície, e,

com um leve empurrão, deveríamos ser capazes de

movê-los. Mas não, isso não se pode fazer, pois eles

estão firmemente pregados ao chão. (Kafka, The

tree , in: The metamorphosis and other stories p. 32

Ao abordar o que defino como narrativas

do silêncio

ou seja,

o ciclo dos romances já citados, não

pretendo

tomá-las como re-

presentativas

da

clássica literatura de exílio. O que proponho é

investigar as qualidades exílicas peculiares a essas obras.

O modelo que apresento coloca-se em contraste com o mo-

delo traçado por Claire Varin em Langues

de

feu em

que

ela de-

fine como textos

de

exílio os romances que Clarice Lispector es-

creveu

no

exterior (Varin, 1990, p. 145). Todavia, ela não os es-

tuda sob

uma

perspectiva comparada. Claire não explora o en-

foque textos

do

exílio , logo se concentrando

em

uma

outra

classificação, qual seja, a cronológica. Ela coloca num mesmo

grupo

Perto

do coração selvagem

A cidade

sitiada

e O lustre obras

escritas em seqüência na década

de

40.

Minha proposta defende a idéia de

que

Perto do

coração sel-

vagem não deve ser emparelhado com

A cidade

sitiada e O

lustre

6 Cláudia Nina

Page 66: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 66/186

simplesmente porque foram

publicados na

mesma década.

Além disso, a crítica canadense cria um outro modelo-

um

ou-

tro triângulo -, formado pelas obras que Clarice Lispector es-

creveu nos anos 60 agrupando maçã no escuro

paixão segun-

do

G.H. e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Embora reco-

nheça em

maçã

no

escuro

o último

dos

escritos exílicos, o

que

minha

proposta também defende, Claire Varin aborda essa obra

como

um

conjunto de textos que,

em minha

opinião,

não

têm o

mesmo perfil.

De acordo com

o modelo

que

proponho, os romances do

exílio têm em comum

um

grande número de características que

não

podem

ser desconsideradas. Primeiro, eles são ambientados

numa atmosfera claustrofóbica. As personagens vivem

num

es-

paço restrito - física, psicológica e lingüisticamente falando -,

presas

em seu próprio

mundo interior, do qual

não há

saída pa-

ra a felicidade e para a liberdade. Desarticuladas, deslocadas,

são assombradas por desconfortáveis lembranças ou

por

inex-

plicáveis angústia e nostalgia. Vivem em uma espécie de parali-

sia, e, inertes, estão condenadas a

suportar

uma morte

em

vida,

como se fossem plantas

ou

estranhos animais

no

planeta

dos

homens. São alienados

do

resto do mundo

por

serem estran-

geiros não só nos lugares por onde circundam, mas principal-

mente dentro

de si mesmos.

As histórias são

narradas

no passado

por

uma voz anônima,

que tem o comando do texto e oferece às personagens uns pou-

cos e breves aparecimentos verbais. É o

narrador

de quem elas

parecem tomar emprestada sua linguagem para suplementar

sua mudez. Como

a

entidade que

organiza o texto e orienta os

leitores dentro do espaço literário, a voz do narrador assume

uma

posição distante, como alguém

que

descreve

um

mundo ao

qual ele não pertence. Na verdade , a própria voz

da

persona-

gem mal existe.

Pode-se argumentar

que em Perto

do coração

selvagem

a histó-

ria também não está totalmente narrada na primeira pessoa -

com a exceção de alguns capítulos onde a voz do eu surpre-

ende

o leitor

-,

mas

a situação é inversa: o

narrador

parece ser

governado pelos desejos e pensamentos de Joana,

enquanto

no

ciclo do exüio ele comanda e guia os passos

da

personagem e seu

discurso.

Nas narrativas

do silêncio o narrador é uma voz escon-

dida e anônima, e a capacidade de comunicação das persona-

gens é por uma ou outra razão, extremamente frágil, assim co-

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

65

Page 67: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 67/186

mo são frágeis as suas personalidades. Não há

identidades

for-

tes nessas páginas, e o único que se revolta contra a lei - Martim

-está em crise. Em seguida ele fica mudo até que consegue

aprender

num

processo lento e árduo, a usar as palavras no-

vamente.

Todos eles se sentem um pouco aprisionados no espaço ou

no tempo, enquanto seus laços de farru1ia são frouxos, corroídos

ou inexistentes. Virgínia está perdida entre suas lembranças de

infância, que a perseguem como fantasma. Andando a esmo de

um

lado para

outro, ela não encontra refúgio emocional. Lucré-

cia está confinada aos limites do pequeno subúrbio de São Ge-

raldo,

do qual

escapa, mas ao qual termina por voltar,

sem

saber

exatamente

que

rumo tomar. Martim,

por sua

vez,

atormentado

por

culpas e dúvidas no meio de uma séria crise

de

identidade,

foge

para

uma fazenda distante em busca de sua identidade. No

entanto, mesmo quando tentam fugir,

ou

romper com o sistema,

eles fatalmente retornam, como Virgínia volta

para

a fazenda,

Lucrécia para o subúrbio, Martim para a prisão após ser detido

por

policiais.

No

intuito

de

analisar

em

termos teóricos o

ciclo

do

exz1io

tomo o conceito deleuziano de árvore , desenvolvido

em uma

série de estudos feitos em colaboração com Felix Guattari. A

árvore é uma das metáforas botânicas que ambos usaram para

ilustrar suas teorias filosóficas baseadas no deslocamento, na

desterritorialização e no pensamento nômade, contra o m instre

am da Psicanálise e da Filosofia tradicional, voltando-se

para

as

subjetividades pós-modernas e para práticas políticas centrífu-

gas e alternativas. A árvore é

uma

imagem

que

considero

compatível com as narrativas

do silêncio por

várias razões.

Del

euze

relaciona o sistema arborescente com

estruturas

de poder e comando (não só na literatura, mas

também

em

dife-

rentes sistemas de pensamento, tais como a Política, por exem-

plo) enraizadas em bases sólidas. De acordo com seu modelo, há

basicamente dois tipos de livros. O primeiro é o livro árvore

(clássico), com raízes ligadas ao solo, governado pela lógica de

imitar

a

natureza

e refletir a

imagem do

mundo em

termos

de

representação ou mímese. O outro é o livro rizoma , também

um

termo da Biologia, que descreve

um

sistema descentrado,

que

pressupõe

diversas formas e direções, como um mapa ,

sem fim nem começo, aberto e potencialmente conectável

em

todas

as suas dimensões.

66 láudia Nina

Page 68: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 68/186

Sob urna perspectiva mais ampla, os sistemas arborescen-

tes têm um centro de comando e, tanto na Lingüística quanto

na Psicanálise,

por

exemplo, corno observa Deleuze, eles

têm

por objeto

um

inconsciente representativo codificado. Enquanto

sistema

de

significância, o objeto deve, portanto, ser interpre-

tado : Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que

comportam centros de significação e de subjetivação, autômatos

centrais corno memórias organizadas . (Deleuze e Guattari,

1976, p.

48)

Segundo Deleuze, toda a lógica

da

árvore é urna lógica do

decalque e da reprodução. Do mesmo modo, tanto na lingüísti-

ca corno na psicanálise, ela tem por objeto um inconsciente

que

é ele mesmo representativo, cristalizado em complexos codifi-

cados [ .. ] (Deleuze e Guattari, 1976, p. 36). Daí que as árvo-

res representam estruturas baseadas em urna ordem fixa, urna

rede múltipla e conectada de linhas

que

já existem (e não algo

que

está sendo construído). Assim, enquanto o modelo arbo-

rescente tem a imagem da árvore ( os decalques são corno as

folhas

da árvore -

Deleuze e Guattari, 1976, p. 37), o rizorna é

um mapa,

aberto e conectado com todas as suas dimensões.

Levando em consideração essas idéias a fim

de

analisar a es-

trutura

das

narrativas

do silêncio eu proponho urna abordagem

baseada no

modelo

da

árvore . Muitos aspectos

devem

ser ob-

servados

em relação a isso. Primeiro,

que

os romances repre-

sentam urna realidade. Existe um mundo rnirnético ficcional a

ser apresentado aos leitores

de

um

modo

ilusório à

medida que

os bastidores da literatura não se encontram abertos. Além dis-

so, todos os romances

têm

um

centro

de

significância e poder.

Em O lustre ele é a Granja Quieta, ao

redor

da qual gravita Vir-

gínia, ao longo

de

toda a sua vida; em

A cidade

sitiada é o su-

búrbio de São Geraldo, ao

redor

do

qual a ação (ou falta de) de-

senrola-se;

e,

finalmente, em

A

maçã no

escuro

o centro do mun-

do

de Martirn é a fazenda onde Vitória comanda as ações de to-

dos e onde ele desenvolve

seu

aprendizado.

Mesmo não

tendo

fortes laços familiares a envolver suas vi-

das, todas as personagens são,

de

alguma maneira, enraiza-

das . Virgínia está ancorada no passado, e o mundo misterioso

da Granja Quieta é urna realidade que ela não consegue esque-

cer. Lucrécia está enraizada em São Geraldo e, mesmo

quando

sai de lá, permanece ligada ao subúrbio, para ele retornando

depois. Martirn está enraizado

num

passado

de

culpas e na irn-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo n obra de Clarice Lispector 7

Page 69: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 69/186

possibilidade de reação imposta pelo silêncio. Há também, em

todas as situações, um padrão a ser mantido: silêncio, monoto-

nia, ordem, alienação e ausência de laços emocionais. Uma lógi-

ca binária governa esses universos, e muitas dicotomias, tais

como ausência/presença,

escuridão/luz,

dentro/fora,

passa-

do/presente,

urbano/rural,

delineiam os diagramas das precá-

rias existências. Nenhuma outra interconexão fora desse esque-

ma pode ser feita, e as peças do quebra-cabeça encontram-se

bem definidas.

Como disse anteriormente,

uma voz forte

de

comando,

na terceira pessoa, organizando os acontecimentos. Essa não in-

terfere na história como

uma

presença ativa, mas vai guiando, a

distância, o desenvolvimento e os discursos

da

personagem

em

uma posição hierárquica

de

controle. As histórias têm um nítido

senso de coerência e unidade, com início, meio e fim, numa or-

dem cronológica de fatos. Não há espaço para o leitor, que ja-

mais é mencionado nenhuma voz a ele se dirige), ao contrário

do que acontece em muitos dos últimos escritos

de

Clarice Lis-

pector.

A narrativa não pensa sua própria construção, como na fic-

ção pós-moderna, e a arena metaficcional está fechada, enquan-

to as próprias palavras

da

personagem são, de

algum

modo,

aprisionadas . A estrutura interna dos romances reflete siste-

mas

cujas ramificações

não

ampliam seus domínios em direções

erráticas, mas, pelo contrário, fixam-se na unidade

de

sua estru-

tura, num mundo

de

silêncio ou, por outro,

de

emudecimento.

A imagem que melhor consegue definir a estrutura desses

romances, portanto, é a árvore ,

à

medida que

observo clara-

mente alguns elementos

de

interação clássica na lógica dessas

obras: a ordem cronológica dos eventos, a presença de persona-

gens e narradores em seus lugares (hierárquicos) definitivos

(com o

narrador

contando as histórias e as personagens vivendo

as histórias), uma descrição detalhada

de

lugares e o processo

de imitação do

mundo

e sua ordem.

Ao considerar esses romances como livros-árvore , pergun-

to-me se

devo

reconciliar a condição

do

exílio

com

o modelo

arborescente

que

defendo no presente estudo. A primeira coi-

sa que observo é o conceito de liberdade implícito na idéia do

rizoma

lígnes

de

fuíte ,

em oposição a um sistema que, sendo

arborescente , é portanto enraizado, fixo no solo. A condição

fundamental

de um

exílio é basicamente a

de

estar preso a uma

8 Cláudia Nina

Page 70: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 70/186

circunstância que não se pode mudar. Os mundos em que vi-

vem

Virgínia, Lucrécia e Martim (a situação estende-se às mu

lheres

da

fazenda em A maçã no escuro representam esse mode-

lo

com

clareza. As personagens apenas reproduzem - quase

que

mecanicamente

o mesmo comportamento, incapazes

de

explo-

rar as conseqüências de

uma

ruptura;

quando

rompem, fracas-

sam

pelas mais diversas razões.

Um outro aspecto importante a ser estudado é que os ro-

mances são narrados no passado e, portanto, a memória é um

elemento relevante na estrutura das mentes das personagens.

Mas

que

tipo de memória? Deleuze analisa duas memórias dife-

rentes: a memória de longo prazo, que é arborescente , e a

memória

de

curto prazo, baseada no imediato e

no

descontínuo,

na ruptura e na multiplicidade, vinculando-se portanto a siste-

mas rizomáticos .

Como observei no começo deste capítulo, as lembranças

(lembrança do paraíso perdido, saudade de um lugar distante)

são

um dos

ingredientes

que

formam o conceito

de

um exílio. O

instante-já e agora estou me referindo às palavras de Clarice

quanto

ao presente imediato de seus últimos livros,

em

Agua vi

va,

A hora da

estrela

e Um

sopro de

vida não é, definitivamente, o

tempo

de

um exilado e, nas narrativas

do silêncio,

ele também é

in

e xis tente.

Por outro lado, há um inegável sentimento de passado, de

algo

que

está para sempre

perdido

no mundo interior das per-

sonagens. Elas parecem ser governadas por uma forte sensação

de que

a possibilidade ideal

de

vida está

em

outro lugar, qual-

quer outro que não

o presente. Contudo, como estão ancoradas

em

sua própria

incapacidade

de

modificar radicalmente o esta-

do das coisas, elas permanecem presas às circunstâncias que as

envolvem e, ainda mais importante, às raízes imaginárias que as

fixam no solo

de

suas existências indisfarçavelmente nauseantes

e tediosas.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 69

Page 71: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 71/186

3.5

Palavras de sombras lustre

Um grande escritor, levado de uma língua para outra

por

insurreição social e guerra, é

um

símbolo adequa-

do à

época dos refugiados. Nenhum exílio é mais ra-

dical,

nenhum

feito de adaptação à vida nova é mais

difícil. (George Steiner,

Extraterritorial p.

11

O lustre é o segundo romance de Clarice Lispector. Foi escri-

to entre março

de

1943, Rio

de

Janeiro, e novembro

de

1944,

Nápoles, onde a autora acrescentou alguns retoques finais ao

texto. Foi publicado, todavia, apenas em 1946. Apesar

da

reação

positiva

do

público, os críticos sentiram-se

um

tanto frustrados

quando o romance foi lançado. Aparentemente, estavam espe-

rando por um livro

da mesma

linhagem

de Perto

do

coração sel-

vagem. No entanto, O lustre parecia ser bastante diferente do li-

vro de estréia

de

Clarice e jamais obteve dos críticos a

mesma

resposta positiva. De fato, a própria autora considerava-o

um

livro triste , como certa vez mencionou em

uma

entrevista.

(Varin, 1987, p. 97

Junto ao romance

A

cidade

sitiada

O

lustre

é

uma

das

obras

menos conhecidas

de

Clarice e também um dos menos comen-

tados. Também não recebeu muitas traduções.

À

época em que

foi publicado, as resenhas

não

foram tão abundantes; até hoje

ainda há

uma

nítida preferência de leitores e críticos por outros

textos

da

autora.

Dois dos artigos escritos logo após a publicação do romance,

porém,

devem

ser mencionados, posto

que

são expressões claras

da

reação geral frente ao livro. Álvaro Lins,

por

exemplo, consi-

derou O lustre incompleto. Lins ressaltou a inconsistência da

obra, considerando-a um simples jogo de palavras no ar (Sá,

1988, p. 35).

Quanto

a essa assim

chamada

fraqueza

em

ser

excessiva na linguagem, Gilda Mello e Souza assinou

uma

im-

portante resenha de O lustre. No artigo, publicado

no

jornal O

Estado de

São

Paulo

ela ressaltou o derramamento de adjetivos e

o

uso de

poesia

no

espaço

mesmo

da

prosa, o que,

segundo

a re-

senhista,

não

é

adequado à

natureza

de

uma narrativa romanes-

ca. Gilda de Mello e Souza empregou a expressão majestade

barroca (Souza, 1946) para definir o excesso de ornamentos

verbais e

de

adjetivos no texto, o que, na realidade, é uma das

7

Cláudia Nina

Page 72: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 72/186

características mais evidentes a serem analisadas neste estudo,

sob a perspectiva das narrativas

do

silêncio.

É bem verdade que O

lustre

não tem o dinamismo de Perto

do

coração selvagem principalmente porque neste último há um

uso alternado

de

perspectiva narrativa ausente

em

O

lustre

o

que torna o ritmo da leitura bastante monótono e pouco inven-

tiva. Além disso, a protagonista Virgínia

não tem

grande caris-

ma. Sua apatia face à vida diminui o dinamismo interno do tex-

to, especialmente se

comparado

a

Perto

do

coração

selvagem.

Enquanto o primeiro romance tem sido rotulado muitas ve-

zes de

um

Bildungsroman (pois Joana

gradualmente adquire

uma visão mais elevada e mais madura do mundo e de si mes-

ma, crescendo

junto

com a história), isso é impossível

de

se di-

zer a respeito de O lustre. Virgínia transforma-se ao longo

do

romance, mas ela desenvolve uma consciência cada vez mais

aguda de que

sua vida está impreterivelmente

construída

sobre

uma série de conflitos, todos eles culminando na morte trágica

em atropelamento.

Considerando-se tudo isso, é relevante se questionar aqui

por

que uma autora que

fora altamente aclamada como um es-

critora nata,

apesar de umas

poucas opiniões contrárias, teria

mudado tanto de um

romance

para

outro, assumindo uma

abordagem

literária tão diferente? Que mensagem Clarice esta-

va tentando

transmitir neste jogo

de

palavras

no

ar , como dis-

se Álvaro Lins em

sua

resenha?

Quando O

lustre

acabou de ser escrito, Clarice Lispector es-

tava

no

exílio,

morando

na

Europa em

período

de

guerra, e sua

vida

tinha se alterado consideravelmente

desde

Perto

do

coração

selvagem. Dois momentos diferentes e dois livros distintos que

jamais poderiam ser estudados em um mesmo

grupo

de textos.

Naquele instante, Clarice estava, pela primeira vez, fazendo

um livro seu

cruzar

o oceano , ficando depois à espera de al-

guma resposta da crítica. No entanto, as reações dos experts le-

variam

algum

tempo

para

retornar

à autora; a primeira resposta

das editoras foi o silêncio ou, quando pior, uma áspera recusa.

Clarice Lispector

ainda

esperaria alguns anos antes

de

ter

seu

livro publicado. Além da literatura, a autora dera início a uma

intensa correspondência

com

seus amigos brasileiros, a maioria

deles também escritores, entre eles Manuel Bandeira, Rubem

Braga, Paulo

Mendes

Campos, Lúcio Cardoso e Fernando Sabi-

no. O lustre ficou

pronto

em meio a esse processo de intercâm-

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7

Page 73: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 73/186

bio

de

palavras a distância e, paradoxalmente, de extremo silên-

cio em

sua

vida cotidiana, devido a

uma

difícil adaptação em

Nápoles naqueles sombrios anos

de

guerra, segundo explica Te-

resa Cristina Ferreira em sua biografia. (Ferreira, 1999, p. 125)

Aliás, eis

um

aspecto importante a ser observado: a conexão

entre a guerra, o exílio (mesmo que voluntário) e escritoras.

vários estudos que se concentram na investigação de cartas e di-

ários escritos por mulheres

em

tempos

de

guerra.

Em

Under-

ground lives:

women s

personal narratives , por exemplo, Mary

Anne Schofield analisa o ato de escrever como

um

meio

de

re-

gistrar os conflitos

da

vida interior e validar

uma

identidade es-

condida na vida subterrânea underground) do exílio. Ela es-

creve: Muitas mulheres escreveram cartas como

um

modo

de

triunfar sobre a alienação, pois estavam dirigindo missivas a

outros que estavam fora dali e não exilados (Schofield, 1990,

p. 126). Mary Anne observa que o diário originalmente presume

um

diálogo entre o self com

uma

audiência maior e posterior de

outros ; é um documento escrito para fugir do lugar isolado e

confinado

que

historicamente fora o lugar

das

mulheres

na

guerra. (Schofield, 1990, p. 126)

Mesmo

sendo

claramente distintos, tanto cartas

quanto

diá-

rios expressam um

modo de

construção da identidade. As cartas

que

Clarice Lispector escreveu no exterior contêm um precioso

material, semelhante a um diário, ftmdamental para quem pre-

tende desenvolver pesquisas biográficas. Elas refletem não só o

tamanho da angústia e desconsolação em face

de

sua nova vida

no exterior,

mas

também muitos aspectos sobre a guerra, a roti-

na diária e projetos referentes à literatura que se produzia na

época.

14

Em contraste com as cartas pessoais, os livros que Clari-

  e

escreveu no exterior - como qualquer outro

de

seus textos

ficcionais- não podem ser tomados como um mero reflexo au-

tobiográfico. Eles servem, entretanto, como

um

exemplo

para

mostrar o quanto a escritura pode realmente

atuar

como

um

meio de comunicação com o mundo.

O lustre não pôde ser compreendido em sua totalidade

quando

foi publicado, principalmente devido às injustas com-

parações com

Perto

do

coração selvagem

Contudo, entre muitos

A correspondência pessoal de Lispector encontra-se no Arquivo-Museu da Fun-

dação Casa de Rui Barbosa. e

parte

desse acervo pode ser pesquisada também em

Borelli, 1981, e Ferreira, 1999.

72

láudia Nina

Page 74: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 74/186

outros aspectos que ainda serão estudados, é importante obser-

var

que o romance exemplifica

uma

desesperada busca por co-

municação,

em

que a abundância de palavras está

em

perma-

nente conflito com o silêncio. A primeira cena do romance ilus-

tra a

intensidade

escondida nessa obra: a

imagem de

um

lago

cuja

água

está placidamente quieta, mas

onde um

chapéu flu-

tuando na superfície esconde o mistério de toda a história e os

segredos internos

da

silenciosa Virgínia.

3 5 1

Sociedade de solidão

É

preciso

aprender

a se movimentar

dentro do

silên-

cio e

do

tempo. (Abreu, 1996, p. 69

Como

em

Perto

do coração selvagem

o segundo romance

de

Clarice conta a história de uma mulher, desde a infância até a

maturidade. A

jornada de

Virgínia, entretanto, é totalmente di-

versa. A protagonista é descrita como uma pessoa do tipo quie-

to, imóvel,

que

vive

à

beira

das

coisas. Pequena,

magra

e frágil,

tem o hábito de escutar os sons do mundo - a voz da coruja e as

quedas d água,

o farfalhar

das

folhas e o grito do vento. Quase

não há vozes humanas na Granja Quieta, onde ela foi criada e à

qual estaria

para

sempre vinculada.

Virgínia é o inverso

de

Joana. Ela não tem contornos psico-

lógicos definidos, nem a personalidade determinada e atuante

de sua antecessora. Ela seria fluida

toda

a vida

LU,

p. 7 é a

primeira frase

do

romance. Fluida e inconsistente, Virgínia

pa-

rece sem

estofo-

  vivia apenas

um

traço esboçado sem força e

sem fim, raso e estarrecido como o vestígio de outra vida LU,

p. 26). Sendo tão fluida, ela

não

consegue encontrar

nenhum

lu-

gar sólido onde ancorar-se e nenhum destino que lhe pertença

de

fato.

Enquanto

Joana inventa poemas, Virgínia faz pequenas es-

culturas

em

argila, uma arte sem palavras. Ela molda o barro e

forma

à

terra

num

aprendizado

de

conhecimento

do

solo

onde pisa -

um

processo silencioso de descoberta do mundo,

como um estrangeiro tateando terra desconhecida pela primeira

vez.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

73

Page 75: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 75/186

O texto narra diferentes

momentos

na

busca de

Virgínia:

primeiro, a infância na fazenda junto a seus pais, avó, a irmã

Esmeralda

e o irmão, Daniel;

segundo,

na cidade, onde Virgínia,

adulta,

não

encontra

ninguém

com

quem

interagir, apesar de

algumas

tentativas

frustradas

de

se relacionar.

Em

seus longos

passeios, ela se move

sozinha

e abandonada - a sensação era a

de

ter sido abandonada enquanto

dormia

LU, p. 268). Sua bus-

ca interior fica assim

transformada

na busca por

um

lugar

onde

morar.

Saindo

da

Granja Quieta, ela vai para a cidade, mas não se

integra a lugar nenhum. Tenta morar com umas primas

num

lugar empoeirado que

tem

uma única janela, sempre fechada.

Então

muda-se de

novo,

para

um

apartamento

num

edifício

que

é uma estreita caixa de cimento úmido LU, p. 149), onde ela

se encontra

mais

só do que nunca -   um

período

muito triste e

sem palavras, sem amigos, sem ninguém com queiT' irocar

compreensões

rápidas

e amáveis. LU, p. 149). O terceiro mo-

mento acontece quando ela volta à fazenda,

na esperança

de en-

contrar algum

tipo

de

felicidade jamais

abarcada

anteriormente.

No entanto, quando retorna, é atropelada, enmntrando em vez

disso a morte.

De fato, quase todas as obras de Lispector são basicamente a

história

de

alguém em busca

de

algo. Uma

busca

interior, exis-

tencial.

Em

O lustre essa

procura

cobre-se

de

apatia, uma

vez

que

a personagem não assume controle sobre a realidade. Ela

sente a

náusea-

  Sentia

uma

difusa

náusea

nos

nervos

calmos

LU, p. 14) e o desconforto

de

viver, mas não tem força suficien-

te

para

modificar

alguma

coisa. A

sondagem

de

uma

realidade

além de si mesma fica por conta do narrador, que, na terceira

pessoa, comanda a investigação do mundo ao redor.

A palavra náusea ,

tantas

vezes citada no texto, leva a uma

consideração sobre a náusea de Sartre, para que se estabeleça

uma breve comparação. Em La nausée (1938), o

narrador

é An-

toine Roquetin,

um

historiador que se vê

obrigado

a morar, por

três anos,

num

vilarejo, Bouville, para escrever

uma

biografia.

Por

estar solitário,

entediado

e isolado, resolve escrever

um

diá-

rio sobre os incidentes insignificantes

de sua

monótona

vida

co-

tidiana. Por meio da escrita, Roquetin descobre uma forma de

investigar as razões de seu desconforto. O ato de escrever ter-

mina sendo um ato em direção à liberdade. Roquetin descobre

o ato de escrever como aquele

que

liberta o

homem

do sistema

7 4

láudia Nina

Page 76: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 76/186

que o aprisiona [ ] Desiste de escrever a biografia do marquês

para,

no

espaço livre

da

criação, tentar a

escrita

do indizível .

(Coelho, 1993, p. 181)

Entretanto, se Roquetin pôde encontrar seu lugar

na

escri-

ta

écriture),

onde

ele insere a voz

do

eu apesar

do

desconfor-

to, Virgínia está totalmente deslocada e não consegue encontrar-

se a si mesma,

nem mesmo em seu mundo interior. Ela é prisio-

neira das palavras que não têm. Como escreve Nadia Gotlib, a

protagonista parece viver sob o signo

da

estranheza

em

seu difí-

cil processo de tornar-se alguém. (Gotlib, 1995, p. 125)

Na verdade Virgínia incorpora o sentimento

de

nostalgia

por

excelência. Esse sentimento, contudo, é paradoxal: em sua

estrutura

interior está o desejo

de

voltar ao paraíso

perdido

- o

passado idealizado - em busca de vínculos partidos. Apesar

disso, sabe que o retorno é impossível. Ela está ao mesmo tempo

aqui e lá, quase

nunca aqui

e lá, presente e ausente ao

mesmo

tempo. O

passado

é feito de algumas lembranças débeis e não

futuro pela frente. Trancada

em um

presente nauseante, o

sentimento que Virgínia experimenta é inteiramente nostálgico.

É

importante observar o paradoxo com relação às lembran-

ças

de

Virgínia, que, como o texto diz, são confusas, nebulosas e

um

tanto quanto empoeiradas , ou melhor, elas não afloram

com facilidade à mente da

mulher sem

um grande esforço de

memória. Por outro lado, essas lembranças de longo prazo são

sutilmente

poderosas

e dominadoras, na medida em que Virgí-

nia não consegue viver no presente sem estar vinculada ao pas-

sado,

representado pela infância vivida na Granja Quieta.

3.5.2

Laços desfeitos

Tudo era tão irremediável, e ela vivia tão segregada.

LU, p

19)

Quando

Virgínia volta à Granja Quieta - o passado enterra-

do-

ela

passa

por

uma

experiência similar à

de

um

expatriado

de volta a seu país de origem após

um

longo período de ausên-

cia e que,

por isso,

não

mais encontra

suas

referências anterio-

res. Essa experiência faz surgir

um

forte sentimento de estran-

geiridade

bastante difícil

de

se lidar. O búlgaro Tzvetan Todo-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 75

Page 77: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 77/186

rov analisa em

homme

dépaysé uma condição similar. Reflete

sobre sua

própria

situação de viver como estrangeiro em duas

realidades culturais diferentes, dividido

em

duas

personagens

le

personnage

bulgaire e le personnage français , como ele

mesmo

coloca (Todorov, 1996, p. 17).

Todorov explica

que

a circunstância

de retornar

à pátria pa

ra

seu

trabalho subitamente fez emergir o sentimento de estar

dividido

em

uma

dupla espécie de existência e de pertença. Ele

se viu incapaz de decidir sobre que língua

usar

e que tipo de

discurso deveria

produzir uma

vez de volta a Sófia.

Minha

dupla

pertença

produzia

tão-somente

um

resultado: aos

meus próprios olhos, ela imprimia autenticidade a cada

um

de

meus dois discursos, pois

nenhum

dos dois poderia corresponder

senão

à metade

de

meu

ser; ou

bem eu

era duplo.

Uma

vez mais,

trancava-me

no

silêncio opressivo. [

..

] A fala dupla revelava-se

mais

uma

vez impossível, e encontrava-me

eu

dividido

:: duas

metades, as

duas

igualmente irreais. [

..

]

Se

perco

meu

lugar de

enunciação, não posso mais falar. Não falo, logo

não

existo. (Todo-

rov, 1996, p. 18

Inserido

por

longo

tempo

em uma

outra

realidade lingüísti-

ca, Todorov fala da dificuldade em superar o repentino movi-

mento de retorno às suas origens - A lição desse retorno ao pa-

ís natal, dezoito anos após a partida, impôs-se

pouco

a pouco a

mim. A coexistência de duas vozes torna-se uma ameaça, con-

duzindo

à esquizofrenia social . (Todorov, 1996, p.

20

Do mesmo modo, este é um dos dilemas cruciais na vida de

Virgínia,

uma

vez que ela

quer

voltar para Granja Quieta após a

experiência

na

cidade

grande

(que é

de

fato

um

outro país ),

mas

descobre que é difícil viver de

novo

em uma realidade que

não mais lhe pertence. A linguagem é

parte do

problema. En-

quanto

o discurso predominante

na

fazenda é o silêncio, a lin-

guagem da cidade (considerando-se

que

todo grupo social tem

seu próprio código lingüístico) também está fora de seu alcance.

Aqueles com quem ela

pouco

tenta interagir

vêem

Virgínia co-

mo uma pessoa periférica e

relativamente

desinteressante. O

episódio

do

jantar entre meio estranhos é

um

momento

im-

portante e ilustrativo dessa inadequação da protagonista ao

mundo a seu redor: Ela não precisava falar muito, fora convi-

dada apenas

em

razão de Vicente. Ninguém esperava de seu

7

Cláudia Nina

Page 78: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 78/186

corpo senão que ele comesse discretamente

usando

o guarda-

napo

, sorrindo . LU, p. 105)

O drama

de

Virgínia é ainda mais

agudo

que o

de

Todorov.

O escritor búlgaro encontrou, de fato, seu lugar em Paris, ao

passo

que

Virgínia

não

consegue encontrar

sua própria

identi-

dade na cidade grande ou em quaisquer outras paragens. A me-

táfora

do

lugar é, mais

uma

vez, relevante.

Na

fazenda, os apo-

sentos são vazios, pálidos , enquanto o próprio quarto

de

Vir-

gínia é frio, leve e quadrado, possuía apenas

uma

cama LU,

p. 13). As janelas não têm cortinas, um silêncio feito

de

murmú-

rios reveste tudo.

Na

cidade, locais poeirentos, escuros, tristes e

estranhos por onde Virgínia movimenta-se com vagar são recor-

rentes. Alguns lugares são até mesmo claustrofóbicos, feitos

de

quartos com cheiro

de

túnel

LU,

p. 172), e alguns outros estão

em ruínas, quase desabando. LU, p. 144)

Desta forma, Virgínia não é

de

lugar nenhum - nem no es-

paço

nem no

tempo. Ela vive como uma expatriada perdida,

deslocada, perambulando, ruminando em vagas recordações,

já que as cenas esparsas do passado são recuperadas apenas

com muito esforço para reconstruir a infância esquecida com a

ajuda da memória do lugar, morar

na

Granja onde tivera os seus

maiores instantes, [ ..] reconquistar, reconquistar, reconquis-

tar .

LU,

p. 311)

Como observa Earl Fitz, Virgínia movimenta-se em um

ambiente urbano estéril e alienígena (Fitz, 1985, p. 73 e jamais

fica satisfeita, não importa aonde vá - Se as personagens que

ela encontra nesses lugares têm existências tranqüilas, é a tran-

qüilidade

da

solidão,

do

isolamento e

da

estagnação; e, se as

pessoas

da

cidade possuem dinamismo, é

do

tipo estéril, desen-

raizado e sem porto (Fitz, 1985, p. 73 .

A situação que Virgínia experimenta é

bem

representativa

do assim chamado mundo moderno, especialmente

das

cidades

grandes,

onde

todos parecem ser estranhos para todos, e tam-

bém

de um

mundo onde

o fluxo de pessoas

que

vivem como

expatriadas é cada vez mais intenso. Contudo, não é só isso. Em

Mother, displacement

and

language , Bella Brodzki examina o

conceito de estranheza e deslocamento mediante

uma

outra

perspectiva: a

abordagem

feminista. (Brodzki, 1988, p. 157)

Analisando o exercício de escrever autobiografias, ela afir-

ma

que

o ato

de

apropriar-se por meio das palavras vem, de

longa data, sendo

um

privilégio dos homens. E ir além

da

do-

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 77

Page 79: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 79/186

rninância falocêntrica significa ser capaz

de

fazer diferença e as-

sumir

o poder

da

transgressão.

Os modernistas (em geral) e os pós-modernistas (em particular)

empregaram a metáfora do deslocamento

para

referir-se à condi-

ção

humana

(em geral) e à prática diacrítica e

vanguardista

(em

particular); as teorias feministas devem empurrar a prática diacrí-

tica um passo à frente e deslocar continuadamente a mulher co-

mo

metáfora

para

o deslocamento ou despojar o movimento da

energia que a gera e

do

contexto que a molda especificamente.

(Brodzki, 1988, p. 157)

Brodzki aproxima o deslocamento feminista

da

situação de

orfandade. No ensaio acima mencionado, baseado em Childhood

de Nathalie Serraute e em Patterns o

childhood de

Christa Wolf,

ela avalia a relação entre deslocamento e linguagem. O estudo

sugere que a briga interna da protagonista nas obras investiga-

das

faz-se representar por sua inabilidade lingüística,

ou

me-

lhor, pelas instabilidade e desorientação relacionadas à orfan-

dade, em particular a falta

da

mãe. Corno escreve Brodzki: En-

quanto primeiro Outro significativo

da

criança, a mãe engendra

subjetivamente através

da

linguagem; ela é a primeira fonte

de

fala e de amor [ ] Ficar exilado do continente materno é ficar

para sempre sujeito às regras de urna economia estrangeira

para

a qual o sujeito também serve

de

canal

de

troca . (Brodzki, 1988,

p 157)

Sendo assim, mulheres órfãs têm de

superar

a solidão e a

perda a fim

de

recuperar esse primeiro objeto - a mãe - que se

encontra ausente. De

modo

semelhante, até

um

certo ponto, a

escassez

de

palavras

de

Virgínia está

de algum

modo

associada

a um senso

de

deslocamento, bem corno à falta

de

laços mais

coesos

de

família. Virgínia sente-se muito separada de suas ori-

gens,

não

só quando ela de fato deixa

sua

casa,

mas

também

na

Granja Quieta,

onde

não há conexão emocional ou verbal entre

os

membros

da família.

Virgínia - sem qualquer ligação familiar forte - é segregada

corno urna órfã. O

pai

é visto corno um homem calado, autoritá-

rio e ignorado,

enquanto

a mãe é descrita corno: Preguiçosa,

cansada e vaga LU, p. 19). Os únicos momentos que poderiam

ter suscitado urna interação são as refeições diárias à mesa, mas

essa é urna arena silenciosa, onde hostilidade e indiferença pre-

valecem. Não conseguindo estabelecer novas ligações sólidas e

8

Cláudia Nina

Page 80: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 80/186

incapaz de empreender a busca por suas origens, Virgínia en-

contra-se para sempre deslocada. A palavra fluida, que literal-

mente significa líquida, fluente, corrente, está implícita no texto

de

modo

negativo, para descrever a incapacidade de a protago-

nista assumir o controle

de

sua

vida,

de

ter o

comando

ativo

de

sua

biografia. Como diz o texto: As coisas fugiam dela brilhan-

do a distância . LU, p. 111)

3.5.3

A voz do outro

A lembrança chegava desmaiada e fria

da

história

que

eu

poderia ter contado, uma história

à

semelhança de

minha

vida, quero dizer,

sem

a coragem de terminar

ou a força

para

continuar. (Beckett, The end p. 93)

As recordações estão matando, por isso você não po-

de

pensar

em certas coisas. [ . .] (Beckett, The expelled

p. 193)

De

modo

algum

O

lustre

pode

ser lido como

um

romance

autobiográfico. Ainda assim, ele contém, de fato, o projeto de

uma escritura de vida: a biografia de Virgínia. Um narrador dis-

tante e desapegado (o biógrafo) conta a história da mulher na

terceira pessoa. Ele

ou

ela

a

voz do/a

narrador/a

permanece

não identificada) traça a jornada existencial da personagem em

ordem

cronológica, seguindo

sua

trajetória de deslocamento,

enquanto a protagonista é incapaz de articular seus próprios

pensamentos, e

suas

frágeis idéias

podem

facilmente desfazer-se

num sopro. Frases como Virgínia

pensava

sem palavras

LU,

p. 47) são recorrentes ao longo do romance.

Incapaz

de obter o

comando

da subjetividade, a protagonis-

ta não consegue articular seu desejo. Desejar significa querer

muito

ter algo

ou

fazer algo, inclusive o desejo

de

falar e intera-

gir verbalmente. Virgínia não tem

nada

disso. Uma comparação

com Macabéa,

de

hora da

estrela

é inevitável. Macabéa tam-

bém

é calada e

não

possui

o talento,

ou

mesmo

a coragem,

de

inventar a vida

ou

a linguagem.

É uma

mulher analfabeta, po-

bre e primitiva. Palavras e pensamentos não fazem parte de seu

mundo

interior - vazio e vago

-

e

sua

história tem um fim trá-

gico, assim como acontece à personagem de O lustre. Apesar

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 79

Page 81: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 81/186

disso, há

um

certo mistério no vazio de Virgínia. A

sua

existên-

cia é cercada pelo enigma do relacionamento com Daniel e pelo

tempo em que morava na Granja Quieta.

Em O lustre não há espaço para

um

eu . Em contraste

com

A

hora

da

estrela

o

narrador

não

vem para

o primeiro plano, não

se mostra na primeira pessoa. Presença anônima, tem a voz

da

autoridade e descreve

de modo

autoconsciente a existência soli-

tária

da

protagonista sem se envolver emocionalmente em seu

drama. E o

narrador

que lê a mente

de

Virgínia a distância.

Mas que tipo

de

distância é essa? Existe

uma

variação de distân-

cias entre narradores e personagens. A distância pode ser moral,

temporal ou intelectual, não importando o quão dramatizado

(ou desdramatizado ) seja o narrador. (Booth, 1996, p. 150)

O uso

da

terceira pessoa em O lustre pode erroneamente

conduzir os leitores a pensar

que

uma

distância física entre

narrador

e personagens. Entretanto, não é esse o caso. Princi-

palmente porque o narrador entra na mente da protagonista de

modo quase sufocante. O

narrador

também age como

um

foca-

lizador , registrando imagens em

dose

up das cenas. Há

inúme-

ras frases que revelam a proximidade física do narrador-

focalizador

com

as personagens, a ponto de ele

poder

observar

detalhes como o sangue correndo

em

suas veias, o colorido

de

suas faces, o movimento

de

suas pálpebras.

Na

verdade, há dois elementos diferentes: o

narrador, que

pertence à instância do escrever, explica

por que

certas coisas

acontecem e fornece

uma

interpretação consistente dos aconte-

cimentos, e o focalizador , que conduz os leitores àquilo que

eles

devem

ver. Também é um espectador do

mundo

narrado

quem seleciona as ações e escolhe o melhor ângulo por onde

apresentá-las (Bal, 1977, p. 32). Seja de que modo for, essas

duas entidades atuam em uníssono

e,

como em O

lustre

traba-

lham de

maneira invisível e anônima.

Assim, se não é física, a distância entre

narrador

e persona-

gens é, certamente, intelectual. Virgínia é descrita como alguém

que não tem a capacidade de pensar

usando

palavras LU, p.

174).

Nos

raros

momentos

em

que

um

frágil eu aparece, ele

está imerso, e quase imperceptível, no fluxo da narração. As pa-

lavras do texto o excesso

de

palavras) só poderiam ter vindo

da

única

mente

capaz de pensar e expressar pensamentos fazendo

uso das palavras- o narrador.

80 láudia Nina

Page 82: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 82/186

Enquanto esse narrador permanece não identificado e inte-

lectualmente distante, também

uma enorme falta de comuni-

cabilidade entre as personagens. Os poucos diálogos são como

balões vazios - O silêncio crescia entre ambos como um balão

vazio

que

se enchesse cada vez mais perigosamente

de ar

e es-

tranhamente não

poderia ser interrompido, cada

palavra

esbo-

çada morria vaga diante

de

sua força LU, p. 166). Vivendo

num mundo

de

estranhos, elas não parecem falar a mesma lín-

gua. Na Granja Quieta, por exemplo, todos vivem dentro

de

seu

próprio mundo pequeno e sombrio, e o silêncio misteriosamen-

te cerca a mansão, como mencionei anteriormente-   Grande si-

lêncio envolvia a casa, sussurrava pelos cantos como num dia

de

domingo .

LU,

p. 80

Imersos nessa atmosfera obscura, assemelham-se a sombras,

mais do

que

a personagens vestidas

em

contornos formais. Da-

niel, o irmão, por exemplo, por quem Virgínia nutre sentimen-

tos ambíguos

de amor

e medo, é bastante enigmático. Ele é o

fundador

da

Sociedade das Sombras, que se baseia no mote so-

lidão e verdade . A idéia

de

se criar Sociedade aparece

em

fun-

ção

do

impacto

da

cena

que

eles

testemunham

no

início

do

ro-

mance -

um

afogamento não identificado

no

rio.

A Sociedade é uma entidade abstrata com

mandamentos

e

regras absurdos. Seus objetivos são soturnos e indefinidos: pro-

curar

por tudo

que

possa amedrontar,

ou

melhor,

por

algo que

seja capaz

de

inspirar o sentimento

de

solidão, algo como passar

muito tempo em profundo isolamento

no

sótão ou explorando a

mata ao redor do casarão até não conseguir mais suportar ore-

torno solitário. E isso era como se ambos estivessem sós

no

mundo. Como era assustador e secreto pertencer à Sociedade

das Sombras . LU, p. 66

A avó é o símbolo vivo dessa quietude: ela não fala, não sor-

r e quase não olha para nada como se ali estivesse tão-somente

para viver . O

lustre-

também uma personagem calada-

preso ao teto

da

mansão, funciona como se fosse a lente de uma

câmera, rodando

um

filme sombrio (uma espécie

de

focaliza-

dor

dentro

da

história). Parece

capturar

os mínimos e

mudos

movimentos

das

personagens,

derramando

sobre eles pálidos

reflexos de luz e sombra. Comparado com uma aranha gigante,

caçando a sala

de

jantar vazia

em sua

existência

de

gelo

LU,

p. 14), o lustre é o emblema da velha e enigmática casa. Simboli-

camente, representa a idéia

do passado e

de

todas as histórias -

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 8

Page 83: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 83/186

e segredos - possíveis e nele contidos. Como o farol no romance

de Woolf, o lustre na sala de jantar do casarão, como salienta

Earl Fitz, funciona como

um motif

estrutural que amarra os la-

ços dos temas e conflitos centrais

de

todo o romance . (Fitz,

1985)

Alguns dos padrões tradicionais e canônicos de

um

roman-

ce estão mais ou menos presentes em O lustre. Há um enredo,

uma história cronológica, um espaço delimitado, uma perspec-

tiva

dominante

e personagens. Também existe uma trajetória

circular centrada num ponto: o centro narrativo está bem defi-

nido pelo casarão da Granja Quieta. A protagonista tem cons-

ciência de que sua existência está ancorada a

um

centro de co-

mando:

Como buscar

no

centro

das

coisas a alegria? Por mais

que nalguma vez remota e quase inventada a tivesse encontrado

e vivido

nesse próprio

centro (LU, p. 245, grifo meu).

É

ao

redor

dele que circunavega Virgínia, é a partir dele

que

ela dá início à

sua jornada, é para ele que ela retoma ao fim, na esperança de

recuperar o encantamento, ou qualquer coisa

que

o valha, de

sua infância perdida. As margens do início do romance o pas-

sado perdido e seu desfecho o futuro impossível) estão entre-

laçados na medida

em

que O

lustr

abre com

um

afogamento e

termina com

o atropelamento de Virgínia.

A idéia de

um

mundo narrativo denso, fechado em suas ex-

tremidades pela morte, é paradoxal em relação

à

fluidez das

personagens imersas em inconsistência psicológica. O derra-

mamento das palavras também está em flagrante contraste com

o silêncio

que

envolve os lugares e

com

a resposta

das

persona-

gens

à

vida. Por todas essas características particulares, O

lustr

não

pode ser analisado

apenas

em comparação com o

que

foi

publicado antes ou depois. De qualquer modo, é inegável que

os dois romances que se seguiram dividem com este

segundo

muitos de seus traços essenciais. Eles abrangem

em

seus mun-

dos narrativos a mesma falta de interação entre personagens, o

mesmo escurecimento mudo e pesado das cenas e, acima de tu-

do, o

mesmo

tipo de restrição exílica

que amarra

as existências

de

suas

personagens a

um

mundo

narrativo paralisante.

82

láudia Nina

Page 84: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 84/186

3.6

Teatro de pantomima cidade sitiada

Depois de tudo, é bem aí que estou, refugiado

em

um

deserto

de

pedras,

de

brumas

e

de

águas podres, pro-

feta vazio de tempos medíocres. [ ..] Ah Meu amigo,

o senhor sabe o que é a criatura solitária, errante nas

grandes cidades? (Albert Camus, La

chute

p. 123)

O terceiro romance de Clarice Lispector,

A

cidade

sitiada

pu

blicado em 1949, foi inteiramente escrito

em

Berna, Suíça. É

um

dos lados do triângulo que representa o que defino como as nar-

rativas do silêncio e

de

certo modo, é o mais "silenciado" deles.

Esse

pequeno

livro, segtmdo a própria autora, fora-lhe o

mais difícil

de

escrever - "Eu estava

em

busca

de

algo, e

não

ha-

via ninguém para

me

dizer o que era" (Varin, 1987, p. 99), con-

fessou

em

uma entrevista. De fato, Clarice era

muito

grata ao

romance, pois o ato de escrevê-lo manteve-a ocupada nos mo-

nótonos dias de Berna. (DM, p. 286)

Ambientada na década

de

20

a história desenha a trajetória

circular de Lucrécia Neves

desde

os anos em

que

vivia num su-

búrbio

chamado

São Geraldo até o momento

em que

se

muda

para a metrópole

e

depois, retoma a São Geraldo. No começo,

Lucrécia está esperando por alguém um marido capaz

de

ti-

rá-la

da

vila e levá-la para as surpresas da grande cidade. No

fim, após a

morte do

marido, a

mulher retoma

ao subúrbio, en-

tão significativamente modernizado. Entretanto, no "novo" São

Geraldo, ela permanece

sendo

a mesma estrangeira de sempre.

Incapaz de se encaixar em lugar algum.

Apesar

da

evolução íntima da personagem ao longo

da

his-

tória, e do progresso do próprio subúrbio, Lucrécia não conse-

gue

mudar

sua atitude passiva, que é de permanente expectati-

va. Ela decide sair dali, a exemplo

de

muitos outros

que também

haviam saído, esvaziando o subúrbio, cada vez mais desertado,

mas seus movimentos são inevitavelmente vinculados à possibi-

lidade, embora vaga e sem alegria. de encontrar alguém talvez

um

outro

marido

- capaz

de

quebrar novamente a monotonia

de seus dias.

A simplicidade

da

história reflete-se na linearidade da nar-

rativa, que em nenhum momento oferece o mesmo dinamismo

de Perto

do coração selvagem

ou

sequer o

derramamen

to

de

pala

vras que é a marca

de

O lustre O romance, muito conciso -

A palavra usurpada exí lio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

83

Page 85: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 85/186

aproximadamente

160

páginas na versão original em português

- dá a impressão de que o fluxo da escrita é um tanto seco.

Clarice Lispector experimenta o exercício de escrever menos,

usando

frases mais curtas e menos poéticas. O contraste com os

romances anteriores é realmente marcante, e isso explica,

em

parte,

por

que alguns críticos consideraram cidade sitiada um

livro tão singular. A técnica aplicada ao romance não era típica

do estilo

da

autora, especialmente no que toca à aridez da nar-

rativa, na verdade a característica mais flagrante

da

obra.

Desde sua primeira edição, os críticos brasileiros receberam

o romance com

um

certo tom

de

descontentamento. Sergio Mil-

liet,

por

exemplo, que fora um dos primeiros a aplaudir a estréia

de

Clarice Lispector, foi

também

um

dos primeiros a tecer co-

mentários negativos sobre cidade

sitiada

logo após o lança-

mento. Milliet achou que cidade sitiada não era um romance

agradável, e considerou-o um romance estranho . Todavia,

presumiu que a autora não perdera a espontaneidade e talento

poéticos, e sugeriu que talvez fosse melhor Clarice escrever po-

emas em vez de romances (Milliet, 1981, p. 33). Luiz Costa Lima

também reagiu contra a obra,

argumentando

que a autora esta-

va atribuindo grandes

idéias e abstrações a personagens insigni-

ficantes demais

para

lidar com elas. Costa Lima sugeriu que a

então romancista seria talvez melhor contista (Lima, 1970, p.

449).

Por outro lado, alguns críticos consideraram cidade

sitiada

um passo à frente na carreira

da

autora. Um deles foi Assis Bra-

sil,

que

considerou a obra muito bem realizada

em

termos de es-

trutura (Brasil, 1969, p. 64 . Seus artigos sobre Clarice Lispector

foram publicados no

Jornal

do

Brasil

em uma

série intitulada O

mundo subjetivo de Clarice Lispector , em 1960. Ele salienta

nessa série

sua

impressão positiva do estilo poético da autora e

vê cidade sitiada como

um

ponto

de

virada, devido às suas

qualidades peculiares que,

de

acordo com ele, seriam responsá-

veis pelo posterior desenvolvimento de

paixão

segundo

G.H.

A partir

de

1965, as abordagens filosóficas de Benedito

Nu

nes aos textos de Clarice Lispector exploraram a erudição

da

au-

tora

em

um

nível mais existencial.

Nunes

analisa

cidade

sitiada

em seus traços alegóricos, encontrando no romance

uma

corres-

pondência

direta entre o comportamento da protagonista e a

paisagem em

um

processo de representação e pantomima: Ma-

quinais nos sentimentos e cercados de coisas rígidas, os perso-

8

Cláudia Nina

Page 86: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 86/186

nagens desse

romance

aparecem

como fantoches numa atmosfe-

ra de

sonho. A

pantomima

substitui os gestos, a

pose

suprime

a

atitude, a caricatura o retrato. (Nunes, 1974, p. 20)

Olga

de Sá

apresenta um outro ponto

de vista interessante,

paralelo

à leitura

de

Nunes.

Ela ressalta o aspecto sitiado

da

narrativa:

Existe uma história,

uma

trama, e,

dentro

dela, São

Geraldo

é a cidade sitiada pelo progresso. Mas há

um subtexto

latente, no

qual

a

cidade

sitiada é o

próprio

texto, a

própria écri-

ture

de Clarice Lispector (Sá, 1983a, p. 51). Esse traço é verda-

deiramente

uma das características

mais

fascinantes do

roman-

ce,

que

se analisa

no presente trabalho

sob a

perspectiva doses-

critos

do exílio.

Mais

recentemente, a

obra de

Regina Pontieri (1999),

Clarice

Lispector:

uma

poética do olhar contém uma análise

competente

e

abrangente

de

A

cidade

sitiada.

Ela enfoca o exercício de espiar

e

olhar

para a realidade como a principal

atividade

no

roman-

ce,

incluindo um estudo

precioso acerca do espaço. O

trabalho

de Regina Pontieri é

uma

fonte

importante

de informações, um

guia

necessário

para um entendimento

da

obra

de Clarice e,

particularmente, no que toca a esse curioso terceiro romance.

Como

O

lustre

cidade

sitiada

ainda não

teve traduções,

pe-

lo

menos não tantas como

merecia.

Além

disso, a

maioria dos

críticos parece não posicionar o

romance

no

mesmo ranking

das

demais

obras,

furtando-se

de analisar o

romance em maior pro-

fundidade ou em maiores detalhes. De fato, de todas as obras de

Clarice Lispector, as

mais lidas

e as

mais estudadas continuam

sendo as antologias de contos, o romance Perto

do

coração selva-

gem ou mesmo

as obras tardias:

Agua viva

e

A hora

da

estrela.

De qualquer

modo, isso não significa

que

A

cidade

sitiada

te-

nha pouco

a

oferecer. Na verdade,

é

um romance

bastante

enigmático, cujas melhores características estão em perfeita

harmonia

com

o

tema aqui proposto, estando

em concordância

com

o perfil

das narrativas do silêncio.

Até certo

ponto, dentre

to-

das as

obras de Clarice Lispector, esse romance é o

que melhor

moldura

o retrato do exilado.

Com

certeza,

não

é a

mais

filo-

sófica, na medida em

que

A

maçã no

escuro é a mais complexa

de

todas as que pertencem

a esse

grupo, mas

cidade

sitiada

apre-

senta muitos

itens

importantes

relacionados

ao

tema do exílio,

que merecem uma cuidadosa

leitura.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 85

Page 87: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 87/186

3.6.1

Em estado de sítio: personagens narrativa espaço e tempo

E se

um

pássaro enlouquecido cantasse? Esperança

inútil. O canto

apenas

atravessaria como

uma

leve

flauta o silêncio.

OEN,

p. 96)

Se ao menos a moça estivesse fora de seus muros. (CS,

p.

62)

Dividida

em 12

capítulos, cid de siti d traz

um

mundo

narrativo bem organizado. Parece haver uma busca por ordem,

implícita no

modo

como tudo está exposto aos olhos

dos

leitores

desde o início. O romance abre com o relógio da igreja: são 11

horas.

Primeiro quadro.

A

seguir

mostra

o

espaço onde

a

ação se realiza: a praça, o centro do subúrbio onde o povo está

reunido para

uma

festividade local. Segundo quadro. A seguir,

os protagonistas Felipe e Lucrécia, no meio do cenário festivo.

Embora não haja uma cronologia marcando o tempo exter-

no, nenhum elemento está fora

de

ordem, e todos parecem estar

bem localizados dentro de

um

território narrativo minuciosa-

mente descrito. O último

quadro de

São Geraldo aparece em

contraste com o primeiro, pois mostra a cidade deserta, trans-

formada pelo progresso, onde

uns

poucos e últimos habitantes

estão morando solitários (CS, p. 169). Assim, um álbum

de

re-

tratos forma a estrutura do romance, que não é

animado por

nenhum grande movimento

das

personagens, que por sua vez

assemelham-se mais a estátuas ou a objetos.

Em

uma ordem tão quieta, a narrativa não oferece nenhuma

surpresa,

nenhuma

epifania e

nenhum

fluxo

de

palavras ver-

tendo

como água. Não é

um

mtmdo multidimensional com

personagens crescendo e se transformando gradualmente em

todas as direções. Inserida nesse universo, a personalidade

de

Lucrécia reflete o tom da narrativa: ela é incapaz de epifanias,

sejam essas visuais

ou

verbais. Ela interage com a vida obser-

vando a

realidade-

sem tocá-la nem senti-la: E não havia

outro

modo de conhecer o

subúrbio;

S.

Geraldo era

explorável ape-

nas pelo olhar .

(CS,

p. 20). A cena paralisada é perfeita. São Ge-

raldo é como

uma

paisagem em

uma

fotografia, para sempre

imutável: Não havia erro possível - tudo o que existia era per-

feito-

as coisas só começavam a existir quando perfeitas

(CS,

p. 87). Realmente, o mundo

narrado

apresenta uma situação ge-

86

Cláudia Nina

Page 88: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 88/186

ral de paralisia, urna espécie de "estado de sítio". (Pontieri, 1999,

p. 150)

Numa

cidade de estátuas, onde as pessoas dificilmente

agem - e interagern - Lucrécia está privada de

um

discurso bem

articulado-   sempre de costas para

alguma

coisa" CS, p. 30), a

moça parecia estar entregue ao próprio rumor sem linguagem"

CS, 30). Ao contrário de Joana, ela não tem "as futilidades da

imaginação" CS, p. 84). O olhar de Lucrécia não transcende na-

da

e tampouco subverte qualquer conceito. Ela é tão-somente

alguém olhando, em eterna imobilização, embora de algum

modo

alimente a ilusão

de

ser capaz de modificar a realidade

apenas lançando um olhar sobre ela, em vez de manipulando

ou

criando

alguma

coisa.

Executando um exercício de "pantomima", corno fica implí-

cito no texto CS, p. 68), Lucrécia gasta grande parte de seu

tempo

imitando os objetos à sua volta - a flor, a estátua e a ca-

deira

-,

incapaz de ir além desse nível contemplativo de comu-

nicação com o

mundo.

Em vários momentos do texto, os verbos associados a "ver",

"olhar", "mirar", "contemplar"

são substituídos pelo verbo "es-

piar". Isso é

muito

relevante

na medida

em

que

caracteriza urna

certa maneira "clandestina"

de

olhar a realidade,

observando

os

fatos a distância, um pouco misteriosamente, sem se envolver

com eles. "Espiando. Porque alguma coisa

não

existiria senão

sob intensa atenção [ ..]

Eram

coisas intransforrnáveis " CS, p.

89). Essa "intensa atenção", entretanto, não significa nada mais

que

urna atividade de lançar o olhar sobre as coisas e observá-

las passivamente. É dessa maneira que ela espera, muito vaga-

mente, interferir

na

vida

de

São Geraldo, corno se o mero exercí-

cio de espiar

pudesse

alterar o movimento dos objetos

ou

o des-

tino

das

pessoas.

Vivendo

à

margem das palavras, ela ensaia debilmente o

processo de norninação. "Faltava a Lucrécia o

nome

das coisas"

CS, p. 41). De certo modo, sua incapacidade de ir além daquilo

que se vê pode ser lida corno urna espécie de "anti-epifania".

Comparando esse vazio de inspiração e criatividade com Perto

do

coração

selvagem

Olga

de

Sá escreve:

São Geraldo é

seu

texto como os cavalos presos às carroças; é um

morro

de pasto, onde se

perde

o

nome

das coisas e se torna impos-

sível designá-las, apontá-las

com

o dedo.

Um

texto,

em que

os

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 8

Page 89: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 89/186

símbolos da escritura clariceana são caricaturados e até os cavalos,

plenos

de

vida em Perto do

coração selvagem

enxergam de

lado,

de

viés. (Sá, 1983a, p. 58)

Nesse mundo pictórico

de

silêncio, mecanicamente marcado

pelo relógio

badalando

as horas, Lucrécia é

uma mulher

sitia-

da . Ela

não

nos é apresentada como o sujeito de

sua

própria

história, mas,

em

vez disso, como o objeto narrado. Mal escuta-

mos

sua voz. - [

..

] se precisasse urgentemente chamar,

não

poderia; perdera enfim o dom da fala

CS,

p. 68).

Marcada

por

uma extrema quietude, Lucrécia tem poucas chances de escapar

dessa

realidade muda. Como escreve Maria Terezinha Martins,

a atitude no narrador

em

relação às personagens deve ser exa-

minada

com

atenção,

porque

ele funciona como o

dono

da

pa-

lavra, destruindo ,

por

assim dizer, consciências e vozes indi-

viduais. A voz narrativa nutre

uma

certa benevolência por

suas

personagens;

trata-as como crianças que não

dominam

ainda a linguagem (Martins,

1988,

p.

80).

Maria Terezinha ob-

serva o aspecto de experimentação desse romance, em termos

de procedimento narrativo, e ressalta que uma atitude de total

controle e vigilância semelhante também pode ser observada

em

O

lustre

em

que

as personagens

não

são o sujeito

de suas

próprias

histórias.

Dominada pelo narrador, Lucrécia é uma estrangeira no

mundo onde habita e com o qual não interage - Seu medo era

o de

ultrapassar

o

que

via CS, p. 89)- como

uma

exilada, cer-

cada de muros por todos os lados. O narrador, por sua vez,

também

representa o papel do estrangeiro: o mundo narrado

parece estranho ao seu olhar. Como observa Regina Pontieri, o

experimento

de

estranhamento

é incorporado pelo

narrador

na

base do processo ficcional, e essa é uma das razões

por

que o

mundo construído

também

apresenta-se estranho. (Pontieri,

1999, p. 170)

Enquanto

em O lustre existe uma frágil possibilidade de re-

cordação na tentativa de lançar Virgínia de volta a seu tempo de

infância,

em A

cidade

sitiada

pelo contrário, as personagens estão

presas

num

eterno presente: tempo e espaço estão em perfeita

harmonia

com

uma narrativa

sob cerco. O

ar

sufoca a protago-

nista

em

lugares vazios e para sempre fechados. Lucrécia sente-

se

um

tanto

quanto

engasgada nesse

mundo

onde

tudo

se fe-

88 láudia Nina

Page 90: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 90/186

chava sem portas, ela

própria

bloqueada

por

súbita resistência .

CS, p

116

E interessante notar que não é só no subúrbio que Lucrécia

sente-se inadequada. Na

grande

cidade, o sentimento

de

deslo-

camento a

persegue do mesmo

modo.

Na

cidade,

agregada

e

desconhecida, ela é parte quase invisível de urna multidão

sem

nome . CS, p. 108)

3.6.2

Silêncio de estátuas

Desse silêncio sem lembrança de palavras. (OEN, p.

94)

Na província sitiada, Lucrécia captura tudo com o olhar,

corno se estivesse organizando um mapa das coisas ao seu re-

dor- afinal, estranhos (estrangeiros) precisam de

um

mapa

para

guiá-los nos lugares. O olhar estrangeiro de Lucrécia sobre are-

alidade

também

é um olhar que isola as coisas. Ela fragmenta o

que

em

mil pedaços, corno se estes fossem

close-ups.

Muitas

descrições enfatizam o procedimento, corno o fazem as expres-

sões pontilhistas ao longo

do

romance: A pia. As panelas. Aja-

nela aberta. A ordem, e a tranqüila, isolada

posição

de cada coisa

sob o seu olhar: nada se esquivava . CS, p.

86-

grifo meu)

Ela recorta o mundo observado

a

fim de conquistá-lo com

maior facilidade?), corno se estivesse observando seus detalhes

pela primeira vez. Duas imagens diferentes juntas estão fora do

escopo

do

olhar

de

Lucrécia, pois ela teria

medo

de

contemplá-

las simultaneamente-   Tinha medo de ver, num

mesmo

olhar,

um trem

e um passarinho . CS, p. 56)

Com certeza, essa economia textual não é de esbanjamen-

to verbal

nem

tão pouco traz o fluxo narrativo que claramente

caracteriza a escrita feminina écriture féminine , como já discuti

anteriormente, em relação a Perto

do coração

selvagem.

A

cidade si-

tiada é exatamente o oposto:

uma

narrativa

de

retenção e imobi-

lização,

na

qual não

palavra

desperdiçada e

nada

a transcen-

der. Diferentemente do

primeiro

romance

de

Clarice Lispector,

que pode ser visto como um

Bildungsroman, A

cidade

sitiada

de-

senvolve-se

na

direção oposta:

em

vez de

um mundo sempre

em movimento (tempo, espaço, narrativa e personagens), há

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 89

Page 91: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 91/186

uma paralisia geral,

representada pela imagem

de

uma

está-

tua

no

praça

central e

pelos

objetos

de dentro

da

casa.

A interação

das personagens

-

no subúrbio

ou

na cidade

- é

parte desse marasmo.

Até

mesmo

a

mãe

viúva, Ana, é

uma pre-

sença distante. Elas

mal

se falam, pois Lucrécia

não

tem

vontade

de

quebrar

o silêncio

que envolve

a casa, silêncio esse

marcado

por

um

forte sentimento de ausência (morte em vida) e

uma

profunda

tristeza-

mamãe,

como

a

nossa vida

é triste " (CS,

p. 58) - e uma nostalgia

por

um tipo de realidade que

poderia

ser

diversa

se a situação fosse outra: "Talvez

pensasse

de

como

seria burlesca a vida de

ambas

se elas se falassem? E

de

como S

Geraldo

se

destruiria

se,

em vez

de espiá-lo

mantendo-o

fora de

alcance

da

voz-

alguém

falasse enfim". (CS, p. 59)

As

conversas

são vazias,

portanto. Sempre que Ana

tenta

aproximar-se

da filha, Lucrécia

desviava

os olhos para o teto,

grosseira" (CS, p. 54). Os

poucos

diálogos e a falta de

rr

.vnólo-

gos

interiores

abrem uma enorme lacuna no

texto que se

preen-

che de

nada.

As únicas coisas que fazem volume nessa

realidade

são

a mobília e as

poucas peças

decorativas

espalhadas pela

ca-

sa,

minuciosamente observadas

por

Lucrécia.

O silêncio

merece

ser

analisado

em detalhe. Ele representa

não só

o

que

esconde,

mas também

o

que

está implícito

no

vá-

cuo. Com referência ao

uso

da elipse como

uma

omissão obser-

vada

-

uma lacuna no meio do

texto -,

Marilyn

French analisa

algumas das obras

de

Joyce,

nas

quais o autor faz

uso

desse arti-

fício, chamando a atenção

dos

leitores

para

o que está ausente.

Em

Dubliners por exemplo, "The sisters"

mostra um

mundo

onde as

pessoas não terminam suas

frases. As declarações in-

completas, escreve French, indicam o que não podia ser pro-

nunciado decentemente em Dublin naquela

época, em geral

coisas relacionados com sexo. French ressalta que o

narrador,

um

adolescente

que

está

recém descobrindo

a sexualidade,

usa

do

silêncio

para

tecer "juntos o

que não

é

dito

com

o

que não

é

dizível a fim de criar

uma

tapeçaria tingida de

vagos

e ameaça-

dores

indícios

de uma maldade

exótica e erótica". (French, 1988,

p.

42

Em A cidade sitiada

fragmentos

de pensamento

abrem

um

bom número de

quebras

no texto,

algumas

vezes

assinaladas

por

reticências. Parece

que

as

palavras vão

se escurecendo no

meio do caminho,

perdendo fôlego, ou

que

a

voz

fica cansada

demais para

continuar.

Muitos

exemplos,

em todo

o romance,

90 Cláudia Nina

Page 92: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 92/186

mostram

que

há algo faltando na frase. Os leitores ficam espe-

rando

pela

continuação, que

não

aparece. Já

sem tempo

a moça

procurava porque

mesmo de

noite S. Geraldo ... (CS, p. 76);

Mas

não, nada

fora dito

.. CS,

p. 67);

Com

o prato na mão,

seu instrumento de

trabalho, gostaria

de

exprimir

talvez à mãe,

por exemplo,

como

sua filha estava .. estava .. CS, p. 84)

As conversas quase

nunca

chegam

a uma conclusão, e esse

fracasso

termina

sendo um elemento essencial

no

fio da comu-

nicação.

Há um abismo intransponível

entre as

personagens.

O

silêncio e a pontuação marcam as elipses daquilo que ninguém

ousa- por medo, timidez

ou preguiça- dizer.

Em muitos mo-

mentos, as frases iniciam como se estivessem começando no

meio

de

um

pensamento

e

não

fosse necessário -

ou

talvez nin-

guém

se interesse

m

explicar o todo.

Muitas

coisas

podem

ser

lidas nessas lacunas. Enquanto em

Agua viva

Clarice chama a

atenç8.o

dos

leitores para o

que

está escrito

nas

entrelinhas ,

A

cidade

sitiada

é um exercício constante da prática da leitura

do

silêncio : o fracasso da comunicação.

Frases curtas e vagas descrevem as personagens. Os homens

na

vida

de Lucrécia, por exemplo, podem ser facilmente defini-

dos

por uma

única

frase. Felipe, o

namorado,

é o guerreiro, o

tenente;

Perseu

é

um

lindo rosto heróico

mas irremediavelmen-

te vazio; Mateus, o

marido,

é um intruso, um forasteiro; o dou-

tor Lucas é forte e loquaz (CS, p. 131). É interessante observar

que as

passagens

descritivas

merecem

retratos

mais

ricos

que

as

personagens, como se as coisas fossem mais

importantes

que as

pessoas,

ou melhor,

os objetos

mais importantes que

os sujeitos.

O narrador, por sua vez,

não

sonda a consciência das per-

sonagens,

como acontece em

O

lustre

Na verdade, a

distância

emocional e a falta de comunicação verbal são palavras-chave

para

entendermos

a

maior parte

de

A cidade sitiada que

deixa

implícito o fracasso da subjetividade. Não há espaço para o ego

crescer ou para

que

se estabeleça a

presença

de uma personali-

dade ativa e criativa.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

91

Page 93: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 93/186

3.6.3

Jogo de espelhos

Parecia então, como o próprio subúrbio, animada

por

um

acontecimento

que

não se desencadeava.

(CS,

p.

31}

Na

verdade as coisas novas é que a olhavam. (CS, p.

103}

cid de sitiada é como um jogo

de

espelhos. A primeira

imagem,

em plano

geral, é o subúrbio e todos os minuciosos de-

talhes que constituem a cena inicial - desde a ponta

da

espada

da

estátua

do

guerreiro

na

praça central até as cortinas

de

ferro

que

fecham as lojas. A mesma descrição detalhada é vista no in-

terior

da

casa de Lucrécia. Existe uma correspondência espe-

cular entre as cenas externas e o mundo íntimo

das

perc;ona-

gens. Há também uma espécie de relação simbiótica entre o que

acontece (ou melhor, o

que

não acontece )

na

monotonia da ci-

dade e no domicílio quieto, silencioso, de Lucrécia.

Além disso, um outro reflexo também se faz notar em rela-

ção ao subúrbio e à protagonista. Como ressaltou Benedito

Nu

nes,

no que

se refere ao aspecto alegórico do romance (Nunes,

1974), o subúrbio parece ser mais uma amplificação

da

situação

das personagens que um verdadeiro ambiente social. A cidade é

mera alegoria que reflete (e influencia negativamente) o com-

portamento

da

protagonista. O mesmo silêncio que ecoa nas

ruas reverbera

na

mente

de

Lucrécia e

uma consonância per-

feita entre a paupérrima comunicação que assombra a narrativa

e as passagens descritivas, cheias de objetos (não

de

pessoas).

Se o relacionamento

da

protagonista com o mundo dá-se

mediante o ato

de

ver , é coerente que o espaço seja descrito

em todos os seus detalhes. Emoções e pensamentos não são tão

relevantes, e mesmo os sentimentos são descritos materialmen-

te. Tem-se um exemplo disso quando o narrador descreve o tipo

peculiar de alegria de Lucrécia: A alegria

da

moça era assim:

As flores no jarro. Uma era vermelha. Tinha o talo fraco. Uma

era cor-de-rosa. Era pequena. Sobre o chão empoeirado suas pê-

ras pousando [ .. ] (CS, p. 91). A falta de emoção também pode

ser observada com relação ao narrador. Mais do que em qual-

quer outro texto do universo literário de Clarice Lispector, aqui

92 láudia Nina

Page 94: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 94/186

o narrador

assume

uma posição distante,

como alguém

que ob-

serva

a realidade sem se envolver diretamente com ela.

O

narrador,

como espírito ficcional (Pontieri, 1999, p. 44),

presente

e ativo

em

Perto

do coração

selvagem está

agora

a

uma

pálida

distância

em

relação

ao

mundo

narrado

e

em

relação à

obra enquanto

corpo verbal (Pontieri, 1999, p. 44). Trata-se,

portanto,

de

um

narrador não-dramatizado.

A distância

entre

o narrador e a

écriture

é a

mesma que governa

a relação

do nar-

rador

frente a

suas personagens.

Distância -

não-envolvimento

- também

marca

a

atitude

da

protagonista

frente

ao mundo

fora.

Pontieri enfatiza

que os

capítulos funcionam como

um

espe-

lho, refletindo

em

miniatura

a

estrutura toda

do

livro (Pontieri,

1999, p. 162). O

quarto

capítulo, intitulado A

estátua

pública ,

pode ser

analisado

como um

perfeito exemplo

desse procedi-

mento. Lucrécia está em casa, na sala

de

estar, de onde

pode

a-

vistar

a praça, da janela. A conexão

entre

o

subúrbio

e a casa é

imediata-

 O subúrbio invadindo em

trote

regular

a sala? [ ]

(CS, p. 66);

A

casa

parecia

ornamentada

com

os

despojos

de

uma

cidade

maior

(CS, p. 54).

Dentro

de casa, Lucrécia,

por sua

vez,

está

imobilizada.

Seus

gestos

mínimos

e

lentos

estão

em

perfeita

correspondência com

a paralisia

da estátua, enquanto

ela

simplesmente

observa

os

objetos (rniniestátuas) à sua volta.

O

capítulo

é

uma

pequena

parte do

romance e o

representa em

forma

de metonímia.

No

que diz

respeito a esse

mecanismo

de geração de refle-

xos (mundo lá fora/ dentro da casa e a

mente

da personagem),

eu ainda mencionaria

as

semelhanças entre

Lucrécia e Eveline,

de Dubliners Em

Eveline , Joyce descreve

sua personagem

co-

mo alguém

que

passa

sua

vida totalmente

indesejável (Joyce,

1992, p. 36)

em um mundo

imutável,

não desejando

transformar

nem

mesmo um único pedacinho

dele. Tal

como

Lucrécia, Eve-

line

observa

a

realidade

em vez de atuar

sobre ela, e o

primeiro

parágrafo

é ilustrativo

dessa

letargia: Encontrava-se sentada à

janela,

observando

a

noite invadir

a avenida.

Com

a cabeça en-

costada

nas

cortinas,

ao

nariz

subia-lhe o cheiro

do

cretone em-

poeirada.

Ela

estava

cansada . (Joyce, 1992, p. 34)

Além

disso, como Lucrécia, Eveline

espera passivamente

por um elemento

externo que

venha

resgatá-la de

sua vida

de

aprisionamento. Na história de Joyce, é o

marinheiro

(alguém

que

vem

do

mar e está

acostumado

a

aventuras)

de

nome Frank

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

9

Page 95: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 95/186

quem chega

para

libertar Eveline. Uma vez que o

homem

apa-

rece para salvá-la", no entanto, ela decide no último instante

não

acompanhá-lo, apesar de todas as promessas

de

realização.

Todos os mares do

mundo

revolveram-se de

um

lado para outro

de seu coração. Ele a estava atraindo

para

dentro desses mares: ele

iria afogá-la. Ela agarrou-se com as duas mãos no corrimão de fer-

ro. Não Não Não Era impossível. As mãos dela prendiam o ferro

num frenesi.

No

meio do oceano ela emitiu um grito de angústia

[ ..] Ergueu

para

ele seu rosto pálido, passivo, como um bichinho

impotente. Nela, o olhar

não

deu qualquer sinal a ele: nem amor,

nem despedida, nem agradecimento. Qoyce, 1992, p. 36)

Também vale a pena mencionar alguns símbolos recorrentes

que

armam um paralelismo dialógico entre as duas obras, como,

por exemplo, "poeira". Presente na vida de Lucrécia, a poeira é

quase que

do

mesmo modo parte da rotina de Eveline. A prota-

gonista de A

cidade

sitiada passa grande parte de seus dias

monótonos varrendo a poeira

da

casa, e muitos parágrafos estão

dedicados à descrição dessa "atividade". A poeira em

Eveline

também

é

um

elemento importante, como escreve Bernard

Benstock

em

Narrative con/texts in

Dubliners: "Os aposentos

de

Eveline são misteriosamente invadidos pela poeira, apesar de

seus esforços semanais para eliminar o acúmulo

de ó

exata-

mente como 'a noite invad[e] a avenida'

Ev.,

p. 36) enquanto

ela observa

de sua

janela". (Benstock, 1994, p. 41)

Eveline enxerga-se dissolvida naquele pó que ela não conse-

gue remover totalmente da casa - "ela consegue visualizar-se

ausente

de

sua própria casa, uma lembrança desvanescente, sé-

pia, descartada,

um

vácuo

que

só a poeira consegue preencher.

O temor

da

não-existência acaba por paralisar Eveline, obrigan-

do-a a permanecer como um fantasma na

própria

casa" (Bens-

tock, 1994, p. 37).

É

interessante observar a correspondência en-

tre o

mundo

lá fora (que chega pelo lado de lá

da

janela) e o

mundo íntimo (também pardacento) do interior

da

casa. A ci-

dade também "invade" o interior, tal como invade a sala de es-

tar

de

Lucrécia

em

A

cidade sitiada

No

ensaio "Imagine Eveline: visualised focalisations in Ja-

mes Joyce's

Dubliners ,

Peter

de

Voogd analisa o aspecto pictó-

rico

da

literatura e o processo pelo qual as palavras criam ima-

gens em um romance. No que diz respeito a "Eveline", DeVo-

ogd observa que não é difícil ler toda a história visualmente, se-

94

láudia Nina

Page 96: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 96/186

guindo os indícios verbais

do

texto, na verdade repleto de ima-

gens. 'Eveline' é quase que inteiramente pictórica, e apresenta

a própria Eveline como o agente focalizador,

desde

o parágrafo

de abertura, onde ela está sentada à janela [ ..] até a última frase,

que,

de

acordo com

minha

leitura, é praticamente

uma

rubrica

em dramaturgia . (De Voogd, 2000, p. 47

O aspecto do focalizador, analisado

por

De Voogd

em

rela-

ção a Eveline , também é válido para

abordar

o modo como A

cidade sitiada

organiza-se

em

termos de imagens. Se,

em

O lustre

ritmo e

estrutura

sugerem um filme em câmera lenta

sendo

ro-

dado, A

cidade sitiada

mais parece uma sucessão de fotografias.

Tiradas

por

quem? Existem basicamente duas perspectivas

no

texto: a

do

narrador,

um

agente

anônimo situado

fora

da

fábula

e que enfoca tudo o que ele quer que os leitores vejam, e o

ponto

de vista da

própria

Lucrécia.

Na

verdade, as

imagens que

o focalizador

captura

e apre-

senta ao leitor

dizem

algo sobre o próprio focalizador. A escolha

que ele faz diz muito sobre o

modo

como ele interpreta a reali-

dade - do

mesmo

modo que as peças de um fotógrafo falam so-

bre uma

certa maneira de observar o mundo. Se o focalizador

captura os contornos

dos

lugares

em

vez

de capturar

as emo-

ções mais profundas da personagem, parece que ele não está

disposto a investigar suas mentes.

O mesmo vale para a perspectiva da protagonista. O

modo

como ela recorta a realidade e as imagens à

sua

volta é bastan-

te significativo. Olhar

para

a realidade expressa (reflete) o sis-

tema de raciocínio de Lucrécia, que também está baseado

em

expressões cristalizadas da linguagem

figurada-

 Lucrécia pen-

sa por meio de estereótipos. [

..

] é uma prisioneira de

sua

lin-

guagem eivada de cl ichês,

que

formam o veículo expressivo de

seu processo de pensamento, igualmente eivado de clichês .

(Fitz, 1985, p 76)

Em A cidade sitiada as coisas são o que elas realmente pare-

cem ser, e

não há

intenção (talvez não mais que um débil desejo)

de parte das personagens e do

narrador

de transfigurar o

establi-

shment.

A narrativa - assim como o

subúrbio

- é

um

mundo

fe-

chado

em

suas premissas, que confina as personagens dentro de

seus exílios interiores. O mundo lá fora é apenas uma cópia

do

mundo interior, e as alterações da modernidade, que redese-

nham

o subúrbio no final

da

história, não configuram qualquer

transformação radical capaz de produzir ecos profundos no

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 95

Page 97: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 97/186

comportamento das pessoas. A única reação é partir - mais uma

vez,

não

é interagir.

O subúrbio é o centro

da

vida

de

Lucrécia, e também o cen-

tro da

narrativa.

Nada

acontece

nas margens

semelhança de

O

lustre

e

A

maçã no

escuro

fora

algumas

frágeis

tentativas

de

ruptura. Existe

uma

hierarquia calma comandando todos os

movimentos,

até os

mais

imperceptíveis. Se São Geraldo é

uma

fortaleza (CS, p. 42), a narrativa também o é, no sentido

de

"cer-

car" com

seus muros

a

vida de

personagens,

desprovidos de

qualquer tipo

de

improvisação -   a cidade era

uma

fortaleza in-

conquistável E ela

procurando ao menos imitar

o

que

via: as

coisas estavam

como

ali E ali Mas era preciso repeti-las" (CS, p.

42). As

personagens

repetem

(imitam,

representam)

a

realidade

em

vez

de

criá-la

de

fato.

O título

de A cidade

sitiada não poderia ser mais apropriado;

simboliza o espírito

das narrativas

do

silêncio

com perfeição.

É

um

mundo

exílico, desconectado

da

realidade externa.

Um

mundo no

qual a comunicação é incipiente e a

criatividade

(a

possibilidade

de

efetivamente se criar alguma coisa

de

novo

ou

de inusitado) não

faz

parte da rotina das personagens, que estão

- se

não para sempre

fisicamente atadas ao subúrbio - aprisio-

nadas

à

narrativa, que

é, acima

de tudo,

uma

escrita "sob cerco",

uma escrita sitiada.

3.7

Audiência de pedras maçã no escuro

O

homem

é

uma

corda, amarrada entre o animal e o

Super-homem

- uma corda sobre

um

abismo.

(Nietzsche, Thus spoke Zarathustra p. 43)

Você está

deitado

de costas

na

escuridão. (Beckett,

Compagnie, p.

7

A maçã

no escuro é um dos mais fascinantes e complexos tra-

balhos

dentre todas as

obras

de Clarice Lispector. Difere-se

em

muitos aspectos dos textos produzidos

nos

anos 1970, e divide

várias características

com

as

obras

anteriores a esse

período.

O

romance

afina-se com o

grupo

das chamadas

narrativas do silên-

cio.

96 Cláudia Nina

Page 98: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 98/186

A história é dividida

em

três partes e pode ser descrita,

em

linhas gerais, como a trajetória de um

homem

Martim,

que pen-

sou ter matado sua esposa (porque ele estava quase certo de

que tinha

uma

amante) e, torturado pela culpa e pelo remorso,

encontra-se

à

beira

de

um

abismo. As circunstâncias

do

crime

são bastante nebulosas, e ninguém recebe qualquer informação

sobre o

passado

do suposto assassino. Desesperado, ele foge

pa-

ra

uma

fazenda distante, onde leva a cabo

uma

longa e íntima

jornada, que abarca um

reaprendizado

da

palavra

e

do

autoco-

nhecimento.

A

maçã

no

escuro foi

um

projeto longo. Teve início

em

1951,

em

Torquay, Inglaterra, e seria finalizado somente

em

1956,

em

Washington, D.C. Foi finalmente publicado

em

1961. A demo-

rada criação foi inteiramente recompensada porquanto o ro-

mance recebeu uma resposta positiva do mercado, o que é

ainda

mais notável dada a

surpreendente

complexidade de sua narra-

tiva. A própria Clarice achava que este era o mais

bem

estrutu-

rado de todos os seus romances.

De acordo com os Arquivos da Fundação Casa de Rui Bar-

bosa,

A

maçã no escuro

tem

sido

um

livro bastante traduzido:

pa-

ra o alemão, com o título Der Apfel in Dunkeln (1964); para o es-

panhol, como

La manzana en la oscuridad

(1974); o francês, como

Le batisseur des ruines (1970); e inglês, como

The apple

in the dark

(1985). Em comparação aos trabalhos anteriores (O lustre e A

ci

dade

sitiada ,

que

pouco foram traduzidos, A maçã no

escuro

jun-

tou-se ao sucesso internacional de Perto do coração selvagem.

No Brasil, o romance foi aclamado como um significativo

passo

à

frente

na

carreira

de

Clarice Lispector. Benedito Nunes,

um

dos

mais notáveis críticos da obra de Clarice, considerou

que a autora havia crescido de modo consistente a partir desse

romance (Sá, 1983a, p. 50). Outros intelectuais compartilharam

da idéia de que A

maçã

no escuro representou um novo movi-

mento

na

trajetória literária

da

autora, como observa Bella Josef:

Consideramos que com A maçã

no

escuro

(1961) um novo ciclo

na

ficção de Clarice Lispector se abre. Tal alegoria

da

condição

humana

é talvez o mais ambicioso

de

seus livros (Jozef, 1974,

p. 243).

É

interessante

notar

que, mesmo no exterior, o romance

foi considerado como pertencente a um outro nível de criação.

Earl Fitz, por exemplo, observa que

A

maçã no escuro

de

fato si-

nalizou um novo platô de realização artística (Fitz, 1985, p. 79

alcançado pela autora.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

97

Page 99: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 99/186

De acordo com Olga de Sá,

maçã

no

escuro

é

uma

reescritu-

ra da velha

tentação bíblica

na cena do

paraíso. Ela

Martim

como um novo Adão, encenando

a

peregrinação da linguagem

e

constantemente tentado por esta

maçã

no escuro que é a pala-

vra

(Sá, 1983b, p. 249).

Martim-

o

homem

depois

do pecado

original

- começa a refazer a

aventura

humana,

estabelecendo-

se à parte do contexto social - sozinho -, e prepara-se para rem-

ventar

as palavras

e

reconstruir seu mlmdo interior por

meio

da

linguagem.

Seguindo

tal caminho interpretativo, Affonso Romano de

Sant'Anna concentra-se na linguagem do romance como ele-

mento central. Para Sant' Anna, a evolução de

Martim pode ser

analisada como um processo

que

se inicia com a percepção da

personagem como

a

primeira

forma

de pensamento, que

se ex-

pressa

na linguagem.

No final das contas, essa se

desenvolve,

enriquecendo o pensamento e redescobrindo o mundo e o ho-

mem. (Sant'Anna, 1977, p. 207)

O mundo da linguagem, contudo, é difícil de ser recriado.

Mí;J rtim

tropeça e cai muitas vezes. As palavras

não lhe vêm

as-

sim tão

facilmente.

Com

referência a esses insucessos,

Hélene

Cixóus sugere

que

maçã no escuro

é um livro trágico.

Os

ele-

mentos trágicos estão vinculados à angústia da solidão

absoluta

- esses sentimentos

são

tão fortes

que Martim

aceita

o

destino

da mediocridade (Cixous, 1990, p. 63). Hélene Cixous faz uma

estreita

comparação

entre

maçã no escuro

e

algumas

das

obras

de

Kafka,

especialmente as

cartas a Milena. A correspondência

foi escrita quando o autor, já a um passo da morte

devido

à tu-

berculose,

atinge

um

clímax trágico e

envolve

o texto

em uma

intensidade febril (Cixous, 1990, p. 68).

Em

ambos os

casos-

Kafka e o romance

de

Clarice Lispector - o gesto

de ruptura

deixa implícito

um

ato de se enveredar rumo ao desconhecido,

que

tanto pode ser

a morte como

qualquer

outro

tipo de destino

sombrio,

escuro . (Cixous, 1990, p. 68)

Em

maçã

no

escuro Martim

abandonou o mundo convencional

do

conhecido.

Enquanto

o leitor é levado a adivinhar, ele é capaz

de

chegar

a isso tão-somente através

de

um

gesto

de

ruptura,

nesse

caso um crime . [ ] Ele teve de chegar a

uma

ruptura a fim de es-

capar do mundo á pronto da mesmice, isto é, da morte em vida.

[ ] Se eu abandono o mundo do conhecido a fim de descobrir a

vida do desconhecido,

eu

passo a ser o quê? Esse movimento de

mudança é

proibido

pela sociedade: de modo semelhante, Kafka

98 láudia Nina

Page 100: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 100/186

medita

sobre ir a lugares de

onde

não há retorno.

Quem

vai além

do que é legítimo e aceitável social e culturalmente está sozinho. E

a solidão absoluta, pode-se dizer à guisa de epílogo, leva à loucura.

[

..

]Em

A maçã no escuro   o

mesmo

dilema existe,

mas

com diferen-

ças. [ ..]

Martim

saiu

do mundo

do conhecido,

mas de modo

dolo-

roso. Sentiu-se culpado por ter abandonado um mundo de culpa e,

ao mesmo tempo, por ser tão violenta e peculiarmente inocente.

(Cixous, 1990, p. 62)

De certo modo, essa jornada existencialista é urna introdu

ção para o itinerário

de

G.H. Enquanto última obra do ciclo do

exi1io

A

maçã no escuro

é realmente um movimento inicial

em

di-

reção a um lugar ainda não visitado, no sentido em

que

explora

a busca existencial

por

meio

da

linguagem, aproximando a lite-

ratura

da filosofia,

de um modo

que Clarice Lispector depois re-

forçaria

em A paixão segundo G.H.

As peculiaridades

de A maçã

no

escuro

contudo, não mascaram o fato de que se trata

de

um

livro

que

divide com O

lustre

e

A cidade sitiada

um

grande núme

ro de características, compartilhando assim muitos traços co-

muns

às

narrativas do silêncio.

3 7 1

Aprendizado humano

A criança é inocência e esquecimento, um novo come-

ço, uma diversão,

uma

roda

autopropulsora, um pri-

meiro movimento, um Sim sagrado. (Nietzsche, Thus

spoke

Zarathustra p. 55)

A primeira

imagem

que se tem

de

Martirn é de alguém

que

dorme profundamente na

noite

a noite mais escura

de

todos

os tempos: Essa história começa numil ;1oite

de

março tão escu-

ra quanto é a noite enquanto se dorme. [ ..]Nada agora diferen-

ciava o sono

de

Martirn

do

lento jardim sem lua

ME,

p. 11). Ele

acorda quando lentamente o escuro se pusera em movimento

ME,

p.

4).

E, então,

um

vago alarme espalha-se

em sua

mente,

lembrando-o

de sua própria

existência. Perdido e atormentado,

Martim

sai a esmo e anda

na

escuridão

por muito

tempo, até

que recobra a consciência. É nesse

ponto

que ele se dá conta

de

que perdeu

a capacidade

de

se comunicar verbalmente:

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 99

Page 101: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 101/186

-Não sei mais falar, disse então

para

o passarinho, evitando olhá-

lo por uma certa delicadeza de pudor. Só depois pareceu

entender

o que dissera, e então

olhou

face a face o sol. "Perdi a linguagem

dos

outros", repetiu então

bem

devagar como se as palavras fos-

sem

mais obscuras do

que eram

..

ME, p.

28

Martim deixou tudo para trás: casa, origens, solo, família,

raízes

e,

acima de tudo,

sua

identidade. Ao cometer um crime -

como ele acredita ter feito -, quebra o código da civilização e

também a linguagem, um dom

que

teoricamente eleva o ho-

mem

acima das feras. Ele está banido da civilização e,

em

certo

sentido, uma vez expulso de sua "terra", está forçado a superar

sua condição de expatriado. "E, agora, que enfim fora banido,

estava livre. Ele era enfim

um

perseguido". ME, p. 38)

O foragido toma, em seguida, consciência deste

momento

crucial em

sua

vida - a queda: Quando um

homem cai

sozinho

num campo não sabe a quem dar a sua queda ME, p. 22, grifo

meu). A palavra queda leva, inevitavelmente, a uma conexão

direta

com

La chute, de Camus, onde o protagonista é um juiz à

beira de um abismo metafísico. Cercado pelo silêncio - "o silên-

cio

das

florestas primitivas, carregado ao extremo" (Camus,

1997, p. 8), o homem anda a esmo pelas ruas de Amsterdã, sozi-

nho, revisando

seu passado, como num julgamento,

tendo

a si

mesmo como juiz e vítima ao mesmo tempo.

O pequeno romance

de

Camus (primeiramente intitulado Le

jugement dernier) compartilha com maçã

no

escuro

muitos ele-

mentos: autocondenação, solidão, crime, angústia e confronta-

ção

com

o mundo exterior numa paisagem dramatizada

que

reflete os contornos

dos momentos atormentados do

homem:

"Porque estamos

no

coração

das

coisas. [ ..] Quando

alguém

chega do exterior, à medida que passa

por

esses círculos, a vida

e, portanto, seus crimes, torna-se mais espessa, mais sombria,

mais obscura" (Camus, 1997, p. 18). "A mais bela das paisagens

negativas [ ..]

Nada

de homens, acima de tudo

nada

de ho-

mens Sozinho, diante do planeta enfim deserto ". (Camus, 1997,

p. 78

A

queda

compreende

o

momento

crucial

quando tudo

o

que

ele tinha antes é colocado sob suspeita. O homem que

adorava

alturas (tanto literal quanto figurativamente falando) agora só

consegue mensurar

sua

queda de acordo com seu próprio e se-

vero julgamento. "Minha profissão satisfazia a contento essa vo-

cação para as alturas. [ ..

]Pese bem

o seguinte,

meu

caro senhor:

1

00

láudia Nina

Page 102: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 102/186

eu vivia impunemente

(Camus, 1997, p. 30). Ele

compara sua

vida

prévia

ao paraíso: Não era isso mesmo, de fato, o Éden,

meu caro senhor: a vida, sem nenhuma intermediação? A minha

foi (Camus, 1997, p. 31), e é

exatamente dessa situação paradi-

síaca

que

ele cai

quando

começa a

repensar seu passado.

Tor-

nando-se

o juiz

penitente

de si

mesmo

, dá início

ao julgamen-

to de suas próprias causas.

Sem dúvida, Martim

é o

mártir

da

queda ,

o criminoso, o

deslocado, o estrangeiro. De certo

modo,

ele

também

apresenta

grande semelhança

com

a

personagem

Mersault, de Camus.

Em

L étranger.

Mersault-

que comete um crime,

enquanto

Martim

pensou haver cometido - é igualmente expulso da comunidade

e

vagueia sem nuno

certo.

Nos

dois casos, o

luto

da personagem

não está essencialmente ligado a fatos externos, mas a um esta-

do mental

que

representa um estranhamente

interior.

Como Julia Kristeva salienta, o estranhamente começa

den-

tro, no exílio interior.

Em

quem ele [Mersault]

atira

durante

uma

nítida

alucinação que toma conta dele? Nas sombras, se era

francês ou magrebino, isso

pouco

importa - eles deslocam uma

angústia muda e condensada à frente dele, e ela o agarra por

dentro

[ ..

]

(Kristeva, 1991, p. 26). Nesse processo, o

outro

força-o a ser um estranho para terceiros e, por extensão, indife-

rente a tudo e a todos.

Mersault

também foge de

suas

origens,

embora

essas ainda

o persigam de alguma maneira. Num mundo

de

estranhos, o

protagonista

de Camus perde

não

só o sentimento de pertencer

a

um grupo,

mas também o desejo de comunicar-se, uma

vez

que ninguém

está

a ele relacionado. As

palavras passam

a signi-

ficar cada

vez

menos. Um assassinato, assim como as palavras,

passará então

a ser indiferente e, mais

do

que

palavras,

insigni-

ficante . (Kristeva, 1991, p. 26)

Ambos

passam

pela

experiência

do black-out

(a

noite

mais

escura de

todos

os tempos) e, em ambos os casos, há uma gran-

de falta de laços emocionais. O

último

vínculo afetivo de Mer-

sault

é sua mãe, que já

morreu;

a conexão

maior

de

Martim

é

com sua

família e esposa,

que

ele

pensa

ter

matado. Além

disso,

as

pessoas que

ele vai conhecer - as três

mulheres

da

fazenda

-

não representam amor ou afeição. Eles permanecem emocio-

nalmente distantes entre

si,

mesmo após uma proximidade

físi-

ca.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 1

Page 103: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 103/186

A diferença entre as personagens encontra-se na luta de

Martim para recuperar a linguagem e readquirir a capacidade

de comunicar-se. Ao contrário de Mersault, que parece estar

completamente indiferente à humanidade Martim sofre, em

mudo

desespero,

por

algum

tipo de recuperação

da

fala. Viven-

do

anonimamente num

mundo

de estranhos, primeiro

no

cam-

po escuro e depois

na

fazenda que jamais deixou

de

ser

um

ni-

cho estranho a ele, o personagem sente a necessidade de falar

de

novo, a fim

de

começar

vida

nova - primeiro como homem, de-

pois como herói. Seu heroísmo, todavia, não se desenvolve a

partir de uma encenação de atos exteriores de coragem frente a

pessoas ou situações,

mas

a partir de um controle sobre si mes-

mo,

ou

melhor, a partir

da

aquisição

da

habilidade

de

superar

a

fragilidade, a solidão e o silêncio.

Na primeira parte- Como se faz um homem- Martim

início a esse processo. Ele parece estar olhando

para

as coisas ao

seu redor pela primeira vez, como uma criança de colo, que não

sabe como entrar no mundo lingüístico, ou como

um

estrangei-

ro silenciado, incapaz de falar a língua de uma comunidade

hostil, retratada como uma terra devastada. Como diz o texto:

[ ..]Domingo era o devastado do homem. ME, p. 24). Assim,

Martim tem de construir a cognição

da

vida como uma criança

aprendendo a falar. E, como

uma

criança, ele se movimenta em

frente

na

ignorância, tendo de

inventar

palavras e sons: [ ... ]

agora que Martim perdera a linguagem, como se tivesse perdi-

do

o dinheiro, seria obrigado a manufaturar aquilo

que

ele qui-

sesse possuir . ME, p. 37)

A história evoca o Gênesis após a expulsão

do

paraíso. De

acordo com a Bíblia, antes da queda, o primeiro homem tinha

um tal controle sobre a linguagem que podia nomear tudo ao

seu redor- animais,

campo

e plantas.

No

caso

de

Martim, entre-

tanto, ele não pode inventar nada, porque todas as coisas que

ele

pode nomear ou

inventar já foram nomeadas muito antes

de

sua

existência. Como sublinha Olga

de

Sá, Martim renuncia aos

clichês

da

linguagem comum e tenta alcançar o conhecimento

daquilo

que

surgirá a

partir de

uma

nova forma

de

enunciado.

Martim é um fugitivo. No plano da fábula: foge

da

polícia

por

causa do crime cometido. No plano da trama: foge ao encontro

de

si mesmo. O crime projeta-se como

um

ato

de

liberdade,

de

ruptura com a sociedade e a desgastada linguagem cotidiana:

escolhe o

silêncio Sá, p. 76)

1 02

láudia Nina

Page 104: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 104/186

Aqui torna-se relevante questionar se Martim na verdade

escolheu o silêncio ou se o silêncio caiu sobre ele como um

fardo por demais pesado. Após ter cometido

um

crime hedion-

do - como ele pensava ter feito -, a pessoa fica sem muitas al-

ternativas

para

escolher

seu

próprio destino. De repente, a his-

tória pessoal do indivíduo vira de cabeça para baixo. De qual-

quer modo,

mesmo

se matar tivesse sido um ato de liberdade e,

em última instância, um ato

de

escolha, por outro lado é

um

iso-

lamento e um aprisionamento interior em

que

Martim se vê en-

redado.

Seu crime, o homicídio de sua mulher,

pode

ser lido como o

assassinato daquilo que é feminino . Em seu primeiro livro no

qual

o protagonista é

um

homem, Clarice Lispect

or

tenta, com

ironia, matar a presença feminina. E o

que

acontece

quando

a

voz feminina é silenciada? Martim, o homem, é incapaz de as-

sumir o comando

do

discurso narrativo. Mudo como

uma

pe-

dra, ele avança (sonâmbulo?), afásico, sozinho, em direção a lu-

gar nenhum.

No estudo Vie et

mort de

la parole , Julia Kristeva salienta

as características

da

linguagem

do

depressivo, marcada por um

ritmo repetitivo e

uma

melodia monotonal. Encenando

uma

re-

ação defensiva contra um choque inevitável - que

pode

ser uma

perda-, o depressivo encontra-se

em

posição

de

inatividade ou

de

fuga . Kristeva escreve ainda que o depressivo recusa-se a

significar e mergulha

no

silêncio

da dor-

  le silence de la

dou-

leur ou le spasme des larmes . (Kristeva, 1987, p. 53)

Normalmente, as pessoas em geral têm consciência dessa

circunstância, e a aceitação torna mais fácil recuperar a

perda

-

ou o -objeto ausente- através

da

linguagem. De modo contrário,

o depressivo está incapacitado

para

a recuperação, e uma triste-

za profunda cai sobre ele, enquanto a

linguagem

permanece

inatingível. Si je

ne

consens

pas

à

perdre

maman, je ne saurais

l imaginer ni la nommer , escreve Kristeva (Kristeva, 1987, p.

53). Além disso, ela sublinha que a linguagem do depressivo

tem um quê de idioma estrangeiro - O dizer do depressivo é,

para

ele, como

uma

pele estrangeira; o melancólico é

um

es-

trangeiro em sua língua materna. Ele perdeu o sentido- o valor

- de

sua

língua materna, à falta de perder a mãe . (Kristeva,

1987, p. 64

Na

trajetória de Martim, nos momentos iniciais após o crime

-

um

choque e uma perda - ele parece não ter outra resposta

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispect

  r

1 3

Page 105: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 105/186

para a vida que não o escapismo. Suas primeiras reações são

marcadas por

um

profundo senso

de

apatia. Somente

na

última

parte - "A maçã no escuro" - é que ele se permite racionalizar

sobre o acontecido. O pensamento

vem

primeiro, depois a pos-

sibilidade

de

enunciação. O ato

de pronunciar

a

palavra

- "cri-

me" - aparece

em seu

vocabulário reconstruído só mais tarde,

perto do final

da

história, quando o silêncio finalmente é supe-

rado. "Sim, um crime de amor. Num

mundo

de silêncio, ele fa-

lara". ME, p. 289)

3.7.2

Da companhia das pedras

à

interação com os outros

Zarathustra

desceu a montanha sozinho, e ninguém o

recebeu. (Nietzsche, Thus spoke Zarnthustra p.

40)

Homem

solitário, você está percorrendo o caminho

para

você mesmo E o seu caminho leva até além de

você e seus sete demônios. (Nietzsche,

Thus spoke

Zarathustra p.

90

A técnica narrativa de maçã no escuro nos momentos ini-

ciais

de

Martirn

na

escuridão, reflete o senso de estranheza

que

cerca o universo

da

personagem. Metáforas incomuns dão mo-

vimento e disposição íntima a objetos inanimados, tais corno:

mudez do sol" ME, p. 19); "luz estúpida" ME, p. 19); "árvore

tranqüila" ME, p. 45); "pulos secos" ME, p. 28); pedras infan-

tis" ME, p. 39) e assim por diante. O

narrador

personaliza as

coisas e paradoxalmente despersonaliza o herói

que com

fre-

qüência é comparado a plantas e animais.

Urna das imagens mais pungentes de

maçã

no escuro é o

episódio em

que

Martirn se vê cercado

de

pedras - grandes, pe-

quenas, todo tipo

de

pedras - que formam a sua platéia. Esse é o

segundo momento em sua

jornada, após a

queda

inicial

na

escu-

ridão: a tentativa

de

se fazer ouvir por urna audiência

de

pe-

dras, o que é urna cena de não-interação por excelência. Nin-

guém ouve

e

ninguém

reage.

Ninguém

está interessado

em

nin-

guém. Entre as pedras, Martirn sente-se incapaz de expressar

exatamente o que quer dizer: "Em algum

ponto

não-identi-

ficável, aquele homem ficara preso num círculo de palavras.

'Esqueci

de

informar alguma coisa?' As pedras iam certamente

104 Cláudia Nina

Page 106: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 106/186

ter uma impressão falsa ME, p. 41); Enquanto isso, continua-

va a sentir com incômodo que esquecera de dizer alguma coisa

essencial,

sem

a qual as pedras

nada

entenderiam. O quê? .

ME, p. 41

Coincidentemente

ou

não,

Martim

tem o

mesmo prenome

do filósofo, Martin Heidegger. De fato, a estrada que a persona-

gem percorre na direção do autoconhecimento leva a alguns

dos

conceitos de Heidegger de Ser-no-mundo, como desenvolvidos

em O ser o tempo. No tópico Ser-aí e o discurso , Heidegger

examina o fenômeno da comunicação desde

uma

perspectiva

existencial, o que é relevante para o desenvolvimento de

Martim

por

meio da linguagem.

De

acordo com

Heidegger, a

fundamentação

ontológica

existencial da linguagem é o discurso ou a fala (Heidegger,

1962, p. 203), e o discurso é a articulação da inteligibilidade

(Heidégger, 1962, p. 204). A maneira como se expressa o discur-

so, afirma o autor, é pela linguagem. Heidegger analisa o falar

como sendo a maneira por meio da qual os homens articulam

de

modo

significativo a inteligibilidade de Ser-no-mundo . Os

itens constitutivos para o discurso são: sobre o que é o discurso

(de

que

se fala); o que é dito-na-fala como tal; a comunicação; e

o fazer conhecido . (Heidegger, 1962, p. 206)

Além disso, Heidegger indica o fenômeno

da

comunicação

que deixa implícito,

naturalmente,

o

ato

de

ouvir,

que é um

elemento importante do discurso. Ouvir é constitutivo para o

discurso. E, assim como o

enunciado

lingüístico está

baseado

no

discurso, da mesma forma a percepção acústica está baseada

na

audição. Escutar

...

é o

modo

existencial

que

Daseín

encontra

pa-

ra Ser-aberto

enquanto

Ser-com para os Outros. [ ..]

Daseín

es-

cuta, porque entende (Heidegger, 1962, p. 206).

Em seu estudo intitulado Heídegger, George Steiner analisa

alguns conceitos importantes, tais como Dasein, do alemão, que

quer dizer literalmente ser af'. No contexto, af' é o mundo, o

mundo concreto, literal, real, cotidiano , escreve Steiner (Stei-

ner, 1978, p. 81). Portanto, ser humano significa estar imerso,

implantado,

enraizado

na

terra,

na

matéria cotidiana e

no pro-

saismo do mundo ('humano'

tem

seu húmus, a

palavra

latina

para 'terra') . (Steiner, 1978, p. 81)

A linguagem

é,

portanto, vital na mecânica

do

ser no mun-

do,

uma

vez que o questionamento do ontológico é realizado

por intermédio da linguagem. Na fala,

Daseín

expressa-se

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 5

Page 107: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 107/186

(Heidegger, 1962, p. 205). A existência, entretanto, só pode

atuar

quando em confronto com outros, ou melhor dizendo, Ser-uns-

com-os-outros no dia-a-dia. No mundo, o homem passa a exis-

tir com referência a outros. Em outras palavras, nós

não

somos

nós

mesmos: O ser

que

é nós encontra-se desagregado no po-

vão; ele se afunda em uma 'unicidade' entre e dentro

de

uma

pluralidade que é coletiva, pública, de populacho, tipo reba-

nho . (Steiner, 1978, p. 90)

Levando todos esses conceitos em consideração, no que diz

respeito à trajetória de maçã no escuro é possível salientar al-

gumas questões relevantes. O processo que Martim desenvolve

rumo à comunicação segue

uma

linha evolucionária. Ao longo

do

romance, ele vai de

pedras

a plantas, vermes, gado, até

fi-

nalmente entrar em contato com as pessoas que ele havia aban-

donado.

maçã

no

escuro

exemplifica com perfeição o processo -

lento e doloroso - de superar estágios primitivos da

Antes

de

começar a confrontação com outros na fazenda, Mar-

tim não tem palavras nem mesmo

para

inserir-se na

própria

existência. Ele é lacônico, quieto, calado num silêncio misterioso.

O Ser-no-mundo tem de achar seu lugar. Ele só consegue

empreender essa tarefa usando os instrumentos

da

linguagem

que ele por fim conquista(= constrói). Ainda assim, Martim tem

de passar pela experiência a príorí

do

silêncio. Ele não é, em es-

sência, mudo; perdeu a linguagem, o que é algo totalmente di-

verso. E essa perda é a condição primeira para ele conseguir

passar

da

escuridão

à

luz.

Em O ser e o tempo Heidegger também aborda o inverso

da

fala-

o ato

de

permanecer

em

silêncio-

como

uma

das

possibi-

lidades do discurso, sublinhando a diferença entre silêncio e

mutismo:

Permanecer em silêncio não quer dizer ser mudo. Pelo contrário, se

um

homem é mudo, ele ainda tem uma tendência para falar . Es-

sa pessoa não provou que pode permanecer em silêncio; na verda-

de, para ela não existe a possibilidade de provar algo desse tipo. E

a pessoa que por natureza é acostumada a falar pouco também não

tem como mostrar se está calada

ou

se é o tipo

de

pessoa que con-

segue permanecer em silêncio). Aquele que jamais diz coisa algu-

ma

não pode permanecer

em

silêncio em nenhum

dado

momento.

Autenticamente, permanecer

em silêncio só é possível no genuíno

ato de discursar. Para

ser capaz de permanecer em silêncio, Dasein

1 6 Cláudia Nina

Page 108: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 108/186

deve ter algo a

dizer-

[ ..] deve ter ao seu dispor

uma

autêntica e

rica revelação de si próprio. (Heidegger, 1962, p. 208)

Voltando à cena

das

pedras, com relação à filosofia do dis-

curso proposta por Heidegger, pergunto-me que tipo de comu-

nicação ocorre já

que

a interação é inexistente

no

contexto

da

platéia inicial de Martim. Se, como diz Heidegger, o Ser-com

desenvolve-se quando se escutam

uns

aos outros (Heidegger,

1962, p. 206), uma conversa com pedras deixa implícito o ab-

surdo

da não-comunicação

quando

o discurso fracassa

por

completo.

O conceito

de

Ser-com-outros

também

deve ser analisado

em relação à vida na casa

da

fazenda. Se no começo, o discurso

de

Martim

não

é compreendido pelas pedras,

na

fazenda a si-

tuação muda muito pouco. Diálogos, quando ocorrem, mais se

parecem com monólogos, e não há interação possível. Assim, a

comunicação - mesmo entre pessoas e não

pedras

- fracassa

mais uma vez, já que falta um dos elementos do discurso: escu-

tar

como sinônimo de compreender.

No caso de Martim, ficar em silêncio não é fácil; pelo contrá-

rio, é doloroso - como é doloroso

para

um

estrangeiro, força-

do a ficar quieto entre vozes estranhas quando fracassa o en-

tendimento mútuo.

À

medida em que lentamente recupera o

domínio

de

si mesmo, Martim caminha -

em

silêncio - para

uma nova fase, representada pela escalada de uma montanha ,

quando ele divisa a fazenda ao longe.

É

no caminho

de

volta,

na

descida, que ele começa a se mover em direção aos outros e a

inserir o

seu

Ser-no-mundo em uma confrontação com um co-

letivo.

Na

verdade,

não importa

quem

são as pessoas; o mais

importante

é que elas são outros entre os quais Martim deve

agora

aprender a

mais uma vez, expressar-se no mundo e a,

mais

uma

vez, criar o discurso.

Entretanto, é difícil deixar a solidão para trás a fim

de

apro-

ximar-se

dos

outros. E mesmo depois

de

encontrar pessoas,

ainda

assim leva

algum tempo

para Martim acostumar-se uma

vez mais à humanidade. O homem tem de superar as duras di-

ficuldades

do

longo caminho existencial

para

tornar-se

um

ho-

mem

e em seguida um herói. A fadiga pesa-lhe nos ombros:

Foi só então que Martim percebeu que estivera andando no planal-

to imenso de

uma

serrania, cujas primeiras ingremidades ele cer-

tamente havia

galgado

durante

a noite,

julgando

dificuldade sua o

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 7

Page 109: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 109/186

que fora a dificuldade de uma subida nas trevas;

e,

mais tarde,

to-

mando como cansaço seu o que na verdade fora uma aproximação

gradativa do

sol.

[

..

]E à beira de sua mudez, estava o mundo. Essa

coisa iminente e inalcançável.

Seu

coração faminto dominou desa-

jeitado o vazio.

ME,

p.

49)

Algumas passagens

de

Thus

spoke Zaratustra de Nietzsche,

são apropriadas para ilustrar o desenvol

vimento

de

Martim

até

a

superação

.

Ambos

os heróis partem da

mesma

premissa: são

homens solitários; e ambos

emergem

do

isolamento descendo

de suas solidões para

entrar

em contato

com

as pessoas

nova-

mente. Os dois são personagens que mudam, evoluem e são

transformados pela vida

quando em confronto

com

outros.

A

referência

ao

sol é

uma

primeira comparação entre as

duas histórias.

Em

Zaratustra o sol

que aquece

o

herói depois

que este

sai

de

sua caverna

é uma referência

evidente

ao mito

de

Platão (Machado, 1997, p. 40);

também

marca a trajetóri:: 11e um

herói

que,

como

Apolo, é

iluminado

por uma

luz

muito

podero-

sa.

Apesar

disso, à medida em que o sol se põe, o

herói

também

cai

num

abismo,

representado pelo lado

escuro da vida.

O declínio de Zaratustra nesse início

é

sua descida

ao

ínfero mun-

do das sombras para ilumina-lo. [ ..] Por sua sabedoria apolínea,

Zaratustra permanece fiel ao tema da oposição e da luta entre o dia

e a noite, entre a luz e as sombras. O que está embaixo?

Os

ho-

mens. (Machado, 1997, p. 43)

Em

A maçã

no escuro

o conflito

entre

luz e

escuridão

fica es-

tabelecido desde o começo. Após a queda inicial na escuridão,

Martim repentinamente vê

o sol e E uma claridade bruta ce-

gou-o

como

se ele tivesse recebido

na

cara

uma

onda salgada de

mar.

(ME, p. 19); Sempre experimentara o sol

com

vozes

(ME, p. 19);

Embora

estivesse cego

pe

la luz, ali

nenhum

de

seus sentidos

lhe

valia, e

aquela

claridade o

desnorteava

mais

do

que

a

escuridão da

noite .

ME,

p. 20)

Existe uma oposição constante entre o que

Martim não

con-

segue ver

(perceber,

entender)

e o

que

ele

devagar

começa a

compreender através de sua jornada. O símbolo do escuro é

realmente

ilustrativo.

Em

certo sentido, significa a

noite dos

tempos, quando prevalecia a ignorância. A

capacidade de

agar-

rar

uma

maçã

(= conhecimento) no escuro reflete a capacidade

de aquisição da

linguagem

(instrução) e de

informação

- passa-

1 8 Cláudia Nina

Page 110: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 110/186

portes de fora da escuridão da ignorância para a claridade de

enxergar o que ele

não

conseguia ver antes.

Como

Zaratustra,

Martim

também sobe

uma

montanha -

um

símbolo importante no dicionário da sabedoria e do apren-

dizado. A

personagem

de

Nietzsche ficou

por

dez

anos, até

que se viu cansado do silêncio e da solidão. No topo da monta-

nha, decide encontrar seu destino entre os homens. Ele se dirige

aos demais, esperando encontrar aceitação do que está

por

di-

zer. Contudo, a aproximação não é tão fácil,

uma

vez que cheia

de mistérios é a existência humana ; o que quero dizer não diz

nada

às mentes deles ; Escura é a noite, e escuros são os cami-

nhos

de Zaratustra . (Nietzsche, 1971, p. 49)

A

narrativa dramática

de

aratustra

tem, portanto,

como

um

de seus elementos centrais, as experiências de um protagonista

que abandona a terra pátria a fim de vivenciar o tormento, o

fracasso e a frustração.

É

a história

de

um herói que

empreende

sua jornada (relacionada com a descida da montanha) marcada

por

dúvida, angústia, rejeição, náusea e compaixão, culminando

na maturação no

momento

em que ele assume o pensamento

do eterno retorno. (Machado, 1997, p. 30)

O

tempo de

Martim

em

profunda

solidão

não

se conta

em

anos. O tempo, porém, é

de

pouca importância,

uma

vez que ele

também sente a necessidade de descer de alguma forma. Da

montanha, ele avista a fazenda - humanidade. Quando Martim

desce, ao chegar à fazenda, ele se apresenta a

um

trabalhador

como alguém que estava perdido Eu me perdi, disse Martim,

suave. ME, p. 52)

Vitória, a

dona

da fazenda, faz a mesma pergunta,

tentando

descobrir

quem

o potencialmente perigoso estranho

poderia

ser. É nesse tempo que Martim logo se dá conta de que está

quebrando uma

ordem previamente estabelecida e

invadindo

um

mundo

ao qual ele não pertence. O sentimento de estar sen-

do rejeitado é, portanto, inevitável.

O recém-chegado se sentiu rejeitado sem saber como. Não com-

preendia

a cólera que provocara. O que vagamente percebia era

um

certo desprezo [

..

] E teve a curiosa impressão de ter caído

nu-

ma armadilha. [

..

] Mas isso lhe

passou

logo, porque se havia ali

alguém perigoso- era evidentemente ele próprio. ME , p. 60)

Finalmente aceito como

um

trabalhador

na

fazenda, man-

dam-no viver entre plantas. O texto muitas vezes compara o

A palavra usurpada: exílio

e

nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 9

Page 111: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 111/186

homem à vegetação que o cerca. As plantas seriam o passo se-

guinte de

sua "evolução", depois do

mundo

mineral represen-

tado

no episódio das pedras. Ele ainda está,

porém,

vivendo

como se estivesse numa fase pré-humana

de

sua existência.

Naquele porão

vegetal,

que

a

luz

mal nimbava, o

homem

se refu-

giava calado e bruto como se somente no princípio mais grosseiro

do

mundo

aquela coisa que ele era coubesse: no terreno rastejante

a harmonia feita

de

poucos elementos não o ultrapassava

nem

ao

seu silêncio. O silêncio das plantas estava no

seu

próprio diapasão:

ele grunhia aprovando. Ele que não tinha

uma

palavra

a dizer. E

que não queria falar nunca mais. Ele que

em

greve deixara de ser

uma

pessoa. ME, p.

77)

É

interessante

notar que

Zaratustra, dirigindo-se a

um

jo-

vem que

encontra

em

seu caminho, compara

homens

a plantas -

"Agora é com os homens como com esta árvore:

quanto

mais ela

quer

subir

às alturas e para a luz, com mais determinação suas

raízes enfiam-se na terra, lutam

em

ir para baixo, para dentro da

escuridão, para dentro das

profundezas

-

para

dentro do mal"

(Nietzsche, 1971, p. 69).

Como

uma

alma

exilada e solitária,

Martim também tem

de

lutar entre luz e escuridão, alturas e a-

bismos.

3.7.3

omo se faz um herói

Quando

eu houver me superado

em

algo, haverei

de

superar-me em algo maior; e

uma

vitória será o selo

de minha

perfeição (Nietzsche,

Thus

spoke

Zarathus-

tra, p.

183)

Árdua

é a conquista da linguagem. E tal luta torna-se crucial

na

segunda parte do livro- "O nascimento do

herói -,

em que

a busca da palavra intensifica-se: "Tudo rebentava de silêncio.

Com

o cheiro

de

capim quente

que

o vento trouxe do longe ele

aspirou

a revelação

tentando

inutilmente pensá-la. Mas a pala-

vra,

a

palavra

ele

ainda

não

a tinha

ME,

p. 159, grifo meu). Vê-se

que

a construção de seu destino está diretamente ligada à cons-

trução

da

linguagem.

Tudo

o

que

viesse a dizer -

ou

a calar -

traria conseqüências

no

sucesso ou no fracasso

de

sua escalada

heróica.

11 O láudia Nina

Page 112: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 112/186

Sua obscura tarefa seria facilitada se ele se concedesse o uso das

palavras á criadas. Mas sua reconstrução tinha de começar pelas

próprias palavras

pois palavras

eram

a voz de

um

homem. [ ..] do

momento em que admitisse as palavras alheias, automaticamente

estaria admitindo a palavra crime - e ele se tornaria apenas

um

criminoso vulgar em fuga.

ME,

p.

125,

grifo meu)

Juntando os pedaços de seu

mundo

interior arruinado, Mar-

tim é

verdadeiramente

um construtor, como o título em franéês

deixa subentendido - Le âtisseur des

ruines.

No entanto, não só a

trajetória de Martim é definida pela necessidade de reconstru-

ção e comunicação. As três mulheres que ele encontra

na

fazen-

da são igualmente estranhas e caladas. A interação delas com o

mundo

é

bastante bizarra, como

no

caso

da

mulata que

ri e

bate

na

filha,

em

vez de conversar. Ermelinda tampouco

é

familiari-

zada com as palavras. Absorta em si mesma e facilmente ofen-

dida, ela

é

definida como

uma

pessoa assustada e sozinha: E

tão

abandonada,

e tão solitária, como se tudo o

que

no futuro se

fosse seguir nada tivesse a ver com o solitário minuto de glória

que

muito

já se

perdera para

sempre entre as marteladas .

ME, p, 83)

Apesar

de

mais

poderosa

e mais autoritária, Vitória vive

tempos fechada

em

seu mutismo, totalmente incapaz- ou sem

desejo algum - de se comunicar. Como

diz

o texto: Vitória era

uma mulher tão

poderosa

como se um dia tivesse encontrado

uma chave. Cuja porta, é verdade, havia anos se perdera ME,

p. 62). Faltava-lhe o

aprendizado

da interação, como

diz

o texto:

Do

momento

em que fosse compreendida, ela não seria mais aque-

la coisa

profundamente

intransmissível que ela era e

que

fazia com

que cada pessoa fosse a

própria pessoa-

pois Vitória pensava

que

era isso o que sucedia na comunicação. Seria dessa entrega de si

própria

que ela se guardava?

Ou

era

medo

da imperfeição com

que as almas se tocam? Mas

não

só disso tinha medo.

É

que, fal-

tando-lhe o

aprendizado da

comunicação, tinha a delicadeza de se

abster. ME, p.

251)

O momento em que esses mundos silenciosos colidem é de

revelação.

Cada uma das

personagens isoladas

do

mundo

lá fo-

ra tenta aproximar-se da outra, e a confrontação dos mundos in-

teriores silenciados tem

um

quê de explosão , como neste diá-

logo entre Ermelinda e Vitória, quando esta diz:

três anos

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

Page 113: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 113/186

eu

ouço até os seus silêncios. E não

suporto

mais sua infância no

leito[ ..] E hoje lhe digo ainda mais: basta." ME, p. 73)

O contato

não

é só verbal,

mas também

físico.

Martim

en-

volve-se com Ermelinda - mais no aspecto físico que verbal - e

também

com Virgínia -

mais no

verbal

que

no

físico. Depois

do

episódio da noite

dos

sapos uma longa noite de insônia, quan-

do as personagens meditam sobre suas vidas), todos acordam

para

a descoberta

do

som de suas próprias vozes e começam a

contar suas histórias pessoais, inclusive segredos e confissões.

Como

acontece com Vitória: "Minha alma é suja,

minha vida

é

truculenta,

eu

não sou boa,

eu[

..] sou ruim como uma

mulher

desiludida " ME, p. 251)

Num

longo monólogo,

apenas interrompido

pelos pensa-

mentos

entediados de

Martim, Vitória fala com o estranho

que

na verdade não a "escuta" e que continuaria a ser

um

estranho,

apesar

de

todos os esforços,

de

ambos os lados,

para

disfarçar o

mútuo quase

anonimato.

Os pensamentos finais de Martim,

após a longa fala de Vitória, ilustram essa indiferença: "Como a

senhora me chateia, pensou Martim" ME, p. 252).

Em

Reading with Clarice Lispector

Hélene Cixous analisa a es-

tranha

natureza

dessas relações fortemente marcadas pela lógi-

ca paradoxal do "desencontro". Ela diz escreve o seguinte:

A

estranha

história entre Martim e Vitória é

sobre

vitória

do

fra-

casso e fracasso

da

vitória. Eles tentam

aproximar-se um do outro

com

a

mesma intensidade

com

que

tentam evitar

um

ao

outro.

(Cixous, 1991,

p.

67)

Do mesmo

modo que há

o

murmúrio

gelado

de

água

em

Vitória,

o calor

da

comunicação

e não-comunicação

em

Ermelinda.

Não

é nas, mas

das

palavras

que

algo

emana.

Existe

uma economia pa-

radoxal, pois

que

o

amor termina

onde começa. (Cixous, 1991,

p.

85)

Assim, após a tentativa de interação, seria cabível

pensar

que se teceram laços mais fortes entre as personagens.

No

en-

tanto, eles

permanecem

tão estranhos

uns

aos outros como an-

tes. Confinados

à

vida isolada da fazenda, eles vivem como exi-

lados, restritos não só aos domínios físicos a fazenda ou a pri-

são), mas também dentro de si mesmos,

na medida em

que con-

tinuam incapazes de comunicar-se

com

o mundo lá fora e de

aproximar-se com

sua

"alteridade". maçã

no

escuro é, de certa

forma, um romance de "refugiados",

no

sentido em

que

as per-

112 láudia Nina

Page 114: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 114/186

sonagens

permanecem

isoladas, sem empreenderem nenhum

esforço para

mudar

seus destinos históricos.

Em

relação a esse aspecto de interação,

é importante

lem-

brar aqui o mecanismo da comunicação social. De acordo com a

teoria

da

comunicação (Kristeva, 1989, p.

7),

uma

mensagem

é

transmitida entre pelo

menos

dois sujeitos falantes, quais sejam:

o emissor (remetente) e o receptor (destinatário). Nesse proces-

so,

ambos

agem na tentativa de decifrar o

que

o

outro

está fa-

lando. E decifrar significa tentar entender o falante

em

sua sub-

jetividade. O circuito da comunicação opera em relação com o

outro. O termo discurso, contudo, designa qualquer enunciação

que

integra em

sua

estrutura o falante e o

ouvinte

com o desejo

daquele de

influenciar este.

Ao se analisar a prática

da

linguagem exercitada pelas per-

sonagens de maçã no escuro observa-se

que

ela não configura

nem a interação lingüística nem o discurso. Não

interesse

em

decifrar ou entender. Tampouco há

qualquer

tentativa de in-

fluenciar a realidade do outro. Parece que cada

um

está interes-

sado tão-somente em sua

própria

realidade, e que o exercício

de

falar não inclui nenhuma conexão. A mensagem deixa de alcan-

çar o

ouvinte

e uma interação comunicativa

mais ampla

fracas-

sa. O episódio

em

que Martim finge estar prestando atenção à

história da

vida

de Vitória ilustra bem a teoria da não-interação.

Contudo,

que

se dizer que o ato de aproximar-se de anô-

nimos funciona como uma espécie de laboratório para Martim

exercitar o aprendizado da

humanidade

e da linguagem.

É

nes-

se embate que ele se vê capaz de alcançar uma espécie de auto-

conhecimento

que

ele

não

tinha

antes. A terceira

parte do

livro,

intitulada A maçã no escuro , é exatamente o momento

em

que

Martim toma

consciência de

que

o longo processo de aquisição

de autoconhecimento chegou a

um

fim:

[ ..] pela primeira vez Martim avançara totalmente, assim como

quem diz uma palavra. A palavra que ele esperava não lhe viera,

pois, em forma de palavra. Ele a realizara com a inocência da força.

[ ..

]Pois-

tendo chegado enfim plenamente a si mesmo, ele chega-

ra

aos homens; e, jogando fora o tridente e trabalhando a nu, ex-

posto e nu - ele se guiara até transformar os homens . ME, p.

283

O silêncio das personagens, principalmente o silêncio de

Martim, representa

não

só a inabilidade de conversar. Ele tam-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

3

Page 115: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 115/186

bém indica que suas vozes são complementadas pela voz de um

outro: a

voz do

narrador cujas palavras acompanham os passos

e os sentimentos das personagens, como se

pudesse sondar

suas

interioridades .

É

significativo que, enquanto as descrições são

ricas

em

imagens e vocabulário, os diálogos são

pobres

e vazios.

Quando

Martim fala, coisa que ele dificilmente faz, suas frases

consistem em observações simples e um tanto vagas, cheias de

dúvida medo e hesitação. A terceira pessoa assume as partes

mais elaboradas e filosóficas

do

texto. Permanecendo anônimo,

e emocionalmente distante das personagens, o narrador não se

identifica no desenrolar

da

história. Sua posição é a de uma

perspectiva hierárquica privilegiada em relação às personagens,

ocupando um

local central

na

estrutura

narrativa.

No nível

do

universo narrado a fazenda distante é o centro.

Ao longo do romance, os espaços são delimitados de modo cla-

ro em

zonas

de ação: o

campo

escuro,

onde

a história começa, a

montanha de onde Martim avista seu local de destino, e a fa-

zenda, onde ocorre a transformação

do

homem. A área externa

a margem- é o mundo lá fora, ou melhor, a realidade da qual

Martim foge ou a prisão

para onde

ele vai. A fazenda é,

portan-

to, o centro das ações principais e o lugar ao qual tudo o mais

está ancorado.

3 7 4

Centro versus margem

As árvores,

ou melhor

dizendo, os processos

de

arbo-

rização sendo os limites provisórios que interrompem

por

um momento o rizoma e sua transformação. (De-

leuze e Guattari, Pourparlers p.

200

Como

a própria Clarice dizia, esse é um de seus livros mais

bem estruturados. Ele,

na

verdade, tem

uma

organização que

pode

parecer intrincada no início,

mas

em seguida a história fica

bem amarrada e todas as partes combinam-se com perfeição.

Essas idéias

de

livros

estruturados

e centrados estão

em

con-

sonância com os conceitos desenvolvidos por Gilles Deleuze e

Felix Guattari, na oposição árvore

versus

rizoma . Realmente,

maçã

no escuro tem

um

claro centro de comando.

Há uma

po-

  4

Cláudia Nina

Page 116: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 116/186

sição hierárquica entre

narrador

e personagens, e seu esquema

aproxima-se

do

modelo arborescente (ou

de

raiz).

Esse esquema representa sistemas hierárquicos

de

pensa-

mento e poder, governados por significação e organização. Co-

mo

Deleuze observa - A árvore

ou

a raiz inspiram

uma

triste

imagem do pensamento

que

não cessa de imitar o múltiplo a

partir de

uma

unidade

superior, de centro

ou de

segmento (De-

leuze e Guattari, 1976, p. 46). A árvore representa a

estrutura

do Poder no

mundo ocidental.

É

curioso como a árvore domi-

nou a realidade ocidental e todo o

seu

pensamento, da botânica

à

biologia,

à

anatomia,

mas também

gnosiologia, teologia, onto-

logia,

toda

a filosofia

...

(Deleuze e Guattari, 1976, p. 53). A lite-

ratura também

é,

por

extensão,

dominada

pela árvore - O li-

vro imita o

mundo

tanto

quanto

a arte, a

natureza

[ ..] A lógica

binária é a realidade espiritual

da

árvore-raiz . (Deleuze e Guat-

tari, 1976, p. 12

Em relação

à

oposição centro

versus

margem , é pertinen-

te lembrar que,

para

Deleuze e Guattari, tudo que é importante

e criativo acontece

não

no centro

da

estrutura,

mas nas margens

,

em cuja direção o rizoma espalha suas linhas de fuga lignes

de

futes .

De fato, os movimentos mais importantes e dinâmicos

de criação desenvolvem-se por rizoma e

em

conexão sucessiva

com

o lá fora ( en connexion immédiate avec

un

dehors ). (De-

leuze e Guattari, 1976, p. 55)

A

maçã

no

escuro,

bem

como as outras

narrativas do

silêncio es-

tudadas

neste capítulo, conformam-se com esse modelo anti-

go , arborescente ,

que

Deleuze rejeita: a ação está combinada

no centro. As margens representam o

que

passou

- a

vida que

Martim tinha antes e da qual o leitor não tem conhecimento -

ou

o futuro,

que

tanto pode ser a morte, como

na

história

de

Virgínia, como pode ser a

mera

continuação do status quo, co-

mo em A cidade

sitiada,

ou

a prisão, no caso

de

Martim. De qual-

quer

modo, o centro contém a história toda e todas as possibili-

dades de

ação. O mundo lá fora,

em

última instância, permane-

ce

um

mistério. Não é um mistério aberto e selvagem como

na

viagem

de

Joana, ao fim

de

Perto

do

coração

selvagem,

mas

um

fu-

turo

um

tanto quanto nebuloso,

sem

maiores perspectivas.

É de

extrema importância observar-se essa oposição cen-

tro

versus

margem

em

relação

à

oposição que ora proponho:

exilado

versus

nômade.

Como

já comentei anteriormente,

em

um

sentido conceitual, o exílio significa

um

movimento físico

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5

Page 117: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 117/186

desde

uma

origem,

um

centro, enquanto o nomadismo implica

um movimento constante, sem destino fixo e sem um centro.

Digo movimento físico porque, quando o exilado mora longe

de seu lugar de

origem e, portanto longe

do

centro

de sua

existência,

por um

certo período

de

tempo (que

pode

ser

uma

vida inteira), sua mente ainda está ancorada

no

passado, seja lá

por

que

razões forem.

Com

freqüência, o exilado não consegue distanciar-se (emo-

cionalmente)

de

suas origens, e isso caracteriza especificamente,

a

meu

ver, a idéia de exilado que proponho aqui: alguém que se

sente incapaz

de

engajar-se nas possibilidades

de

uma nova cul-

tura em uma terra nova, com pessoas diferentes (na maioria

dos

casos,

também

com uma

língua diferente) ao

seu

redor.

É

o

exato oposto do que acontece no caso nomádico

que

, no meu

entender, ilustra os últimos escritos de Clarice Lispector: as

margens

assumem

o espaço ilimitado da écriture onde dissol-

vem-se todas as fronteiras (inclusive os limites hierárquicos en-

tre personagens e narradores).

maçã

no

escuro encerra o ciclo do exflio antecipando a fase

seguinte

de

Clarice, que se inicia com paixão

segundo G H

Esta

nova fase avança na direção de uma perspectiva totalmente di-

versa: as personagens

assumem

a liderança enquanto sujeitos

de

suas próprias histórias, ao passo que se dissolvem por completo

as posições hierárquicas. De certo modo, a narrativa de Clarice

Lispector liberta-se rumo a um tipo de escrita que se faz

de

li-

nhas

de

fuga e associações rizomáticas desprovidas de raízes,

de

fim,

de

começo.

3.8

Conclusão

Para

concluir este capítulo sobre as narrativas do silêncio

penso

que

uma importante questão a ser respondida permane-

ce:

o

que

exatamente Clarice Lispector queria dizer com essas

obras? O

que

a autora estava

tentando

transmitir com romances

que

são tão contrários aos demais, escritos antes e depois?

Estaria Clarice Lispector tentando ilustrar, por meio

de

sua

ficção, a situação do exilado, que

pode

ser de qualquer tipo, não

só aquele que deixa sua terra pátria por motivos políticos, mas

todo aquele

que

se vê

numa

perturbadora situação de estra-

  6

láudia Nina

Page 118: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 118/186

nhamento social? Quando falo em exílio , estou falando da si-

tuação de exclusão, solidão, angústia, nostalgia e melancolia

que pode assaltar qualquer pessoa a qualquer momento da

vida

e não necessariamente só no exílio físico. Entretanto, refiro-

me

ao

termo

-

alma

exilada - e à situação

de

expatriação

para

ilustrar o drama

da

não-comunicação, da imobilidade, da não-

interação, da auto-restrição e

do

vazio

que

produzem a história

de todas as personagens de Clarice nàs narrativas

do silêncio.

Em minha opinião, esses aspectos estão entre os elementos

mais importantes dos romances, e a maneira como Clarice Lis-

pector os

aborda

torna as histórias ainda

mais

contundentes.

Vale lembrar

também

a estratégia literária escolhida para cada

um

desses romances. Em O

lustre

por

exemplo, a

autora

explora

a

profusão

de palavras em contraste com o silêncio interior de

Virgínia,

que

domina a personalidade

da

mulher. Isso, para

mim, significa uma confrontação flagrante entre o mundo exte-

rior, barulhento, e o interior de uma

mulher

que, onde

quer

que

vá, nunca se sente à vontade. Há um sentimento permanente de

desconforto

na

vida de Virgínia, como se ela fosse inadequada

em

qualquer circunstância.

Em

A

cidade

sitiada

por outro

lado, o

que

observo é

uma

per-

feita combinação entre o mundo lá fora, marcado

por uma

ine-

gável monotonia, e o mundo interior, passivo, silente e não-

interativo de Lucrécia. Ela é a exilada que aprendeu a viver com

restrições. Embora ensaie algumas vagas tentativas de mudar de

vida e de endereço, Lucrécia resigna-se a um mundo de pan-

tomima , no qual ela não tem suficiente coragem (ou vontade)

de estabelecer seu próprio domínio sobre a realidade. A m çã no

escuro

mostra um

mundo em crise,

onde

o

homem

descobre seu

próprio silêncio e tenta de algum modo readquirir a linguagem,

bem como a interação. Porém, o

movimento

fora

do

exílio

não

é

fácil, e o processo é tão lento quanto o

reaprendizado

da lingu-

a(gem).

Encontrei nesses mundos exilados uma conexão direta com

a

imagem

deleuziana de árvore , que, no

meu

entender, ilustra

com

perfeição o modelo

que

todos esses romances apresentam.

Não que

eu pretenda

classificá-los como romances conceitual-

mente

clássicos, mas o mundo que eles reproduzem é, de fato,

um

mundo

representado ,

dominado

pela árvore , governado

por

uma

lógica binária, com personagens emaizados na ambi-

ência exílica. Esses livros-árvores estão em oposição às linhas

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7

Page 119: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 119/186

de fuga que caracterizam as obras seguintes de Clarice Lispec-

tor, n s quais um nova

bord gem d

literatura transmite um

outr mensagem:

do

exílio p r o nomadismo, de regras e co-

m ndos p r

a liberdade pós-moderna

de

pens r e escrever

de

modo

diferente.

8

Cláudia Nina

Page 120: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 120/186

4

Atravessando odeserto:

paixão segundo

G H

• •

A barata é um tamanho escuro andando PSGH, 117)

Alguns

desertos produzem flores,

água

ou leite. O de-

serto pode ser uma experiência originária ou imaginá-

ria, algo

que

vem

em

ondas, do inconsciente. Hélene

Cixous,

Poetics

of

Knfkn

Blnnchot

Joyce

p. 130)

4 1

Introdução

O começo

dos

anos

6

foi

um

ponto

de

virada na

vida

e na

carreira

de

Clarice Lispector.

Em

1959, ela

voltou

ao Brasil de-

pois de

16

anos

no exterior. Separou-se do marido e começou

uma nova etapa junto

aos filhos

no

Rio

de

Janeiro. Acima

de

tu-

do, foi nos anos

6

que ela produziu o seu

romance mais

céle-

bre,

comentado

e criticado: A paixão

segundo G.H., publicado

em

1964.

Os

críticos em geral receberam o romance

como

o ponto

mais alto - até aquele momento - da carreira literária de Clari-

ce. O

livro

foi

publicado

quando

o Brasil

enfrentava

uma

de

suas mais difíceis crises nacionais, com a Revolução de 1964,

que

conduziria

o país a um longo

período de ditadura Algumas

leituras do romance traçavam, então,

um

possível paralelo entre

o cenário político-social e o itinerário

de

G.H.: o

país

lutando

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 9

Page 121: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 121/186

contra o poder coercivo

do

Estado e Clarice Lispector também

lutando contra convenções e estereótipos por meio de sua

inovadora literatura. (Nunes, 1988, p. 202)

Não

obstante, mesmo

que

a obra não aborde questões so-

ciais diretamente,

paixão

segundo G.H. foi interpretada de vá-

rias maneiras como

uma

leitura

pungente da

realidade via

uma

temática existencial que emparelhava-se com a ansiedade dos

leitores naquele momento de sua história nacional. A obra foi

debatida nas universidades e os estudantes podiam identificar

suas buscas com a peregrinação de G.H. A narrativa complexa

predispunha-se a

um

amplo escopo de investigações. A pleni-

tude da busca de G.H. parecia estar no mesmo horizonte de ex-

pectativas

do

público universitário, imerso em dificuldades in-

dividuais, familiares, políticas e sociais. (Nunes, 1988, p. 203f

5

Mas o

que

há, afinal,

de

tão especial nesse romance que le-

vou os críticos a considerarem-no o texto mais denso da autora?

O enredo é simples, porém a narrativa é altamente elaborada. A

ação desenrola-se em um único aposento, minúsculo- o quarti-

nho

da

empregada -,

onde

G.H. a dona

da

casa) entra pela

primeira vez a fim de organizar o espaço depois que a empre-

gada

foi embora. A

entrada

no lugar misterioso traz

à

tona

confrontos

de

todo tipo, inclusive com G.H. aproximando-se

de

um inseto medonho, uma barata cuja polpa G.H. irá comer. O

encontro desenvolve-se em

um

longo itinerário epifânico-

filosófico,

à

medida em que a mulher descobre dimensões des-

conhecidas de seu próprio

mundo

doméstico.

Algumas leituras críticas compararam paixão segundo G.H.

a La Nausée

uma

vez que a sensação de náusea e repugnância

vinculavam este romance

de

Sartre

à

cena de

G.H.

engolindo o

inseto. Em O dorso

do

tigre Benedito Nunes analisa as diferenças

entre os dois romances, ressaltando que a náusea na obra

de

Sartre revela o absurdo de uma situação que leva à criação de

um significado em

uma

existência vazia e sem sentido. No ro-

mance

de

Clarice Lispector, entretanto, a náusea é um estado de

ser ocasional - não definitivo -, que termina sendo a passa-

gem para um outro nível

de

existência. (Nunes, 1969, p. 101)

Essa edição crítica de paixão segundo G.H., editada

por

Benedito Nunes, inclui

uma

extensa bibliografia, com artigos de revistas e jornais juntamente com textos

críticos e curiosidades como,

por

exemplo, a capa da primeira edição japonesa

do

romance.

12

láudia Nina

Page 122: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 122/186

A súbita presença de um inseto na vida de G.H. e as trans-

formações interiores

que

ela vivenda também têm urna conexão

com

A

metamorfose de Kafka. Mas no texto de Clarice a narrati-

va encaminha-se para urna destinação diferente. Sarnsa padece

de

urna restrição - a situação embaraçosa

de

estar exilado den-

tro

de

seu próprio corpo

de

inseto - que lhe foi imposta. Ele não

tem

capacidade para salvar-se nem mesmo

para

sair de casa. Ele

está definitivamente exilado em sua própria cama no corpo de

um

inseto. Em

A

paixão segundo G.H., contudo, a protagonista

decide - por seu próprio desejo e risco - entrar

no

quartinho

da

empregada

e aproximar-se da barata.

Não há

mais

ninguém

na

cena para provocar ou evitar qualquer ação. Além disso, a voz

de

G.H. articula seu

próprio

destino,

enquanto

Gregor Sarnsa,

na história

de

Kafka, não tem corno fazê-lo.

O protagonista de Kafka representa a consciência individual

que

não torna parte na criação

de seu

destino. Ele foi expulso da

história

da

humanidade reduzido que ficou a

um

animal,

um

completo estranho para si mesmo. Corno observa Roberto Sch-

warz, Gregor não é o sujeito

de

sua ação, mas sofre a circuns-

tância

em

estarrecimento urna vez

que

ele escuta a sua própria

voz

tornar-se estranha. (Schwarz, 1981, p.

61 .

Enquanto Gregor

passa

por

tal cruel realidade, sem nenhuma força subjetiva, en-

caminhando-se

para

a anirnalização , o ritual

de

G.H. implica o

que ela chama de despersonalização

de

tudo

que

ela era, co-

rno diz o texto:

A despersonalização como a destituição do individual inútil - a

perda de

tudo

o que se possa perder e,

ainda

assim, ser. Pouco a

pouco tirar de si, com um esforço tão atento que

não

se sente a dor,

tirar

de

si, como

quem

se livra

da própria

pele, as características.

Tudo o que me caracteriza é

apenas

o

modo

como sou mais facil-

mente

visível aos outros e como termino sendo superficialmente

reconhecível

por

mim. Assim como houve o

momento

em

que

vi

que

a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim

mesma

encontrar em mim a

mulher

de todas as mulheres.

PSGH,

p. 178)

Deve-se notar aqui que o conceito

de

metamorfose em

paixão

segundo

G.H. engendra não só a despersonalização ou a

gradual

desenraização

de

si mesmo (PSGH, p.168), corno diz

G.H., mas também urna transformação estética. O romance ope-

ra urna reflexão sobre a narrativa, no sentido em que esta apre-

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

121

Page 123: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 123/186

senta uma completa transformação da forma do texto, como se-

ana

li

sado

a seguir. Além disso, no que diz respeito à estrutu-

ra narrativa, é importante observar o ato de entrar em um espa-

ço jamais antes visitado. Enquanto G.H. entra no quartinho da

empregada,

Clarice Lispector cruza a solei

ra

de

uma

nova

fase

literária, encenando uma ruptura em sua carreira.

A voz do eu aparece

na

arena narrativa pela primeira vez.

Ficam estreitadas as conexões entre literatura e filosofia, tendo a

linguagem como

seu

elemento comum. A autora pisara

em um

novo

território literário, onde o silêncio não representa a mera

ausência de palavras, mas, em vez disso, o fracasso da lingua-

gem em atingir aquilo que se encontra além

das

palavras, ou

melhor, o inexpressivo .

É

um

passo adiante,

desde

maçã

no

escuro; Martim sabe que, para obter coisas, precisa nomeá-las.

Ele perde a linguagem simples do dia-a-dia,

enquanto

G.H.

quer

atingir o indizível e conquistar o silêncio por rrv:::o da

linguagem.

Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E

me

arris-

car

à enorme surpresa que sentirei

com

a pobreza da coisa dita[ ..]

É

porque

não

tenho uma

palavra

a dizer.

Não

tenho

uma

palavra

a dizer.

Por

que não

me

calo, então? Mas

se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em

ondas.

A

palavra

e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vaga-

lhões de mudez. PSGH, p. 24

A questão é realmente complexa.

paixão

segundo G.H. é

uma

passagem em

direção a novos rumos. Representa uma jor-

nada

na direção dos escritos posteriores de Clarice Lispector.

Tendo

sido

escrito logo

após

o que defino

aqui

como

ciclo

do

exí-

lio, o romance simboliza

uma

passagem

para

algo verdadeira-

mente novo: retrata

um

movimento importante

em

direção à

fragmentação

de

forma e estrutura, bases

da

arquitetura

dos

romances anteriores de Clarice. De fato, ele reúne muitas carac-

terísticas,

em

configuração e substância, que serão amplamente

exploradas pela autora nos escritos nomádicos, tais como: o fra-

casso da construção e da unidade; o silêncio em palavras ; a

perda da

forma;

e,

acima

de

tudo, a abertura

para

o desconheci-

do.

paixão segundo G.H. não seria, ainda, plenamente nomádi-

co, mesmo considerando o fato de o romance ter

em

comum

com as obras posteriores, como já disse, alguns elementos ri-

122

láudia Nina

Page 124: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 124/186

zomáticos , tais como a inexistência de uma estrutura de ro-

mance com personagens e narradores em

suas

posições hierár-

quicas. Apesar desses elementos, prefiro considerar essa obra

um cruzamento , um ponto de passagem para a fase seguinte,

na

qual esses elementos rizomáticos estão mais claramente

desenvolvidos. Sendo

um

trabalho de transição, muitos aspectos

devem ser observados

enquanto

representativos de um impor-

tante período de metamorfose que merece atenção detalhada.

4.2

Aproximando se do outro

Cada vida é muitos

dias,

dia após dia. Andamos

através de

nós

mesmos, encontrando-nos

com

la-

drões, fantasmas, velhos, jovens, esposas, viúvas, ir-

mãos

apaixonados, mas

sempre

encontrando-nos com

nós

mesmos. (Joyce, Ulysses p. 175)

paixão segundo G H é o primeiro dos textos ficcionais de

Clarice Lispector

em

que uma voz dirige-se diretamente ao lei-

tor.

No

prefácio,

a

autora

identifica-se

pelas

iniciais C.L.,

abordando

os leitores em potencial, solicitando um público cuja

alma já esteja formada, pois esse seria o único público capaz de

entender

o livro. O leitor é, então, o primeiro outro desconhe-

cido (Minh-ha, 1989, p. 6) de quem Clarice aproxima-se, em

busca de algum tipo de colaboração a fim de fazer existir o rela-

to de G.H.

Os

outros encontros da narrativa são feitos

não

por Clari-

ce Lispector

em

sua

verdadeira

identidade,

mas

por G.H., a

única voz

no

texto, narrado por um eu

muito

eloqüente. Seu

primeiro momento de confrontação acontece quando ela entra

no quartinho

da empregada

-

um

lugar onde jamais ousara en-

trar antes. A empregada, de

nome

Janair,

sempre

fora uma es-

tranha para G.H., e o

quarto

de uma tal pessoa tem de ser, pre-

sumivelmente, um lugar cheio de mistério e um tanto escuro e

desorganizado,

pressupondo-se que

um

estranho representa

tudo que

é meio obscuro e suspeito

para

as idéias preconcebidas

de alguém. Ao contrário de suas expectativas, no entanto, o

quarto

é bem iluminado e limpo.

Torna-se relevante

indagar por

que G.H. pressupõe que o

quarto

da

empregada

é um espaço sujo e desorganizado. Sim-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

23

Page 125: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 125/186

plesmente porque as empregadas são pobres e, no Brasil, em

sua

maioria, são

de

pele escura? Ou

porque

ela é uma estran-

geini morando em seu domínio? De fato, G.H. está tão desvin-

culada

do mundo

lá fora que qualquer elemento exterior

(marginal) é julgado bizarro, escuro e bagunçado. Antes

de

en-

trar nos novos domínios daquele quarto, G.H. é vista como

uma escultora

de

classe

média

(uma artista com talento para

dar forma a materiais em estado bruto),

morando

com confor-

to no

topo de

seu castelo moderno,

sua montanha

sagrada

(uma cobertura). De certo modo, ela vive em

uma

espécie

de

re-

alidade exilada, totalmente ignorante do que acontece em outras

camadas

da

sociedade e além

de

suas limitadas fronteiras. Até

aquele momento, ela

não

havia

dado

sequer

um

passo

na

dire-

ção

de

uma pessoa com quem convivera tão

de

perto. Ela sim-

plesmente ignora a existência

da

empregada como alguém com

expectativas, desejos, sentimentos e criatividade.

Tal alienação tem

uma

certa dose

de

exílio interior: G.H. es-

tá tão separada

do

Outro = o diferente) que ela se recusa a

aprender qualquer coisa sobre uma realidade que não era dela e

que implicava, até certo ponto, o aprendizado

de uma

outra

linguagem , inclusive

com

novos códigos e valores culturais e

artísticos. Quando ela decide entrar

no

quarto, ela inicia um

longo e doloroso processo

de

abrir-se, de despir-se das várias

cascas

de

seu casulo a fim de investigar o que está por trás de

seus preconceitos. O

quarto

divergia tanto do resto do aparta-

mento

que

para entrar nele era como se eu antes tivesse saído

de

minha

casa

PSGH,

p.46). A realidade inesperada é por demais

chocante. Seus sentimentos são

uma

mistura de perplexidade e

terror:

Da porta eu

via agora que tinha

uma ordem

calma e vazia. Na mi-

nha

casa fresca,

aconchegada

e

úmida,

a

criada sem

me

avisar

abrira

um

vazio seco. Tratava-se agora de

um

aposento todo limpo

e vibrante como

num

hospital

de

loucos

de onde

se retiram os ob-

jetos perigosos.

PSGH,

p. 42)

[

..

] pois não fora a miragem de

um

oásis

que eu

tivera, mas a mi-

ragem

de

um

deserto.

PSGH,

p. 53

Uma

possível

queda

naquele quarto de silêncio constrangeu-me o

corpo

em

nojo

profundo

tropeçar fizera de

minha

tentativa de fuga

um

ato já em si

malogrado-

seria esse o

modo

que eles , os

do

sarcófago, tinham de não me deixar mais sair?

PSGH,

p.

53

124 Cláudia Nina

Page 126: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 126/186

Dentro desse estranho e limitado universo, G.H. encontra

uma outra surpresa:

um

mural com figuras isoladas na parede.

O quadro é repentinamente revelado a seus olhos como um re-

trato de si mesma (seu outro eu ), apresentado pela sensibili-

dade da

empregada.

Pouco

a pouco,

quanto

mais

G.H. olha,

mais surpreendente e enigmáticos lhe parecem os desenhos. As

linhas desconexas como um mapa, levando para direções im-

previsíveis - às vezes se parecem com múmias, às vezes zumbis,

às vezes não são linhas decorativas, mas sim uma escrita,

uma

espécie de estranho código que ela não sabe decifrar. A partir da

observação atenta dessas linhas, G.H. começa a

mensurar

sua

ignorância acerca daqueles

que

não são seus pares e que, por-

tanto, iriam julgá-la

de

uma

perspectiva externa.

[ .. ]curiosamente, a figura na parede lembrava-me alguém, que era

eu

mesma. Coagida com a presença que Janair deixara de si mes-

ma

num

quarto de

minha

casa,

eu

percebia

que

as três figuras an-

gulares de zumbis haviam de fato retardado minha

entrada

como

se o quarto estivesse ocupado. (PSGH, p. 45

Perguntei-me se

na verdade

Janair teria

me odiado ou

se fora

eu

que,

em

sequer a ter olhado, a odiara. (PSGH, p. 47

Cercada por algo que

não

lhe é familiar

dentro

de

um

am-

biente que lhe é familiar, G.H. também observa um outro ele-

mento estranho :

uma

barata

que

sai de detrás

do

armário.

Desse momento em diante, sua jornada interior aprofunda-se

rumo a

uma

dimensão metafísica. O inseto simboliza, entre

muitas outras coisas, uma interação com o mais estranho possí-

vel dos

outros

o outro não-humano, objeto de nojo, medo e re-

jeição. Comer a matéria branca, como no fim G.H. faz, significa

um esforço de aproximação doloroso e laborioso. É receber o

outro em sua

alteridade , respeitando - e

comungando

com -

sua forma desforme e sua incompreensível natureza (Machado,

1988,.p. 109). Se G.H. não consegue aproximar-se da

empregada

durante todo o tempo em

que

ela trabalhou e viveu tão perto

de

si, como

uma

estrangeira que vai crescendo silenciosamente em

seus domínios, ela se confronta,

em

vez disso, com o inseto. A

experiência

de

ir

em

direção à alteridade é vivenciada

em sua

totalidade. Como diz o texto:

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 25

Page 127: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 127/186

A matéria da barata, que era o seu de dentro, a matéria grossa, es-

branquiçada, lenta, crescia

para

fora como se

uma

bisnaga

de pasta

de dentes.

Diante

de meus

olhos enojados e seduzidos, lentamente a forma

da

barata ia se modificando à

medida

que ela engrossava

para

fora. A

matéria branca brotava lenta

para

cima de suas costas como uma

carga. (PSGH, p. 66)

Rosi Braidotti observa

que

a aproximação

em

direção ao in-

seto abrange muitas transgressões. E esta palavra - transgressão

-traduz, realmente, urna das idéias cruciais

do

texto na medida

em que toda a jornada refere-se a atos de transgressão perpetra-

dos por G.H. Afinal, a

mulher

torna-se urna transgressora de

sua

própria

vida, desafiando seus próprios valores prévios e

preconceitos. De acordo com Braidotti:

Quase como um zumbi,

seduzida por

uma força que ela

não

sabe

nomear porque

habita-a tão profundamente, ela consuma o inter-

curso com o outro pela assimilação totêmica da barata: um gesto

que transgride

uma

série de limites e tabus

humano/não-

humano; próprio

para comer/impróprio para

comer;

cozido/cru;

e assim

por

diante). (Braidotti, 1994, p.192)

Também é importante salientar, corno Braidotti observa, o

ato de dissolução dos

próprios

limites

no

encontro

inesperado

com o quarto e a barata. E quando G.H. torna consciência do

fracasso de

sua

identidade socializada (Braidotti, 1994, p.192).

Movendo-se em direção ao universo da empregada e, depois,

em

direção à natureza do pré-humano

o

inseto), G.H. realiza

urna clara descentralização de sua vida. A existência centrada

que

ela

tinha

antes (protegida,

por

assim dizer,

em

seus altos

domínios sociais) dissolve-se quando ela decide aproximar-se

das margens nas quais há

outras

formas de existências (outros)

que ela desconhecia. Assim, transgressão e descentralização são

palavras-chave

em

paixão

segundo

G.H. São também qualida-

des

essenciais que, em minha opinião, marcam a

proximidade

desse romance com os escritos

nomádicos

A

po

lpa da

barata

que G.H. come também representa o

impuro ,

que

está diretamente relacionado

no

texto com a

Bí-

blia e com as leis da dieta dos judeus, que proíbe certos alimen-

tos. A própria G.H. fornece a dica: Eu me sentia imunda corno

a

Bíb

lia fala

dos

imundos. Por que foi que a Bíblia se

ocupou

dos imundos, e fez urna lista dos animais imundos e proibidos?

26

Cláudia Nina

Page 128: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 128/186

(PSGH p.

75

Ao cometer o ato profano, G.H. submete-se a uma

espécie de batismo ao contrário, simbolizando sua entrada em

um novo momento de sua vida.

O interior informe da barata reflete a mesma falta de forma

da

consciência desorganizada e

sempre mutante

do

sujeito. De

fato, no começo

da

história, G.H. sentia-se

amedrontada

com a

desorganização profunda (PSGH, p. 15); é ao redor dessa falta

de estrutura e de unidade (de tal desordem)

que

toda a jornada

interior desenvolve-se. Quando ela entra no quartinho, ávida

por

organizar o

que

ela

pensava

estar bagunçado, porém, ela pi-

sa num caminho mágico através do qual ela descobre, em vez

disso,

uma

outra bagunça - sua

própria

desarrumação interna,

que

ela então irá explorar.

Ao longo do texto, G.H. mostra-se obcecada por organiza-

ção -

  Ordenando

as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo

[ .. ] Arrumar é achar a melhor forma (PSGH, p. 37). Mais adian-

te, contudo, ela se

conta da impossibilidade - ou inutilidade

de

viver em um mundo organizado onde tudo tem seu sentido

próprio: Eu estava

vendo

o

que

só teria sentido mais tarde -

quero dizer, só mais tarde teria

uma

profunda

falta

de

sentido.

Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido - é

o sentido . (PSGH, p. 39)

Em Spinning form: reading Clarice Lispector , Regina He-

lena de Oliveira Machado sugere que a matéria amorfa

da

bara-

ta é muito importante

para

a estrutura de p ixão segundo G.H..

Regina salienta

que

a

polpa

representa acima de tudo a perda

da forma , que está na origem do processo da escrita, especial-

mente de

uma

obra tão despojada

de

uma

estrutura convencio-

nal e

de

uma

organização formal:

O sujeito

que

escreve tenta

entender

(dar forma,

pela

escrita e

na

escrita) o

que

está acontecendo consigo. Assim, o sujeito está de-

sorganizado desde o começo. Escrever,

dar

forma, nesse sentido,

é

um

esforço para entender o que está acontecendo, junto com uma

tentativa

de

reorganização. Mas esse

dar

forma , esse entender

deve ao mesmo tempo respeitar a ocorrência como tal, em

sua

sú-

bita imprevisão,

em sua

estranheza e

em sua

alteridade,

sem

dela

apropriar-se, sem integrá-la, sem neutralizá-la [ .. ] O outro para

mim é a ausência de forma. É

por

isso que a escrita é elaborada

como uma arte do fracasso, uma arte do retraimento, na medida

em que está dando forma num movimento mais livre, delicado, in-

consciente, de maneira desatenta. (Machado, 1988, p. 109)

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

27

Page 129: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 129/186

É

importante

lembrar que a busca da mulher

por

dar for-

ma acontece via

linguagem-

linguagem escrita. G.H. escreve

em vez de falar. Seu itinerário é feito por meio das palavras

que

ela escreve. Dar forma é, portanto, parte do próprio exercício de

pensar

e escrever. Clarice Lispector vincula a experiência

de

vir

a ser (ou de sua despersonalização ) com o ato de produzir um

relato escrito. Escrever é parte de todo o processo pelo qual pas-

sou

G.H.-

 Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que al-

guém

está

segurando

a minha mão

(PSGH,

p. 22); Mas receio

começar a

compor

para poder ser entendido [ ..

]receio

começar

a fazer um

sentido[ ..

] .

(PSGH,

p.

19)

4.3

m deserto de revelações

Tremo de medo e adoração pelo que existe. (PSGH, p.

141

A

paixão

segundo

G.H.

é, realmente,

um

romance de muitas

revelações. A começar pelo título,

por

exemplo. A

palavra

pai-

xão , significa um sentimento forte de amor, o que poderia levar

o leitor a concluir apressadamente

que

se trata de uma narrativa

romântica. A expectativa é logo frustrada, pois, já nas primeiras

páginas do quinto

romance de Clarice Lispector, a paixão refe-

rida é sobre o itinerário de G.H. rumo à redenção e à verdadeira

identidade

mediante

rotas incertas, com a

linguagem

como ins-

trumento de navegação.

Claro

que

paixão

tem

um

sentido imediato, bíblico, signi-

ficando o sofrimento de Cristo, como em

A

paixão segundo São

Mateus A

paixão segundo

São

João

etc. De fato, a referência às

narrativas dos Evangelhos não se limita ao título. No artigo Pa-

ródia

e metafísica , Olga de Sá cita

algumas

expressões bíblicas

invertidas

16

empregadas como um eloqüente dispositivo retóri-

co. Entretanto, Olga de Sá

não

vê qualquer tipo de zombaria dos

Evangelhos no texto de Clarice Lispector, e a fonte bíblica está

presente

para

conferir

maior

eloqüência à

jornada

espiritual

de

G.H.

Em A

paixiío segundo

G.H.,

como ressalta Olga de Sá Sá,

1988), Clarice subverte

ci-

tações bíblicas, como no caso de Meu reino

é

deste

mundo ..

e

meu

reino não era

apenas

humano

. (PSGH, p. 128.)

128

Cláudia Nina

Page 130: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 130/186

Sua exploração interior, no entanto, só é possível em função

de um importante elemento, que também é a essência do ro-

mance: as epifanias. Tomando-se o termo em literatura como si-

nônimo

de

revelação (ver o capítulo 3

de Perto

do coração

selva-

gem

em

meio a

uma

experiência de vida cotidiana, o progresso

de

G.H. com certeza é marcado

por

epifanias.

Fundamentado na pesquisa de Arnold Van Gennep (Gen-

nep, 1978) sobre como a sociedade organiza seus ritos, Affonso

Romano de Sant' Anna, no estudo O ritual epifânico do texto ,

aplica o modelo de Van Gennep para paixão

segundo

G.H.

Gennep divide os ritos em categorias (ritos preliminares, limina-

res e pós-liminares), o que abrange a preparação para os sacrifí-

cios ou obstáculos, a transformação propriamente dita e o resul-

tado da experiência na vida da pessoa e na comunidade;

Sant'

Anna

reconhece no romance de Clarice Lispector uma se-

qüência similar de eventos. (Sant' Anna, 1997, p. 240)

Em

primeiro lugar, G.H. acorda decidida a arrumar o quar-

tinho

de

empregada. Esse é o momento pré-epifânico. Nesse

ponto, ela se prepara para o que está por vir. Por isso ela pri-

meiro termina

de

fumar

seu

cigarro e desliga o telefone,

porque

nada pode perturbá-la. O tempo precisa ficar suspenso e desco-

nectado do trivial. O quarto ao qual se chega atravessando a co-

zinha e por

uma

passagem através

da

área de serviço - um cor-

redor

escuro (PSGH, p. 40 é como uma

porta

que se abre para

vastas possibilidades

de

transformação.

O passo seguinte é a epifania propriamente dita- o

clímax-,

quando G.H. vê a barata, e o fato comum assume proporções

extraordinárias, fazendo

com que

ela repense a realidade.

Como

escreve Affonso Romano de Sant' Anna: Na verdade, a mulher

está vertendo também a sua massa branca de epifania e pasmo.

Está ali prisioneira, com 'náusea', e 'nojo'. A barata é mais

que

uma

barata. O quarto é mais que um quarto. O armário é mais

que

um

armário. A barata é

um

lugar

de

passagem (Sant' Anna,

1997, p. 244). O terceiro momento do encadeamento epifânico

apresenta uma série de infinitas mudanças que G.H. vivenda

depois

da

aproximação, como fica implícito no texto:

-

eu

sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho

de luz mais branca

no

reboco da

parede-

sou cada pedaço infernal

de mim. (PSGH, p.

69

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

129

Page 131: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 131/186

[

..

] sabia que me havia abandonado já para fora de meu alcance.

(PSGH,

p.

100)

paixão segundo G.H. é também

uma

obra epifânica

no

sen-

tido

em

que

representa

um

momento de

revelação

na

carreira

de Clarice Lispector. Ela conduziu a

autora de

volta ao mesmo

tipo de escrita de Perto do coração selvagem.

No

entanto,

em

seu

quinto

romance, o nível

de

maturidade e densidade filosófica -

após o período

de

experimentação do ciclo do exílio -

aprofun-

da-se e vai ser explorado em

seus

textos posteriores.

4 4

Tornar se

Escreve-se sempre para dar vida, para liberar a vida

lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fu-

ga. (Gilles Deleuze, Pourparlers p. 192)

Escrever é vir a ser. Não vir a ser um escritor (ou poe-

ta),

mas vir a ser, de modo intransitivo. (Trinh T.

Minh-ha,

Woman natíve

other

p.

19)

A partir do

momento

em que G.H. confronta-se com o

quar-

tinho da empregada, ela começa seu processo

de

metamorfose.

De fato, G.H. está

disposta

a mudar desde o começo, quando ela

aceita

de

peito aberto o risco

de

ir sozinha, não

importando

o

que aparecesse

no meio

do caminho -

  O

horror será a minha

responsabilidade até

que

se complete a metamorfose e que o

horror se

transforme

em

claridade

(PSGH,

p.

22).

O quarto e, por extensão, o edifício também mudam, refle-

tindo os

movimentos

interiores da protagonista: [ ... ] essa cons-

trução

ia-se saturando de si mesma: ia ficando

cada

vez mais

compacta, em vez

de

se tornar cada vez

mais

frágil (PSGH, p.

72).

A estrutura

da

história, em que

cada

capítulo começa pela

repetição das últimas

palavras do

capítulo anterior, é

bastante

ilustrativa

das

oscilações íntimas

da

protagonista,

que

se

dão

em

ciclos contínuos. Ela vivenda o mecanismo

de ampliar

suas

perspectivas

ao mesmo tempo

em

que acidentalmente se vê pe-

quena e

desprotegida como

uma criança de colo, mudando de

forma

como

lice

no

país das maravilhas. G.H. diz: Anteriormen-

te, quando eu me localizava, eu me ampliava.

Agora

eu me lo-

130 Cláudia Nina

Page 132: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 132/186

calizava

me restringindo

-

restringindo-me

a tal

ponto

que,

den-

tro do quarto, o meu único

lugar era entre

o pé da cama e a

por-

ta do

guarda-roupa PSGH,

p. 54)

ou

então: [ ] a

grandeza

do

mundo

me encolhe . PSGH, p. 23

Esta é

uma

referência

comum em

narrativas

mitológicas: a

queda do herói num precipício, ou através de um buraco, como

na

Alice

de Lewis Carroll, que encontra uma porta que se

abre

para

um mundo

completamente

novo,

onde

ela

aumenta

e di-

minui de tamanho

muitas

vezes. Do

mesmo modo, G.H. entra

através de um buraco

invisível e cai

direto

num

abismo: Um

abismo de

nada.

Só essa coisa

grande

vazia: um

abismo

PSGH,

p.

30 ,

onde ela

passa por

intermitentes transformações,

embora

não saiba exatamente no que está se

transformando:

[ ]

tenho

que fazer o esforço de

pelo menos me

dar uma

forma anterior

para poder entender o que aconteceu ao ter perdido essa for-

ma . PSGH, p. 28)

Na

verdade,

o exercício de transformações constantes e si-

multâneas

é

um

aspecto crucial do romance, o

que

leva

ao

con-

ceito

de vir

a ser ,

ou

tornar-se

em

Deleuze.

Ao revisar

o

du-

alismo platônico, Deleuze reflete sobre essa definição

como

um

processo

de mover-se

em

diferentes direções

ao mesmo tempo,

transcendendo

limites infinitamente, justo o que acontece

com

G.H.

Partindo da

distinção

que

Platão faz

entre

duas

dimensões-

uma que é fixa,

mensurada,

e

outra que

se

move em

várias dire-

ções

ao mesmo

tempo-, a oposição se constrói. De

acordo

com

Deleuze, o conceito se refere à essência de

vir

a ser, ou seja,

mo-

ver-se,

expandir-se

em

mais de uma

direção

ao

mesmo tempo

(Deleuze e Guattari, 1976, p. 39). Deleuze também

aborda

o con-

ceito

de vir

a ser

na literatura

com

referência

ao grande

ro-

mancista , ou melhor, ao artista que inventa afetos desconhe-

cidos

ou

não-reconhecidos e os

traz à tona como

o

vir

a ser de

sua

personagem.

Não

são tão-somente romancistas, mas vêm a

ser eles

próprios.

(Deleuze e Guattari, 1994, p. 174)

A paixão

segundo G H é

uma narrativa

altamente

enganosa.

Tudo

muda

a

todo

o

momento.

As linhas

traçadas

no mural do

quarto

da empregada -

um

caleidoscópio - são

bastante

repre-

sentativas

de tais transformações. Nada

no

texto é o que

parece

ser, e todos os

elementos-

tempo, forma,

personagem

e

espaço

- enganam

cada

formulação preconcebida. A

barata não

é ape-

nas um

inseto; o

mural não

é

mera

decoração,

mas

é

também

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

131

Page 133: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 133/186

um código secreto em constante mutação; o quarto não é uma

quartinho inocente,

mas

imenso e aberto que conduz a múlti-

plos pensamentos.

E G.H.? Quem é a mulher, afinal? Ela é a protagonis-

ta/narradora

que

não

pode

ser

definida-

capturada

em

concei-

tos fixos- na

medida

em que ela se transforma junto com as li-

nhas

do texto. A subjetividade da mulher exemplifica perfeita-

mente o "vir a ser sujeito" (Braidotti, 1994, p.120) governado por

um

forte desejo

de

saber, isto é, de escrever,

mudar,

pensar, re-

presentar e transfigurar a realidade e as imagens do pensamento.

No

que

se refere à idéia de Deleuze, de "vir a ser", também é

importante notar que ele vincula

seu

conceito com o processo

de

"vir a ser

da

mulher", o

que

é bastante

apropriado em

relação

à

história

de

G.H. Em

Mille plateaux:

capitalisme

et shizophrénie

De-

leuze afirma que "vir a ser mulher" é pré-condição para todo o

processo

de

vir a ser (Deleuze e Guattari, 1988, p. 291). Ele ob-

serva que é a especial situação das mulheres em relação ao pa-

drão masculino que explica o fato de que os processos

de

vir a

ser, por serem minoritários, sempre passam por

um

"vir a ser

mulher" (Deleuze e Guattari, 1988, p. 291). Entretanto, Rosi

Braidotti questiona essa generalização,

argumentando que

nem

todos os processos de "vir a ser" são iguais. Ela enfatiza que

"Deleuze cai

em

contradição ao postular

um

"vir a ser mulher"

geral,

que

não leva em conta a especificidade epistemológica e

histórica do

ponto de

vista feminista/ feminino". (Braidotti,

1994, p.120)

Em A paixão

segundo

G.H., esse aspecto de "vir a ser" tam-

bém

deve ser

cuidadosamente

analisado. O itinerário filosófico

de

G.H. está realmente conectado a constantes transformações

que

se aplicam

à

totalidade da idéia

de

vir a ser

da

mulher. A

subjetividade feminina está vinculada,

no

texto, ao processo das

transformações

de

G.H. Não

voz masculina e nem

um

narra-

dor dominante

no

comando

da

história. A peregrinação

de

G.H.

vai

em

direção a uma dimensão mais ampla, como sugere o

termo "despersonalização", usado pela protagonista. Ela quer se

ver livre

de

tudo

que

tinha/

era antes, a fim

de

conquistar-se a si

mesma com maior profundidade e de tal modo que o "enten-

der"

não

seja mais necessário- [ ] não estou

entendendo

o que

estou dizendo, nunca Nunca mais compreenderei o que eu dis-

ser"

PSGH,

p. 183). O desejo

de

G.H. é, portanto, o desejo

de

conquistar outras formas de pensamento, que vão além da mera

3

Cláudia Nina

Page 134: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 134/186

racionalização daquilo que pode ser simplesmente entendido ou

interpretado. Em outras palavras,

ela

empreende

a

aprendiza-

gem do pensar de modo diferente . (Braidotti, 1994, p. 119)

4.5

ir a ser mulher

Mas de mim

depende

eu vir livremente a ser o que fa-

talmente sou. (PSGH, p. 128)

A

viagem interna

de G.H. e o

conseqüente

vir a ser

desen-

volvem-se

por

meio

de

uma

perspectiva feminina. O texto é cla-

ramente um texto feminino, no sentido em que a

narrativa

é

uma

reflexão sobre a

própria

experiência feminina - [ ]

ser

feminina também me foi

um

dom (PSGH, p. 33) diz G.H. Na

verdade,

o ponto

de

vista da protagonista é,

de todas

as manei-

ras,

feminino-

 Tive, sim, tive

ainda

o desejo

de

me refugiar

na

minha própria fragilidade e no

argumento

astucioso,

embora

verdadeiro,

de

que meus ombros eram

os de

uma mulher,

fra-

cos e finos

(PSGH,

p. 101).

Além

disso,

desde

o começo, as de-

mais personagens que surgem na

história

são também

fêmeas: a

empregada Janair e a barata, a quem G.H. se dirige empregando

palavras conjugadas

no feminino; é barata,

não

o inseto -

  Eu

só a pensara

como

fêmea,

pois

o que é

esmagado pela cintura

é

fêmea

(PSHG,

p. 97).

Um outro elemento que

deve

ser

visto

a

partir de uma

a-

bordagem feminina é a referência à

palavra

útero e ao fato de

que

o

quarto opera

em

G.H.

uma

espécie

de

fertilização . Co-

mo ela diz: [ ] o

quarto

morto

era

na verdade

potente (PSGH,

p. 51). E

também,

referindo-se à

barata

que

ali encontrara: Os

dois olhos

eram

vivos

como

dois ovários. Ela me olhava

com

a

fertilidade cega de

seu

olhar. Ela fertilizava a

minha

fertilidade

morta

(PSGH, p. 81). O útero,

com

freqüência, é

indiretamente

associado

ao nascimento

de Jesus Cristo,

como na

frase [ ]

bendito o fruto de teu

ventre

(PSGH, p . 87) e

ainda

como refe-

rência a

um

possível filho

de

G.H  :

[

]um

filho

no

meu ventre

estaria

ameaçado

de ser

comido pela

própria vida-morte, e sem

que uma palavra

cristã tivesse

um sentido Mas

é

que

há tantos

filhos no ventre que parece uma prece . (PSGH, p. 128)

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 133

Page 135: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 135/186

G.H. insere o feminino no coração da narrativa. De acordo

com Hélene Cixous, o romance é

um

espaço no qual a feminili-

dade está inscrita em cenas de risco. É um texto que salta, lar-

ga, perde, deixa as coisas se perderem, não se

prende

a nada,

não segura nada

(Cixous, 1990, p.

76).

Esse exercício, realizado

por meio

de

densas transmutações, como Cixous coloca, com-

bina com uma certa economia libidinosa (Cixous, 1990, p. 47),

na qual o que realmente interessa não é o objetivo em si, mas o

'rumo

a '. G.H. escreve o útero

de

um

modo

que apenas uma

escritora pode fazer, como explica Trinh Minh-ha em Wo 'f1an na-

tive

other:

[ ...

] escrever como um processo 'intrínseco'

de

nas-

cimento assume qualidades diferentes em contextos femininos.

Nenhum

homem

afirma

que

fala a partir

do

útero, mulheres

sim. O

lugar de

sua fertilização, elas insistem seguidas vezes, é o

útero, não a mente. Sua gestação interior se

no útero, não na

mente . (Minh-ha, 1989, p. 37)

Em Nomadic subjects, Rosi Braidotti analisa, com lucidez, o

romance, a partir

de

uma abordagem feminista e pós-moderna.

Ela considera paixão segundo G.H. um conto sobre o vir a ser

das mulheres: é sobre a

nova

subjetividade feminina (Braidotti,

1994, p. 194). O itinerário filosófico de G.H. exemplifica, para

Braidotti,

que

pensar é apenas uma forma

de

sensibilização da

matéria, é a forma específica da inteligência de entidades perso-

nificadas. Pensar é um processo corporal, não mental. Pensar

precede o pensamento racional . (Braidotti, 1994, p. 197)

Braidotti articula a conexão entre essas idéias e o sistema fi-

losófico

de

Deleuze. Ela observa

que

a disposição do sujeito

para

pensar, isto

é,

representar-se a si mesmo(a)

na

linguagem é

a base não-filosófica da filosofia que Deleuze defende (Braidot-

ti, 1994, p. 197). Para Braidotti, todo o conceito de pensar vem a

ser uma tentativa

de

criar outras maneiras

de

pensar, outras

formas

de

pensamento. Braidotti enfatiza ainda a responsabili-

dade para

com

o próprio ato

de

pensar. Como observou Clari-

ce Lispector, estamos alimentando o início do novo; o sujeito

feminino despersonalizado posiciona as fundações

para

a sim-

bolização

do

desejo ontológico das mulheres (Braidotti, 1994, p.

197). Em outras palavras,

paixão segundo

G.H. constrói a ex-

pressão

de

uma

nova maneira

de

pensar e uma nova subjetivi-

dade. Ele [o romance] nos mostra caminhos de transcendência

para

nosso gênero e para o próprio e descontínuo tempo

de

vir

a ser das

mulheres . (Braidotti, 1994, p. 204)

34 Cláudia Nina

Page 136: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 136/186

Movendo-se em direção à teorização de formas de

pensar

e

de vir a ser anti-patriarcais e alternativas, Braidotti estreita as

conexões entre a nova subjetividade que G.H. exemplifica e a

mobilidade física nomádica. Isso representa, até certo ponto, a

liberdade

intelectual/

criativa

para

inventar novas formas

de

pensamento . De acordo com ela:

[ .. ] vir a ser indivíduo com direito à mobilidade é magnífica faça-

nha para as mulheres.

A dimensão física é apenas

um

aspecto; mobilidade também refe-

re-se ao espaço intelectual de

criatividade,

ou

seja, liberdade para

inventar novas maneiras de conduzirmos nossas vidas, novos es-

quemas

de

representação

de

nós mesmas. Liberdade

da

mente

como a contraparte da mobilidade física; [

..

] Mobilidade como o

meio de alcançar

uma

representação mais

adequada

de nós mes-

mas. (Braidotti, 1994, p. 256

Historicamente, o espaço

de

passeios erráticos nomádicos

p r

excellence

é o deserto, que também traz em si, encapsulada,

uma abertura simbólica a diferentes maneiras

de pensar

e, por

extensão, de escrever. Afinal, como define Braidotti, os desertos

são

um mapa gigantesco de signos

para

aqueles

que sabem

ler

esses sinais, para quem sabe andar na natureza selvagem can-

tando

(Braidotti, 1994, p. 17). Na verdade,

em A

p ixão

segundo

G.H., a metáfora do espaço é um aspecto significativo

da

narra-

tiva. O minúsculo quarto de empregada onde G.H. confina-se

esconde

uma

vastidão aberta: um deserto por meio do qual ela

cruza fronteiras invisíveis.

Eu procurava

uma amplidão

[

..

]

E mais além, já o começo

das

areias. O deserto nu e ardente.

Quando caísse a escuridão, o frio consumiria o deserto, e nele se

tremeria como nas noites do deserto. Mais ao longe, o lago salgado

e azul cintilava. Para aquele lado, então devia ser a região dos

grandes lagos salgados. PSGH, p. 109)

De pé à janela, às vezes meus olhos descansavam no lago azul que

talvez não passasse

de

um pedaço de céu. Mas cansava-me logo,

pois o azul era feito

de muita

intensidade

de

luz. Meus olhos ofus-

cados iam então pousar no deserto nu e ardente, que pelo menos

não

tinha a dureza de

uma

cor. Daí a três milênios o petróleo secre-

to jorraria daquelas areias: o presente abriria gigantescas perspec-

tivas

um

novo presente. PSGH, p. 111)

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 35

Page 137: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 137/186

Os desertos têm uma

conexão

direta com

os

nômades, e

atravessar

a imensidão

interminável

é

uma

referência simbólica

e

também

bíblica)

para

o autoconhecimento. Vastas

áreas de

não-pertencer, isolamento, silêncio e alteridade, os desertos

são

o

espaço

de pensamento

e

meditação

por

excelência. Esse

espa-

ço é apropriado para ilustrar a busca literária de Clarice Lispec-

tor. O

deserto que

G.H.

atravessa

é

extremamente

significativo

como imagem.

Ele exemplifica

uma longa

trajetória filosófico-

literária rumo aos escritos nomádicos

que representam um nível

mais elevado de liberdade

artística e intelectual.

Quando eu

me refiro a

um

silêncio

que ecoa

no

deserto,

acredito

que

isso

não

contradiz

o fato

de eu

colocar

paixão se

gundo

G.H. como

obra mais próxima dos

escritos nomádicos

que

das narrativas do silêncio. É

de

suma importância

deixar clara es-

sa

questão, porque o silêncio

nos

escritos nomádicos aparece, im-

plícito, de

uma maneira totalmente

diferente. A

peregrinação de

G.H., como mostrei acima, faz-se via linguagem. No entanto, as

palavras

não

são

faladas, mas escritas. A

jornada

da

protagonis-

ta é

uma

tentativa

de autotransformação por meio das

palavras

que

ela escreve e que,

em

última

instância, transforma-se

no

romance

em

questão. A

vida

torna-se

sinônimo de écriture.

As-

sim, o silêncio refere-se à ausência de

palavras

faladas e

também

à

incapacidade

de

as

palavras

faladas

ou

escritas)

transmitirem

toda a

complexidade

da existência humana.

Quando

faço a observação de

que

as

personagens

do

ciclo

do

exflio são destituídas de palavras, o que estou

dizendo com

isso

é que elas são

incapazes

de articular

verbalmente seu

destino.

Por outro

lado, o

narrador

é

quem comanda

a

linguagem.

G.H.

tem

palavras- ela escreve, faz uma confissão. O silêncio não o-

corre

no

vácuo,

mas na plenitude

de

muitas

palavras

tentando

expressar o inexprimível.

4.6

onclusão

Em paixão

segundo G.H., a

protagonista

G.H. é a

profeta

de

seu próprio destino

e destinação. O

caminho

que

ela atravessa

no quartinho-deserto

é uma espécie

de

itinerário espiritual, si-

milar

a

uma peregrinação

da

alma

Nunes, 1988, p. 25).

É uma

busca

filosófica

que

implica o processo

do aprendizado de como

36

Cláudia Nina

Page 138: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 138/186

pensar de

modo

diferente,

para

além

de um

racionalismo limi-

tante.

O romance marca uma importante virada na obra de Clarice

Lispector, na direção dos posteriores

escritos nomádicos

nos

quais as palavras ecoam

na

vastidão e falham ao

não

consegui-

rem captar toda a

profundidade da

experiência

que

persona-

gens narradores empreendem. O

que

não

pode

ser inteiramen-

te verbalizado pertence a

um

outro nível de significância e não

ao vazio, como nos escritos

do

exflio. G.H. explica: [ ... ] pelo si-

lêncio onde enfim

eu

caíra, sabia que havia lutado, que havia

sucumbido e que cedera . (PSGH, p.

69

paixão segundo

G.H.

foi comemorado como um dos livros

mais densos

de

Clarice Lispector e

ainda

recebe

numerosas

lei-

turas críticas que o colocam entre os mais

estudados

de seus es-

critos. Acima

de

tudo, o romance tem um valor especial por ser

o texto ficcional em

que

a voz

do

eu está corajosa-

mente explorada, abrindo terreno para Clarice inscrever seu iti-

nerário nomádico.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 37

Page 139: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 139/186

Page 140: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 140/186

 

scritos nomádi os

Para além da orelha existe um som, à extremidade do

olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é

para

lá que eu vou. OEN, p. 90

Escrever reflete. Reflete sobre outros escritos e sempre

acontece

uma

conscientização sobre si mesmo en-

quanto

escrita.

Como

as caixas japonesas que contêm

outras caixas [ ..] escrever é enredar a própria escrita

com a reflexividade automática. Minh-ha,

Woman na-

tive

other p. 23

5.1

Introdução

Quando

Clarice Lispector retornou ao Brasil, teve de enfren-

tar grandes desafios e ajustar-se a um contexto completamente

diferente. Separada do marido, teve de trabalhar de

modo

inde-

pendente. Para sustentar-se com

seu

trabalho, a autora escreveu

para revistas e jornais trabalhou para o Jornal do Brasil de 1967 a

1973). Escrever sob encomenda era bastante difícil para quem

sempre

confiara na inspiração Gotlib, 1995, p. 417). Não obstan-

te, ela

continuou

produzindo

e

publicando

ficção. Fora

seu bem

sucedido romance

paixão

segundo G.H., dois volumes de con-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 39

Page 141: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 141/186

tos foram publicados: Laços de fmnílirz,

8

de 1960, e A legião estran-

geira,

de 1964.

A déc d seguinte não foi menos difícil. Clarice Lispector

foi demitid de seu cargo

no

Jornal

do

Brasil depois de sete anos

de

trabalho ininterrupto, o

que

a levou a fazer algumas tradu-

ções literárias, entre elas clássicos e best-sellers. Ao mesmo tem-

po, nov s antologias

de

contos foram lançadas:

Felicidade clan-

destina, foublicado em 1971, A

via

crucis do

corpo

9

e Onde

estivestes

de noite,

0

ambos publicados

em

1974. Apesar

d lut de

escrever

apenas pelo dinheiro, Clarice Lispector paradoxalmente estava

vivendo um momento rico de reciclagem de seu processo de

criação. Isso porque, estimulada pelo exercício

de

escrever crô-

nicas

p r

jorn is

e reler

seus

textos, ela se

viu

imersa

em

um

espécie de auto-reflexão literária. O contato direto e semanal

com os leitores dissolveu as fronteiras entre escritora e público,

ficção e realidade. Pela primeira vez, Clarice Lispector 1

:v

esta-

va falando por meio

de

vozes ficcionalizadas, m s empreg v a

própri voz.

O exercício

de

auto-reflexão t mbém originou-se d prática

de autoplágio . Muitas d s crônicas publicadas posteriormente

em

A

descoberta

do

mundo

estavam mais próximas

de

colagens,

de

um

colcha de retalhos feita de fragmentos originalmente

produzidos

p r outros textos. A autora costumava levá-los

de

um lug r p r outro, como

um

vez confessou: Eu estava es-

crevendo

um

livro, e então, como eu detestava escrever crôni-

cas, usei o fragmento que estava escrevendo

p r

o livro - defi-

nitivamente não era

um

crônica . (Gotlib, 1995, p. 375)

Cabe qui um pergunta: Terá tido essa literatura auto-

reflexiva

um

contraparte autobiográfica?

É

bem

provável

que

sim. Livre

d s

obrigações sociais e diplomáticas

que

ela

sempre

Clarice Lispector trouxe o livro já pronto dos Estados Unidos.

É

considerado

um

das melhores antologias de contos da autora.

A via

crucis

do corpo

foi

encomendado pelo editor Álvaro Pacheco, que, por tele-

fone,

pediu

a Clarice que escrevesse contos verdadeiros sobre sexo. Clarice

Lispector hesitou e sentiu-se um tanto quanto envergonhada, mas terminou acei-

tando a incumbência. Cf Gotlib, 1995, p. 416

20

Onde

estivestes

de

noite

também

pode

ser visto como

um

espécie de obra nomádi-

ca, de acordo com as idéias que or defendo. Entretanto, não o incluo em minha

análise porque acredito que essa é uma obra que estaria melhor bord d dentro

de

um

comparação com outros contos de Clarice Lispector. Contudo, faço uso

de muitas citações tiradas dessa obra para ilustrar o modo nomádico literário da

autora. Uma edição inglesa,

Soulstorm,

junta A via crucis do corpo e 011de

estivestes

de 11oite 

140 Cláudia Nina

Page 142: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 142/186

detestou,

a

autora tentava

solidificar

sua

carreira

de

escritora

independente

e seria, pela primeira vez, simples - e

plenamente

uma

escritora.

Começou

com

A paixão segundo G.H. Em uma

posição periférica , isto é, longe da confortável situação de es-

posa de diplomata que

vivia

na

Europa,

Clarice Lispector ten-

tou seguir seu próprio caminho, escrevendo como

um

meio de

reinventar não

só a vida,

mas também

a literatura. Em

meio

a

esse processo de

reciclagem , ela

produziu seus dois

livros

mais conhecidos internacionalmente: Agua

viva

e hora

da estrela.

Quando um primeiro manuscrito de Agua viva

ficou

pronto

(era uma

versão bem

diferente,

chamada

Objeto gritante , Clarice

Lispector

enviou-o em

1972,

com

uma carta,

para

o escritor e

professor de filosofia José

Amérlco Motta

Pessanha. Ele

leu

o li-

vro com alguma apreensão

e descobriu que Clarice Lispector

passava por um momento único em sua vida

e

em seu

trabalho:

um momento

de

encruzilhada

interior ,

definitivamente

trans-

posto para

as

páginas daquela

preciosa novela (Ferreira, 1999, p.

259). O

manuscrito que

Pessanha teve em mãos

era mais

auto-

biográfico

que sua versão

final,

Agua viva.

2

Analisando

e com-

parando o primeiro manuscrito

com

a

versão

publicada,

Marta

Peixoto

observa

que as

principais mudanças foram

feitas

na

verdade para eliminar a

persona

autobiográfica (Peixoto,

1994, p. 64). Clarice Lispector apagou

alguns dos

traços

auto-

biográficos

mais

fortes,

basicamente

influenciada

pela leitura de

Pessanha.

Mesmo

depois das mudanças,

o texto

mantinha-se

forte-

mente intimista,

embora

não haja referências diretas à vida de

Clarice Lispector.

No presente

estudo,

tento afastar-me

do

bio-

gráfico, mas é inegável que Clarice estava tentando, corajosa e

livremente,

atingir

esferas

mais

pessoais

em seus últimos

traba-

lhos, abordando a literatura por um viés diferente.

Como

escre-

ve

Peixoto,

[ ] a percepção de elementos autobiográficos permite-nos reco-

nhecer tanto seus componentes ficcionais

quanto

sua representa-

ção

das oscilações psíquicas que impulsionam a imaginação de

Clarice Lispector.

21

Em Iam a question há uma

grande

quantidade de informações detalhadas

sobre

todo

esse episódio (Ferreira, 1999, p. 257).

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 4

Page 143: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 143/186

De fato, esse período representou

uma

"encruzilhada" na

carreira de Clarice Lispector, que, no fim dos anos 70, coincidiu

com seu delicado estado de saúde e subseqüente morte, de cân-

cer, em 1977. Pouco antes

de

sua morte, Clarice finalizou A hora

da

estrela

e

também produziu

os trechos

de

Um sopro

de

vida

cujos fragmentos sua amiga e confidente Olga Borelli

juntou,

editou

e publicou em 1978.

No

prefácio do livro póstumo, Borel-

li relembra o longo processo de reunir notas em diferentes horas

do

dia, desde 1974 até a véspera

da

morte

da

autora,

em um

trabalho feito "em agonia", como Clarice descreveu.

 

A própria criação desses três livros - Água viva A hora da es

trela e Um sopro de vid foi nomádica por natureza. Por vezes,

as notas "viajavam" de um lugar para outro, de um meio de

comunicação

para

outro, de certas mãos

para

outras, até que

tomassem seu devido curso. Naquelas páginas, pedaços foram

agrupados em uma espécie de bricolagem, mas poderiam mui-

to

bem

fazer

parte

de qualquer

outro

lugar - eram intercam-

biáveis. Essa fase em particular

na

carreira

de

Clarice Lispector

ficou definida pela própria autora como "a hora do lixo" (Gotlib,

1995, p. 417), referindo-se àquele preciso

momento de

criação.

Como observa talo Moriconi, o aspecto radical desse perío-

do

está intimamente associado à natureza de textos como Água

viva. Essa fragmentação radical interage com

um

aspecto jorna-

lístico,

uma

comunicação entre gêneros definida por Moriconi

como um sistema de interação errática". (Moriconi, 2001, p.

215)

A própria

natureza

desses últimos escritos - em forma e

substância - mostra

uma

evidente transição na trajetória literá-

ria de Clarice Lispector que, em muitos aspectos, coloca a autora

na direção

de

uma

ficção pós-moderna. Isso porque, a partir

de

então, a reflexão sobre o discurso vai para o primeiro plano, e a

écriture

fica sendo, ela mesma, o tema principal. Como observa

Brian McHale, "Ficções pós-modernas [ ..] são ficções sobre a

ordem

das

coisas, discursos que refletem sobre os mundos dos

discursos" (McHale, 1992, p.164). A ficção pós-moderna é por-

tanto,

uma

arte que

derruba

ilusões,

na

medida em

que

ela "per-

turba de modo sistemático o clima de realidade

no

momento em

22

A citação

é apresentada no

prefácio

de

Olga Borelli. na edição original

de Ag n

VIVa

42 Cláudia Nina

Page 144: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 144/186

que

traz

para

o primeiro plano a estrutura ontológica

de

textos e

de

mundos

ficcionais . (McHale, 1992, p. 164)

Nesse sentido, vejo a trajetória de Clarice Lispector como

uma

caminhada

na direção de uma abordagem

nomádica

da li-

teratura em

conexão com

uma

evolução

pós moderna

natural,

pois

suas

últimas obras

ilustram

claramente esse espírito literá-

rio de refletir sobre seus próprios mecanismos num exercício

aberto

de

escrever sobre escrever . Mesmo

em hora da estrela

em que há

um

enredo e uma história mais ou

menos

linear, o

texto é fraturado e altamente não-convencional, cheio

de

comen-

tários auto-reflexivos, em que a literatura, a lingua(gem) e a

questão

da ident

i

dade

são o tema. Todas as três expressam

um

agudo senso

de

lib

erdade

frente a padrões literários, refletindo a

necessidade premente de ir além dos limites da criação ficcional,

a fim de quebrar regras e partir

em

direção a itinerários impre-

visíveis.

5.2

tinerários nomádicos

Meu maior

medo

é ficar petrificada: vir a ser uma ár-

vore, fincar raízes e

não poder

me movimentar. Tenho

medo da imobilidade, de ficar presa em uma só di-

mensão espaço-temporal. É uma variação do medo da

morte, de transformar-me em

pedra

e não mais ser

capaz de

me

movimentar. (Rosi Braidotti, Women 's

education

des

femmes

p.

4)

[ ..] existe uma força visionária, uma força de vida

em

Clarice Lispector,

que

poderia ser descrita como a ar-

quitetura de um novo tempo presente , uma nova

civilização

para

a qual as condições n priori estão sen-

do definidas hoje. (Rosi Braidotti, Pntterns of disso-

nance p. 283

Em

Nomadic subjects

- Patterns

of

dissonance Rosi Braidotti

traça

um

itinerário intelectual

nom

ádico altamente aplicável aos

últimos escritos de Clarice Lispector. Braidotti aproxima a con-

dição existencial nomádica (que é pessoal e intelectualmente

sua) a novos

modos

de pensamento próximos a sistemas pós-

modernos e a uma subjetividade fêmea alternativa, descentra-

lizada  . A definição de nômade é importante para a descoberta

A palavra usurpada: exilio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

43

Page 145: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 145/186

de

paralelos entre os pensamentos

de

Braidotti e a estética

de

Clarice Lispector: O

nômade

é minha própria figuração de um

entendimento situado, pós-moderno, culturalmente diferencia-

do do sujeito em geral e do sujeito feminista em particular .

(Braidotti,

1994,

p.

5)

Para Braidotti, esse novo nomadismo não está essen-

cialmente ligado ao ato físico de viajar, mas a

uma mudança

pa-

ra além da hegemonia do sedentário e falocêntrico monologis-

mo do pensamento filosófico (Braidotti, 1994, p. 30) e, portanto,

vinculado a uma consciência crítica que resiste a estabelecer-se

em modos socialmente codificados de pensamento e comporta-

mento (Braidotti, 1994, p. 5). Esse posicionamento crítico esta-

ria intimamente relacionado ao feminismo enquanto processo

de vir a ser e de transformação criativa. Como ela coloca:

Sujeitos nomádicos são capazes de libertar a atividade de

pensar

de seu jugo dogmático falocêntrico, devolvendo ao

pensamento

sua

liberdade,

sua

vivacidade,

sua

beleza. Existe uma forte dimen-

são estética na busca por figurações nomádicas alternativas, e a te-

oria feminista - como eu a pratico - é instruída por essa força no-

mádica e plena

de

alegria. (Braidotti, 1994, p.

8

Em

atterns of

dissonance -

  study of

women in contemporary

philosophy

(1991),

Braidotti

dera

início

à

discussão do novo no-

madismo, ressaltando o fato de o feminismo ser uma importan-

te forma de resistência

que

coloca a racionalidade não só contra

o modo dominante, mas também a favor do múltiplo e plural

discurso

da

mulher. (Braidotti, 1994, p. 94).

Contudo, não

é

apenas isso, porque o que está em jogo é uma completa redefi-

nição

do que

significa pensar, e

de

como o

pensamento

relacio-

na-se com a razão teórica (Braidotti, 1994, p. 278). Ela se propõe

a desenvolver maneiras múltiplas e transversas de pensar o vir

a ser da mulher . (Braidotti, 1994, p. 279). Sugerindo

que

todas

as feministas

devam

cultivar

uma

consciência nomádica, Brai-

dotti compara a posição periférica e minoritária

de

um(a) pen-

sador(a) nomádico(a) aos

nômades

reais- uma espécie atual-

mente em extinção-, que também ocupam uma posição margi-

nal política e geográfica.

Braidotti inspira-se nos estudos colaborativos de Deleuze e

Guattari, referentes à elaboração de

uma

nova imagem

da

filo-

sofia (identificada com pontos

de

escape

de

modos falocêntricos

de pensamento), e

no

conceito de rizoma , essencial à análise

44 láudia Nina

Page 146: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 146/186

dos

escritos nomádicos

de Clarice Lispector. Para Deleuze, o sis-

tema rizornático tem alguns princípios básicos

que

definem

sua natureza, tais corno a possibilidade de criar um

número

in-

finito

de

conexões,

ocupando

n dimensões

em

incontáveis li-

nhas

de

fuga - Ces lignes ne cessent

de

se renvoyer les unes

aux autres.

C'est

pourquoi

on

ne

peut

jamais se

donner

un

dua-

lisrne ny une dichotornie, rnêrne sous la forme rudirnentaire

du

bom et du rnauvais . (Deleuze e Guattari, 1976, p. 28)

Deleuze aproxima o rizorna à nornadologia e cita exem-

plos

de

obras literárias que o representariarn,

  3

marcadas pelos

sistemas descentralizados e anti-hierárquicos, nos quais

não há

nada

a interpretar e

nada

a significar,

mas muito

o

que

experi-

mentar

- Rien à interpréter ni à signifier, mais

beaucoup

à ex-

périrnenter . (Deleuze e Guattari, 1976, p.72)

Para explicar mais claramente a idéia confinada

por

detrás

do conceito de rizorna em

sua

multiplicidade e em suas cone-

xões tipo rede, Deleuze torna emprestados alguns exemplos

da

natureza

-   On

n'en

finit

pas

avec les fourrnis, parce qu'elles

forrnent un rhizorne animal dont la plus grande partie

peut

être

détruite sans

qu'il

cesse

de

se reconstituier . (Deleuze e Guatta-

ri, 1976, p. 27

Contrário à lógica binária que domina a psicanálise, a lin-

güística e também a informática, o rizorna opera indiretamen-

te. Corno afirma Deleuze, opondo os sistemas rizornáticos ao

sistema de árvores (raízes): A árvore lingüística chornskiana

começa sempre em

um

ponto S e segue por dicotomia. Em

um

rizorna, pelo contrário, cada traço

não

remete necessariamente a

um

traço lingüístico . (Deleuze e Guattari, 1976, p.18)

Urna

outra

metáfora, a do mapa, também é útil. Deleuze

compara o rizorna às linhas de um mapa, abertas, conectadas

a diferentes pontos, feitas

de

múltiplas entradas e sujeitas a

constantes modificações, sem fim nem começo. Deleuze acredita

que

um

livro, do mesmo modo, transmite e representa a ima-

gem do mundo: Escrever não tem nada a ver com significar,

mas sim

com traçar linhas, cartografar . (Deleuze e Guattari,

1976, p.12)

23

a

dislocation

de Armand Farrachi, onde: as frases afastam-se e se

dispersam,

ou

então colidem e coexistem, e as letras, a tipografia, se põem a dançar, à medida

que a cruzada delira (Deleuze e Guattari, 1976, p. 72).

A

palavra usurpada:

exílio

e nomadismo na obra de Clarice Lispector

45

Page 147: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 147/186

Como o rizoma , os sujeitos nomádicos simbolizam deslo-

camento e dispersão, e Braidotti reconhece o rizoma como

sendo essencial a toda construção de figuração nomádica: O ri-

zoma

é uma raiz

que

cresce subterrânea, ladeada; Deleuze colo-

ca-a em oposição às raízes lineares das árvores. Por extensão, é

como se o modo rizomático expressasse uma maneira

não

-

falocêntrica de pensar: secreta, lateral, espraiada, em oposição

às ramificações visíveis e verticais das árvores ocidentais do co-

nhecimento . (Braidotti, 1994, p. 23

Esses conceitos combinam com

um

tipo de texto capaz de

acompanhar

o movimento dos nômades, refletindo a mudança

para além de

um

centro de comando e hegemonia, não-fixo a

uma

estrutura

organizada. Fragmentação,

perda

de

unidade

e

dissolução de fronteiras estão entre as características da literatu-

ra nomádica. Além disso, é

um

tipo de texto que desestabiliza

significados do senso comum e desconstrói formas estabeleci-

das de consciência (Braidotti, 1994, p. 15). Na verdade,

não

é

uma

questão de simplesmente inventar novas palavras. Pode-se

exercitar a linguagem literária nomadicamente sem criar neolo-

gismos.

É

um

sentido mais

amplo

de

criação.

Vejo claramente,

na

maioria dos últimos escritos

de

Clarice

Lispector, esse modo nomádico de pensamento, em um campo

aberto de experimentação e criatividade onde há rien à inter-

préter mais beaucoup à expérimenter (Deleuze e Guattari,

1976, p. 12). A consciência subjetiva nos escritos nomádicos de

Clarice Lispector - estilhaçada,

descentrada

- experimenta o

aprendizado da liberdade verbal em oposição às vozes exíli-

cas

oprimidas

das

narrativas

do

silêncio

Não

há outro

refúgio

que

não a liberdade, como declara a

narradora

de gua viva:

Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade [

..

]

sou

heroicamente livre . AV, p. 16

A mudança representou uma maturação natural

da

obra de

Clarice. Mesmo que o resultado não tenha sido aplaudido por

todos, fica claro que os textos de Clarice Lispector cresceram

na

direção de

um modo

nomádico, tanto em forma

quanto

em

substância.

Há uma

perfeita consonância entre a

maneira

como

esses trabalhos foram escritos - nomadicamente,

por assim di-

zer- e sua formatação e conteúdo.

Alguns críticos aplaudem, elogiando as qualidades

da

des-

truição poética,

enquanto

outros asseveram que os escritos fica-

ram

por

demais

pessoais. De fato, como ressalta Olga

de

Sá, a

146

láudia Nina

Page 148: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 148/186

autora cresceu na imperiosa direção de si mesma (Sá, 1983 a p.

220). Não só porque Clarice Lispector incluiu ecos da própria

voz

em

suas últimas ficções, mas principalmente porque alterou

seus caminhos numa direção mais libertária em seus

escritos no-

mádicos. Foi, naturalmente,

um

risco,

mas

Clarice Lispector pa-

recia estar consciente disso:

O morro dos ventos uivantes

me

chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto. (OEN, p. 91)

5.3

Linhas de êxtase e dispersão

É

com uma alegria tão profunda.

É

uma tal aleluia.

SV, p.

9

O

meu

mistério é

que eu

ser apenas um meio, e não

um fim, tem me dado a mais maliciosa das liberdades

[ ] LE, p 64

Publicado em 1973,

gua

viva pode realmente ser descrito

como uma radical experiência literária. O livro destrói os pa-

drões

da

narrativa tradicional, tais como gênero, enredo, perso-

nagem, espaço e tempo, apresentando,

em

vez disso, apenas

uma voz em solilóquio - voz de quem, afinal? Essa voz desco-

nhecida espalha seus ecos ao longo da narrativa, tecendo co-

mentários sobre vários assuntos de maneira caleidoscópica: re-

ligião, amor, arte, felicidade, silêncio, flores, criação, morte

Um monólogo com a vida (Peixoto, 1994, p. 61), como deixa

implícito o subtítulo de um manuscrito do livro, antes da versão

definitiva.

Nada disso parece altamente inovador no panorama inter-

nacional, uma vez

que

os escritores

modernos europeus

já ha-

viam percorrido essa mesma trilha. Na verdade, como ressalta

Hélene Cixous, a própria Clarice já havia introduzido

parte

des-

sa técnica inventiva em

Perto do

coração selvagem, em que os re-

cursosnconscientes (Cixous, 1990, p. 30) também surpreendem.

Mesmo assim,

gua

viva

representou muitos passos à frente e

um

momento

importante

na

literatura brasileira, bem como no

estilo da autora, embora Clarice fosse bastante reticente quanto

ao livro. É

por

isso que a

produção

de

gua

viva tomou-lhe mui-

to tempo, até

que

a versão final fosse enviada às editoras. Te-

mendo que os críticos não gostassem, ela decidiu outra vez

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

47

Page 149: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 149/186

mandar o manuscrito a

um

amigo, Alberto Dines, à procura

de

conselhos e sugestões. Para sua grata surpresa, Dines ficou en-

cantado

com

o que leu:

É

menos um livro-carta e, muito mais,

um

livro-música. Acho

que

você escreveu uma sinfonia . (Fer-

reira, 1999, p. 260)

Com o passar dos anos, gua viva mostrou-se igualmente

bem

acolhido no cenário internacional. Earl Fitz escreve que, as-

sim como

paixão segundo

G.H. deve ser considerado

um

dos

romances mais poderosos

da

América Latina nos anos 60 (Fitz,

1985, p. 86),

gua viva

também posiciona-se como um notável

êxito literário dos anos 70. Ele descreve a novela como

um

mo-

nólogo contínuo em forma de carta (Fitz, 1985, p.

85

que, por

vezes, assemelha-se a um poderoso

poema

visual (Fitz, 1985,

p. 85), refinando as inter-relações fenomenológicas de lingua-

gem, identidade e realidade.

Realmente, gua viva assemelha-se a um poema em prosa,

embora seja inútil tentar classificá-lo. Esta é a idéia

do

livro: cri-

ar algo

que

não pode ser totalmente compreendido

ou

mesmo

fixado em categorias específicas. A voz narradora orienta o lei-

tor

quanto

à

experiência.

Os que

não conseguem

acompanhar

um movimento assim, dele não deveriam tomar parte -   Quem

me

acompanha

que

me acompanhe: a caminhada é longa, é so-

frida mas é vivida . SV, p. 21

gua viva mostra

um

comando criativo da língua portugue-

sa, redefinindo-lhe as margens e desfazendo significados do

senso

comum

ou, melhor ainda, como escreve Braidotti acerca

de escritores poliglotas , redesenhando as fronteiras

da

cida-

dela

da

língua (Braidotti, 1994, p. 15 . Esse é,

de

fato,

um

aspec-

to geral

da

obra de Clarice Lispector, e não uma particularidade

de

gua viva

Contudo,

eu

considero

que

esse livro, escrito em

1973, é a arena onde Clarice desenvolveu em plenitude seu co-

mando inovador e idiossincrático

do

português, fazendo uso de

uma

radical fragmentação- em forma e conteúdo; esfacelam-se

não somente as estruturas organizadas em início, meio e fim,

como

também

a estrutura lógica do pensamento.

Trata-se

de uma

destruição poética, e não trágica. De fato,

Clarice Lispector

manipulou

o português dominante , confor-

me usado pelos letrados , mas, em nome

da

criatividade, não

restringiu-se a suas regras clássicas. A autora,

de

certa maneira,

decompõe as estruturas internas da língua, brincando com as

possibilidades de multiplicidade no nível

da

sintaxe. Aqui, De-

  48

Cláudia Nina

Page 150: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 150/186

leuze é novamente uma referência importante quando observa:

Pode-se sempre operar as decomposições estruturais internas

sobre a língua [ ..]um

método

do tipo rizoma

não pode

analisar

a linguagem senão descentralizando-a em outras dimensões e

outros registros.

Uma

linguagem jamais se fecha sobre si

mesma

senão numa função de impotência . (Deleuze e Guattari, 1976,

p

21)

Clarice Lispector tinha plena consciência

de

seu estilo des-

construtivo. Ela teve mesmo de defendê-lo contra os ferrenhos

defensores dos padrões

da

língua portuguesa.

Uma

vez ela es-

creveu

uma

nota ao tipógrafo, pedindo-lhe que não corrigisse

seu

texto: Agora

um

pedido: não

me

corrija. A

pontuação

é a

respiração

da

frase, e minha frase respira assim.

E,

se você

me

achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me res-

peitar . (DM, p. 70)

A

écriture

está, portanto, implodida. Há um convite aberto

à

recriação

de

significados e sensações. Uma subjetividade des-

centrada fratura conceitos do senso comum a fim de capturar o

que

vem

dito nas entrelinhas. O processo representa uma trans-

figuração

da

realidade, como diz a voz narradora:

Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e so-

nâmbula,

me

cria. E

eu

inteira rolo e à medida que rolo no chão

vou me acrescentando

em

folhas, eu, obra anônima de uma reali-

dade

anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E de-

pois? Depois tudo o que vivi será um pobre supérfluo[ ..]

Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. [ ..] improviso

como no jazz improvisam música, jazz

em

fúria, improviso diante

da

platéia.

SV,

p.

22)

A prosa assume uma vigorosa força poética, energicamente

desestabilizando leituras confortáveis. Deve ser uma tarefa dura

traduzir qualquer

um

dos livros

de

Clarice Lispector, como ob-

serva o tradutor

Alex Levitin

em

sua versão inglesa

do

volume

Soulstorm

Ele escreve que para traduzir Clarice Lispector- um

gênio flagrantemente idiossincrático - as traduções devem

ser imperfeitas: Se o tradutor produz uma versão em inglês

acessível e

de leitura suave, terá sido infiel ao original.

Se

ele se

esforça em ser fiel, será acusado de inépcia . (Levitin, 1989, p.

171

Agua viva não localiza os leitores no espaço, e o único tempo

descrito é o instante-já , sempre metamorfoseado sem cessar-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

49

Page 151: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 151/186

 Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e ou-

tros

nascem

fixo os instantes de metamorfose [

..

] SV, p. 13 .

Não há capítulos, nem divisões internas, à exceção

de

alguns

espaços em branco entre um fragmento e outro, reduzidos na

edição

em

língua inglesa. Não

começo

nem

fim, apenas

meios , e pode-se entrar no texto em qualquer ponto, como em

um

mapa. Todas as portas estão abertas, como se as linhas es-

tivessem sendo espalhadas constantemente e em diferentes di-

reções: O

que

te escrevo não tem começo: é

uma

continuação.

Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se

um

halo que transcende as frases[ ..] . SV, p. 49

As linhas

de

fuga , dispersas e multiplicadas, refletem, co-

mo já disse anteriormente, seu processo de criação. Na biografia

Eu

sou uma pergunta

Teresa Cristina Montero Ferreira lembra o

sistema caótico de criação

de

Clarice Lispector, especialmente

em

seus últimos escritos, quando ela também trabalhava como

jornalista. Clarice vivia e trabalhava no caos (Ferreira, 1999, p.

228), e as notas literárias eram feitas em todo tipo de papel às

vezes até guardanapos, talões

de

cheques, papéis

de

propagan

da. Parte deles ficava

sempre

esquecida, e ela nunca lembrava

de

juntá-los.

gua viva

foi um livro escrito assim, em

uma

escuridão cri-

ativa. Escuridão lúcida : Mas eu mesma estou na obscuridade

criadora. Lúcida escuridão, luminosa estupidez SV, p. 36).

É

por

isso que os fragmentos estão potencialmente conectados

com outros pontos, escapando do tempo e do espaço, como li-

nhas viajantes, virtualmente capazes de se ligarem - faire

rhizo-

m

em

quaisquer outros contextos.

Uma

espécie

de

transmi-

gração auto-intertextual (Galvão, 1996, p. 11 cria a rede de

muitas conexões, como Walnice Nogueira Galvão observa na

apresentação de uma antologia dos melhores contos de Clarice

Lispector:

Os

textos

de

Clarice Lispector são

dotados de

mobilidade, e é

por

isso

que

os leitores conseguem redescobri-los

em

lugares inespera-

dos. Uma crônica

publicada pode

reaparecer integrada em um

conto escrito mais adiante.

Um

fragmento

de

um

romance

emerge

como

um

conto

independente.

Um conto tem

seu

título mudado e

é

reeditado em uma outra

antologia.

Um

texto volta reduzido a

fragmentos,

ou

muitos fragmentos jtmtaram-se

para

constituir um

texto mais longo. Descobre-se

que um

livro é agora dois livros. Es-

sa

é uma

metamorfose contínua que,

embora

já tenha sido obser-

15

Cláudia Nina

Page 152: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 152/186

vada pelos críticos, ainda está à espera de novos estudos. (Galvão,

1996,

p.

11)

Esse processo lembra o conceito

delueziano

de

desterrito-

rialização ,

de

acordo com o

qual

os rizomas

expandem suas

linhas em direções imprevisíveis, como sementes

carregadas

pe-

la corrente d'água.

Como

escreve Deleuze, o rizoma

opera

via

ruptura e infinitas conexões - alongar, prolongar, substituir a

linha

de fuga, fazê-la

variar

[ ..] Escrever, fazer rizoma, aumen-

tar seu

território através da desterritorialização (Deleuze e

Guattari, 1976, p. 34).

Em

Agua viva o fluxo

de

palavras real-

mente cria um tipo de corrente d'água , conforme sugere o tí-

tulo,

em que

as palavras são

transportadas

para

diferentes dire-

ções. Como diz o texto: Para onde vou? E a resposta é: vou .

SV, p. 29)

A ordem

narrativa

é

substituída

por uma ordem orgânica ,

como

enfatiza Cixous (1979a:x). Já na

primeira página

o movi-

mento orgânico apresenta-se: [

..

] agora quero o plasma-

quero

me alimentar diretamente da

placenta SV, p. 3). A

palavra

placenta é importante. Ela representa não só o

corpo

inscrito

no

texto,

mas

também algumas das

metáforas mais

fortes

da

obra,

que

têm a ver com nascimento e fertilidade. A narradora

refere-se muitas vezes ao fato de que ela está

nascendo

ao mes-

mo tempo que a

écriture

está

sendo

criada. Sinto-me

tonta

co-

mo quem vai nascer SV, p. 35). O processo de estar se

criando

enquanto cria e em constante transformação reflete, portanto,

um

ritmo

orgânico, biológico. A voz escreve

com

o corpo , se-

guindo o fluxo

da pura

intuição - Mas

estou

tentando escrever-

te

com

o corpo todo,

enviando

uma

seta

que

se finca

no

ponto

tenro e nevrálgico

da

palavra . SV, p. 12)

Vou adiante

de

modo intuitivo e sem procurar uma idéia:

sou orgânica SV, p. 23),

diz

a

narradora.

O adjetivo

orgân

ica ,

com desinência do feminino, mostra que

quem

está escrevendo

é

uma mulher.

Há uma tentativa evidente de fazer o texto soar

altamente

feminino,

explorando

os insights

da persona

autobio-

gráfica,

abertamente

anti-racional, que vai até as profundezas

da

criação,

onde

há conflito, solidão, êxtase,

morte,

alegria e

mágica. A mulher é

portanto,

o sujeito que vem a ser de sua

própria história,

expressando

a

vontade de

saber, o desejo de

falar, pensar e representar (Braidotti, 1994, p. 120).

Como

es-

creve Peixoto, é

uma

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5

Page 153: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 153/186

tentativa de sintonizar e ostentar fontes alternativas de força cria-

tiva: o místico (embora não o religioso), o intuitivo, o mágico. Em

seu elaborado empreendimento de um processo criativo que é an-

ti-racional e, como tal, coloca-se como antimasculino, a novela ofe-

rece

um

retrato intenso

de

uma

subjetividade

em

luta com forças

conflitantes e de uma interioridade que tenta chegar a um acordo

com as depleções do tempo, da solidão e da morte, bem como com

momentos de esmagadora persuasão de que ela está em contato

com forças enaltecedoras que não estão disponíveis aos mortais

comuns. (Peixoto, 1994, p. 72

Esse

movimento,

governado pela intuição,

está de algum

modo

ligado à busca

do

sublime feminino ,

presente

em mui-

tos textos

de

Clarice Lispector e,

em

especial,

gua

viva.

Como

sugere

Italo Moriconi, a

obra pode ser lida em termos de

o su-

blime feminino estar associado à valorização

das

atividades

sublimes de pintura/escritura,

que já eram características proe-

minentes do primeiro trabalho da autora . (Moriconi, 2001, p.

214)

Tal conceito leva-nos a um artigo de Patricia Yaeger sobre o

tema,

no qual

ela sugere

que, em

décadas recentes, as

mulheres

começaram

a escrever

no modo

sublime ,

de

uma

maneira

a

inserir em sua

prosa o desejo pelo

poder

feminino. literatura

feminista francesa é

um

exemplo disso. Para Patrícia Yaeger:

O

ônus da escritura feminista francesa é

que

as mulheres precisam

criar

uma

nova

arquitetônica de autorização

- não através

do

antiquado sublime de dominação

[

..],mas, pelo

contrário,

atra-

vés de

um

sublime horizontal que movimenta-se

em

direção

à

soberania ou ao excesso . (Yaeger, 1989, p. 191)

Nesse

fluxo

de palavras em

ininterrupta continuidade,

a

voz

feminina está,

como

argumentei, obviamente privilegiada. Eis-

so está,

por sua

vez,

em

flagrante contraste com

os escritos

do

exí-

lio.

Se nas

narrativas

do silêncio as vozes das mulheres eram si-

lenciadas, fracas e totalmente desprovidas de força e de poder

de

comando,

incapazes de expressar

sua

subjetividade,

em

gua

viva

tem-se exatamente o oposto. Aqui, o silêncio

não

está

vinculado

ao

sentimento de angústia, solidão, ou deslocamento

social. Existe um audiência viva e expectante (não são

pedras,

como

em maçã

no escuro . gua viva é cheio

de

um sentimento

de alegria, como fica evidente logo na primeira linha do livro,

com a referência

à

alegria profunda

SV,

p. 9 que anima a voz

narradora.

52 Cláudia Nina

Page 154: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 154/186

O silêncio aparece

no

texto não no vácuo

da

não-

comunicação. Ele acontece a partir do esforço

de

capturar o que

é hiperlingüístico , como ressalta Hélene Cixous:

É

o próprio

silêncio

que

se torna solo fértil para a verbalização. [ ..] Clarice

luta

contra o silêncio

do

texto,

do

papel do

texto (Cixous,

1989a, p. XVI). O silêncio surge, portanto, como eco do que não

pode

ser

alcançado/

dito em plenitude. Como diz o texto: E

um

silêncio evola sutil do entrechoque das frases .

SV,

p. 21)

Toda a obra é governada

por um

fluxo

de

palavras

em

con-

tinuidade fragmentária que estreita sua ligação com

uma

espé-

cie

de

textualidade nomádica,

que

implica movimento sem

qualquer referência a um centro de origem ou a um destino

predeterminado, exatamente como as linhas

de

fuga

propostas

por Deleuze. Além disso, apesar da liberdade e da alegria em

forma de êxtase que perpassam o relato, também há morte em

Agua ·uiva. Contudo,

não

é o mesmo tipo

de

morte

que

ata as

pontas de O

lustre

a monótona e imóvel vida-objeto de Lucré-

cia,

ou

mesmo o assassinato que assombra a mente

de

Martim. É

a morte como parte da própria vida. Um movimento orgânico

que forma o curso

natural de tudo

que existe. Nascimento e

morte. Nascimento. Morte. Nascimento como uma respira-

ção

do mundo .

SV, p.

39)

Como nos demais escritos nomádicos, Clarice Lispector cria

em

Agua

viva mais do que simplesmente vozes literárias filosófi-

cas. Ela também cria uma geografia muito particular: o lugar do

eterno tempo presente, um lugar enfeitiçado , como sugere

Lúcia Helena

em

Nem musa nem

medusa

(Helena, 1997, p. 74),

onde tudo

parece ser criado

dentro

do

tempo

da

leitura. Esse

lugar

pode ser

qualquer

coisa -

um

labirinto,

um

deserto

ou um

mapa-

contanto que não tenha nem começo

nem

fim.

5.4

A hora da estrela nos b stidores d liter tur

[

..

] não sei se

minha

história vai

ser-

ser o quê?

Não

sei

de

nada, ainda não

me

animei a escrevê-la. HE, p.

36

O domínio narrado é um mundo

do

processo de vir a

ser, progressivamente tomando forma na medida em

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 153

Page 155: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 155/186

que vai sendo narrado, não

um

todo amarrado. (Uri

Margolin, Ofwhat

is

past p. 152)

Publicado alguns meses antes da morte de Clarice Lispector,

hora

da

estrela

foi elogiado

por

críticos como a primeira real

tentativa da autora de lidar com as questões sociais brasileiras.

O tema são os sofrimentos

dos

que emigram do Nordeste, seco e

pobre, para as regiões mais ricas

do

país, em busca de melhores

oportunidades de vida e trabalho. Não obstante, a literatura

social produzida por Clarice em hora da estrela é altamente

irônica, se a comparamos com outros escritos sobre o tema, co-

mo, por exemplo, Vidas secas de Graciliano Ramos. Clarice Lis-

pector

transportou

a aridez

dos

sertões

para

as

ruas

do

Rio

de

Janeiro, a metrópole internacional, fazendo da cidade o cenário

de sua novela paródica. A autora admite, ironicamente, a difi-

culdade

de

escrever o texto, pois, para

produzir

um relato como

esse, foram necessários dois instrumentos fundamentais. simpli-

cidade e pobreza, que ela só pôde alcançar com sacrifício -   Que

ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito

trabalho . (HE, p. 25

Na

verdade,

hora

da

estrela

é

uma

narrativa

em

múltiplas

camadas. O enredo é apenas superficialmente a história de uma

mulher

pobre

e errante em uma metrópole hostil,

que

acaba

sendo atropelada. Nessa obra complexa e elaborada, um narra-

dor

masculino, Rodrigo S.M., conta a história de Macabéa, a

nordestina jovem e miserável

que

se

mudou

recentemente para

o Rio de Janeiro. Com fome, perdida, magra, marginal e deslo-

cada, ela tenta sobreviver de algum modo, trabalhando como

datilógrafa (ela

mal

sabe escrever)

em

um

escritório, junto

à

sua

colega de trabalho, Glória,

que

se torna sua rival depois de se-

duzir-lhe o namorado, Olympio de Jesus, também nordestino.

ainda

uma vidente (personagem-chave)

chamada

Ma-

dama

Carlota, a

quem

Macabéa consulta à procura de

um

desti-

no

melhor.

Após

o veredito de Madama Carlota, prevendo

que

a moça irá encontrar

um

marido, Macabéa morre. A rica Merce-

des

não

chega

para

resgatá-la

da pobreza

e

da

orfandade, mas

sim para matá-la

num

brutal atropelamento.

É

uma

história in-

vertida

de

Cinderela.

A trama, entretanto, fica obliterada pelo relato do próprio

narrador. A mulher é tão-somente uma caricatura grotesca, ma-

nipulada de forma irônica pelo real protagonista, Rodrigo S.M.

54

Cláudia Nina

Page 156: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 156/186

(Sua Majestade? Sacio-masoquista?

Na

verdade,

pode

ser uma

referência a qualquer coisa), cuja voz do eu interrompe a his-

tória a todo momento. Ele insere seus pensamentos sobre litera-

tura, Deus, vida e morte, fragmentando a narrativa em pedaços

que poderiam

ser arranjados

de

muitas outras formas. O texto

reflete sobre o ofício do ficcionista, a natureza

da

inspiração e o

ato

de

criar uma personagem que ele captura

de

repente. Na

verdade, tal captura

tem

origem nas próprias andanças de

Clarice Lispector pelas ruas do Rio de Janeiro, especialmente na

feira

de

São Cristóvão, aos domingos. Investigando aquele cená-

rio, ela

podia

observar imigrantes que ali apareciam

para

co-

mercializar, ou simplesmente para reviver, mesmo

por

um só

dia, os costumes e as tradições

de

sua distante região

de

origem.

Os rostos que a autora costumava encontrar na feira, com seus

traços físicos típicos, forneceram-lhe esboços mentais para a cri-

ação de Macabéa e Olympio de Jesus. (Pontiero, 1996, p. 90)

O romance

pode

ser lido como

uma

espécie de síntese dos

escritos

de

Clarice Lispector. Como sublinha Olga

de

Sá, a nove-

la dialoga com todo o universo ficcional

da

autora Sá, 1983a,

p.269). De fato, vários aspectos ilustram essa afirmativa. Em

primeiro lugar, uma leitura atenta revela, por exemplo, que as

personagens exílicas silenciadas dos romances anteriores

que

mencionei neste trabalho encontram seu contraponto paródico

em Macabéa. A nordestina é uma estrangeira perdida na metró-

pole, o Rio, que realmente parece ser um outro país para quem

sai do interior

de

Alagoas.

Além disso, a ausência de interação verbal é

uma

referência

aos parcos diálogos

das

n rr tiv s

do

silêncio

As conversas ári-

das que Macabéa tem com seu namorado são permeadas por

um

agudo senso

de humor

pois a

mulher

jamais sabia o que di-

zer. Nenhuma

das

perguntas que ela faz tem resposta, e, algu-

mas vezes, as conversas entre os dois são absurdas,

com

a mu-

lher

reproduzindo

o tique-taque dos minutos no rádio-

relógio. A única reação possível de Olympio são frases como:

Você, Macabéa, é um cabelo

na

sopa. . (HE, p.

78)

Além

disso, a subjetividade vazia

de

Macabéa e

sua

falta de

habilidade lingüística são uma outra versão - grotescamente re-

visitada - de Virgínia, Lucrécia, Martim e Ermelinda. De acordo

com Marta Peixoto, Macabéa, tanto um sujeito sem fissuras

quanto uma versão grotescamente carregada e truncada das

personagens indagadoras

de

Clarice Lispector, leva seus movi-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 55

Page 157: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 157/186

mentos

típicos a

um

redutio ad absurdum (Peixoto, 1994, p. 96).

De fato, a eterna fome de Macabéa é uma

poderosa

metáfora da

vulnerabilidade

que

marca

todas

as

mulheres

de

Clarice

no uni-

verso dos escritos do

exílio.

Em

sua

incapacidade de

inventar

e

no

vazio

de

sua

mudez

encontram-se todas

as

outras

que

mal

con-

seguem

se

movimentar além de

suas

realidades

silentes - Ela

falava, mas

era extremamente

muda (HE, p. 44). Ela jamais

disse

frases,

em

primeiro

lugar por

ser

de parca palavra.

E acon-

tece que não tinha consciência de si[ ] (HE, p. 87). Ela

era sub-

terrânea

e

nunca tinha tido

floração . (HE, p. 46)

O

anonimato

total (HE, p. 86)

de

Macabéa, sua orfandade

e

ausência

de

vínculos emocionais

também

são

uma

referência à

solidão que

assombra

as

personagens

anteriores. As

compara-

ções

com que

Rodrigo descreve a mulher são pungentes e e-

xemplificam

com

clareza o

vácuo que

ela representa.

Como diz

Rodrigo, ela é um acaso , um feto

jogado

na lata de lixo -::.nbru-

lhado em um

jornal . (HE, p. 52)

Quando digo que Macabéa é uma caricatura, uma

versão

grotesca

das personagens

anteriores

das

narrativas

do silêncio,

re-

firo-me

ao

exagero paródico.

Para

descrever os traços fisionômi-

cos e a

personalidade

de Macabéa, a

autora emprega algumas

linhas gerais emblemáticas que caracterizam a mulher do Nor-

deste (excluída, à

margem, subdesenvolvida,

estigmatizada) e

monta seu retrato

exagerando seus

contornos negativos. O ele-

mento de humor

que

citei acima em referência aos diálogos de

Macabéa também

faz

parte

da

paródia que

Clarice

opera em

hora da

estrela. Enquanto

nas narrativas do

silêncio todas

as perso-

nagens

são vistas

envolvidas

em

uma

atmosfera circunspecta e

um

tanto sombria,

aqui

Macabéa-

de

apelido

Maca-

é o alvo

do senso de

humor

negro

da autora.

Além

disso, Rodrigo explo-

ra

o

uso

de

definições grotescas

quando

se refere a Macabéa -

  até

parece doença,

doença

de pele (HE, p. 59)

-usando ima-

gens fortes (como a do feto embrulhado num jornal), o que cria

o

impacto

de repulsa. Macabéa, uma nordestina

amarelada

(HE, p. 74), é vista

como uma mistura de

distorção e ridículo.

É

importante

analisar

aqui

a relação

ambígua

entre

Macabéa

e Rodrigo S.M.

Desde

o começo, Rodrigo deixa claro que a mu-

lher,

para

ele, é uma

estranha

e,

por

isso,

inteiramente

diferente

dele.

Contudo,

os

sentimentos

lhe são conflitantes,

porque

ele

também mostra alguma compaixão pela

moça, inclusive pie-

dade

e

culpa por

seus

sofrimentos.

Como

enfatiza Italo

Marica-

  56

Cláudia Nina

Page 158: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 158/186

ni em sua análise de

A

hora

da estrela

Rodrigo simboliza a

intel

ligentsía que

tenta expiar seus sentimentos de culpa com relação

aos pobres escrevendo sobre eles a fim

de

expor seu drama. De

fato, esse era o pensamento comum entre escritores brasileiros

modernos: denunciar o status

quo

a fim

de

salvar os pobres

(Moriconi, 2001, p. 218). Rodrigo, por outro lado, personaliza o

escritor pós-moderno, que faz piada dessa hipocrisia comparti-

lhando com o leitor sua intenção de escrever sobre os pobres :

Sou um homem

que tem

mais dinheiro

do que

os que passam

fome, o que faz de mim

de

algum

modo

um desonesto (HE, p.

33); Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da

vida

massacrante

da

média burguesia . (HE, p. 46)

A abordagem irônica também é encontrada quando a autora

sublinha que as reais vítimas marginalizadas da sociedade

não

têm acesso à literatura devido ao alto custo dos livros e à falta

de um

sistema de ensino abrangente e eficiente. Como diz o tex-

to: Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada,

sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre,

não

es-

tará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem

uma

leve fome permanente . (HE, p.

46)

O fato de Clarice Lispector criar

um

narrador masculino pa-

ra contar a história de Macabéa é um outro aspecto significativo

da

obra. O romance também parodia as histórias sentimentais e

não-literárias, na medida em que Rodrigo deixa claro que evita-

rá termos suculentos e adjetivos esplendorosos - tudo que

torna

uma

história sentimental demais (histórias ditas femini-

nas, envoltas em lágrimas). O

que

ele deseja é trabalhar

com

o

material

básico e

com simplicidade

cada

vez

maior ,

sem

adornar as palavras. Rodrigo prontamente explica sua estética,

que tem de ser seca como um escrito de homem,

uma

história

fria e imparcial: A palavra não

pode

ser enfeitada e artistica-

mente vã, tem que ser apenas ela (HE, p. 34). E ainda: [ ... ] por

enquanto

nada

leio para

não

contaminar com luxos a simplici-

dade

de

minha linguagem . (HE, p. 37)

O que eu vejo como paródia está vinculado a

uma

forma

de

auto-reflexão e autocrítica, à maneira

que

um

gênero

tem de

pensar

criticamente sobre si mesmo (McHale, 1992, p. 145).

Através

da

máscara

de

Rodrigo, Clarice Lispector usa o próprio

espaço literário para refletir sobre o ato de escrever, criticando

de

modo engenhoso vários elementos ao mesmo tempo. Clarice

fala com os leitores camuflando-se de Rodrigo S.M., como se es-

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

57

Page 159: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 159/186

tivesse dizendo "Ok, se temos

de

ser um autor homem para es-

crever sobre a realidade social, inventemos um " Em outras pa-

lavras, "Rodrigo declara sua força gerativa, confiante em que

seu gênero vai lhe garantir a posição de um contador de histó-

rias mais forte" (Barbosa, 1997b, p.

65 .

Marta Peixoto questiona:

Por que, poderíamos perguntar, as equívocas conexões de gêneros

cruzados entre Clarice Lispector e seu

narrador

homem? Ela

a

ele

uma identidade

masculina, ele

a ela

seu sangue de

macho

[

..]A

autora é

uma mulher

que assume

uma

máscara masculina, e

o narrador, a máscara de uma autora. (Peixoto, 1994, p. 91

Com

ironia, Clarice Lispector, de

uma

só vez, curiosamente rejeita

e endossa o mito cultural

da

escritora sentimental. Embora a auto-

ra "real" seja, é claro,

uma

mulher, ela insiste

em

que o autor fictí-

cio seja homem. A máscara masculina, ao

aumentar

a distância en-

tre

narrador

e personagem, também faz ressaltar a ultrajante supo-

sição implícita

em

escrever o outro, especialmente o

outro

oprimi-

do. (Peixoto, 1994, p. 92

O narrador masculino que conta a história na terceira pessoa

cria, no entanto, uma falsa impressão

de

distância, pois Rodrigo

S.M. até

mesmo

sofre a

dor

de Macabéa e sente compaixão pela

morte

da

mulher. Ele também afirma ser capaz de "ver" o rosto

de

Macabéa quando se olha no espelho: "Vejo a nordestina se

olhando

ao espelho e -

um

ruflar

de

tambor - no espelho apare-

ce o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertocamos"

(HE, p. 37). É um jogo de faz-de-conta complexo, embora

pará-

dica, uma vez

que

Clarice Lispector deixa claro já

na

primeira

página (no prefácio) que por trás da máscara de Rodrigo está e-

la, a

própria

autora, como o leitor

pode

ver naquilo

que

ela

chama

de

"Dedicatória do autor" (na verdade, Clarice Lispec-

tor). (HE, p.

21

Além disso, Clarice Lispector desmascara o processo criati-

vo, abrindo os bastidores da literatura.

Se

nos escritos

do

exl io o

narrador é distante e um tanto quanto indiferente ao mundo fic-

cional um

narrador

extraficcional), aqui ele está localizado

no

próprio espaço do texto, compartilhando

da

angústia e dos so-

frimentos das personagens. Os leitores são imediatamente cha-

mados a participar desse jogo. Os bastidores

da

escrita revelam-

se em muitos fragmentos:

O

que

se segue é apenas

uma

tentativa

de reproduzir

três páginas

que

escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou

no

li-

  58

Cláudia Nina

Page 160: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 160/186

xo

para

meu

desespero[

. .]

Nem de

longe consegui igualar a tenta-

tiva

de

repetição artificial

do

que originalmente escrevi [

..

] É

com

humildade que

contarei agora a história

da

história.

HE  

p. 58)

Como observa Linda Hutcheon, no

que diz

respeito à litera-

tura

paródica: O leitor fica explícita

ou

implicitamente obriga-

do

a enfrentar essa responsabilidade com relação ao texto, isto é,

com relação ao mundo do romance que ele, leitor, está criando

(Hutcheon, 1996, p. 208 . Os leitores dão-se conta de que, duran-

te o processo da leitura, eles estão ativamente criando um uni-

verso ficcional. De fato, em A paixão segundo G.H., Clarice Lis-

pector havia requisitado um nível mais alto do público leitor,

dirigindo-se aos leitores

de

alma já formada .

A

hora

da

estrela

opera

uma

síntese

da

obra de Clarice Lispec-

tor

também

porque a autora continua, nesse livro, sua aborda-

gem aos

escritos

nomádicos, na mesma trilha de

Agua viva.

A his-

tória, embora apresente as personagens em seus contornos defi-

nidos, por outro lado não tem uma estrutura centralizada, e sua

organização, bastante caótica, lembra

uma

colcha de retalhos. A

narrativa é feita de fragmentos dispersos que poderiam facil-

mente pertencer a

qualquer

outro texto. Narrada no presente, a

obra

também

a ilusão

de

algo

em

constante movimento. A

primeira sentença - Tudo no

mundo

começou com um sim

(HE, p. 25 - combina com a última: Não esquecer que por en-

quanto é tempo de morangos. Sim. (HE, p. 86

A hora

da

estrela é, portanto, uma espécie

de

narração con-

corrente , na qual os acontecimentos parecem não alcançar um

término,

mas

continuam e continuam,

em um

eterno presente.

Em New perspectives on

narrative

analysis, Uri Margolin define o

conceito de narração concorrente como

sendo

uma seqüência

de

intervalos, estágios ou fases do Agora que, colocados juntos,

formam o processo narracional durativo ou em desenvolvimen-

to[ . .] . (Margolin, 1999, p. 151)

Isso exatamente é o que é

A

hora da estrela. Todo o processo

de

criação acontece em narrativa altamente porosa: desde o es-

boço de uma personagem até a confecção de um fechamento,

que

na

verdade

não é

um

fechamento,

mas

um

novo começo,

mesmo

após a morte de Macabéa. Pois o fluxo da escrita en-

quanto écriture parece continuar para sempre com

um

aberto e

nomádico Sim .

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

59

Page 161: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 161/186

5.5

uínas do texto

Nunca se esquecer,

quando

se tem uma dor, que a dor

passará:

nunca

se esquecer que,

quando

se morre, a

morte

passará.

Não

se morre eternamente. É só uma

vez, e dura um instante.

SV,

p. 160)

O silêncio não é o vazio, é a plenitude.

SV,

p. 53)

Um sopro de vida pode ser lido como um testamento de vida

e literatura. Publicação póstuma, de 1978, foi

produzido

origi-

nalmente a partir de notas fragmentadas e esparsas, coletadas

por Olga Borelli, amiga de

muitos

anos de Clarice Lispector.

Acima

de

tudo, é o resultado

da

reflexão

da

autora acerca

de

suas principais obsessões, tais como o ato de escrever, os críticos

literários e a criação

de

personagens. O protagonista

é,

uma vez

mais, o narrador, que agora se divide em duas personas: o Au-

tor,

que

se apresenta assim, no masculino, e

uma

voz chamada

Ângela, inventada pelo autor Estou esculpindo Ângela com

pedras

das encostas, até formá-la em estátua.

sopro nela e ela

se

anima

e

me

sobrepuja

SV,

p.

26).

Os dois estabelecem fragmentos de diálogos absurdos que,

juntos, vão tecendo a feitura de dois diários distintos. Nesse

processo, o tempo da memória fica definitivamente abolido; o

tempo é o eterno presente, o mesmo instante-já

de

gua viva e

hora

da

estrela

e coincide com o tempo da leitura. O leitor está

inscrito

no

texto como

um

público potencial que,

por

vezes, é

abordado diretamente: O leitor é que fala por mim? . SV, p.

24

A autora opera nas ruínas

da

linguagem literária, como

aparece dito várias vezes: Este ao

que

suponho será um livro

feito aparentemente por destroços

de

livro

SV,

p. 18); O que

está escrito aqui, meu ou

de

Ângela, são restos de

uma

demoli-

ção

de

alma, são cortes laterais

de

uma

realidade

que

me foge

continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu

trabalho

em

ruínas

SV,

p. 19); Escrevo como se estivesse

dormindo

e sonhando: as frases desconexas como no sonho .

SV,

p. 74)

O jogo

de

auto-referência continua, e os leitores podem re-

conhecer passagens tiradas

de

outros livros ao longo

de

Um

so

pro de vida. Ângela, por exemplo, é uma recriação. Ela aparece

160 láudia Nina

Page 162: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 162/186

no

conto A partida

do

trem , de Onde

estivestes de

noite. Nesse

conto, Lispector expõe a filosofia que há

por

trás de sua poética

da destruição : Coerência é mutilação. Quero a

desordem

. Só

adivinho através de

uma

veemente incoerência. SV, p. 35)

A escrita reflete

um

processo nomádico

de

criação e, conse-

qüentemente, o ato de ler deve também ser feito

da

mesma ma

neira. Se os leitores tentarem entender, interpretar, ou mesmo

construir blocos de sentido e coesão a partir dos fragmentos

de

Um sopro de

vida

essa será uma abordagem enganosa, pois

que

é

inútil esboçar um formato com os fragmentos esparsos; o livro

são os fragmentos. Ao misturar vários gêneros, Um sopro de vida

é

uma

colcha de retalhos: misturam-se ali vários gêneros; às ve-

zes

uma

peça

de

teatro, com rubricas e diálogos absurdos; às

vezes,

um programa de

televisão, com entrevistas, e, em outros

momentos, parece um ensaio filosófico. A desconexão

no

nível

da forma é marcada por uma tentativa

de

alcançar o máximo

de

desordem política. De repente, Ângela diz: Estou

pintando

um

quadro

com o nome de 'Sem sentido'. São coisas soltas objetos

e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de

costura . SV, p. 38)

Como

os outros

escritos nomádicos

Um

sopro

de

vida

também

é

uma mudança

importante para além

do

centro, como

um

pólo

irradiando significado e comando. Traz implícita

uma

crítica

poderosa aos padrões literários tradicionais e a todas as formas

de hierarquia, questionando autoridade e autoria.

Quem

é o au-

tor? Quem está narrando, afinal? As cartas estão embaralhadas.

Na

verdade, os diálogos mais parecem monólogos, e a voz

do

Autor multiplica-se em muitas linhas de pensamento : Será

que

eu

criei Ângela

para

ter

um

diálogo comigo mesmo? Eu in-

ventei Ângela porque preciso me inventar SV, p. 27). Clarice

inventa ilusões e desvenda-as ao mesmo tempo.

O Autor critica o estilo literário de Ângela como se ele, por

ser homem, pudesse escrever melhor, de forma racional. O dis-

curso feminino não é poderoso o suficiente, parece dizer As

palavras

de

Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar

nela onde não se pensa, esse lugar escuro, amorfo e gotejante

como

uma

primitiva caverna. Ângela, ao contrário

de

mim, ra-

ramente raciocina: ela só acredita SV, p. 33).

Uma

vez mais, a

ironia é o modo. A dominância masculina é altamente criticada,

de

maneira paródica,

por

meio

da

autoridade do Autor da nar-

rativa. Em um estudo do uso subversivo que Clarice Lispector

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 6

Page 163: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 163/186

faz da

autoridade

e da autoria, Maria José Somerlate Barbosa

observa que:

Alguns dos textos de Clarice Lispector subvertem, descentralizam

e desconstroem os conceitos de autonomia, autoria, inspiração,

formação do cânone, políticas

para

as artes e a economia do

prazer

estético. Através

do

tratamento irônico da autoria

em hora da es-

trela

e em Um sopro

de

vida (Pulsações), mais especificamente, Cla-

rice Lispector parodia e desmascara a busca logocêntrica do narra-

dor por

lógica e

unidade no

discurso. Ela questiona a tradição lite-

rária, critica como as mulheres são ocasionalmente encaixadas

no

cânone patriarcal e solapa o sistema que sempre favoreceu escrito-

res

homens

e suas visões

do

mundo. (Barbosa, 1997b, p. 64

Tal dominância

também

está vinculada ao processo

de

cria-

ção em um sentido mais amplo da palavra. Uma das metáforas

ma

is

poderosas do

texto é a

do

sopro,

que

carrega uma resso-

nância bíblica evidente, representando a criação divina do

mundo. Temos aí uma implicação sutil de que o Autor age co-

mo um Deus, criando Ângela, sobre quem ele tem total controle

e comando. Devemos lembrar que a criação de Um sopro de vida

lembra o ato de soprar vida. O título é importante. O substan-

tivo está associado ao verbo: sopra-se

ar

num

balão

para

inflá-

lo,

mas também

sopra-se palavras como sussurros.

Quando

Clarice

produziu

Um sopro de

vida

ela estava prati-

camente soprando

palavras

nos

ouvidos

atentos de sua amiga

Olga Borelli. Mesmo levando-se em consideração que a

própria

autora escreveu

algumas

notas, o livro-testamento lembra

uma

obra que nasceu de um sopro de vida . Há alguns indícios no

texto que exemplificam essa idéia. Ângela diz: Eu raramente

grito. [

..

]

em

geral

eu

sussurro.

SV,

p.61); Ela

me

sopra em

sussurros o que ela é [

..

] . SV, p. 53)

Clarice Lispector nunca

admitiu que

seus livros mesmo os

últimos - fossem autobiográficos. No próprio campo da ficção

ela coloca isso de modo

muito

claro: Eu

que

apareço neste livro

não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de

mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou SV, p. 19). En-

treta

nt

o, é inevitável associar a criação de

Um

sopro de vida e de

hora

da

estrela

(lembrando

que

os dois foram escritos simulta-

neamente) ao fato de que a autora estava às vésperas da morte.

Clarice Lispector estava escrevendo de modo contínuo, co-

mo se não quisesse interromper o fluxo da

écriture.

Um sopro

de

62 Cláudia Nina

Page 164: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 164/186

vida não tem fim. Uma das últimas

palavras

é um Sim aberto,

antecipando

reticências e não

um ponto

final. Isso implica

uma

continuação permanente em direção a um itinerário nomádico:

'Eu

..eu ..não. Não posso acabar.'

Eu

acho que .. . (SV, p. 162)

5.6

onclusão

São vários os aspectos

que

marcam o itinerário literário

de

Clarice Lispector rumo à liberdade. Os escritos nomádicos repre-

sentam uma recusa aos padrões

de

uma

narrativa centro-

estruturada

e ao silêncio

sombrio

e

desesperado

onipresente

nos

escritos do exflio. Traduzem ainda uma

oposição à restrição exíli-

ca dos

romances

anteriores,

nos

quais as

personagens

são

meros

instrumentos nas

mãos de um

narrador autoconsciente.

Os

exemplos mais significativos desse

nomadismo

literário

são

Ag ua

viva

A hora

da

estrela

e

Um

sopro

de vida.

Nas três obras,

o protagonista é o narrador que assume o comando da

primeira

pessoa

no

curso livre da subjetividade. Há uma franca desobe-

diência

às

regras

das narrativas

tradicionais; destrói-se até

mesmo a sintaxe regrada de acordo

com

o

português-padrão.

O tom predominante é o da fragmentação, e as sentenças pare-

cem

desenhar um mapa deleuziano, onde não há começo nem

fim e

no

qual as linhas podem ser conectadas em diferentes ar-

ranjos, numa infinita multiplicidade.

A essas obras,

muitos outros

textos, escritos

aproximada-

mente na mesma época,

poderiam

ser acrescentados, como al-

gtms

contos e crônicas já mencionados, a exemplo

do volume

Onde

estivestes

de noite.

Contudo

, acredito que os textos aqui ana-

lisados são os mais ilustrativos. Eles refletem de

modo

claro o

desejo

da autora

de

abordar

a literatura de

maneira

diferente

nos últimos

anos de sua carreira, que, curiosamente, recusou-se

a ter

um

desfecho, como

indicam

os finais abertos de

hora da

estrela e

de

seu livro

póstumo,

Um

sopro de

vida.

Não

se pode

adivinhar

o que Clarice Lispector teria produ-

zido depois disso. Estou convencida

de

que o passo adiante

que

ela

deu

em direção aos

escritos

nomádicos foi um avanço sem re-

torno. Um movimento em favor

da

liberdade, que representou

muito

mais que uma

simples e redutora inscrição

da voz

auto-

biográfica na ficção, como podem sugerir leituras enganosas.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

63

Page 165: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 165/186

  m seus

últimos escritos, pós-modernos, Clarice Lispector rein-

ventou-se

como

autora,

resgatando

o começo de sua carreira

de

forma audaciosa, apostando em trilhas nomádicas)

totalmente

imprevisíveis.

64

láudia Nina

Page 166: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 166/186

  onclusão

[

.

]apresento-me muda e em fulgor. (OEN, p. 52

A obra de Clarice Lispector é governada por duas forças dis-

tintas: a restrição exílica e o sentimento de êxtase e

de

liberdade.

Esses dois humores literários aparecem na ficção em diferentes

grupos

de escritos, vistos

aqui em

suas peculiaridades. Do pri-

meiro pertencem os

escritos

do

exi7io

ou

narrativas

do

silêncio

que

abrangem os romances O

lustre A

cidade

sitiada

e

A maçã no es-

curo. Os três foram produzidos- inteira ou parcialmente-

du-

rante o exílio voluntário

da

autora na Europa e nos Estados U-

nidos,

de

1944 a 1956.

Em todos esses anos longe da pátria, observa-se que o traba-

lho literário

de

Clarice foi naturalmente influenciado pelos anos

difíceis em terras estrangeiras (como pode ser visto pelas cartas

que

ela escreveu aos amigos e às irmãs). Além disso,

em

seus

romances produzidos nesta época, há

uma

inegável afinidade

com os escritos de outros autores modernos expatriados, como

Albert Camus, }ames Joyce e Samuel Beckett. O conceito

de

exí-

lio, contudo, é complexo. Às vezes a restrição é sentida

dentro

de

um mesmo

país e nos domínios da língua materna, como foi

o caso de Franz Kafka.

Mesmo

não

considerando as

narrativas

do

silêncio

de

Clarice

Lispector exemplos clássicos

da

literatura do exílio- afinal esse

não

é o tema declarado dos romances - são evidentes os vários

aspectos exílicos presentes em tais obras, tais como uma am-

biência claustrofóbica e silenciosa, onde as personagens

pouco

se movem e, principalmente, onde elas se calam. Todas são

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

65

Page 167: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 167/186

marcadas

pelo sentimento

de

não pertencer a

um

lugar e/ ou

grupo e por um indisfarçável senso de expatriação, á que não

conseguem sentir-se

bem

em lugar

algum

e - o mais importante

-são incapazes de erguer

suas

vozes e articulá-las em discurso.

A interação verbal é dolorosamente alcançada

ou

está ausente; o

silêncio prevalece em suas pobres conversações. A

comunicação

está

sempre

em risco. O narrador é a única voz

audível

aque-

la que

governa a

arena

ficcional

sem

estar localizada

dentro do

mundo narrado. O narrador é também um outsider.

A arquitetura narrativa desses escritos assemelha-se, então,

ao conceito deleuziano de árvore , na

medida

em que apresen-

ta

uma

estrutura fixa (enraizada), com

um

comando centrado

estabelecido pelo domínio

do

narrador.

Uma

lógica binária or-

questra a organização interna dessas obras, como acontece, se-

gundo

Deleuze, no sistema arborescente (Deleuze e Guattari,

1976, p. 47). As personagens

também

estão amarradas. enrai-

zadas ,

por

assim dizer,

em

sua inabilidade de expressar livre-

mente

a subjetividade e assumir o

comando

da linguagem.

O profundo silêncio das personagens parece ser uma refe-

rência direta ao silêncio

que

assombra o universo de um exilado

em

seus

primeiros meses

de

expatriação. A situação desenha-se

de

modo

claro: cercada de vozes estranhas e de sons estranhos,

ninguém lhe é próximo, nada lhe é familiar, nenhum laço afeti-

vo liga essa criatura à realidade circundante. A âncora está lan-

çada no passado - e

um

fardo pesado é o que amarra os movi-

mentos dessas personagens.

silêncio dentro e

silêncio fo-

ra, sem

nenhuma

interação entre essas duas instâncias incomu-

nicáveis.

Clarice Lispector jamais

assumiu

ter escrito autobiografias.

De fato, ela nunca as escreveu

em

termos de

um

testemunho de

vida

tradicional e confesso. Não obstante, acredito

que

em todas

as vozes silenciosas dos

escritos do exílio na

busca de Martim

por

alcançar a lingua(gem) diante de uma audiência de pedras - a

mais tocante de todas as cenas exílicas que estudei

-

existe o

eco abafado do próprio desejo de Clarice de quebrar os restriti-

vos e invisíveis muros da expatriação.

Se existiu

na verdade

um

vínculo estreito entre esses ele-

mentos, não se pode ter certeza. Mas estou cada vez mais con-

vencida de que um dos mais importantes atrativos dessas obras

é o fato de que elas representam um estudo profundo - exe-

cutado

no

próprio

domínio da ficção - sobre a restrição exílica,

166 láudia Nina

Page 168: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 168/186

incluindo todas as implicações relacionadas com essa situação.

Entretanto, as relações entre essas duas esferas -

vida

e obra -

param aí. Embora acredite que alguns elementos autobiográfi-

cos devam ser levados em consideração para se entender o uni-

verso

de

criação e o processo

da

imaginação

de

um

autor

como

Clarice Lispector, as referências biográficas não foram, em mo-

mento

algum, objeto de minha preocupação central, pois a lite-

ratura comprovou ser o

campo

fértil

onde

todas as

minhas

es-

peculações teóricas puderam ser erguidas. Deixo, então, as co-

nexões bio para os biógrafos.

Tomei a decisão de concentrar-me na tríade de escritos que

marcam um período singular do trabalho de Clarice Lispector,

período

este

que ainda

não

foi suficientemente explorado pelos

críticos. Tentei trazer à

luz

romances que

têm

sido um tanto

quanto negligenciados, seja

por

que razões forem, tanto nacio-

nal quanto internacionalmente.

Para

analisá-los em termos comparativos, precisava encon-

trar uma contraparte aos aspectos exílicos. De

um

lado a restri-

ção e de outro, o quê? Os escritos tardios, que observo como

nomádicos

vieram a ser o contraste perfeito para ilustrar

duas

si-

tuações literárias diferentes. Coincidentemente

ou

não, essas úl-

timas obras foram escritas na década de 70

quando

Clarice não

mais

desempenhava

o papel de esposa de diplomata em terras

estrangeiras; já era, então, uma

escritora

independente moran-

do no Brasil e disposta a abordar a literatura por um outro viés.

Essa segunda categoria inclui

Á q-ua viva A

hora da estrela e

Um

sopro de vida obras que se posicionam em flagrante contraste

com as

narrativas

do silêncio. Todos esses textos fogem às tradi-

cionais definições de gênero e desafiam

padrões

literários.

Nos

escritos nomádicos as personagens tornam-se narradores, e a sub-

jetividade recupera seu

poder

de comando sobre a construção

da realidade. O texto reflete sobre o processo de sua própria

composição.O enfoque muda tanto

no que

diz respeito ao

mun-

do exterior, descrito

em

detalhes, quanto ao mundo íntimo das

personagens. Estruturalmente, as obras

não têm

um senso de

coerência lógica, nem mesmo no nível da sintaxe, sendo feitas

de linhas de

não-significância

e de múltiplas

conexões

que

exemplificam com clareza a idéia de um sistema rizomático

deleuziano (Del

euze

e Guattari, 1976, p. 32), no qual, acredito

eu, encontra-se a base filosófica adequada a esses últimos textos.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

67

Page 169: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 169/186

Tais escritos refletem urna posição intelectual que trabalha

com

maneiras alternativas de pensar e

que

se identificam

com

as idéias de Rosi Braidotti

em

Nomadic subjects: embodiment

and

sexual

difference

in contemporary feminist theory.

Cito

com

freqüên-

cia esse texto, principalmente

no

capítulo sobre os últimos escri-

tos de Clarice,

por

observar

na

abordagem feminista de Rosi

Braidotti urna lúcida conexão com o modo nornádico da obra

clariceana produzida a partir dos anos 70.

A

passagem

de urna categoria

para

outra,

no

entanto,

não

se

deu de forma

abrupta

e tampouco foi fácil. Ela foi anunciada

com

paixão Se {undo

G.H., publicado em 1964, em que a

voz do

eu aparece pela primeira vez na arena ficcional da autora. O

romance marca

urna simbólica travessia

do

deserto,

num

ponto

de transformação rumo aos escritos

nomádicos,

e é um

dos

textos

mais densos de Clarice Lispector. Nele, pode-se encontrar al-

gumas características

que

seriam posteriormente exploradas,

tais corno a dissolução da forma e a desobediência a medidas-

padrão

de

ficção.

Também

é a primeira vez

que

o narrador diri-

ge-se ao leitor,

quebrando

os limites que

separam

ficção e reali-

dade. O silêncio,

em

vez de refletir o

som

do vazio, corno nos

es-

critos

do

exz1io,

prova

ser o resultado

de

urna tentativa

de

expres-

sar o indizível,

sondando

as instâncias mais íntimas do self. É a

mesma

categoria de silêncio que habita o universo dos últimos

textos: silêncio em palavras .

Muitos outros textos poderiam ter sido usados. Os contos de

Clarice Lispector, por exemplo, estão cheios de aspectos fasci-

nantes

a serem abordados, corno o altamente elogiado Laços

de

família, que oferece exemplos de exilados (a maioria deles mu-

lheres)

vivendo

em

esferas domésticas,

esperando

fugir

de

al-

gum modo

dos

laços que os restringem. Contudo, acredito que

os contos de Clarice formam

um

universo tão rico que merecem

ser

estudados

à parte, corno um capítulo especial em sua obra.

E de

fato, eles também

podem

ser estudados sob a perspectiva

exílica/nornádica, tornando-se corno contraponto,

por

exemplo,

alguns dos

escritos nomádicos

curtos incluídos em Onde estivestes

de noite.

Na verdade, muitas portas de investigação ainda estão

por

ser abertas na fortuna crítica de Clarice Lispector, e

mesmo

os

romances aqui investigados oferecem

um

número infinito de

possibilidades críticas que

não

a exílica. Minha idéia

apenas

foi

demarcar os itinerários exílicos/nornádicos na trajetória clarice-

  68 Cláudia Nina

Page 170: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 170/186

ana, ch m ndo atenção

p r

aqueles textos silenciosos

que

representam um período importante d trajetória intelectual d

autora rumo à liberdade, m s que permanecem, misteriosamen-

te, relegados ao plano das leituras secundárias.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

169

Page 171: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 171/186

Page 172: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 172/186

Referências

ibliografia primária

LISPECTOR Clarice.

Perto

do coração selvagem Rio de Janeiro: Francisco

Alves 1992.

. O lustre Rio de Janeiro: Francisco Alves 1992

.A cidade sitiada Rio de Janeiro: Francisco Alves 1992.

. Laços de família

Rio

de

Janeiro: Nova Fronteira 1983.

.A

maçã no

escuro

Rio de Janeiro: Francisco Alves 1992.

.A

paixão segundo G H

Rio

de

Janeiro: Francisco Alves 1991.

.Legião

estrangeira Rio de Janeiro: Siciliano 1992.

.

Uma aprendizagem

ou

O livro

dos prazeres

Rio de Janeiro: Francisco

Alves 1992.

.A

elicidade clandestina

Rio

de

Janeiro: Francisco Alves 1991.

.

gua viva Rio de Janeiro: ova Fronteira 1980.

.A via crucis do corpo Rio de Janeiro: Francisco Alves 1991.

. O n d e

estivestes

de

noite? Rio

de

Janeiro: Francisco Alves 1974.

.A

hora da estrela

Rio

de

Janeiro: Francisco Alves 1990.

. P a r a não esquecer Rio

de

Janeiro: Siciliano 1994.

.A

descoberta

do

mundo

Rio

de

Janeiro: Francisco Alves 1992.

.

The

apple

in

the dark

Trad. Gregory Rabassa.

ew

York: Alfred

Knopf 1967.

. Tile

hour

of the

star

Trad. Giovanni Pontiero. Manchester: Car-

canet 1986.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7

Page 173: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 173/186

  . The

passion

according to G.H. Trad. Ronald

W

Sousa. Minneapolis:

University o f Minnesota Press 1988.

.

The

stream of life. Trad. Elizabeth Lowe

and

Earl Fitz. Intr. by

Hélene Cixous. Minneapolis: University of Minnesota Press 1989.

.

Soulstorm.

Trad. Alexis Levitin.

New

York:

New

Directions Books

1989.

.

Near

to the wild heart.

Trad. Giovanni Pontiero.

New

York:

New

Directions 1990.

.

Discovering

the

world.

Trad. Giovanni Pontiero. Manchester: Car-

canet 1992.

iteratura

m

geral

ABREU Caio Fernando.

Estranhos estrangeiros.

São Paulo:

Companhia

das

Letras 1996.

BECKETI Samuel. I cnn t

go

on,

I /1 go on.

A Samuel Beckett reader. Ed.

and

Intr. by Richard

W

Seaver.

New

York: Gore Press

1976

.

The expelled and other novel/s.

London:

Penguin

Books 1980.

.

Compagnie. Paris: Les Éditions

de

Minuit 1985.

CAMUS Albert.

L exil

et

/e

royaune.

Paris: Gallimard 1985.

. L étranger. Paris: Gallimard 1996.

.O

avesso

e o direito. Rio de Janeiro: Record 1995.

.La

chute.

Paris: Galimard 1997.

HESSE Hermann.

O lobo da estepe. Rio

de

Janeiro: Record 1993.

JOYCE James.

Exiles.

London: NEL Signet Modern Classics 1968.

.

A portrait of

the

artist

as

a young

man.

Harrisonburg:

Penguin

Books 1985.

.

Ulysses

. The Gabler Edition. New York: Vintage Books 1986.

. Dubliners. New York: The Modern Library 1992.

KAFKA Franz.

The

transformation

(Metamorphosis) and other stories.

London:

Penguin

Books 1992.

LISPECTOR Elisa.

No exí /io.

Brasília: Ebrasa Institu to Nacional

do

Livro

1971.

MANSFIELD Katherine.

The escape.

London: Penguin Books 1995.

NIETZSCHE Friedrich.

Thus spoke

Zarathustm:

a book for everyone and no

one.

Harmo

n

dswort

h: Penguin Books 1971.

WOOLF Virgínia.

Mrs. Dalloway. Harmondsworth:

Penguin Books 1976.

72 láudia Nina

Page 174: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 174/186

  .A

roam

of one s

own. Harmondsworth: Penguin Books, 1975.

. Killing the angel in

the

house: seven essays. London: Penguin Books,

1993.

Bibliografia crítica de Clarice Lispector

BARBOSA, Maria José Somerlate.

Clarice Lispector

- Mutações faiscan-

tes/Sparkling mutations.

Belo Horizonte: GAM Editora, 1997a.

.

Clarice Lispector:

Spinning the webs of passion.

New

Orleans: Uni-

versity Press of the South, 1997b.

BORELLI, Olga. Apresentação. In: Um sopro

de vida.

Pulsações. Rio

de

Ja-

neiro: Nova Fronteira, 1978.

.Esboço para

um

possível retrato.

Rio de Janeiro:

Nova

Fronteira,

1981.

BRAIDOTTI, Rosi. On

the female feminist subject; or from She-self to

She-other . approaching Lispector. In: Nomadic subjects. Embodiment and

sexual difference in contemporary feminist theory.

New

York: Columbia

University Press, 1994.

BRASIL, Assis. Clarice

Lispector:

Ensaio. Rio de Janeiro: Organizações Si-

mões, 1969.

CAMPEDELLI, Youssef Samira e ABDALA, Benjamin.

Clarice

Lispector (Li-

teratura comentada). São Paulo: Editora Abril, 1981.

CANDIDO, Antonio.

No

raiar de Clarice Lispector. In:

Vários

escritos. São

Paulo: Duas Cidades, 1970.

CIXOUS, Hélene. L approche

de

Clarice Lispector.

Poétique .

nº 40 nov.

1979.

. Writing difference. Readings from the seminar

on

Hélene Cixous.

Ed. by Susan Seller. Stony Stratford: Open University Press/Milton

Keynes, 1988.

. Foreword . In: Stream

of life.

Minneapolis: University of Minnesota,

1989a.

. Sorties: out and out: Attacks/ways out/forays In: The feminist

reader

- Essays

in

gender and the politics of literature criticism. Ed. by

Catherine Belsey and Jane Moore. London: MacMillan, 1989b.

.

Reading

with

Clarice Lispector. Introd.

by

Verena

Andermatt

Conley. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990a.

.

The

body and the

text

- Hélene Cixous, reding and teaching. Hert-

forshire: Harvester Wheatsheaf, 1990b.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

73

Page 175: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 175/186

 

.

Coming to writing and

other

essays. London:

Harvard

University

Press, 1991.

.

Readings:

the poetics of Kafka, Blanchot, Joyce. Kafka, Kleist, Lis-

pector.

and

Tsvetayeva. NY

/London:

Harvester /Wheatsheaf, 1992.

CHIARA, Ana Cristina de Rezende. Apresentação: O cruel realismo

de

O

lustre.

In: O lustre. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1991.

COELHO, Nelly Novaes. A escritura existencialista de Clarice Lispector.

In: A literatura feminina no

Brasil contemporâneo.

São Paulo: Editora Siciliano,

1993.

CONLEY, Verena Andermatt. Introduction. In:

Reading with

Clarice Lispec-

tor.

Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.

DINIZ, Júlio. O olhar do estrangeiro. In: Feminino

e literatura.

Rio de Janei-

ro: Tempo Brasileiro, 1990.

FERREIRA, Teresa Cristina M. Eu sou uma pergunta. Rio de Janeiro: Rocco,

1999.

FITZ, Earl. Clarice Lispector. Boston: Twayne Publishers, 1985.

GALV ÃO, Walnice Nogueira. Entre o silêncio e a vertigem. In: Os melhores

contos de Clarice Lispector. São Paulo: Global, 1996.

GOTLIB, Nadia Batella. O desejo não mora em casa (Alguns espaços na o

bra de

Clarice Lispector). Conferência.

In:

3

2

Seminário Nacional: Mulher e

Literatura - Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina,

out.1989.

.

Clarice: uma

vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

. Um fio de voz: histórias

de

Clarice. In: LISPECTOR, Clarice.

paixão segundo G.H. NUNES, Benedito (Ed.). Florianópolis: Universidade

Federal

de

Santa Catarina, 1988.

HELENA, Lúcia.

Nem musa

nem medusa

- Itinerários da escrita em Clarice

Lispector. Niterói: EDUFF, 1997.

.Apresentação.

De gênese e de gente a luminosidade do escuro .

In: A maçã no

escuro.

Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

JOHNSON, Barbara. Muteness envy. In:

The feminist render

Essays in gen-

der and

the political of literature criticism. Ed.

by

Catherine Belsey

and

Jane Moore.London: MacMillan, 1989b.

JOZEF, Bella. O

espaço reconquistado.

Petrópolis: Vozes, 1974.

.

Clarice

Lispector:

a angústia existencial. Rio

de

Janeiro:

Revista

do

PEN Clube do Brasil 1979.

. Clarice Lispector: la recuperación de la palavra poética. Separata

da

Revista

lberoamericana

jan/mar. 1984.

17

4 láudia Nina

Page 176: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 176/186

  . J ú l i o Cortázar e Clarice Lispector:

um

saber existencial. In: A más

cara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

KADOTA, Neiva Pitta. A tessitura dissimulada o social em Clarice Lispec-

tor. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.

LEVITIN, Alex. Afterword. In:

Soulstorm.

New

York: A

New

Directions

Book,1989.

LIMA, Luiz Costa. Clarice Lispector. I

n:

A

literatura no Brasil.

COUTINHO,

Afrânio (Org.). Rio

de

Janeiro: Sul Americana, 1970.

v 5

LINS, Álvaro. A experiência incompleta: Clarice Lispector. In: Os morots de

sobrecasaca ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

LOWE, Elizabeth

et

ali. Clarice Lispector: a bio-bibliography. Ed. by Marting

Diane. Wesport/Connecticut. London:

Greenwood

Press, 1993.

MACHADO, Regina Helena de Oliveira. Spinning form:

reading

Clarice

Lispector. In: Writing

difference.

Readings from the seminar on Hélene

Cixous. Stony Stratford: Open University Press/Milton Keynes, 1988.

MARTINS, Maria Terezinha. O

ser

do

narrador

nos

romances de Clarice Lispec

tor. Goiânia: Cerne, 1988

MILLIET, Sérgio.

Diário crítico.

São Paulo: Martins/EDUSP, 1981.

v

VII.

MIRANDA, Ana.

Clarice Lispector:

o tesouro

de

minha cidade. Rio

de

Janei-

ro: Relume

Dumará/Rioarte,

1996.

MORICONI, Halo. The hour of the star or Clarice Lispector s trash hour .

In: Brazil 2001

-

A revisionary history of brazilian literature

and

culture.

University o f Massachusetts Darmounth: Darmounth, 2001

NINA, Cláudia.

Clarice

Lispector: uma teoria de prazer. Juiz

de

Fora: Uni-

versidade Federal

de

Juiz

de

Fora, 1995.

NUNES, Benedito.

O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.

.Le i tura de Clarice Lispector.

São Paulo: Quíron, 1974.

. O

drama

da linguagem:

uma

leitura de Clarice Lispector. São Paulo:

Ática, 1989.

. A paixão segundo

G.H. Edição Crítica. Florianópolis:

Editora da

Universidade Federal de Santa Catarina, 1988.

PALEY, Grace. Forward. In:

Soulstorm.

New York: New Directions Books,

1989.

PEIXOTO, Marta. A

hora

da

estrela. In:

Clarice Lispector:

a bio-

bibliography. Ed. by Marting Diane. Wesport/Connecticut/London: Gren-

wood Press, 1993.

.

Passionate

fictions: gender, narra tive and violence in Clarice Lispec-

tor. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994.

A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 75

Page 177: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 177/186

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A fantástica verdade de Clarice. In: Flores da es

crivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

PONTIERI, Regina. Clarice Lispector. Uma poética do olhar. São Paulo: Ate-

liê Editorial, 1999.

PONTIERO, Giovanni. Afterword. In:

The

hour

of

the

star.

Manchester: Car-

canet, 1996.

ROSENBAUM, Yudith. Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispec-

tor. São Paulo: EDUSP /Fapesp 1999.

SÁ, Olga de. Paródia e metafísica. In paixão segundo G H Edição Crítica.

Florianóplis: Editora

da

Universidade Federal

de

Santa Catarina, 1988.

.A

escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1983a.

.A

ravessia

do

oposto.

São Paulo: Annablume, 1983b.

SANT ANNA, Affonso Romano de.

nálise estrutural

de romances brasilei

ros.

Petrópolis: Editora Vozes, 1973.

. Clarice Lispector: linguagem. In:

Por um

novo conceito de

literatura.

Rio

de

Janeiro: Eldorado Tijuca, 1977

.A epifania da escrita. In: legião

estrangeira.

São Paulo: Ática,

1997.

SCHWARZ, Roberto.

sereia

e o

desconfiado.

Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1981.

SOUSA, Carlos Mendes de. A escrita autobiográfica de Clarice Lispector.

In

Literatura

brasileira em

questão. Faculdade

de

Letras

da

Universidade

do

Porto: Porto,

2000

. Clarice Lispector:

figuras

da

escrita. Universidade

do

Minho Braga,

1999.

SOUSA, Ronald.

W

Once within a room. In: The passion according to G H

Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988.

.O

lustre. In:

Clarice Lispector.

A bio-bibliography. Ed.

by

Marting

Diane. Wesport/Connecticut/London: Greenwood Press, 1993.

SOUZA, Eneida Maria de. O brilho no escuro. In:

cidade

sitiada. Rio de

Janeiro: Francisco Alves, 1992.

TREVIZAN, Zizi. reta

artística

de Clarice Líspector. São Paulo: Pannartz,

1987.

VARIN, Claire.

Rencontres

brésiliennes.

Laval/Quebec: Trois, 1987.

.

Langues de feu: essais sur Clarice Lispector. Laval/Quebec: Trais,

1990.

VASCONCELLOS, Eliane. Inventário do

arquivo

Clarice Lispector. Rio

de

Ja-

neiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1993.

76

Cláudia Nina

Page 178: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 178/186

VIEIRA, Nelson H. Clarice Lispector s jewish

universe

Passion in search

of narrative identity. In:

Passion memory

identity

-

twentieth century latin

american jewish women writers. Ed.

by

Marjorie Agosín. New Mexico: Uni-

versity of

New

Mexico Press, 1995.

VIEIRA, Tei

ma

Maria. Clarice

Lispector

-

uma

leitura

instigante.

São

Pau

l

o:

Annablume, 1998.

WALDMAN, Berta. Clarice Lispector A

paixão segundo C.L

São Paulo: Es-

cuta, 1993.

. A retórica

do

silêncio

em

Clarice Lispector. In:

Clarice em questão

-

20 anos sem Clarice. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

WILLIAMS, Claire.

Decifra-me

ou te

devoro:

the edible complex in the works

of

Clarice

Lispector. Congresso Internacional sobre Escritoras Lusófonas

Contemporâneas, maio 1999.

.

Which carne first? The question of maternity in Clarice Lispector.

O ovo e a galinha. In: Women literature and culture in

tlze

portuguese speaking

world.

Ed. by Claudia Pazos Alonso. Levinston Queenst

on/Lampe

ter: The

Edwin Mellen Press, 1996.

Bibliografia crítica

BAKTHIN, Mikail. The

dialogic

imagination -

four essays. Austin: Univer-

sity of Texas Press, 1986.

BA

L, Mieke. Narratologie (Essais

sur

la signification

dans

quatre romans

modernes). Paris: Editions Klincksieck,

1977.

. Focalisation. In: Narratology: an introduction. Ed. and Introd.

by

Susana, Onega

and

José Angel García Landa.

London/New

York: Long-

man, 1996.

BARTHES, Roland.

Roland Barthes

por Roland

Barthes.

São

Pau

lo: Cultrix,

1977.

. L empire

des

signes. Paris: Skira/Flammarion, 1981.

.O prazer do

texto. Lisboa: Edições

70 1983.

.O

grão da voz. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.

BENSTOCK, Bernard.

Narrative con/texts

in Dubliners. Hampshire/London:

Mac Millan, 1994.

BENSTOCK, Shari et al.

Womens s writing

in exile.

Ed. by Mary Lynn Broe

and

Angela Ingram. Chapel Hill/London: The University of

North

Caro-

lina Press, 1989.

BLOOM, Harold. The anxiety of influence: a theory of poetry. Oxford: Ox-

ford University Press, 1991.

A palavra usurpada exílio e nomadismo

n

obra de Clarice Lispector

177

Page 179: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 179/186

BOOTH, Wayne

C. A

retórica da ficção. São Paulo: EDUSP /Fapesp, 1996.

BOSI, Alfredo. História concisa da

literatura

brasileira. São Paulo: Cultrix,

1985.

BRAIDOTTI, Rosi. Patterns

of

díssonance:

a study of women in contempo-

rary philosophy. Oxford: Polity Press, 1991.

. Nomadic subjects.

Embodiment and sexual difference in contempo-

rary feminist theory. New York: Columbia University Press, 1994a.

.

Women, the

environment

and

sustainable

development.

Towards a

theoretical synthesis. London: Zed Books, 1994b.

.

Reprinted from

Women  s education

des

femmes. 21,1):

35-39, 1996.

BRODZKI, Bella. Mothers, displacement and language in the autobiogra-

phies of Nathalie Serraute

and

Christa Wolf. In:

Life/Línes:

theorizing

women s autobiography.Ithaca/

London: Cornell University Press, 1988.

BURGUESS, Anthony. The novelnow A student s guide to contemporary

fiction. London: Faber

& Faber, 1971.

. English literature.

London: Longman, 1985.

CHATWIN, Bruce.

Anatomy of

restlessness

-

uncollected writings. London:

Jonathan Cape, 1996.

COE, Richard. N. The

art

of failure .

In:

Beckett.

Edinburgh/London:

Oliver and Boyd, 1968.

DAVI, Arrigucci Jr. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973.

DAVIES, Joan.

Writers

in

prison.

Cambridge: Basil Blackwell, 1990.

DELEUZE, Gilles GUATTARI, Felix. Kafka Pour

Un e Litterature Mineure.

Paris: Les Editions de Minuit, 1975.

. Rhizome .

Introduction. Paris: Les Éditions de Minuit, 1976.

.

A thousand

plateaus.

Capitalism a

nd

Schizophrenia. London: Ath-

lone Press 1988.

.

The Deleuze reader.

Ed.

by

Constantin Boundas.

New

York: Colum-

bia University Press, 1993.

. What s

Phí/osophy.

New

York: Columbia University Press, 1994.

.

Pourparlers

.

Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.

DE MAN, Paul.

Blindness

&

insight-

essays in the rethoric of contemporary

criticism.

New

York: Oxford University Press, 1971.

.Alegorias da Palavra. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

DERRIDA, Jacques.

Of

grammatologrj. Baltimore: Johns Hopkins University

Press, 1967.

178 Cláudia Nina

Page 180: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 180/186

  .A armácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.

.A

escritura

e a

diferença.

São Paulo: Perspectiva, 1995.

DE VOOGD, Peter. Imagining Eveline, visualised focalisations in James

Joyce s Dubliners. In:

European Journal

of

English

Studies. Ed. Liliane Louvei.

vol.

4.

April2000.

ECO, Umberto. Obra

aberta.

São Paulo: Perspectiva, 1974.

. Sob re os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1985.

.

Seis

passeios pelos bosques da ficção . São Paulo: Companhia das Le-

tras, 1994.

EDEL. Leon. The novel as poem. In: Virgínia

Woolf.

Ed. by Claire Sprague.

New

Jersey: Spectrum Book, 1971.

FERNANDEZ, José. O existencialismo

na

literatura

brasileira.

Goiânia: Edito-

ra da Universidade

de

Goiás, 1986.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes,

1995.

FRENCH, Marilyn. Silences: where Joyce s language stops. In:

The lan

guages

of Joyce. Selected papers from the 11th International James Joyce

Symposium, Venice, 1988. Ed. R.M. Bolletieri Bosinelli. Philadelphia, 1992.

GENNEP, Arnold Van. Os

ritos

de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

GENNETTE, Gerárd. Narrative Discourse An Essay in Method.

New

York:

Cornell University Press, 1990.

.

Palimpsestes:

la littérature

au

second degré. Paris: Senil, 1992.

GIBSON, Andrew. Reading narrative discourse Studies in the novel from

Cervantes to Beckett. London: Macmillan, 1990.

GRA

Y

Katherine Martim et ai.

Beckett

la

Psychanalyse/Psychoanalysis.

Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1996.

HEIDEGGER, Martin. Being and

time.

Oxford: Basil Blackwell, 1962.

. Sob re o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia

.

Lisboa: Edições 70 1985.

. Poética do pós moderno. Rio

de

Janeiro: Imago, 1991.

. Modes

and

forros of narrative

narcisism

Introduction of a typol-

ogy. In:

Narratology:

an

introduction.

Ed.

and

Introd. by Susana Onega

and

José Angel García Landa. London/New York: Longman, 1996.

IRIGARAY Luce.

This sex

which is not one . lthaca: Cornell University Press,

1985.

JENNY, Laurent et ai. Intertextualidades. Coimbra: Livraria Almedina, 1979.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

79

Page 181: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 181/186

JOHNSON, Barbara. The feminist

difference.

Cambridge Massachus-

sets)/London: Harvard University Press, 1988.

KAPLAN, Karen. Questíons of travei Postmodern discourses of displace-

ment.

Durham/London:

Duke University Press, 1996.

KRISTEVA, Julia.

Desire

in

Language:

a Semiotic approach to literature

and

art. Oxford: Blackwell, 1981.

. Vie et

mort de

la parole. In: Solei/

-

Dépression et mélancolie.

Paris: Galimard, 1987.

. Language, la langue, speech and discourse. In: Language

of

the

un

known. Iniciation into linguistics.

London/Sydney

/Tokyo: Harvester-

Whea tsheaf, 1989.

.

Strangers

to

ourselves.

New

York: Columbia University Press, 1991.

LEVIN, Harry. Literature

and

exile.

In:

Essays

in

comparative literature. New

York: Oxford University Press, 1996.

LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes.

v. 2.

Rio dP ;dneiro:

Francisco Alves, 1983.

MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1997.

MAGGIE,

Humm

Readers

guide

to

contemporary

feminist literary

criticism.

Hertfordshire: Harvester Wheatsheaf, 1994.

MARGOLIN, Uri. Of

what

is past, is passing, or to come: temporality, as-

pectuality, modality, and the nature of literary narrative. In: Narratologies:

New

perspectives

on

narrative analysis. Ed.

by

David Herman. Ohio: State

University Press, 1999.

MASSEY, Doreen B.

Space

place and

gender.

Cambridge: Polity Press, 1994.

McHALE, Brian. Postmodernist fiction. London: Methuen, 1987.

.

Constructing the postmodernism.

London/New

York: Routledge,

1992.

MINH-HA, Trinh

T. Woman

native

other.

Bloomington/lndiana: Indiana

University Press, 1989.

MOI, Toril. Feminist, female, femine. In: The feminist render - Essays

in

gender

and

the politics of literary criticism. Ed. by Catherine Belsey

and

Jane Moore. London: MacMillan, 1989.

NEALON, Jeffrey

T.

Double reading.

Postmodernism after deconstruction.

New

York: Cornell University Press, 1993.

NESTROVSKI, Arthur. Ironias da modernidade. São Paulo: Ática, 1996.

NORRIS, Margot. The

decentered

universe of

Finnegan

s Wake A structural-

ist analysis. London/Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1976.

18

láudia Nina

Page 182: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 182/186

PAES José Paulo.

A aventura literária.

Ensaios sobre ficção e ficções. São

Paulo: Companhia das Letras 1990.

QUEIROZ Maria José.

Os

males da

ausência

ou

A literatura

do exílio. Rio de

Janeiro: Topbooks 1988.

RIBEIRO Hélder.

Do

absurdo

à

sobriedade.

A visão de

mundo

de Albert

Camus. Lisboa: Editorial Stampa 1996.

SARTRE Jean-Paul.

La

nausée. Paris: Gallimard 1938.

. Verdade

e

existência

.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1990.

SCHOFIELD Mary Anne et ali.

Literature and exile .

Ed. by David Bevam.

Amsterdam Atlanta: Rodopi 1990.

SEIDEL Michael. Exile and

the narrative imagination. New Haven

and Lon-

don: Yale University Press 1986.

SELDEN Raman e WIDDOWSON Peter. Reader's

guide to

contemporary

lit

erary

theory.

Kentucky: The University Press of Kentucky 1993.

SMITH Sidonie e WATSON Julia. Women, autobiograpl y theory: a reader.

Madison/Wisconsin: University of Wisconsin Press

1988.

STAM Robert. O espetáculo

interrompido

Literatura de cinema de desmis-

tificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1981.

STEGAGNO-PICCHIO Luciana.

História

da

literatura

brasileira.

Rio

de

Ja-

neiro: Nova Aguilar 1997.

STEINER George. Heidegger. Hassocks: The Harvester Press Fontana

Books 1978.

.

Extraterrestrial

- Papers on literature

and

language revolution.

London: Faber and Faber Queen Square 1972.

.

Linguagem e

silêncio

- Ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo:

Companhia das Letras 1988.

STEVENSON Randall.

Modernist fiction -

An introduction. Kentuky: Uni-

versity Press of Kentucky 1988.

TODOROV Tzvetan. Os

gêneros

do discurso. São Paulo: Edições 70 1978.

. L homme dépaysé.

Paris: Éditions

du

Seuil 1996.

WHITFORD Margaret. The Irigaray

render.

Oxford: Basil Blackwell 1991.

YAEGER Patricia. Toward a female sublime. In: Dialogues

on feminist criti

cism.

Ed.

by

Linda Kauffman. Oxford: Basil Blackwell 1

989.

A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

18

Page 183: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 183/186

Artigos publicados em revistas e jornais)

BARSETTI, Sílvio.

Cartas de

um

alma doente.

Jornal do Brasil

jan. 1994.

BIRMAN, Joel. A escrita feminina e a psicanálise.

Jornal

do Brasil dez. 1997.

CALLADO, Antonio.Galos no amanhecer

de

Clarice. Isto

É

jan. 1979.

FELINTO, Marilene. Biografia se debruça sobre o mistério Clarice. Folha de

São Paulo

mar. 1999.

FISCHER, Milena. O primitivo idioma de Clarice. Jornal

Zero

Hora out.

1998.

MARTINS, Gilberto Figueiredo. Clarice e a crítica. CllLT

Revista Brasileira

de

Cultura

dez. 1997.

MEDEIROS, Alexandre. Clarice Lispector. Jornal do Brasil dez. 1997.

MEDEIROS, Sérgio. Máquina

de

sonhar.

CllLT Revista

Brasileira

de

Cultu-

ra. Fev.

2000

MENDES, Marlene Gomes. Nova edição corrige erros

de

publicações ante-

riores. O Estado de São

Paulo

set. 1998.

MILLAN, Betty. Editora francesa lançará toda a obra

de

Clarice Lispector.

Folha de

São

Paulo mar. 1993.

MILLEN, Mànya. Retirando os véus de Clarice Nova biografia esmiúça a

vida

d

autora

de

A

paixão

segundo

G.H.). O

Globo

mar. 1999.

NICOLAU, Roselena. Misteriosa Clarice. Jornal do

Brasil

jan. 1994.

NINA, Cláudia. Biografia decifra enigmas da bruxa

d

literatura. Tribuna

de Minas jun. 1995.

.

Diálogos

de

uma peregrina.

Tribuna de

Minas set. 1996.

.M u i ta amplitude, pouca proftmdidade. Jornal do Brasil mar. 1999.

.Que

mistérios tem Clarice.

Z

Revista

de

Cultura

maio 1999.

ORSINI, Elizabeth. Segredo e mistério

d

escrita.

Jornal

do Brasil out. 1990

PINTO, Graziela Costa Pinto. O ser e a escritura.

CllLT Revista

Brasileira

de Literatura dez. 1997.

SILVIA NO, Santiago. A aula inaugural de Clarice.

Folha de São

Paulo dez.

1997.

SOUZA, Gilda de Mello. O lustre. O

Estado

de São Paulo jul. 1946.

82

láudia Nina

Page 184: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 184/186

Page 185: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 185/186

EDIPU RS

Page 186: A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector

http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 186/186