a paisagem como forma de expressÃo estÉtica e a paisagem ... · a paisagem como forma de ......

10
A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM GEOGRÁFICA Como vimos no capítulo anterior, o espaço geográfico é o objeto de análise da Geografia. Para compreendê-lo, a Geografia se apoia em uma série de conceitos, de palavras-chave que apresentam significados específicos e se baseiam em teorias. Três conceitos em especial orientam os estudos geográficos: a paisagem, o lugar e a região. É importante saber que esses conceitos não são exclusividade da Geografia, pois outras áreas do conhecimento também os analisam e os utilizam. Um conceito científico não possui o mesmo significado que consta do dicionário. Como você viu no capítulo 1, a palavra "espaço"tem vários significados, mas, no caso da Geografia, ela constitui um con- ceito específico apoiado em teorias. O mesmo vale para outros conceitos, tais como natureza, sociedade, lugar, paisagem e região. Vejamos o exemplo do conceito de paisagem. A palavra "paisagem" geralmente é utili- zada para se referir a lugares belos, amplos, praias desertas, várzeas de rios, campos gra- mados ou com grandes plantações, casinhas de taipa com pequeno lago ou com uma montanha ao fundo, cidades turísticas etc. Busca-se na paisagem o idílico, o bucólico, a imagem do que não se pode observar no cotidiano, especialmente quando se vive em grandes cidades. Nessa perspectiva, a paisa- gem se torna algo desejável, por transmitir sensação de tranquilidade e de prazer. Canão-postai de Paris (França), em 1889. Paisagens majestosas são exploradas por agências de turismo para mostrar as qualidades de um lugar e, assim, vender pacotes de viagem. Os cartões-postais, por exemplo, costumam mostrar os aspectos mais belos de um lugar, como céu azul ou o pôr do sol. Ao viajar, muitos também procuram retratar em fotografias as paisagens, sejam elas urbanas, rurais, culturais ou naturais, de seu melhor ângulo. Vista noturna em Nova Iorque (Estados Unidos), em 2012.

Upload: truongthuan

Post on 08-Nov-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

A PAISAGEM COMO FORMA DEEXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM GEOGRÁFICA

Como vimos no capítulo anterior, o espaço geográfico é o objeto de análise da Geografia. Para

compreendê-lo, a Geografia se apoia em uma série de conceitos, de palavras-chave que apresentam

significados específicos e se baseiam em teorias.

Três conceitos em especial orientam os estudos geográficos: a paisagem, o lugar e a região. É

importante saber que esses conceitos não são exclusividade da Geografia, pois outras áreas do

conhecimento também os analisam e os utilizam.

Um conceito científico não possui o mesmo significado que consta do dicionário. Como você viu no

capítulo 1, a palavra "espaço"tem vários significados, mas, no caso da Geografia, ela constitui um con-

ceito específico apoiado em teorias. O mesmo

vale para outros conceitos, tais como natureza,

sociedade, lugar, paisagem e região. Vejamos

o exemplo do conceito de paisagem.

A palavra "paisagem" geralmente é utili-

zada para se referir a lugares belos, amplos,

praias desertas, várzeas de rios, campos gra-

mados ou com grandes plantações, casinhas

de taipa com pequeno lago ou com uma

montanha ao fundo, cidades turísticas etc.

Busca-se na paisagem o idílico, o bucólico,

a imagem do que não se pode observar no

cotidiano, especialmente quando se vive em

grandes cidades. Nessa perspectiva, a paisa-

gem se torna algo desejável, por transmitirsensação de tranquilidade e de prazer. Canão-postai de Paris (França), em 1889.

Paisagens majestosas são exploradas por agências de turismo para mostrar as qualidades de um lugar

e, assim, vender pacotes de viagem. Os cartões-postais, por exemplo, costumam mostrar os aspectos

mais belos de um lugar, como céu azul ou o pôr do sol. Ao viajar, muitos também procuram retratar em

fotografias as paisagens, sejam elas urbanas, rurais, culturais ou naturais, de seu melhor ângulo.

Vista noturna em Nova Iorque

(Estados Unidos), em 2012.

Page 2: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

Na arte, especificamente na pintura, a paisagem constitui um de seus géneros e foi bastante re-

tratada ao longo da história e ainda o é nos dias atuais. Artistas do movimento impressionista, comoVan Gogh (1853-1890), Renoir (1841-1919), Monet (1840-1926) e Manet (1832-1883), representaram,

com precisão e destreza, a beleza de muitas paisagens. Mostravam a ideia de paisagem relacionada

ao belo, aos campos abertos, às cidades com luz e cores reluzentes, à luz do sol.

Paisagem de Auvers após a chuva, de 1890, do artista plástico holandês Vincent van Gogh.

Nos séculos XVI a XIX, paisagens

do Brasil e da América Latina também

foram retratadas em muitas obras de

artistas europeus. Aspectos da fauna,

da flora, das paisagens tropicais e do

povo que vivia nesses lugares apare-

cem representados em pinturas do

holandês Frans Post (1612-1680), do

francês Jean-Baptiste Debret (1768-

-1848) e do alemão Johann Moritz

Rugendas (1802-1858).

Essas imagens, como as pinturas

impressionistas e as paisagens que

surgem em guias turísticos, contri-

buem para a construção da ideia de

paisagem. Além disso, as experiências

sensoriais cotidianas, os aspectos per-

cebidos pelos sentidos - especialmen-

te a visão, a audição e o olfato - tam-

bém influenciam a nossa percepção

de paisagem.Paisagem na selva tropical brasileira em 1830,

de Johann Moritz Rugendas.

Page 3: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

Para a Geografia, a paisagem não se refere apenas ao belo nem resulta somente das informações

apreendidas pela arte e pelas experiências sensoriais. A ciência que discute o espaço geográfico

considera a paisagem o primeiro elemento que nos permite ter contato com a realidade.

Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, "a paisagem é um conjunto de formas que, num dado

momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem

e natureza".

A Geografia, diferentemente do turismo, de parte dos movimentos artísticos ou das pessoas em

geral, não busca somente o belo na paisagem, mas sim os elementos nela presentes que permitem

compreender o espaço geográfico, conceito que você estudou no capítulo anterior.

a em Calcutá (índia), em 2009. Nos países pobres, as paisagens dos bairros onde vivem as pessoas com menor poder aquisitivo

revelam aspectos das condições socioeconômicas, como falta de infraestrutura e moradias precárias. No caso desta paisagem de Calcutá,

oercebe-se a miséria económica das pessoas que habitam esse lugar.

A paisagem reproduz a expressão de vários tempos, ou seja, o contexto histórico em que ela foi

construída. Caracteriza-se pelos elementos que foram inseridos ao longo do tempo e que coexistem

com os atuais. Construções, casas, prédios, armazéns, ruas, praças e a distribuição deles no espaço

compõem os elementos de uma paisagem e podem sofrer transformações ou permanecer inalterados.

As funções desses elementos culturais podem também mudar com o tempo.

Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura de uma

sociedade; resulta dos usos das técnicas desenvolvidas em cada período, da arquitetura, das atividades

económicas e das características presentes nesse meio.

O que define o nível de mudanças em uma paisagem é a atuação da sociedade, que contribui para

a formação e o desenvolvimento do espaço geográfico. Assim, para analisar o espaço geográfico,

é preciso compreender de que forma as sociedades se inserem nesse espaço e qual uso fazem daspaisagens.

Quanto mais intensas são as ações humanas no espaço, mais elas ficam evidentes na paisagem. De

outro lado, quanto menos intensas são essas ações, mais se pode observar a dinâmica da natureza

na transformação da paisagem.

Page 4: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

É importante mencionar que os estudos geográficos não podem se basear apenas na observação

da paisagem e dos elementos naturais e culturais que a compõem. Uma dada realidade aparente

pode ocultar uma série de aspectos que não estão expressos diretamente na paisagem. Por exemplo,

ao se observar a construção de uma grande obra de engenharia, como uma usina hidrelétrica, não

se pode ver (no sentido literal) as relações sociais, económicas e de poder que aí se desenvolvem.

Para compreender o espaço geográfico, portanto, a paisagem é a "porta de entrada", mas muitas

vezes as respostas para questões que envolvem o espaço devem ser buscadas em elementos nem

sempre explícitos.

Algumas classificações da paisagem

Uma das mais comuns classificações de paisagem é a que distingue paisagem natural - onde há

predomínio dos aspectos naturais (relevo, vegetação, hidrografia, clima) - de paisagem humanizada

- onde há predomínio das ações humanas.

A ação da natureza transforma a paisagem, mas ela não é a única a ser analisada. Na foto, vulcão Llaima em erupção (Chile), 2009.

Essa classificação simplifica as análises sobre a paisagem e esconde questionamentos importantes

sobre a relação entre sociedade e natureza nos dias atuais. Ela não considera a intensidade da ação

humana nem o modo como essa ação se expressa na paisagem.

Pode-se perceber que hoje a ação humana no espaço geográfico é mais intensa do que no passado.

Após o advento do capitalismo e da Revolução Industrial, as sociedades modernas transformaram o

espaço geográfico de forma muito acentuada e veloz. Com isso, houve uma redução drástica das áreas

que poderiam ser consideradas naturais e, atualmente, quase inexistem porções do espaço geográfico

mundial que não recebam direta ou indiretamente as influências da ação da sociedade.

O próprio conceito de espaço geográfico não é levado em consideração nessa classificação. Pois,

compreendendo-se o espaço geográfico como aquele onde o ser humano imprime as suas marcas,

sabendo que a sociedade tem se apropriado direta ou indiretamente de todo o planeta, não haveria

mais, em princípio, paisagens naturais.

Page 5: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

A ação humana está presente em vários domínios naturais e até mesmo nos locais destinados

1 preservação ambiental. São áreas cercadas, monitoradas, observadas, fotografadas e mesmo

disputadas.

Na Amazónia, por exemplo, observam-se as ações de cientistas, que pesquisam a floresta; de

grileiros, que pretendem ocupar as terras para em seguida comercializá-las; de madeireiros, que

juscam comercializar a madeira, muitas vezes devastando a floresta; e de ribeirinhos, que já vivem

lessas áreas há muitos anos e desenvolvem formas de agricultura de subsistência. Há ainda o inte-

•esse dos grandes proprietários de terras em mudar o caráter de preservação permanente das áreas

de proteção e a pressão internacional pelo aumento da produção de determinados alimentos em

áreas rurais. São ações intencionais de grupos sociais, motivo pelo qual as paisagens dessas áreas

Dodem ser consideradas humanizadas.

Além dessas ações humanas diretas no espaço geográfico, outras influências indiretas podem ser

:onsideradas, como, por exemplo, a poluição atmosférica que atinge até os pontos mais remotos

da Terra.

Um questionamento que a classificação anterior traz é: as paisagens transformadas por essas

ações humanas, mesmo apresentando predomínio dos aspectos naturais, podem ser classificadas

:omo naturais?

Acredita-se que a ação da

sociedade na paisagem, direta

DU indireta, intencional ou não,

diminui o caráter de primeira

natureza, transformando-a em

segunda natureza, como você

aprendeu no capítulo anterior.

(Vtualmente são as paisagens

lumanizadas que predominam

2 elas podem ser classificadas

de acordo com a intensidade

da ação da sociedade. Assim,

existem:

• paisagens intensamente

transformadas: nelas se ve-

rificam mais intensamente

as transformações provo-

cadas pela ação das socie-

dades. Quase não existem

os aspectos naturais, pois

predominam construções,

plantações, pecuária, mi-

neração, entre outros ele-

mentos. Essas paisagens

podem ser rurais, urbanas e

até marítimas. Exemplos: ci-

dades, grandes plantações,

plataformas de extração de

petróleo, áreas de extração As paisagens das granc(es cidades revelam a intensa ação humana. Na foto, cidade de Hong Kongmineral etc; (China) em 2008.

Page 6: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

Nas áreas onde apresença humana épouco intensa e as

atividades económicasainda estão muitoligadas à natureza,há predomínio doselementos naturais

na paisagem. Nafoto, comunidade

ribeirinha que praticaa pesca artesanal, nasmargens do rio Negro,

próximo a Manaus(AM), em 2012.

paisagens pouco transformadas: nelas percebe-se a ação humana, entretanto, ela ocorre com

menor intensidade. Apesar de haver ação da sociedade, nessas paisagens predominam os

aspectos naturais. Exemplos: algumas áreas de preservação ambiental, áreas onde se desen-

volve o extrativismo vegetal, áreas de sistemas agroflorestais (onde há plantação associada à

vegetação natural) etc;

paisagens indiretamente transformadas: são aquelas nas quais a sociedade não atua efeti-

vamente, mas já atua indiretamente. Essas paisagens apresentam predomínio da natureza,

como as matas, a presença do relevo etc. Exemplos: áreas da Antártida, áreas de preservação

permanente da Floresta Amazônica, do cerrado, da savana ou de qualquer outro bioma. No caso

da Antártida, por exemplo, alguns cientistas afirmam que a ação humana pode ser percebida

nesse continente por meio das estações de pesquisa e até mesmo da presença de restos de

lixo, levados pelas correntes marítimas, ou da concentração de poluentes, provenientes das

altas camadas da atmosfera.

As ações antrópicas se —estendem por muitas

áreas do planeta,mesmo distantes de

locais onde há grandepresença humana.

Na foto, uma enormequantidade de lixo

transportada porcorrentes marítimas

se acumulam no atolMidway, no oceano

Pacífico, em 2009.

Page 7: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

As paisagens podem ser classificadas ainda de outra maneira, considerando as características doselementos que as compõem:

• paisagem urbana: são aquelas onde há o predomínio das atividades que se desenvolvem nas

cidades. Nessas paisagens destacam-se grandes construções, a concentração populacional, as ati-vidades económicas (como o setor de serviços), parques industriais, entre outros elementos;

• paisagem rural: são aquelas onde há o predomínio das atividades rurais (agricultura, pecuária eextrativismo). Nessas paisagens, em geral, observam-se plantações, áreas de criação de animais,mineradoras, agroindústrias (especialmente ligadas à produção de alimentos).

• NO LUGAR VI VENCI AMOS O COTIDI ANO

Veja os significados da palavra "lugar"que aparecem no dicionário Aurélio:

Lugar: l . Espaço ocupado; sítio. 2. Espaço. 3. Sítio ou ponto referido a um fato. 4. Espaço

próprio para determinado fim. 5. Ponto de observação; posição, posto. 6. Esfera, roda, ambien-

te. 7. Povoação, localidade. 8. Região, país. 9. Posição, situação. 10. Classe, categoria, ordem.

11. Ocupação, emprego, função, cargo .12. Assento marcado e determinado .13. Posição determinada

num conjunto, numa escala, numa série; colocação; entre outras definições.

Fonte: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

Edição eletrônica. Curitiba: Positivo, 2009.

Como você pode observar, a palavra "lugar" possui vários significados. Para a Geografia, o lugar

expressão da história cotidiana das pessoas, da maneira como elas ocupam o espaço, dos usosfazem dele e a maneira de vivenciá-lo.

Para entender melhor esse conceito, vamos imaginar uma pequena cidade. Uma pessoa que

mora ali vivência esse lugar na sua totalidade, pois, como há poucas opções de serviços (comér-cio, lazer, educação, saúde, entreoutros), as pessoas se encon-tram mais, frequentam os mes-

- DS estabelecimentos, há maisaproximação entre indivíduos de

diferentes classes sociais, origens

e etnias. Além disso, a distribui-ção das moradias e das demaisconstruções, ou seja, a ocupação

do espaço, ocorre de forma dife-

rente em comparação às grandescidades; nas pequenas cidades, asmoradias são mais próximas umas

às outras. Contudo, é preciso des-tacar que, nas cidades pequenas,

assim como nos demais lugares,ocorrem usos distintos do espaço,pois tudo depende das condições

, . , Famílias em parque de Águas de São Pedro (SP), 2009. É comum as pessoas se conhecerem econviverem cotidianamente, encontrando-se com regularidade. Pode-se dizer que os indivíduos

seus habitantes. vivenciam esses espaços na sua totalidade.

Page 8: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

As pessoas que moram no campo, próximo das cidades pequenas, também as vivenciam como

um todo, pois de certa forma dependem delas - vão às compras, ao médico, à escola e buscam o

lazer ou outros serviços nessas cidades, onde eles são oferecidos. A melhoria dos meios de transporte

tem possibilitado ainda mais esse contato entre o campo e a cidade.

Já as grandes cidades são vivenciadas de forma fragmentada e são compostas, portanto, de vários

lugares. Isso ocorre em função das distâncias entre os lugares e das condições socioeconômicas dos

grupos que aí vivem e, desse modo, cada lugar é usado por distintos grupos de pessoas. Uma rua,

diferentemente da cidade pequena, é vivida somente por aqueles que lá moram, trabalham ou são

obrigados a percorrê-la para algumas de suas atividades cotidianas. As praças são pontos de encontro

de moradores de rua, de transeuntes e de pessoas que moram perto, e não da população como um

todo; existem diversos centros comerciais e os moradores dessas cidades não vão a todos, mas sim

buscam aqueles que apresentam maior facilidade de acesso, entre outros fatores.

Nessas cidades, portanto, nem todos se conhecem, em geral não frequentam os mesmos ambientes

e vivenciam os diferentes lugares a partir da disponibilidade de serviços ofertados. Desse modo, cada

lugar torna-se um fragmento da cidade grande, constituindo uma "colcha de retalhos", um conjunto

de pedaços que se relacionam entre si.

Paisagem urbana

na orla marítima de

Maceió (AL), em 2009.

A divisão das cidades grandes em zonas (norte, sul, leste e oeste; cidade baixa, cidade alta; cidade

velha, cidade nova) e a organização em bairros demonstram um pouco a existência desses fragmentos,

dos diversos lugares que constituem um espaço. Além disso, esse modo de organização espacial

demarca, em muitos casos, a identidade dos grupos de moradores. Essa identidade envolve a his-

tória dos lugares e se expressa na cultura, na linguagem, nos sotaques, nas tradições e nos hábitos

dos grupos sociais. É preciso analisar também de que forma se dão a constituição e a produção

dos lugares.

Observe nas fotos da avenida São João, em São Paulo, na página a seguir, como as transformações

urbanas podem modificar um lugar. As intervenções decorrentes do desenvolvimento do capitalismo

industrial naquela cidade modificaram a relação das pessoas com esse lugar. Nas primeiras décadas

do século XX, a avenida São João era uma rua com pequenos prédios, apresentava circulação de

veículos e de bondes. Era um lugar de passagem, mas também de compras, de encontros para um

café. Como não existiam muitos lugares com essas características na cidade, era frequentada por

boa parte da população.

Page 9: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

Após a década de 1950, essa mesma

rua se transformou num espaço de la-zer, com teatros, cinemas, cafés e bares,

marcado por encontros entre jovens daépoca. Os encontros noturnos atribuíram

outra feição ao lugar. Depois da cons-

trução de um grande viaduto nos anos1970, o elevado Costa e Silva, que ocu-

pa praticamente toda a extensão dessa

avenida, houve mudanças significativasno uso espacial. Surgiu um grande nú-

mero de marginalizados, moradores derua, usuários e traficantes de drogas que

vivem embaixo desse grande viaduto e,

nos fins de Semana, especialmente na Avenida São João, no centro de São Paulo (SP), em 1973.

parte superior do viaduto, o espaço exerce uma função antiga: moradores se reúnem para a práticade esportes, caminhadas e outras atividades.

rlistas e pedestres sobre o elevado Costa e Silva, em São Paulo (SP),

12012.

Morador de rua sob o elevado Costa e Silva, na avenida São João,

em São Paulo (SP), em 2010.

Como se pode observar, historicamente, os lugares se transformam à medida que o desenvol-

vimento económico se expressa nas paisagens e as funções e os usos dos lugares vão tomandonovas configurações. As relações socioculturais e político-econômicas vão se transformando etransformando o lugar. Sobre isso, leia o texto a seguir.

Ampliando conceitos

O lugar é a base da reprodução da vida e pode seranalisado pela tríade habitante-identidade-lugar. A ci-dade, por exemplo, produz-se e revela-se no plano davida e do indivíduo. Este plano é aquele do local. Asrelações que os indivíduos mantêm com os espaços ha-bitados se exprimem todos os dias nos modos de usos,

nas condições mais banais, no secundário, no acidental.E o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriadoe vivido através do corpo.

Fonte: CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São

Paulo: Hucitec, 1996. p. 19-20.

Page 10: A PAISAGEM COMO FORMA DE EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM ... · A PAISAGEM COMO FORMA DE ... Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura

Nesse texto está expressa uma perspectiva que entende o lugar como a "base de reprodução

da vida". Desse modo, pode-se afirmar que, na Geografia, o conceito de lugar vai além daquelesapresentados no dicionário Aurélio, como vimos anteriormente. Para compreender o lugar, busca-se

analisar os usos que as pessoas fazem dele, as relações entre os indivíduos, as marcas deixadas, acultura construída, a forma como se dá a apropriação do espaço, além das atividades económicasdesenvolvidas.

Não é somente a ciência que busca compreender o conceito de lugar. A Literatura também se

utiliza dele. Observe como a rua, expressão de um lugar, é abordada neste fragmento da obra de

João do Rio (1881 -1925), escritor brasileiro que viveu na cidade do Rio de Janeiro.

r 4fc

A rua

Interdisdplinaridade-^

1 LITERATURA 1

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: "Rua

do latim ruga, 'suco'. Espaço entre as casas e as po-

voações por onde se anda e passeia" [...]

Ora a rua é mais do que isso, a rua é um fator da

vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarés ou em

Amsterdã, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus

mais diversos, nos mais variados climas, a rua é agasa-

Ihadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de

todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus

olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos

medíocres, dos infelizes, dos miseráveis, da arte. [...] A

rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria - ela não os

denuncia. A rua é a transformadora das línguas.

A rua nasce, como o homem, do soluço. Do es-

pasmo. Há suor humano na argamassa de seus cal-

çamentos. Cada casa que se ergue é feita do esforço

exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedrei-

ros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias,

cantarem, cobertos de suor, uma elopeia tão triste que

pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos

nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais

igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das

obras humanas [...]

Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões

humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com

vida e destinos iguais aos do homem.

Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento

das grandes colmeias sociais, de interesses comerciais,

dizem. Mas ninguém o sabe. [...] nasceu mais uma rua.

Nasceu para evoluir, para ensaiar os primeiros passos,

para balbuciar, crescer, criar uma individualidade. Os

homens têm no cérebro a sensação dessa semelhança,

e assim como dizem de um rapagão:

- Quem há de pensar que vi este menino a enga-

tinhar?

Murmuram:

- Quem há de dizer que esta rua há dez anos só tinha

uma casa!

Fonte: ANTELO, Raul (Org.). João do Rio: a alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 45-84. l

Esse olhar poético de João do Rio sobre a rua, que pode ser a rua de qualquer cidade, pode

orientar a análise geográfica sobre os lugares. O autor busca compreender o que ocorre na rua, as

relações que aí se desenvolvem, sejam elas de afetividade, agressividade ou solidariedade, de poder,económicas ou de outra ordem; ele desnuda a rua e mostra os sujeitos que a fazem e suas relações

mais íntimas, a convivência dos sem-teto, o trabalho dos artistas, dos pedreiros, a cantoria dessesúltimos e, finalmente, a compara com o próprio desenvolvimento humano. Assim, ele está falandode um lugar: a rua.