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SO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(2): 49-56, 2004

A ORGANIZAO DA POLTICA SOCIAL DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE

A ORGANIZAO DA POLTICA SOCIAL DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE

SERGIO TIEZZI

Resumo: O artigo trata da forma como o governo Fernando Henrique Cardoso organizou a rea social, diante dos desafios impostos pelos indicadores e pela organizao institucional do governo federal at 1994. Palavras-chave: governo; polticas sociais; reforma do Estado. Abstract: This article deals with the way the government Fernando Henrique Cardoso organized the social area while facing challenges imposed by the indicators and by the institutional organization of the federal government until 1994. Key words: government; social politics; state reforms.

governo Fernando Henrique Cardoso assumiu o pas num momento particularmente grave no que diz respeito situao social da populao: no s era grande o contingente de brasileiros vivendo em situao de pobreza e indigncia, como tambm as desigualdades de riqueza e de renda atingiram patamares imoralmente elevados. Pobreza e desigualdade, cujas razes remontam ao passado histrico, mas cujas causas mais imediatas se encontravam nas limitaes do processo de desenvolvimento com base na substituio de importaes conduzido pelo Estado, na crise desse padro de desenvolvimento, nas incertezas dos processos anteriores de ajuste econmico e nas conseqncias do processo de reestruturao econmica imposto pela globalizao. Avaliaes feitas, na poca, tanto por pesquisadores brasileiros como por analistas estrangeiros, que levam em conta definies e padres comparativos internacionais, eram unnimes em considerar que o sistema brasileiro de proteo social era grande e complexo, se comparado com o de pases com o mesmo nvel de renda per capita e taxas semelhantes de urbanizao. Tendo-se estruturado com base na incorporao progressiva e desigual de diferentes corporaes profissionais

O

e segmentos sociais, bem como crescido, sobretudo, durante perodos de recrudescimento autoritrio, o sistema de proteo social consolidado ao longo do tempo acabou se caracterizando por um esforo de gasto relativamente elevado (cerca de 18% do PIB), grande centralizao administrativa, escasso controle democrtico, grandes ineficincias operacionais e por uma estrutura de benefcios com baixo contedo redistributivo. Alm disso, uma rede complexa de interesses e de direitos adquiridos envolvendo polticos, funcionrios, fornecedores e beneficirios privilegiados dificulta a reestruturao do sistema. Dotar o pas de um sistema eficiente e democrtico de proteo social tarefa complexa e difcil. No se esgota nas responsabilidades fundamentais do governo federal e no se realiza de uma hora para outra. Sobretudo, desmontar desigualdades historicamente construdas no tarefa de um governo, mas de geraes. A FORMULAO DA ESTRATGIA DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL Nas condies de ento (bastante adversas do ponto de vista tanto ideolgico quanto econmico e fiscal) e para

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enfrentar os mltiplos desafios colocados, o governo Fernando Henrique entendeu ser necessrio, por um lado, promover uma maior integrao entre as vrias polticas de governo, emprestando a todas elas marcada preocupao social, e, por outro, desenvolver com determinao quatro subconjuntos de aes ou polticas, indispensveis para alcanar os objetivos desejados. Em primeiro lugar, era preciso realizar um conjunto de aes que, no s por seus efeitos diretos, mas, sobretudo, por seus efeitos indiretos, constituem condies necessrias, embora no suficientes, para promover a melhoria do padro de vida dos brasileiros. Neste sentido, era absolutamente indispensvel assegurar as condies de estabilidade macroeconmica, realizar a reforma do Estado a compreendidas as reformas administrativa, fiscal e da previdncia e outras medidas exigidas para a implantao de uma estratgia de desenvolvimento social e retomar o crescimento econmico sob as novas condies de abertura da economia e elevada competio. Em segundo lugar, era preciso concentrar todo esforo e ateno nos servios sociais bsicos de vocao universal: educao, sade e previdncia social. Os servios prestados por estes setores, de oferta rotineira e continuada, constituem o ncleo de qualquer poltica social e compreendem mais de 90% do gasto pblico na rea social. A reestruturao e a reforma profunda desses setores requeriam a eliminao de desperdcios, o aumento da eficincia desses setores, a promoo da descentralizao, a universalizao, sempre que necessrio e legtima, de sua cobertura, a melhoria da qualidade e, sobretudo, a reestruturao dos benefcios e servios para aumentar o seu impacto redistributivo. A urgncia e a gravidade da situao social brasileira exigiam programas e medidas cujo impacto ocorresse no curto prazo. Por isso, o governo Fernando Henrique se props, em terceiro lugar, a selecionar um conjunto de aes e programas considerados particularmente relevantes, para enfrentar pontos de estrangulamento mais dramticos (como a reforma agrria), para acelerar o processo de reforma e reestruturao de servios sociais (como a melhoria do ensino fundamental) e para proporcionar ateno a grupos sociais que requeriam ao imediata e inadivel (a reduo da mortalidade na infncia, a renda mnima para idosos e deficientes de baixa renda e a erradicao do trabalho infantil, por exemplo). Essas aes e programas mereceram ateno prioritria e esforo concentrado de articulao, financiamento, gerenciamento e avaliao.

Entretanto, era necessrio experimentar um novo mecanismo para coordenar as polticas voltadas para o enfrentamento de situaes agudas de fome e de misria, de situaes sociais de emergncia e de calamidade pblica. Isso foi feito por meio do Programa Comunidade Solidria, cuja funo bsica deveria ser aprimorar os programas federais direcionados para regies mais vulnerabilizadas, bem como coordenar e focalizar suas aes com base em critrios tcnicos de necessidade e eficcia, diminuindo os riscos de pulverizao e clientelismo e promovendo uma adequada articulao entre os diferentes nveis de governo. Essa tarefa se desdobrou posteriormente na adoo do ndice de Desenvolvimento Humano IDH da ONU como critrio de alocao de recursos e na criao de programas de transferncia direta de renda para as famlias mais pobres, como a Bolsa Escola e o Bolsa Alimentao, eliminando burocracias para a chegada de recursos financeiros aos beneficirios. Em quarto lugar, mas da maior importncia para o modelo de poltica social que o governo Fernando Henrique adotou, foi a criao do Conselho da Comunidade Solidria, constitudo pelos ministros das reas econmica e social do governo e por pessoas representativas da sociedade civil, cuja funo essencial alm de acompanhar a ao social da administrao federal, propondo medidas e sugerindo modificaes de rumo consistia em articular formas de parceria entre o governo e a sociedade civil e suas diversas organizaes no enfrentamento da questo social, inovando e experimentando. A partir deste Conselho, foram desenvolvidas parcerias entre programas governamentais e setores da sociedade civil (empresas, universidades, sindicatos, ONGs, igrejas, etc.) para atividades de poltica social junto a segmentos e regies indicados por suas necessidades e carncias. Foram criados e desenvolvidos, a partir de ento, os programas Alfabetizao Solidria, Universidade Solidria, Artesanato Solidrio e Capacitao Solidria. Um novo papel era atribudo ao Estado. No deveria mais ser o grande produtor de bens e de servios, mas sim usar seu poder de sinalizao e de regulamentao e sua capacidade de investir para tornar viveis empreendimentos de outras instituies que se considerem desejveis: esferas subnacionais de governo (Estados e municpios), empresas privadas e entidades da sociedade civil e das comunidades.

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DESCENTRALIZAO NA REA SOCIAL Ao mesmo tempo, a profunda descentralizao de aes da rea social permitiu o fortalecimento do nvel local para a tomada de decises e no apenas da aplicao dos recursos e formulaes de acordo com as necessidades de cada localidade. A descentralizao foi uma forma eficiente de gerir o gasto pblico. A proximidade com o usurio permite, com maior segurana, que as diversas esferas de governo participem da oferta dos servios, evitando possveis desequilbrios entre oferta e procura, causados por desconhecimento das demandas dos usurios. Uma ordenao desse processo de descentralizao exigiu, entre outras medidas: - evitar a duplicidade de aes das esferas de governo, extinguindo rgos federais e procurando eliminar programaes oramentrias, em reas nas quais a presena da Unio tornou-se suprflua ou inadequada. Um exemplo foi a extino da FAE Fundao de Amparo Escola e a descentralizao dos recursos para compra da merenda escolar; - regularizar e dar transparncia s transferncias voluntrias, notadamente no que diz respeito aos setores de educao e sade, condicionando-as melhoria do esforo prprio de Estados e municpios e efetiva assuno dos encargos e responsabilidades que, antes da redistribuio de receitas, competiam Unio. A criao de um Fundo especfico de garantia do financiamento do ensino fundamental (Fundef) e uma Emenda Constitucional de garantia de aplicao de recursos na sade por todos os nveis de governo so exemplos. Alm da reforma funcional do Estado, por meio da qual se redefiniram as funes do setor pblico, redistriburamse as funes entre os diferentes nveis de governo e aumentou-se a participao social nos processos decisrios, foi levado a cabo, como condio necessria, o gerenciamento mais adequado dos programas sociais, para a execuo de um conjunto eficiente de polticas de proteo social. Os servios sociais, no pas, tinham um elevado grau de ineficincia e ineficcia e um baixo impacto redistributivo, bem como excluses na universalidade do acesso. A instabilidade dos recursos, presente nas trs esferas de governo, alimentava a ineficincia do sistema, comprometia a continuidade dos programas, prejudicava a prestao de servios e chegava a inibir uma maior agilidade no processo de descentralizao. A frgil articula-

o entre os rgos encarregados dos programas e a excessiva fragmentao e superposio de aes dificultavam elevar o grau de eficcia e eficincia dos recursos alocados. Mudar as formas de organizao e gerenciamento na rea social, incentivando a descentralizao, a parceria com a sociedade civil e a transparncia, constitui linhas de ao com um certo consenso e estratgia no pas h alguns anos. Agregou-se a isso a necessidade de focalizao de determinados programas com potencial de impacto importante sobre a pobreza, com vistas a um efetivo atendimento das camadas mais pobres da populao. Trata-se de um processo que exigiu o comprometimento de todos os atores que atuam na rea (governo federal, Estados, municpios e sociedade civil), pois era uma tarefa impossvel de ser executada por um s dos participantes. Alm disso, dada a heterogeneidade que caracteriza o Brasil e a multiplicidade de atores envolvidos, esperavase que o processo se desenvolvesse de forma desigual entre as diferentes regies e reas. ESFERAS DE ARTICULAO E COORDENAO: UMA NOVA FORMA DE ORGANIZAO DO GOVERNO chegada ao governo, antecedeu um longo trabalho de planejamento estratgico que redundou em uma agenda criada a partir do programa de governo (Mos Obra, Brasil) apresentado sociedade brasileira nas eleies de 1994. No caso da poltica social, foi elaborado um documento, coordenado pelo assessor especial do presidente da Repblica, Vilmar Faria, com colaborao de todos os ministros da rea social, para nortear a ao do conjunto do governo. O documento Uma Estratgia de Desenvolvimento Social teve por objetivo sistematizar as diretrizes bsicas do governo Fernando Henrique Cardoso para a rea social e apresentar, de forma sucinta, suas principais polticas e programas. No necessrio insistir na importncia de mecanismos de articulao e de coordenao de polticas em qualquer rea. Essa importncia aumenta diante de alguns fatores, entre os quais: tamanho e heterogeneidade do pas; complexidade e diferenciao institucional do aparelho estatal ou pblico responsvel pelas polticas; volume e complexidade dos recursos financeiros envolvidos; forma de organizao estatal; modalidade prevalescente de oferta de servios pblicos (estatal centralizada, estatal

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descentralizada, pblica descentralizada, parceria com organizaes no-governamentais, etc.). Esses fatores incidem sobre a definio dos principais problemas de articulao e coordenao de polticas e, portanto, sobre as possveis solues. Por sua vez, a articulao e a coordenao da rea social tm suas especificidades e uma forma de gerenciamento muito particular. A metodologia de gerenciar uma obra ou projeto de execuo fsica, que tem variveis bem conhecidas, quantificveis e locveis no tempo, muito diferente daquela utilizada para gerenciar um empreendimento de natureza mais mobilizadora de posturas e aes de pessoas, como so os projetos sociais. A responsabilidade de execuo dos diferentes componentes da poltica social brasileira se distribui pela Unio, Estados e Municpios. No plano federal, fica a cargo de cerca de dez ministrios, sendo que cinco Previdncia Social, Sade, Educao, Desenvolvimento Agrrio e Trabalho e Emprego, que so grandes estruturas burocrticas, com tradio e influncia movimentam volumosos recursos e so responsveis pelo financiamento e controle normativo de polticas e programas que, em seu conjunto, atendem a mais de 150 milhes de pessoas. A implementao dos mais de cinqenta programas que formam o conjunto de medidas de proteo social envolve complexas relaes intergovernamentais no plano federal e outras, no menos complexas, com os demais entes da federao. Alm disso, boa parte dos programas possui ainda conselhos de participao social nas deliberaes pblicas, com representao paritria de governo e sociedade civil organizada. Com freqncia, esses conselhos se desdobram em conselhos federais, estaduais e municipais. No caso brasileiro, as estruturas encarregadas de desempenhar essas funes estiveram na Presidncia da Repblica, com mandato explcito, apoio e participao direta do presidente. Cabia ao ministro-chefe da Casa Civil articular e coordenar todas as aes administrativas do governo federal. As funes da Casa Civil passavam por viabilizar a construo de consensos, construir a integrao e o entendimento, articular programas e aes, contribuir para identificao dos temas fundamentais para cada Cmara, trabalhar junto s equipes dos ministrios para fazer acontecer, acompanhar as aes de maior relevncia do governo e contribuir para identificao de problemas e proposio de solues. Nesse sentido, iniciativa importante para melhorar o desempenho da administrao federal foi a criao de

Cmaras Setoriais, reunindo ministros por rea temtica ou macroproblemas, sob o comando operacional da Casa Civil, com a presena permanente dos Ministrios do Planejamento e Oramento e da Fazenda, em todas as Cmaras, de forma a facilitar quando no garantir os recursos financeiros e oramentrios s decises tomadas. A estas Cmaras atribuiu-se a funo de construir consensos para as polticas de governo, facilitando as decises do governo como tal. Alm disso, possibilitou a todos os ministros e Ministrios clareza maior da agenda prioritria de governo. As organizaes de governo tm uma atuao muito fragmentada (feudos), muitas vezes com prioridades distintas e mesmo contraditrias, e no havia nenhum instrumento de gesto que coordenasse as prioridades da agenda de governo. As Cmaras foram uma tentativa de resolver as contradies e conflitos existentes dentro do governo, que permitissem sair de l com posies assumidas por todos os ministros de Estado. Uma de suas funes era qualificar as aes segundo o andamento, possibilitando acender as luzes de alerta no caso de um programa no ir bem e premiar aqueles com resultados expressivos. Muitas Cmaras tinham um secretrio executivo, responsvel por dar curso s decises tomadas. Todas contavam ainda com um Comit Executivo, formado pelos secretrios executivos dos Ministrios envolvidos os segundos da hierarquia dos Ministrios , cuja funo bsica era a orientao para resolver problemas e implementao operacional das polticas, programas e projetos. Os problemas de integrao, articulao e coordenao operacional que no tinham soluo nessa etapa, voltavam instncia ministerial da Cmara. A princpio, essas reunies eram organizadas com uma composio fixa, mas, com a experincia, concluiu-se que deveriam ser variveis, organizadas em funo dos problemas de articulao e coordenao a serem tratados. A organizao do governo em Cmaras Setoriais implicou a definio de programas prioritrios aqueles que efetivamente deixariam uma marca de transformao para o pas e para o governo e o incio do desenvolvimento de um sistema de monitoramento e avaliao permanentes dos programas sociais prioritrios. Esse monitoramento, feito pela equipe da Casa Civil, significava se colocar na posio de co-responsvel pelo sucesso ou fracasso de programas prioritrios, uma vez que a Casa Civil uma instncia com muito mais facilidade de resolver gargalos dos programas que envolvem outros setores do governo.

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O primeiro instrumento utilizado para esta finalidade foi o Sistema de Acompanhamento das Aes Relevantes, desdobrado e aperfeioado posteriormente para sistemas mais elaborados, sofisticados e extensivos, como o Brasil em Ao, coordenado pelo Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto. Essa metodologia, no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, serviu de base para a elaborao do Plano Plurianual de Investimentos (PPA) 1999-2002. Os objetivos do Sistema de Acompanhamento das Aes Relevantes eram dotar o governo, e especialmente o presidente da Repblica, de informaes objetivas e fundamentadas sobre o conjunto das principais aes em execuo, propiciar mecanismos de acompanhamento do que era particularmente relevante pelos ministrios executores e pela Presidncia da Repblica e ampliar os instrumentos para gerenciamento e pleno desempenho dos programas prioritrios.QUADRO 1 Importncia da Identificao de Aes Relevantes

ministrios; e legitimidade conseguida junto s mquinas administrativas. H um fator subjetivo com enorme influncia na resultante final das polticas: a construo de uma relao de confiana entre a Casa Civil e os Ministrios. Quando o Ministrio entendia a Casa Civil efetivamente como parceira, ou seja, pessoas com quem se podia contar, tendia a ter uma sinergia maior nas aes. Quando os Ministrios encaravam o papel da Casa Civil como de superviso indesejada ao andamento das aes, havia maior dificuldade de os programas sarem do lugar.1 A CMARA DE POLTICA SOCIAL Como visto, o governo selecionou um conjunto de programas e aes que mereciam ateno especial e prioritria, como parte de sua estratgia de desenvolvimento social, por sua importncia e impacto imediato nas condies de vida de amplos setores da populao, especialmente das camadas mais pobres. A Cmara de Poltica Social da Casa Civil da Presidncia da Repblica, criada como instncia superior de coordenao da poltica social do governo, por meio do Decreto n 1.918, de 13 de agosto de 1996,2 teria a responsabilidade de assegurar as condies necessrias para a execuo desses programas, em relao tanto garantia do fluxo de financiamento e qualidade do gerenciamento, quanto ao acompanhamento, avaliao e reviso das aes propostas, quando o resultado for considerado insatisfatrio. A ao social dos diversos Ministrios foi agrupada com base em quatro critrios principais: - programas voltados a alterar, imediatamente, o modo rotineiro de funcionamento de servios sociais bsicos, como o caso da valorizao do ensino fundamental; - programas que enfrentem situaes graves e emergenciais de segmentos sociais em situao de extrema dificuldade, como a populao empobrecida do campo e os idosos e deficientes fsicos; - aes especficas destinadas a reduzir ou eliminar a fome, como os programas de alimentao e nutrio; - programas que envolvam tarefas urgentes ditadas pelo novo padro de crescimento econmico e sua exigncia de se aumentar a empregabilidade de importantes segmentos da fora de trabalho. Em resumo, impunha-se como um grande desafio para a poltica social brasileira a profunda reestruturao desse sistema, visando:

Facilidade em iluminar o conjunto de aes do governo Possibilidade de prestao de contas transparente e eficaz Reconhecimento, por parte da Presidncia e dos ministros, do que prioritrio para o governo Identificao dos recursos e da ateno necessria plena execuo das prioridades

O resultados da ao das Cmaras Setoriais de Governo foram desiguais. Entre as bem-sucedidas, esto a Cmara de Poltica Econmica que se reuniu semanalmente at o fim do governo, quase sempre com a presena do presidente da Repblica, a Cmara de Infra-Estrutura e a Cmara de Poltica Social. Em 2001, com a crise energtica pela qual passou o pas, foi criada uma Cmara de Gesto da Crise de Energia para administrar o racionamento de energia necessrio para evitar apages e tomar as medidas para evitar a ocorrncia de novos problemas dessa natureza no futuro. O sucesso dessas iniciativas variou de programa para programa e deveu-se, igualmente, mais a fatores de natureza poltico-administrativa do que queles de centralizao burocrtica. Entre eles, cabe mencionar: capacidade tcnica e de gesto dos secretrios-executivos setoriais; continuidade administrativa; convergncia de perspectiva no que se refere s orientaes da estratgia de desenvolvimento social; sustentao poltica recebida pelos

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- descentralizar a execuo; - elevar a participao e o controle pblicos; - racionalizar gastos; - aumentar a eficincia alocativa; - eliminar desperdcios; - melhorar a qualidade dos servios prestados; - ampliar a cobertura universalizando os servios e, sobretudo, aumentar o seu impacto redistributivo. Em artigo recentemente publicado, o ento chefe da assessoria especial do presidente da Repblica, Vilmar Faria (2003), coloca sua viso da configurao de governo na rea social: A experincia brasileira recente no consagra como uma alternativa necessria, ou mesmo desejvel, a criao de uma autoridade social, entendida como uma superestrutura burocrtica, sob o controle de um ministro, que rene poderes operacionais em algumas ou em todas as reas setoriais da poltica social. Uma iniciativa desse tipo seria politicamente invivel e operacionalmente ineficaz. Diferentemente do que ocorre na rea econmica, onde os mecanismos de operao so relativamente poucos e altamente eficientes o oramento, a taxa de juros, o cmbio, o controle de receitas, entre outros na rea social estes instrumentos so muito mais numerosos e de eficincia mais restrita. Alm do mais, boa parte do corpo tcnico operacional se encontra em ministrios setoriais. Centralizar a ao social no seria, portanto, eficaz. Ao contrrio, a experincia brasileira aponta noutra direo: reformar e fortalecer as estruturas setoriais do ponto de vista funcional e tcnico, dot-las de fora, prestgio e poder poltico e desenvolver mecanismos e no estruturas burocrticas de articulao e coordenao (Faria, 2003). Essa forma de funcionamento permitiu o desenvolvimento de iniciativas muito bem-sucedidas para dar conta da estratgia de desenvolvimento social do governo brasileiro. A primeira, denominado Projeto Alvorada, consistiu num conjunto de doze programas elaborados no mbito de diversos Ministrios, com o objetivo de dotar os municpios brasileiros que possuem ndice de desenvolvimento humano baixo (inferior a 0,500) de infra-estrutura bsica, necessria para as atividades de desenvolvimento social e humano. Os programas so executados setorialmente e o papel dessa iniciativa fazer com que estes programas setoriais cheguem, prioritariamente, a essas regies e que ali sejam implementados coordenadamente pelas autoridades e sociedade local. Outro aprendizado desse processo foi a percepo de que nos municpios onde ocorre uma verdadeira integrao de polticas sociais setoriais.

A segunda iniciativa, denominada Comunidade Ativa, teve cobertura e alcance mais reduzidos e estava voltada para apoiar iniciativas comunitrias de desenvolvimento local integrado (sob o lema: no dar o peixe, ensinar a pescar). Foram escolhidos municpios cujas comunidades tenham revelado alguma capacidade de mobilizao, organizao e ao, com o objetivo de encontrar novas formas para dinamizar e desenvolver suas potencialidades. Com base na organizao e na capacitao microempresarial (empreendedorismo) dessas comunidades, so identificadas carncias e demandas, e o governo federal procura mobilizar seus programas para apoiar iniciativas de desenvolvimento local. Uma terceira iniciativa foi a criao de um Programa de Apoio Gesto Social, no mbito da prpria Presidncia da Repblica, para trazer agenda dos programas instrumentos de gesto social novos: a importncia de sistemas de informaes gerenciais atualizados e amigveis; avaliao de resultados para correo de rumos; capacitao em gesto social e suas especificidades. A transformao da gesto no governo era vista como essencial para que as mudanas estabelecidas no campo formal reformas constitucionais, nova legislao, novas estruturas e novo aparelho regulatrio pudessem se tornar mais permanentes. Se no houver avanos na mudana das posturas gerenciais o que significa reestruturar a forma de administrar, redefinindo, em trabalho conjunto, qual o objetivo, a misso, para que existe, quem so e o que demandam os clientes de fato de cada posto de servio, estabelecendo metas e revendo os processos e estruturas de cada rgo , o que fica precrio e referencialmente formal para que se transforme de verdade no novo Estado que a sociedade deseja. No h, entretanto, ajuste ou equilbrio fiscal que se sustente sem uma profunda reviso gerencial. Os gastos continuaro a ser desproporcionais quilo que a sociedade precisa e est disposta a financiar, exatamente porque no se sabe precisamente as caractersticas dessa demanda. Esse tipo de mudana um processo lento, de difcil administrao e que, por isso mesmo, deveria ser iniciado logo, prosseguir com pacincia e persistncia e ser emanado a partir do ncleo central de governo, at mesmo para ter influncia sobre esferas subnacionais de governo. Uma quarta iniciativa foi a extino por decreto da Legio Brasileira de Assistncia LBA, instituio historicamente constituda, foco de clientelismo, ineficincia e corrupo, smbolo da maneira velha de fazer poltica social.

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Outra iniciativa foi a articulao para a implantao do Programa de Erradicao do Trabalho Infantil Peti, hoje reconhecido internacionalmente, que implicou colocar na mesma mesa, compartilhando os mesmos objetivos, o Ministrio da Previdncia e Assistncia Social, o Ministrio do Trabalho e o Ministrio da Justia, todos responsveis por algum tipo de ao para possibilitar o bom funcionamento do programa. O Peti terminou por ser um dos casos de sucesso do governo Fernando Henrique Cardoso. Outro aspecto da coordenao das polticas sociais referiu-se continuidade e eficcia administrativa dos programas sociais. Segundo Vilmar Faria (2003), Do ponto de vista oramentrio, tratou-se de criar mecanismos que protejam os principais programas sociais das variaes cclicas e dos cortes de gastos que as exigncias do equilbrio fiscal podem, periodicamente, impor. Aqui, duas iniciativas foram tomadas. A primeira, conhecida como Programa Avana Brasil, consiste na escolha de um subconjunto de programas que tm prioridade oramentria e para os quais foram desenvolvidos mecanismos especiais de gerenciamento, acompanhamento e avaliao. A segunda, conhecida como Rede de Proteo Social, ocorre no contexto das negociaes levadas a cabo pelo Brasil em 1998, junto ao FMI, ao Banco Mundial e ao BID, com o objetivo de obter apoio desses organismos para proteger a economia brasileira dos ataques especulativos e das crises financeiras que periodicamente ameaam os pases emergentes. Como parte dos compromissos assumidos pelo pas, junto com as metas de controle da inflao e reduo do dficit pblico, foram assumidos compromissos e metas fsicas e financeiras para 22 programas considerados essenciais para proteger diversos segmentos da populao mais carente (como manuteno dos recursos para pagamento do seguro-desemprego, da renda mensal para idosos, financiamento do ensino fundamental). Aqui, novamente, prevaleceu a criao de mecanismos dotados de operacionalidade, legitimidade, capacidade tcnica e respaldo poltico mais do que a criao de estruturas burocrticas centralizadas. Por ltimo, foi extremamente importante assinalar a importncia da formao de uma equipe social politicamente coesa, identificada com a estratgia de desenvolvimento social proposta pelo chefe do Executivo e tecnicamente competente, para o xito dos mecanismos de coordenao e articulao.

ALGUNS RESULTADOS par de existirem grandes desafios a serem enfrentados pelo Brasil nas prximas dcadas, houve uma evoluo constante e sustentvel dos indicadores sociais no campo dos servios sociais de responsabilidade pblica, especialmente em sade e educao. O analfabetismo caiu para 12,8% em 2001 e a taxa de escolaridade atingiu 97% das crianas na faixa de 7 a 14 anos. Das crianas mais pobres, 92% esto hoje na escola contra 75% em 1992. A mortalidade infantil caiu para 28,4 por mil nascidos vivos contra 39,6 em 1994. Na rea da reforma agrria, 465 mil famlias foram assentadas em oito anos, o que representa mais do que o dobro do total de famlias assentadas entre 1964 e 1994. Os esforos para erradicar o trabalho infantil tiraram 400 mil crianas e adolescentes de atividades penosas ou degradantes. A proporo de pobres no Brasil se reduziu de 43,9% para 31,9% e os indigentes, de 19,5% para 14,5%. A parcela de renda resultante das transferncias de servios governamentais entre eles aposentadorias e programas de transferncia direta de renda subiu de 10,34% para 14,66%, em claro sinal da importncia do papel do Estado no oferecimento das garantias sociais para a populao. o funcionamento da chamada rede de proteo social. Mesmo a desigualdade social, estagnada por mais de trinta anos, embora permanea elevada, sofreu uma pequena reduo e o Brasil melhora a cada ano sua posio no ranking de Desenvolvimento Humano, elaborado pelas Naes Unidas. De 1991 a 2000, a qualidade de vida medida pelo ndice de Desenvolvimento Humano Municipal IDH-M melhorou em 99,9% dos municpios do pas. As cidades com menos de 50 mil habitantes foram as que mais elevaram a qualidade de vida da populao. A pequena melhora no rendimento e a dificuldade de desconcentrar renda impediram que o avano impulsionado principalmente pela educao, com o aumento do nmero de matrculas no ensino bsico fosse ainda maior. Das trs dimenses que compem o ndice de qualidade de vida, a renda foi a que menos subiu no Brasil: apenas 6,1%, enquanto a educao cresceu 13,9% e a longevidade aumentou 9,8%. Esses avanos foram obtidos mesmo num quadro de baixo crescimento econmico. Se ao longo do sculo XX, o aumento da riqueza no se traduziu em desenvolvimento social e igualdade, nos anos 90 houve melhorias sociais mesmo com reduo do ritmo de crescimento econmico.

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NOTAS1. Na Casa Civil tomou-se a deciso de que a sua equipe deveria ir aos Ministrios para reunies e debates em vez de convocar as equipes dos Ministrios para o Palcio do Planalto, onde funciona a Casa Civil. Parece trivial, mas no . Teve efeitos diretos na criao de uma relao de confiana entre as equipes e na formao de uma equipe de governo. 2. O atual governo manteve a Cmara de Poltica Social, mas a reformulou por meio do Decreto n 4.714, de 30 de maio de 2003.

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SERGIO TIEZZI: Assessor da Secretaria de Assistncia e Desenvolvimento Social do Estado de So Paulo. Foi assessor da rea social na Casa Civil da Presidncia da Repblica e do ministro da Educao nos governos de Fernando Henrique Cardoso.

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