a obra de aziz nacib ab'sáber_pantanal_assine

26
464 Introdução O trabalho seminal de Ab’Sáber (1988), intitulado O Pantanal Mato-Grossense e a Teoria dos Refúgios, é refe- rência básica para entender a gênese da depressão do Alto Paraguai e a paisagem do Pantanal Mato-Grossense (fi- gura 1). A concepção da evolução geomorfológica da área permanece atual e tem sido fonte importante de inspiração para muitas pesquisas desenvolvidas desde então. Recente- mente, o trabalho foi republicado na íntegra no livro Bra- sil: paisagens de exceção: o litoral e o Pantanal Mato-Grossense (Ab’Sáber, 2006). A contribuição de Ab’Sáber foi de tamanha magni- tude e de tal multidisciplinaridade, que causam perplexida- de suas palavras no início do referido trabalho: PANTANAL MATOGROSSENSE: UMA PAISAGEM DE EXCEÇÃO Mario Luis Assine Figura 1. Mapa de elevação da América do Sul com destaque para a área da Depressão do Alto Paraguai.

Upload: alephy-frank

Post on 16-Nov-2015

35 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Geomorfologia Aziz Nacib Ab'Saber

TRANSCRIPT

  • 464

    Introduo

    O trabalho seminal de AbSber (1988), intitulado O Pantanal Mato-Grossense e a Teoria dos Refgios, refe-rncia bsica para entender a gnese da depresso do Alto Paraguai e a paisagem do Pantanal Mato-Grossense (fi-gura 1). A concepo da evoluo geomorfolgica da rea permanece atual e tem sido fonte importante de inspirao para muitas pesquisas desenvolvidas desde ento. Recente-mente, o trabalho foi republicado na ntegra no livro Bra-sil: paisagens de exceo: o litoral e o Pantanal Mato-Grossense (AbSber, 2006).

    A contribuio de AbSber foi de tamanha magni-tude e de tal multidisciplinaridade, que causam perplexida-de suas palavras no incio do referido trabalho:

    PANTANAL MATOGROSSENSE: UMA PAISAGEM DE EXCEO

    Mario Luis Assine

    Figura 1. Mapa de elevao da Amrica do Sul com destaque para a rea da Depresso do Alto Paraguai.

  • 465

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    No presente trabalho pensamos, to somente, recu-perar sua histria fisiogrfica e ecolgica, tendo em vista esclarecer fatos de seus espaos naturais, suas ecozonas, dinmica climtico-hidrolgica e fato-res de perturbao de seus mltiplos ecossistemas. Aprofundando-nos no conhecimento da origem e evoluo do Pantanal pensamos entender melhor a gravidade dos fatores negativos provocados por aes antrpicas desconexas e mal conduzidas (p. 11).

    O objetivo deste captulo apresentar uma dis-cusso dos conceitos, dos dados e das interpretaes apresentadas no referido trabalho, luz dos conheci-mentos adquiridos nos quase 22 anos desde a publi-cao do trabalho, de forma que as referncias feitas s contribuies de AbSber, quando no indicado trabalho especfico, referem-se ao clssico trabalho de 1988. nfase dada aos eventos geolgicos, geomor-folgicos e paleoclimticos responsveis pela atual configurao fisiogrfica do Pantanal Mato-Gros-sense e sua repercusso nas mudanas ambientais, que tornaram o Pantanal um refgio ecolgico.

    Origem da Depresso do Alto Paraguai

    Segundo AbSber, em 1952, o cientista fran-cs Francis Ruellan reconheceu a existncia de uma

    abbada de escudo na regio Centro-Oeste do Brasil, posteriormente escavada, dando origem Depresso do Alto Paraguai (figura 2).

    Ruellan caracterizou a depresso pantaneira como um exemplo de grande boutonnire, escavada em terrenos pr-cambrianos, na rea de fronteiras do pas com a Bolvia e o Paraguai, margem noroeste da Bacia do Paran. Nesse esforo de identificao, estava includa a ideia de que, em algum tempo do passado, aquilo que hoje uma depresso teria sido uma vasta abbada de escudo, funcionando como rea de fornecimento detrtico para as bacias sedi-mentares do Cretceo Superior (p. 11).

    As informaes geolgicas disponveis mos-tram que a rea onde hoje se encontra a Depresso do Alto Paraguai era um arco tectnico ao final do Mesozoico, uma regio geomorfologicamente ele-vada que separava as bacias do Paran e do Chaco, servindo-lhes de rea-fonte de sedimentos e com-portando-se como divisora de guas da paleodre-nagem continental (Almeida, 1965). O arco atuou tambm como rea-fonte para a Bacia dos Parecis, situada a noroeste da Depresso do Alto Paraguai, fato atestado pelas paleocorrentes fluviais dirigidas para norte, deduzidas a partir de medidas de estratos cruzados de fcies fluviais da Formao Parecis (Petri

    Figura 2. Bloco diagrama da Depresso do Alto Paraguai, construdo a partir de modelo digital de elevao.

  • 466

    e Fulfaro, 1981). Este cenrio paleogeogrfico est presente na concepo de AbSber, que escreveu:

    Ao fim da Era Mesozoica, entre a borda noroeste da Bacia do Paran, a regio fornecia sedimen-tos para o Grupo Bauru (Alto Paran) e para a Bacia detrtica dos Parecis, formada acima da rea dos derrames baslticos de Tapirapu (a noroeste da atual Depresso do Alto Paraguai) (p. 12).

    O termo boutonnire tem sido pouco utilizado na literatura internacional, restringindo-se a traba-lhos de pesquisadores de pases de lngua france-sa, correspondendo ao que denominado inlier em lngua inglesa. Muitos gelogos referem-se a tais feies utilizando a designao arco ou domo, mas AbSber mostrou que o conceito de boutonnire, alm da formao da feio estrutural, incorpora tambm posterior desnudao e entalhe por agentes erosivos.

    Um esclarecimento se torna necessrio para a exata compreenso do conceito de boutonnire, na linguagem geomorfolgica francesa. Trata-se de uma expresso no muito consolidada na terminologia cientfica internacional, que pro-cura identificar uma estrutura dmica de gran-des propores, esvaziada durante o seu soer-guimento por um conjunto qualquer de proces-sos erosivos. Trata-se, literalmente, de uma ex-presso simblica casa de boto atravs da qual se procura caracterizar uma depresso aberta ao longo do eixo maior de uma estrutu-ra dmica, de grande expresso regional. Uma boutonnire um tipo de relevo estrutural, que envolve uma notvel inverso topogrfica, a partir de uma estrutura dmica de grande ex-tenso, comportando-se como uma depresso alongada, escavada a partir da abbada central do domo. Via de regra, pressupe um arquea-mento em abbada em um setor de uma bacia sedimentar, uma superimposio hidrogrfica no eixo central do domo e uma longa histria erosiva suficiente para ocasionar a evacuao de um grande estoque de massas rochosas, ante-riormente constituintes da sua prpria estrutura (pp. 11-12).

    A eroso do arco e a consequente deposio nas reas baixas adjacentes, de depsitos sedimen-tares como os do Grupo Bauru e os da Formao Parecis, fazem parte de um conjunto de processos que conduziram gerao de superfcies aplainadas, cujo modelado final ocorreu no incio do Tercirio. A gnese das superfcies foi consequncia de taxas maiores de desnudao e deposio, relativamente s taxas de subsidncia e/ou soerguimento do continen-

    te, o que implica perodo de estabilidade tectnica.

    Ao findar-se o Cretceo, o nvel tectnico em que se encontrava o pas era relativamente muito mais baixo do que o atual, a rigor inexistindo o Planalto Brasileiro tal como o conhecemos (p. 13).

    AbSber reuniu tais superfcies aplainadas sob a denominao de velhas superfcies de cimeira,

    que truncam formaes paleomesozoicas da borda ocidental da Bacia do Paran, testemu-nhadas por subnivelamentos em altos reversos de escarpas estruturais (cuestas de Aquidauana e de Majacaju) e dorso do Planalto dos Parecis. Nas cimeiras desses planaltos, que envolvem a grande Depresso do Alto Paraguai, existe toda uma srie de aplainaes participando das reas de reverso ou dorso de planaltos, a saber: super-fcies regionais de grande extenso, anteriores formao dos vales subsequentes do planalto de Itiquira-Taquari (planalto dos Alcantilados, de Almeida), marcadas pela presena de cober-turas detrtico-laterticas descontnuas, geradas possivelmente no Oligoceno-Mioceno. Teria sido uma longa fase de retomada dos aplaina-mentos aps a deposio das formaes do Cre-tceo Superior (Alto Paran e Parecis) anterior fase principal de levantamento neognico que transformou toda a Bacia do Paran em uma rea de cuestas concntricas de frente externa (AbSber, 1949), ao tempo que falhamentos na abbada de escudo contriburam para o esvazia-mento denudacional da regio, efetuando captu-ras de parte das drenagens dos planaltos para a boutonnire em formao (p. 14).

    De fato, os eventos tercirios foram respons-veis por importantes reativaes tectnicas no cen-tro-sul do Brasil, dando origem ao relevo de cuestas que contornam a Bacia do Paran (figura 3). Foram responsveis tambm pelo soerguimento da Serra do Mar e formao do sistema de riftes do sudes-te do Brasil (Melo et al., 1985). AbSber postulou tambm, de forma admirvel, a correta relao en-tre amplitude dos soerguimentos e magnitude dos deslocamentos verticais, assim como sua associao com a ruptura e desventramento da abboda do Alto Paraguai.

    Quanto maior foi o empenamento dos ncleos expostos de escudos, mais intensa e ampla a in-terveno da tectnica quebrvel ps-cretcica, como alis o caso no sistema de montanhas em blocos falhados do Brasil de Sudeste, situados retaguarda dos grandes falhamentos cretcicos da plataforma. Na regio onde atualmente se si-

  • 467

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    tua a Depresso do Alto Paraguai aconteceram falhamentos importantes porm limitados em espao, afetando principalmente o teto da velha abbada regional de escudo, ao ensejo do soer-guimento ps-cretcico de conjunto (p. 13).

    No caso da Regio Sudeste do Brasil, a frag-mentao da superfcie de cimeira mais antiga deu origem a diversas bacias estruturadas por falhas de direo principal ENE, tais como as bacias terci-rias de So Paulo, Taubat, Resende e Volta Redon-da, cujo registro sedimentar compreende o intervalo Eoceno/Mioceno (Almeida e Carneiro, 1998). No caso da Bacia de Taubat, a superfcie apresenta atu-almente um desnivelamento de mais de 2.000 m, do assoalho da bacia ao topo do planalto de Campos do Jordo. Caracterizada por intensa laterizao, recebeu as denominaes de superfcie das Cristas Mdias (Martonne, 1943) e de superfcie do Japi (Almeida, 1958). No Estado do Paran, superfcie aplainada equivalente foi denominada Purun por AbSber e Bigarella (1961). Superfcies correlatas foram reco-nhecidas numa rea muito maior, desde a bacia do Paran ao sul at o Estado da Bahia, tendo recebido a denominao de superfcie Sul-Americana (King, 1956).

    Dados de traos de fisso em apatitas, obtidos nos ltimos anos de amostras do centro-sul do Bra-sil, indicaram que o principal evento de aquecimento e soerguimento ps-cretceo teve incio h cerca de 60 Ma (Neopaleoceno), tendo sido responsvel, in-clusive, por manifestaes vulcnicas registradas nas bacias de Santos e Campos. Desta forma, considera-se que a superfcie Sul-Americana teve seu mode-lado final no incio do Tercirio, provavelmente no Eopaleoceno.

    Considerando-se a correlao de eventos tectnicos feita por AbSber, ou seja, o sincronismo com os eventos tectnicos tercirios da Regio Sudeste, conclui-se que a fragmentao e o colapso da abboda do Alto Paraguai j se encontrava em pleno processo no Eoceno e que as superfcies de cimeira mais antigas datam do Paleoceno. Nesta linha de raciocnio, aventa-se que as superfcies de cimeira existentes nos interflvios mais altos dos planaltos situados a leste da depresso do Alto Paraguai, capeados muitas vezes por coberturas detrtico-laterticas (por vezes referidas como Formao Cachoeirinha), possam representar o registro da superfcie Sul-Americana na Regio Centro-Oeste do Brasil. A mesma superfcie, com topo sustentado por horizonte latertico ferruginoso (Ross e Santos, 1982), foi reconhecida no Planalto dos Parecis na borda norte da depresso, como peneplano formado ao trmino do Cretceo, hoje soerguido, atingindo altitudes de 500 a 600 m (AbSber, 1954b).

    Velhas superfcies de cimeira tambm se fazem presentes nos terrenos pr-cambrianos que compem o Planalto Residual de Urucum-Amolar na borda oeste do Pantanal. Merece destaque a presena de espessa canga latertica recobrindo rochas neopro-terozoicas do Grupo Jacadigo, como no Macio de Urucum, cujo topo aplainado encontra-se elevado em altitudes prximas dos 1.000 m.

    A proposio de que as velhas superfcies de cimeira correspondam superfcie Sul-Americana, um peneplano cujo modelado final ocorreu no Pa-leoceno, implica em considerar que a formao da depresso do Alto Paraguai iniciou-se mais cedo do que o aventado por AbSber. Reconhece-se, porm, que somente com a datao das lateritas ou de de-psitos sedimentares associados poder-se- definir

    Figura 3. Bloco Diagrama da Bacia do Alto Paran (AbSber, 1954a).

  • 468

    com mais exatido a idade das superfcies de cimeira que ocorrem nos planaltos existentes no entorno da Depresso do Alto Paraguai.

    Os pediplanos e os pantanais

    O reconhecimento da existncia de superf-cies de aplainamento base para compreenso da evoluo geomorfolgica do Alto Paraguai e seu entorno. Isto ficou patente no trabalho de AbSber, que identificou diversas geraes de superfcies aplainadas na provncia do Alto Paraguai.

    Algumas das discordncias que separam uni-dades paleozoicas e mesozoicas da Bacia do Paran constituem superfcies aplainadas fsseis, submeti-das a exumao a partir do Tercirio pela eroso das rochas que as recobrem medida que a depresso do Alto Paraguai comeou a ser formada. Tais su-perfcies de discordncia so verdadeiros paleopla-nos, mas no sero aqui discutidas por terem baixo nvel de participao no modelado do relevo atual.

    As superfcies cenozoicas, por outro lado, participam da estruturao da paisagem, de for-ma que sua caracterizao de suma importncia para a compreenso da evoluo geomorfolgica da rea. Ao lado das superfcies de cimeira, discutidas no item anterior, AbSber considerou tambm de suma importncia o papel da superfcie Cuiabana, um superfcie interplanltica de origem complexa.

    Tal superfcie pode ser reconhecida na bor-da da depresso do Alto Paraguai, onde ocorre sob a forma de rampas suspensas, com altitudes de 120 a 250 m, que mergulham suavemente do sop dos planaltos marginais em direo s plancies do Pan-tanal. Nestas, as cotas altimtricas so mais baixas, decrescendo suavemente at altitudes de cerca de 80 m no Pantanal do Nabileque situado no extremo sul da depresso do Alto Paraguai.

    Os testemunhos da superfcie cuiabana, bem visveis nos interflvios mais elevados das colinas de Cuiab, encontram-se circunscritos aos sops dos pedestais de rochas cristalinas situados abaixo das escarpas de Aquidauana e dos Guimares, assim como nas zonas pr-serranas e pr-planlticas situadas a noroeste, nordeste, sudeste e extremo sudoeste da atual grande Depresso do Pantanal Mato-Grossense. Com a retomada da tectnica que criou a gigantesca plancie do Pantanal, o corpo geral da antiga rea aplainada perdeu espao no conjunto da Depresso do Alto Paraguai, permanecendo seus testemunhos apenas nos bordos do atual compartimento deprimido, encostado na base das serranias ou cristas de tipo apalachiano ou rendilhando as reas que precedem de perto as escarpas estruturais complexas das Chapadas dos Guimares e Aquidauana. So perfeitamente ntidos os velhos pedimentos suspensos que

    documentam a fase terminal de aplainamento por pediplanao dos fins do Tercirio ou da poca pliopleistocnica (p. 19).

    Pelo que se depreende do texto acima, AbSber considerou que a superfcie foi originada principal-mente por pediplanao, tanto que tambm utilizou a denominao pediplano cuiabano. Entretanto, reconheceu que muitos fatores intervieram na sua formao e que provavelmente no se trata de uma nica e contnua superfcie, como se depreende da seguinte passagem:

    Para no envolver uma conceituao gentica individualizada para esse plaino de eroso pr-pantaneiro, de origem muito complexa, convm design-lo to somente por superfcie (de aplai-namento) cuiabana. Caso se comprove a exis-tncia de uma srie desdobrada de superfcies interplanlticas no conjunto da grande Depres-so do Alto Cuiab (como de resto ocorre na maior parte das depresses perifricas e depres-ses interplanlticas brasileiras desde o Nordes-te ao Rio Grande do Sul), seria de todo interes-sante identificar-se a superfcie cuiabana velha e uma superfcie cuiabana moderna (p. 19).

    Nas reas rebaixadas entre os planaltos margi-nais e as plancies do Pantanal, h de fato uma gama muito diversificada de formas com altitudes varian-do de 120 a 450 m, que dificilmente se enquadram numa nica superfcie Cuiabana. Anteriormente, Almeida (1964) j havia distinguido duas reas com caractersticas distintas, que denominou de baixada do Alto Paraguai e de baixada Cuiabana, esta lti-ma considerada por ele como uma paleoplancie em processo de dissecao pela drenagem atual. Ross e Santos (1982) adotaram a subdiviso de Almeida (1964), englobando-as no que chamaram de De-presso do Rio Paraguai (figura 4).

    De acordo com Franco e Pinheiro (1982), a Depresso do Rio Paraguai compreende extensas superfcies aplainadas sobre rochas cristalinas pr-cambrianas, por vezes com formas pedimentadas, que se apresentam em alguns locais dissecadas.

    Nas rampas que margeiam as frentes das cuestas dos planaltos dos Guimares, do Taquari-Itiquira e de Maracaju-Campo Grande, a superfcie pediplanada desenvolveu-se sobre depsitos de le-ques aluviais dominados por fluxos de detritos.

    Na regio limtrofe com a Bolvia, superf-cies aplainadas antigas, mais altas que a plancie do Pantanal, formam franjas contornando morrarias e serranias do planalto residual do Urucum-Amolar. Constituem rampas de pedimentos, muitas vezes laterizados e/ou recobertas por sedimentos mais re-centes, capeando rochas pr-cambrianas que afloram localmente como relevos residuais. No stio urbano

  • 469

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    da cidade de Corumb e em seus arredores, sobre a superfcie ocorreu a concentrao de carbonatos de clcio, ora como paleossolos sobre rochas carbon-ticas pr-cambrianas, ora como tufos calcrios com variada porcentagem de material detrtico, em meio aos quais so encontrados impresses de galhos e folhas de angiospermas, bem como conchas de gas-trpodes, perfazendo uma camada de topo com continuidade lateral, constituindo uma unidade de-nominada Formao Xarais (Almeida, 1945).

    O Pantanal Mato-Grossense constitui a parte central da depresso do Alto Paraguai. No consti-tui uma plancie homognea, tanto que so reco-nhecidos diversos pantanais, cada um deles com ca-ractersticas prprias de morfologia e dinmica de inundaes. Os diferentes pantanais so a expresso de diferentes sistemas de um amplo trato deposi-cional dominado por sedimentao aluvial, onde a plancie fluvial do Rio Paraguai coletora das guas de vrios megaleques fluviais formados por rios que tm suas nascentes nos planaltos existentes no per-metro da depresso do Alto Paraguai (figura 4).

    Em decorrncia do relevo extremamente bai-xo e plano e da disposio espacial dos sistemas de-posicionais na bacia hidrogrfica, as diferentes reas tm dinmica diferenciada de inundaes. O pico chuvoso no vero (janeiro-fevereiro), mas o pico das cheias no Pantanal do Nabileque ocorre meses mais tarde (abril-maio). Como resultado, h um longo perodo de inundaes, comeando em janei-ro com a chegada das guas, que primeiro inundam os sistemas mais proximais, alcanando o mximo em maro-abril, quando a onda da cheia cobre toda a plancie do Paraguai a norte de Corumb e a par-te inferior do megaleque do Taquari. O estudo da dinmica das inundaes no prescinde de imagens de sensores remotos obtidas em diferentes pocas ao longo do ano e em sries histricas compreenden-do intervalos de vrios anos. Exemplos de mapas de susceptibilidade inundao em pocas de estiagem e de chuvas, produzidos no Projeto RADAMBRA-SIL, foram reproduzidos no trabalho de AbSber para demonstrar o alcance dos resultados obtidos a partir destas imagens (figura 5).

    Para avanar na compreenso de sistemas de-posicionais de tal magnitude, as imagens de senso-res remotos se tornam cada vez mais fontes impres-cindveis de dados, sobretudo porque muito difcil observar os elementos morfolgicos em superfcie e encontrar exposies que permitam descrever adequadamente os depsitos sedimentares. Novos sensores tm permitido obter imagens com resolu-o cada vez maiores, permitindo assim distinguir feies com muito mais acurcia (figura 6). Sob o ttulo Os novos conhecimentos obtidos pelas ima-gens de satlites sobre o Pantanal Mato-Grossense: comentrios, AbSber j destacava o papel fun-damental das imagens para o avano dos conheci-

    mentos sobre os sistemas naturais das plancies do Pantanal:

    Ainda est por se fazer uma verdadeira avaliao do papel desempenhado pelo sensoriamento remo-to na renovao dos conhecimentos fisiogrficos, ecolgicos e geoidrolgicos do Pantanal Mato-Grossense. Na realidade, as imagens de satlites ti-veram a funo de radiografias mltiplas, sobre o conjunto e os detalhes do espao fsico e ecolgico da grande plancie regional (p. 30).

    A Bacia sedimentar do Pantanal

    A compreenso de que uma bacia sedimen-tar atual encontra-se embutida na depresso do Alto Paraguai foi passo fundamental para entender a origem da plancie do Pantanal. Freitas (1951) foi o primeiro pesquisador a enfatizar este fato quando se referiu Bacia do Pantanal como a nica grande bacia tectnica quaternria do territrio brasileiro.

    Almeida (1959) apontou evidncias de aba-timento moderno, posterior formao da super-fcie cuiabana, destacando que poos perfurados na Fazenda Ranchinho (prximo de Porto da Manga no Rio Paraguai, entre Corumb e a Fazenda Fir-me) atravessaram significativa seo de sedimentos da Formao Pantanal. Segundo Almeida (1945), o poo mais profundo alcanou 83 m sem atingir o embasamento cristalino, caracterizando-se os sedi-mentos pela presena de restos de conchas de gas-trpodes pulmonados e raros seixos de minrio de ferro provenientes das montanhas de Urucum.

    A constatao de que o Pantanal uma ba-cia sedimentar cenozoica fez com que a PETRO-BRAS realizasse um programa exploratrio na ba-cia durante a dcada de 1960. Numa primeira etapa, foram perfurados oito poos em 1961/62 (Weyler, 1962), sendo posteriormente perfurados mais trs poos em 1963 (Weyler, 1964). Os poos, cuja lo-calizao se encontra na figura 4, revelaram que a profundidade do embasamento bastante varivel, como destacado por AbSber (p. 23):

    Em Cceres, a noroeste do Pantanal, a espessura encontrada foi de 32 m. Em Porto So Jos, outra sondagem alcanou 302,4 m sem atingir o embasa-mento. sada da bacia, presumivelmente em um setor de soleira, a espessura total da sedimentao quaternria no excede 13,5 m (p. 23).

    Estando o nvel geral dos pantanais situado entre 90 e 110 m, na rea dessas perfuraes, de se con-cluir que o embasamento encontra-se rebaixado de 100 a 310 m, no mnimo, em relao ao nvel atual dos mares. Mesmo quando o nvel do mar, duran-te certo momento do Pleistoceno, esteve a -100 m do que atualmente, o substrato das formaes pr-cambrianas que serviam de assoalho para a Bacia

  • 470

    Figura 4. Mapa da Bacia do Alto Rio Paraguai (modificado de Brasil e Alvarenga, 1989, por Assine, 2003). As pla-ncies do Pantanal incluem megaleques e plancies f luviais. Denominao dos planaltos segundo Franco & Pinheiro (1982). Dados de subsuperfcie: 1) poos perfurados na Bacia pela PETROBRAS na dcada de 60 (Weyler, 1962; 1964); 2) curvas de ispacas da Formao Pantanal (Ussami et al., 1999); 3) A-B = linhas ssmicas levantadas pela PETROBRAS na dcada de 70 (Catto, 1975).

  • 471

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    Figura 5. Mapa dos setores submersveis do Pantanal durante regime das chuvas (AbSber, 1988). Observaes: Aai = reas de acumulao inundveis, peri-dica ou permanentemente alagadas, precariamente incorporadas rede de drenagem (1- pouco mido; 2- mido; 3- muito mido); Plancies e terraos fluviais = reas geralmente sujeitas a inundaes peridicas, eventualmen-te alagadas; Plancies fluviolacustres = reas de acumulao fluvial e lacustre, comportando canais anastomosados, com inundaes anuais formando gran-des banhados.

    Figura 6. Trato deposicional do Pantanal Mato-Grossense (Mosaico NASA GeoCover TM Landsat 5, 1987/1993, composio 7R4G2B). Destaca-se a pre-sena marcante de paleocanais em toda a superfcie dos megaleques fluviais, que tes-temunham antigos traados dos seus prin-cipais rios formadores: Taquari, Paraguai, So Loureno, Cuiab e Aquidauana. reas mais midas podem ser observadas na pla-ncie fluvial do Rio Paraguai e nas franjas dos leques do Taquari, do Paraguai, do Cuiab e do Nabileque.

  • 472

    do Pantanal possua nveis de 100 a 300 m abaixo do nvel do mar daquela poca. de se supor, ainda, que nesse momento de nvel de mar baixo os setores de soleiras tectnicas, sada do Pantanal (Fecho dos Morros), deveriam estar expostos ou semiex-postos, dificultando sobremaneira o escoamento do antigo Paraguai para sul-sudoeste, na direo das terras paraguaias e argentinas (p. 24).

    A Bacia do Pantanal uma entidade geotec-tnica ativa, uma rea ainda subsidente, com falhas ativas e epicentros de terremotos (Assine, 2004). Tectonismo atual na plataforma brasileira, como im-portante condicionante das formas de relevo, hoje fato indiscutvel, mas tal percepo encontra-se pa-tente nos trabalhos de AbSber, especialmente no caso do Pantanal, como se pode observar nas seguin-tes passagens:

    A neotectnica deu origem a um verdadeiro graben, pela ruptura tectnica dos remanescentes regionais da superfcie interplanltica de Cuiab e suas exten-ses. O assoalho tectonizado da bacia o resultado de uma somatria de pequenas e mdias desloca-es, geomorfologicamente contrrias ao mergu-lho da antiga rampa do pediplano neognico e sua drenagem consequente. Existe nesse embasamento, sujeito a uma neotectnica pleistocnica, toda uma famlia regional de falhas conformadoras de um novo graben, de centro de uma boutonnire. (p. 26)Imagens obtidas sobre o conjunto da depresso pantaneira, atravs do satlite Landsat, documen-tam mais concretamente as grandes linhas de falha-mentos e fraturas que afetaram a regio durante o soerguimento ps-cretcico. Algumas dessas linhas de tectnica quebrvel esto bem marcadas em es-truturas paleozoicas da prpria borda ocidental da Bacia do Paran, sobretudo a direo NNE-SSO, que, em conjunto com as direes ONO-SSE e O-E, auxiliam a compreenso da fragmentao tec-tnica da abbada de escudo regional (p. 13).

    Segundo Assine (2003), falhas so evidentes na morfologia, pois condicionam a ocorrncia dos terrenos pr-cambrianos na borda ocidental da bacia, que definida principalmente por falhas de direes NE-SW e WNW-ESE. A margem oeste da pla-ncie aluvial do Pantanal do Paraguai , em grande parte, condicionada estruturalmente por falhas que separam a plancie do planalto residual do Urucum-Amolar, no qual afloram rochas pr-cambrianas dos grupos Cuiab e Corumb. A borda leste da bacia estruturada por falhas NNE-SSW, mas os traos de falha esto cobertos por sedimentos aluviais mais jo-vens da Formao Pantanal, que recobrem o embasa-mento em onlap de oeste para leste, com a regresso das escarpas que marcam o limite dos planaltos de Maracaju-Campo Grande e Taquari-Itiquira. Falhas

    ativas de direo NE-SW tambm foram constata-das no interior da Bacia do Pantanal, condicionando a rede atual de drenagem, a maior delas associadas ao Lineamento Transbrasiliano, elemento geotectnico cuja importncia na rea foi reconhecida por Soares et al. (1998).

    AbSber ilustrou a concepo de que a ba-cia um grande graben embutido na depresso do Alto Paraguai, por meio de um bloco diagrama es-quemtico apresentado na pgina 172 do Caderno de Imagens do livro Brasil: Paisagens de Exceo (AbSber, 2006). O bloco diagrama encontra-se re-produzido na figura 7, onde tambm apresentada a nica seo ssmica registrada na bacia, que mostra que as variaes de espessura da bacia so resultado de subsidncia diferenciada, devido a falhas que, no s segmentam o embasamento da bacia, mas que se prolongam na seo sedimentar.

    Fica evidente que o bloco diagrama idealiza-do por AbSber encontra suporte na configurao do embasamento mostrado pela seo ssmica, mas importante no perder de vista que as informaes de subsuperfcie disponveis so ainda muito escassas para delinear com mais exatido a estrutura da bacia. importante destacar que no foram produzidos ainda mapas que tenham representado as estruturas da bacia com o detalhe e a acurcia necessrios para a compreenso do seu arcabouo tectnico.

    O mapa de ispacas apresentado na figura 4, por exemplo, muito til por mostrar que a bacia alongada na direo norte-sul e assimtrica na di-reo leste-oeste, mas no evidencia a existncia de falhas condicionando variaes de espessura do pa-cote sedimentar. Uma falha importante, registrada na parte leste da seo ssmica da figura 7, tem loca-lizao prxima do epicentro de um sismo recente, cujo mecanismo focal indicativo de compresso leste-oeste (Ussami et al., 2000).

    A origem da bacia tem sido h muito as-sociada a abatimentos resultantes de soerguimen-tos derivados de movimentos orognicos nos An-des, concepo j presente no trabalho de Almeida (1959). Com base nesta ideia, no levantamento de dados gravimtricos e na realizao de modelagens geofsicas, Shiraiwa (1994) e Ussami et al. (1999) propuseram que o surgimento da Bacia do Panta-nal foi decorrncia de esforos distensionais no arco flexural (forebulge) da bacia de antepas (foreland) do Chaco, durante o ltimo evento compressivo no orgeno andino em ~ 2.5 Ma. Tal posio do fore-bulge, muito distante da frente de cavalgamento do orgeno andino, vivel somente considerando-se uma litosfera com espessura elstica grande, que foi estimada pelos referidos autores em 125-150 km. No mesmo perodo, Horton e DeCelles (1997) tambm apresentaram modelo de subsidncia associada aos eventos andinos, mas posicionaram o forebulge mais a oeste, de forma que interpretaram o Pantanal como

  • 473

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    uma bacia de back-bulge (figura 8).Estas hipteses de origem para a bacia so

    muito elegantes e estimulantes, mas ambos os mode-los pressupem forebulge distante da frente de caval-gamento e espessura da litosfera entre 100 e 150 km. Uma questo deve ser colocada: por que somente na rea da depresso do Alto Paraguai houve subsidn-cia significativa e formao de uma bacia sedimen-tar? Uma origem alternativa merece ser investigada, principalmente porque h vrias falhas associadas ao lineamento Transbrasiliano na bacia. Alm disto, dados de Feng et al. (2007) mostram valores meno-res de velocidade de propagao de ondas ssmicas em diferentes profundidades litosfricas na regio do Pantanal (figura 9).

    Independente da origem da bacia, a reconsti-tuio da histria deposicional dificultada pelo fato de que somente os depsitos mais recentes encon-tram-se aflorando. No trabalho de Assine e Soares (2004), que buscou sintetizar o conhecimento sobre a Geologia do Quaternrio da Bacia do Pantanal, fica evidente que o avano de conhecimentos sobre o preenchimento da bacia tem sido lento e que per-manecem atuais muitas das colocaes feitas nos dez pontos destacados por AbSber:

    Dos escassos conhecimentos sobre a coluna sedi-mentar da Bacia do Pantanal, pode-se apenas afian-ar umas tantas concluses: 1) os sedimentos basais, correspondentes ao incio da tectonizao, so mais grosseiros; 2) variaes climticas na direo dos climas secos propiciaram fases agressivas de eroso nos planaltos circundantes, com remoo de solos elaborados em fases midas ou submidas; 3) o espessamento da sedimentao foi determina-do pela associao entre a agressividade dos proces-sos erosivos nas chapadas circundantes e o gradual afundamento do substrato da bacia; 4) o ambiente de deposio foi predominantemente fluvial, atravs de leques aluviais e drenagens anasto-mosadas complementados por agrupamentos de la-gos nos setores de afundamento diferencial da bacia; 5) o conjunto fisiogrfico regional foi por diversas vezes filiado tipologia dos bolsones semiridos in-termontanos ou interplanlticos, subtropicais, alta-mente sasonrios, e predominantemente exorreicos; 6) duvida-se da existncia eventual de fases de en-dorresmo pronunciado, j que no existem grandes lentes de sedimentos lacustres com segregao de fcies, ou presena macia de sal-gema ou calcrios; 7) a certa altura do processo deposicional, dominan-temente fluvial ou fluviolacustre, houve uma cessao da subsidncia, que deu origem a uma certa fase de estabilidade relativa da superfcie rasa de uma gran-de plancie de inundao regional, tendo por conse-quncia a formao de paleocangas de lateritas; 8) aps essa fase de cangas identificada em uma

    perfurao realizada na Fazenda Paraso, e interpre-tada por Fernando de Almeida (1964) houve re-tomada da subsidncia, com repetio aproximada dos ambientes de sedimentao anteriormente vi-gentes, at a formao dos gigantescos leques alu-viais do Pleistoceno Terminal; 9) no decorrer do Holoceno, instalaram-se rios mendricos, de diferentes padres e potncia de for-mao de cintures mendricos; alguns cursos supe-rimpuseram-se ao eixo dos leques aluviais, desven-trando-os (Taquari, sobretudo); os bordos dos cones de dejectos foram retrabalhados por drenagens nor-te-sul e por anastomoses terminais dos canais diver-gentes herdados da prpria fase terminal dos gran-des leques; houve grande liberao de areias finas e mdias, forando anastomoses de padro especial nas terminaes dos velhos leques; enquanto drena-gens mendricas do Rio Paraguai inscreveram-se no corredor apertado entre os leques aluviais detrticos provenientes do leste e as serranias fronteirias de bordos irregulares; 10) por entre os leques aluviais estabeleceram-se os novos cursos de gua, afluentes ocidentais do Rio Paraguai, na medida em que o clima regional ga-nhou espaos quentes e midos, com predomnio de precipitaes entre 850 e 1.000 mm dentro da depresso pantaneira, de oeste para leste; e altos n-veis de precipitaes nas cabeceiras de drenagem, ao norte, nordeste, leste, sudeste e sul da imensa bou-tonnire regional (p. 26).

    Considerando idade pliopleistocnica para a superfcie cuiabana, AbSber postulou que a Bacia do Pantanal uma bacia tectnica estruturada por falhas, embutida numa depresso maior, a depresso do Alto Paraguai. Em vrias passagens reafirmou que a idade da bacia pleistocnica:

    Por tudo o que se sabe da histria tectnica e de-nudacional da depresso do Alto Paraguai (bou-tonnire do Alto Paraguai), quase certo que a tectnica ps-pediplano cuiabano desenvolveu-se ao longo do Pleistoceno como um episdio de tectnica quebrvel residual (p. 15).

    No ncleo central da boutonnire, devido neotectnica quaternria, todos os remanescen-tes pressupostos dessa superfcie neognica esto afogados pela sedimentao da Bacia do Pantanal, participando como assoalho irregular da nova bacia tectnica regional. At onde ocorrem os remanes-centes do pediplano cuiabano, no entorno da gran-de depresso, esto os limites da primeira fase de esvaziamento da antiga abbada de escudo do Alto Paraguai (p. 15).

    Um ponto de partida nos parece slido: a Bacia do

  • 474

    Figura 7. Falhas na Bacia do Pantanal: A) Graben central com falhas escalonadas nas bordas, conforme concepo de AbSber (2006); B) Seo geolgica de direo aproximada NE-SW, interpretada a partir da seo ssmica L1-L5 (Catto, 1975, localizao na Figura 4), mostrando falhas de rejeito de dezenas de metros, afetando o embasamento e a seo sedimentar da bacia (modificado de Assine, 2004).

    Pantanal certamente ps-superfcie cuiabana velha. Ou seja, para utilizar a nomenclatura habitual, aquela bacia sedimentar interior ps-pediplano cuiabano. Disso decorre uma segunda constatao: a Bacia do Pantanal foi certamente fruto de uma reativao tec-tnica quebrvel, que interferiu sobre a rampa geral sul-sudoeste da superfcie aplainada e da paleodrena-gem existente no fecho da pediplanao (p. 12).

    Admitindo-se que a sedimentao comeou no incio do Pleistoceno (1,8 Ma) e levando-se em

    conta uma espessura sedimentar estimada de cerca de 600 m, chega-se a uma taxa de sedimentao de 0,33 mm/ano. Trata-se de uma taxa elevada, com-parvel a valores de 0,5 mm/ano para o graben do Reno, 0,2 mm/ano para o Lago Baikal e 0,4 mm/ano na plataforma do Golfo do Mxico, na Lousiana (dados compilados por Kukal,1990).

    No se descarta a possibilidade de que no Pantanal a taxa de subsidncia seja de tal magnitude. Entretanto, como no existem dataes, tanto da su-perfcie cuiabana quanto dos sedimentos preservados

  • 475

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    em subsuperfcie, pode ser questionada a afirmativa de que a subsidncia na Bacia do Pantanal iniciou-se no Quaternrio e de que a superfcie cuiabana cons-titua o embasamento da bacia. Espera-se que novas informaes permitam, num futuro no muito dis-tante, conhecer com mais acurcia a idade da Bacia do Pantanal e, desta forma, estabelecer a taxa de sub-sidncia e de gerao de espao de acomodao para a sedimentao recente.

    Megaleques fluviais

    A importncia dos grandes sistemas fluviais distributrios, tanto nas paisagens atuais quanto no registro geolgico, vem sendo mais e mais reconhe-cida nos ltimos anos, constituindo os dois ltimos dos trs subtipos de leques aluviais da classificao de Stanistreet e McCarthy (1993): 1) leques domi-nados por fluxos de detritos, 2) leques dominados

    Figura 8. Modelos de origem associados ao forebulge andino: A) De acordo com Horton & DeCelles (1997), a Bacia do Pantanal est posicionada no back-bulge andino (p = Pr-Cambriano; P = Paleozoico; M = Mesozoico, Q = Quaternrio): B) De acordo com Ussami et al. (1999), a Bacia do Pantanal desenvolveu-se sobre o forebulge andino (o eixo do forebulge no foi traado no modelo digital de elevao original, tendo sido tentativamente posicionado neste trabalho com base no artigo dos referidos autores).

  • 476

    por rios entrelaados, e 3) leques aluviais dominados por rios meandrantes/de baixa sinuosidade. Estes le-ques dominados por rios, que formam sistemas de-posicionais com vrias dezenas a algumas centenas de quilmetros de extenso, tm sido denominados megaleques fluviais. Uma compilao de exemplos de tais sistemas em todos os continentes foi publica-da no artigo de Leier et al. (2005).

    A descoberta de que o Rio Taquari vem cons-truindo no Pantanal Mato-Grossense um imenso megaleque fluvial ocorreu na dcada de 1970, tendo sido denominado cone aluvial do Taquari por Braun (1977). AbSber refere-se a eles como macroleques aluviais:

    A mais importante descoberta recente sobre o mo-saico de formaes aluviais quaternrias da grande depresso pantaneira, interessando diretamente ao entendimento da posio relativa e funcionamento das diversas sub-bacias hidrogrficas que se estendem pelo seu espao fisiogrfico total, foi a percepo da existncia do grande leque aluvial do Taquari. Obser-vaes pontuais jamais teriam revelado esta unidade geomrfica de grande extenso no interior das plan-cies pantaneiras. Para uma rea total de 125.000 km, o macroleque aluvial do Taquari como vem sendo designado ocupa um espao prprio, da ordem de 50.000 km. Isso significa dizer uma rea da ordem de 1/3 da bacia de Paris ou 1/5 do Estado de So Paulo,

    ou, ainda, 15 vezes a Bacia de Taubat (SP). O primei-ro estudo especfico sobre esse gigantesco cone aluvial, predominantemente arenoso, que se espraiou em gi-gantesco leque sobre a depresso pantaneira, deveu-se a E. H. G. Braun (1977). O autor, alm de caracteri-zar a importncia do macroleque aluvial, associado ao pleo-Taquari, estabeleceu os primeiros parmetros de sua gnese, com base em condies paleoclimticas e paleoidrogrficas do Pleistoceno na depresso panta-neira. (...) Nessa oportunidade, Braun (1977) conse-guiu identificar sete faixas ou setores diferenciados de feies geomrficas no espao fisiogrfico e hidrogeo-morfolgico daquele excepcional leque aluvial, ao mes-mo tempo que assentava bases para consider-lo como uma feio herdada do Pleistoceno Terminal. Mesmo depois que surgiram as primeiras imagens de satlites sobre a regio, pouca coisa de essencial pode ser acres-centada s observaes pioneiras do autor. Franco e Pinheiro (1982) souberam valorizar a ordem de gran-deza e o significado nuclear do grande cone aluvial do Taquari para o entendimento do Pantanal Mato-Grossense, ao dizer: A grande expressividade espacial dos espraiamentos aluviais do Rio Taquari permitiu consider-lo como um macroleque aluvial, termo que bem define sua gnese (...) O gigantesco leque aluvial, com eixo em torno de 250 km de comprimento e uma rea de 50.000 km, situa-se em frente s escarpas ocidentais das serras de Maracaju [sic], do Pantanal e de So Jernimo. balizado a norte e noroeste pelos

    Figura 9. Mapa de velocidade de propagao das ondas ssmicas nas profundidades de 100 e 150 km (Feng et al., 2007) mostra valores mais baixos na rea do Pantanal (polgono no centro). Destaque para o fato de que o Lineamento Transbrasiliano (TBL) cruza a rea do Pantanal.

  • 477

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    rios Piqueri ou Itiquira e Cuiab, a oeste pelo Rio Pa-raguai e a sudoeste e sul pelos rios Abobral e Negro. (. . . ) O macroleque aluvial engloba grande parte do tradicional Pantanal do Paiaguas (a norte) e quase a totalidade do Pantanal da Nhecolndia (a sul) (p. 31-32).

    A interpretao originalmente feita por Braun (1977), de que os paleocanais distributrios do megaleque do Taquari so formas relictas do Pleisto-ceno Terminal, foi adotada em vrios trabalhos e pu-blicaes posteriores (Tricart, 1982; Klammer, 1982; Clapperton, 1993, entre outros). AbSber (1988) foi mais alm, destacando a importncia de mudanas hidrolgicas que resultaram na mudana de padro do canal do Rio Taquari:

    O macroleque aluvial do Taquari foi desventrado pelo atual Rio Taquari, que se tornou gradualmente de padro mendrico, embutido no eixo central do cone de dejeo anteriormente formado (p. 27). Por uma srie de aproximaes, envolvendo conhe-cimentos paleoclimticos gerais e regionais, pode-se admitir que os leques aluviais foram elaborados entre 23 e 13.000 anos, antes do presente. Enquanto as plancies mendricas e os grandes banhados, de-signados regionalmente por pantanais, certamente desenvolveram-se nos ltimos 12 ou 13.000 anos, os principais contornos e ecossistemas aquticos, subaquticos e terrestres, do Pantanal Mato-Gros-sense teriam sido elaborados nos ltimos cinco ou seis milnios. Independentemente de velhas heran-as (p. 28).

    Na linha de raciocnio de AbSber, Assine e Soares (2004) ampliaram a discusso sobre a mu-dana de estilo do Rio Taquari no Pantanal Mato-Grossense, atribuindo-a a mudanas climticas na transio Pleistoceno/Holoceno. O Rio Taquari corta diametralmente seu megaleque (figura 10), cruzando trama complexa de paleocanais de lobos abandonados, sendo ntidos dois compartimentos geomorfolgicos distintos na plancie do Pantanal: 1) um cinturo de meandros na poro superior do leque; e 2) um lobo distributrio atual em suas por-es mdia/inferior (Assine, 2005 e Assine et al., 2005). As altitudes variam de 190 m no seu pice (sada do canion que corta a escarpa do planalto a leste) at 85 m na sua base (plancie do Rio Paraguai a oeste), o que resulta num gradiente mdio muito baixo de cerca 36 cm/km (figura 11).

    Na poro superior do megaleque, numa ex-tenso de cerca de 100 km, o Rio Taquari meandra num vale entrincheirado em sedimentos mais antigos do prprio leque (figura 12). Com largura varivel de 3 a 5 km, o cinturo de meandros limitado pelas barrancas dos terraos marginais, que apresentam desnvel topogrfico em alguns pontos de at mais

    de 5 metros de altura em relao ao nvel do rio. A largura do cinturo de meandros diminui para jusan-te, assim como a altura dos terraos que desaparecem quando o rio entra no lobo distributrio atual.

    O lobo distributrio atual facilmente deli-mitado em imagens de satlite porque a plancie de inundao exibe tonalidades mais escuras devido presena de reas alagadas e com nvel fretico pr-ximo da superfcie, mesmo na estao seca, caracte-rizando reas mais midas. Neste compartimento, o canal do Rio Taquari apresenta baixa sinuosida-de e destaca-se morfologicamente pela presena de diques marginais arenosos, que se apresentam mais altos que as plancies de inundao adjacentes. Alm do canal principal do Rio Taquari, h um grande n-mero de canais distributrios na plancie de inunda-o, que servem de caminhos preferenciais de fluxo durante o incio das cheias e de canais de vazante que drenam o sistema quando as guas baixam aps o perodo das inundaes. Os canais bifurcam-se e se interconectam vrias vezes na plancie, isolando reas vegetadas entre os canais, o que permite con-siderar padro de rio anastomosado na plancie de inundao (Souza et al., 2002).

    Ao contrrio do que ocorre no cinturo de meandros, no lobo distributrio atual a descarga flu-vial diminui para jusante, o que causa estreitamento e diminuio da profundidade do canal em direo plancie do Rio Paraguai. A reduo na vazo do Rio Taquari evidenciada pelas sries histricas de medidas das estaes fluviomtricas de So Gona-lo e de Porto Rolon (figura 13), a primeira situada nas proximidades do pice do lobo atual e a segunda dentro do lobo distributrio atual. No perodo das cheias, a vazo significativamente menor na esta-o de Porto Rolon devido principalmente ao rom-pimento de diques marginais e drenagem da gua para fora do canal, processo responsvel por fenme-nos de avulso fluvial no Rio Taquari (Assine, 2005; Assine et al., 2005).

    Avulso importante ocorreu na dcada de 1990 na poro inferior do leque, causando mudana importante no curso do Rio Taquari. Fluindo atravs do arrombado Z da Costa e aproveitando os canais dos rios Negrinho e Paraguai Mirim, as guas do Rio Taquari passaram a correr para oeste, indo desaguar no Rio Paraguai, cerca de 30 km acima da antiga foz na localidade de Porto da Manga (figura 14).

    O fenmeno de avulso est frequentemente associado rpida agradao do canal, o que se tra-duz na reduo de sua profundidade, na emergncia de barras arenosas e no rompimento dos diques mar-ginais, com espraiamento das guas e deposio de sedimentos nas plancies de inundao adjacentes, onde canais distributrios podem drenar as guas do canal principal ocasionando mudana de curso (figu-ra 15). Estes processos puderam ser acompanhados no caso da rpida avulso ocorrida a partir do arrom-

  • 478

    algumas linhas de fragilidade erosiva, suficientes para que as novas bacias, posteriores ao fecho da sedimentao dos leques imbricados, pudessem se instalar e se ampliar. A drenagem do Itiquira-Pi-queri copiou o bordo norte do grande leque aluvial do Taquari, na faixa de contato entre ele e o leque aluvial de nordeste (So Loureno). Enquanto que o Rio Negro copiou quase que inteiramente o bordo sul e sudeste do macroleque do Taquari, ampliando sua faixa de inundao e formao de pantanais at borda do leque aluvial de sudeste (Aquidaua-na), onde, por seu lado, se instalou o curso do Rio Aquidauana-Taboco, formando um traado em arco, oposto ao do Rio Negro. Ambos so rios perileques aluviais e, como tal, cursos de gua gmeos; e, no caso particular, interligados por braos que auxiliam a redistribuio das guas de cheias, transformando seus banhados em uma s e imensa plancie sub-mersvel: os pantanais do Rio Negro-Aquidauana. De modo quase idntico, o antigo leque aluvial do Jauru-Paraguai, no extremo noroeste da depresso pantaneira, obrigou a drenagem do Rio Paraguai a derivar para a faixa de contato entre as serranias de Cceres e a margem leste do leque aluvial preexis-tente na regio (p. 32).

    Lagoas da Nhecolndia: uma paisagem extica

    Embora o Pantanal seja um espao geogrfico dominado por processos aluviais, sistemas lacustres pontilham em vrias reas, podendo ser distinguidos no mnimo trs grupos principais, assim caracteriza-dos por AbSber:

    Pode-se detectar, sem muito esforo, trs agru-pamentos de lagos no entremeio dos pan-tanais. O primeiro conjunto diz respeito s grandes lagoas da faixa fronteiria do Brasil e Bolvia, onde massas de gua foram represadas nos sinuosos contornos das serranias e terras firmes da faixa de fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Pelo menos em um caso o da Baa Vermelha ocorreu o embutimento de uma lagoa no meio de um domo esvaziado (cristas circulares da Serra do Bonfim). Essa concen-trao de guas lagunares nos sops e reentrn-cias de serranias merece uma discusso genti-ca mais aprofundada. O segundo agrupamento de lagoas, de mdio porte relativo, no interior do Pantanal, diz respeito ao setor em que o

    bado Z da Costa, inclusive atravs de imagens de satlite (figura 16).

    Fenmenos de avulso vm ocorrendo nos ltimos anos nas proximidades da Fazenda Caro-nal, situada no pice do lobo distributrio atual. O local caracterizado pela mudana no gradiente topogrfico aps o Rio Taquari sair do cinturo de meandros e rpida agradao do canal. A partir das guas que saem do canal principal atravs de fen-das nos diques marginais, formaram-se canais anas-tomosados na margem direita do Rio Taquari, que esto captando as guas para reas adjacentes mais baixas, j que o complexo canal/dique est em po-sio topogrfica mais alta em relao ao restante do lobo atual. A rea na margem direita do Rio Ta-quari, que aparece em escuro em imagens de satlite, devido maior umidade do solo (figura 10), o ca-minho natural para o estabelecimento de um novo curso para Rio Taquari, que pode se fixar num dos canais anastomosados existentes na sua margem di-reita, cujo traado aproximado est apresentado na figura 14.

    Alm do Megaleque do Taquari, muitos outros sistemas de leques fluviais contribuem para compor a espetacular paisagem do Pantanal. Todos os leques continuam ativos e esto distribudos de tal forma que seu arranjo geogrfico condiciona o cur-so de outros importantes rios, que funcionam como drenagens perifricas coletoras das guas que fluem dos leques.

    O fato de existirem outros leques aluviais similares, de ordem de grandeza espacial muito menor, permi-te considerar um sistema regional de leques aluviais do Pleistoceno Superior, os quais deixaram entre si

    Figura 10. Megaleque fluvial do Rio Taquari (imagem do sensor MMRS do satlite argen-tino SAC-C, de 24/04/2003, em composio colorida falsa-cor R5G4B3,). Tonalidades mais escuras representam reas inundadas (Assine et al. 2005).

  • 479

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    Figura 11. Mapa do megaleque do Taquari, mostrando curvas de nvel (metros), paleocanais de lobos aban-donados, cinturo de meandros na poro superior do leque, lobo distri-butrio atual na poro mdia/inferior, e estaes fluviomtricas (1 = Coxim; 2 = So Gonalo; 3 = Porto Rolon).

    Figura 12. O Rio Taquari est atualmente confinado em um cinturo de meandros na parte superior do leque, entrincheirado em depsitos de lobos antigos, sobre os quais esto preservados os traados de paleocanais distributrios. Uma escarpa ngreme o limite natural entre o leque e o planalto. Confluncia dos rios Taquari e Coxim na altura da cidade de Coxim na parte direita da figura. Composio de imagens CCD do satlite CBERS-2 (164/120 e 164/121), falsa-cor 3R4G2B, de 21/07/2006.

  • 480

    Rio Paraguai encosta-se na Serra do Amolar, cruzando uma plancie lacustre do passado e dando origem a numerosas lagoas semicircu-lares e elpticas. Ocorrem lagoas em ferradurra (oxbow lakes) apenas nas proximidades do atual cinturo mendrico prprio do Rio Paraguai. O terceiro agrupamento tem como rea-prot-tipo o Pantanal da Nhecolndia, no quadrante meridional do macroleque aluvial do Taquari, na rea de solos predominantemente arenosos, onde ocorrem paleocanais entrelaados, mir-ades de pequenas lagoas temporrias e alguns pequenos cursos de gua designados vazantes, que fluem para a margem direita do Rio Ne-gro (...) Na Nhecolndia existe uma associao ntima entre paleocanais entrelaados transfor-mados em numerosas lagoas circulares, tempo-rrias ou semipermanentes, e sinuosas rsteas de vegetao arbrea ao longo de antigos e re-centes diques marginais. Ligeiras elevaes na plancie arenosa, sublinhadas por corredores de vegetao florestal, recebem o nome popular de cordilheiras, altamente simblico (p. 36-37).

    A Nhecolndia corresponde rea do Me-galeque do Taquari situada a sul do Rio Taquari. Caracteriza-se como paisagem extica, diferente do restante do Pantanal, devido presena de cerca de 10.000 lagoas com caractersticas singulares em

    termos de forma e hidrologia. As lagoas so predo-minantemente circulares ou elpticas, existindo tam-bm formas piriformes, crescentiformes e irregula-res. Quando assimtricas, apresentam-se comumen-te alongadas na direo NE, mas em algumas reas adquirem orientao EW.

    A maioria das mirades de lagoas da Nhe-colndia integra a rede de drenagem superfi-cial, pois uma lagoa conecta-se outra durante as cheias, de forma que so caracteristicamente lagoas de gua doce. No entanto, aproximadamente 15% das lagoas constituem corpos dgua isolados da drenagem superficial, muito raramente invadidos por inundaes e caracterizados pela presena de guas salobras, sendo por isso denominadas salinas (figura 17).

    Referncias a existncia de barreiros com salitre e lagoas salgadas datam do sculo XVIII. Mais que apenas lagoas salgadas, trata-se de lagoas alcalinas, com guas bicarbonatadas, clore-tadas, francamente sdicas, com pH variando entre 8 e 10 (Cunha, 1943). Em muitas delas h grande desenvolvimento de algas que imprimem colorao diversa s lagoas, sendo comum guas com cores es-verdeadas.

    Segundo AbSber (1988), Wilhelmy apresen-tou interpretaes muito perspicazes sobre a origem das lagoas circulares do Pantanal (figura 18), por ele consideradas de grande validade:

    Figura 13. Descarga fluvial em trs estaes fluviomtricas (Coxim, So Gonalo e Porto Rolon; localizao na figura 11) no Rio Taquari (Assine, 2005).

  • 481

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    Figura 14. Avulses recentes no lobo distributrio atual: A) imagem satlite CYBERS2, sensor WFI, rbita/ponto 165/124, 15/08/2004, composio colorida 1R2G1B; B) mapa com traado de canais anastomosados existentes na margem direita do Rio Taquari, formados a partir de rompimentos dos diques marginais nas fazendas Santa Luzia e Caronal (os nmeros 2 e 3 referem-se localizao das estaes fluviomtricas de So Gonalo e Porto Rolon).

    A

    A

    B

  • 482

    Figura 15. Bloco diagrama representando a sucesso de processos que pode culminar com avulso fluvial: A) o canal vai ficando mais alto que as reas adjacentes devido aos diques marginais que o rio constri durante os transborda-mentos nas pocas de cheia; B) o leito do rio se eleva por agradao de sedimentos no canal e nos diques marginais; C) com o assoreamento do canal as barras ficam emersas mesmo na poca das cheias e a capacidade do canal de reter gua fica cada vez menor; D) durante uma cheia, o dique marginal rompido (arrombado), ocasionando inundao e sedimentao na plancie adjacente (modificado de Assine et al., 2005).

    Figura 16. Sucesso temporal de imagens de satlite registrando a mudana no curso do Rio Taquari a partir da avulso Z da Costa durante a ltima dcada: 1) a imagem de 1990 j registra a avulso e a formao de um leque de crevasse; 2) a diviso do canal claramente visvel na imagem de 1995; 3) na imagem de 2001 verifica-se que o rio j havia mudado completamente seu curso.

  • 483

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    Wilhelmy (1958) reconheceu, nas reas que visi-tou, uma distino entre tipos de lagos de barra-gem fluvial: lagos oriundos da inundao de lbulos internos de meandros (umlaufseen) e lagos encar-cerados por diques marginais (dammuterseen). Re-conheceu, tambm, que, em muitos casos, os lagos circulares gerados em reas de tranamento de cin-tures mendricos podiam ter guas doces ou guas salobras, dependendo de serem visitadas ou no, em superfcie, pela penetrao das guas de inundao. Pela primeira vez, foi feita uma observao sobre o excepcional carter endorreico local, das lagoas sali-nas e barreiros salobros, sujeitos a concentraes de cloretos de sdio e magnsio (p. 30).

    Muitos pesquisadores, entretanto, tm consi-derado que as lagoas tiveram sua origem associada a processos dominados pelo vento. Almeida (1945) foi o primeiro a apresentar evidncias de depsitos elicos na Nhecolndia. O mesmo autor apresentou posteriormente novos dados e interpretou a gnese das lagoas em termos de processos de deflao elica (Almeida, 1959). Esta interpretao foi corroborada por Tricart (1982), que considerou as reas das la-goas como antigas superfcies dominadas por defla-o e mapeou suas reas de ocorrncia com base em imagens de satlite.

    Em outros pases, existem muitos exemplos atuais de reas dominadas pela atuao do vento e caracterizadas pela presena de lagoas, em par-te semelhantes s da Nhecolndia. So reas com deficincia de areia disponvel para o transporte, de-vido a condies de nvel fretico alto, que o nvel de base para a deflao elica. Nas depresses, devido flutuao do fretico, podem surgir corpos dgua efmeros, que secam por evaporao. Tais depresses de deflao, incluindo as das lagoas da Nhecolndia, foram analisadas nos trabalhos de Goudie (1991) e Goudie e Wells (1995) e interpretadas como feies geomorfolgicas denominadas salt pans. Embora te-nha considerado que as lagoas tenham se formado em reas interduna, foi Klammer (1982) quem, pela primeira vez, utilizou a denominao salt pans para se referir s salinas do Pantanal.

    Reexaminando a questo da origem das la-goas, Soares et al. (2003) e Assine e Soares (2004) concluram que muitas das formas, especialmente as lagoas isoladas (salinas), no podem ser explicadas por processos aluviais, reforando assim a interpretao de que as lagoas da Nhecolndia foram produzidas pela ao do vento. Os referidos autores interpretaram que os cordes descontnuos existentes em suas bordas, constitudos por areia muito fina a fina, so paleo-dunas do tipo meia-lua (lunnete sand dunes). Os cor-des tm dois a cinco metros de altura, so cobertos por vegetao arbustiva/arbrea e raramente so inundados, sendo conhecidos na regio pelo suges-

    tivo nome de cordilheiras. Por fim, destaca-se que, apesar dos diversos

    trabalhos que apontam para a atuao de processos elicos, a origem das lagoas permanece tema con-troverso (Furquim et al., 2010). Alguns pesquisa-dores consideram que no h evidncias suficientes que sustentem a interpretao de formas elicas na Nhecolndia (Colinvaux et al., 2000).

    Flutaes climticas e mudanas ecolgicas: dos leques aluvias pleistocnicos s plancies submersveis recentes

    A paisagem do Pantanal pontuada por geoformas deposicionais de diferentes idades, sendo grande parte delas formas relictas, testemunhos de condies climticas e ambientais diversas das atuais. Uma questo da maior relevncia para se entender a evoluo geomorfolgica da rea a definio de quando surgiu o Pantanal como hoje o conhecemos, ou seja, como uma das mais importantes reas midas (wetlands) do planeta ( Junk et al., 2006).

    A concepo de que os grandes leques aluviais do Pantanal so feies herdadas do Pleistoceno, apresentada inicialmente por Braun (1977), teve em AbSber (1988) um ardoroso defensor. Com a incor-porao de novos dados e consideraes paleoclim-ticas importantes, AbSber lanou as bases para se entender a origem da configurao atual do Pantanal, dos leques aluviais pleistocnicos s plancies sub-mersveis recentes.

    A fase dos grandes leques aluviais arenosos desen-volvidos na depresso pantaneira, durante o Pleis-toceno Terminal, foi essencial para a configurao fisiogrfica atual do Pantanal Mato-Grossense (p. 28).

    Quando o Nordeste seco esteve ampliado ao m-ximo nos territrios inter e subtropicais do Brasil, entre 13.000 e 23.000 AP (antes do presente), pa-dres de caatinga arbrea e arbustiva chegaram, respectivamente, nos bordos e no centro de um grande bolsone, dominado por leques aluviais gi-gantescos, na rea onde hoje se situam os panta-nais da grande depresso regional (p. 44).Na poca, a rea correspondente aos pantanais de hoje era particularmente rstica, do ponto de vista climtico e hidrolgico, possuindo ambiente subdesrtico, forte atuao dos processos morfo-gnicos de acumulao em cones de dejeo, hi-drologia intermitente, e vegetao rala de caatin-gas arbustivas, mal consolidadas. Os grupos de ca-adores coletores devem ter preferido os sops de escarpas, serranias e abrigos sobre rocha (p. 46).

    Com base nas consideraes acima, trs pon-

  • 484

    Figura 17. Lagoas da Nhecolndia, poro sul do Megaleque do Taquari: A) Tpica paisagem de lagoas alinhadas na direo aproximada NE, superimpostas pela rede atual de drenagem (vazantes e corixos), que paulatinamente vem conectando e destruindo as lagoas, desfigurando a paisagem elica reliquiar. Lagoas isoladas podem apresentar colo-raes diversas, mas so comumente de cores esverdeadas devido presena de algas (imagem Landsat TM, bandas R3G2B1, cor natural, outubro de 1996); B e C) Lagoas de gua doce so conectadas umas s outras pela drenagem atual e, em muitos casos, apresentam vegetao flutuante; D e E) Salinas, ao contrrio, so isoladas da drenagem superficial e no apresentam vegetao flutuante.

  • 485

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    tos merecem ser enfatizados: 1) a caatinga dominava a rea do Pantanal, de forma que a vegetao ofe-recia pouca proteo ao solo; 2) processos elicos tiveram importncia no modelado da paisagem dos megaleques fluviais, retrabalhando e redepositando os depsitos, dando origem a paisagens como as da Nhecolndia (discutida no item 6); e 3) mudanas hidrolgicas e ecolgicas ocorridas na rea foram re-sultado de eventos globais de mudanas climticas associadas ao fim da ltima glaciao.

    A paisagem do Pantanal mudou consideravel-mente desde o Pleistoceno tardio, quando domina-vam ambientes semiridos em condies de clima mais frio. Dataes por termoluminescncia per-mitiram comprovar idades pleistocnicas para de-psitos de lobos antigos do Megaleque do Taquari (Assine, 2003). Segundo Assine e Soares (2004), o surgimento dos pantanais atuais ocorreu em respos-ta a condies mais midas e quentes prevalecentes no Holoceno, mas o processo pode ter-se iniciado com as flutuaes climticas ocorridas ao final do Pleistoceno.

    As plancies mendricas e os grandes banhados, designados regionalmente por pantanais, certa-mente desenvolveram-se nos ltimos 12 ou 13.000 anos; os principais contornos e ecossistemas aqu-ticos, subaquticos e terrestres do Pantanal Mato-Grossense teriam sido elaborados nos ltimos cin-co ou seis milnios (p. 28).

    A expanso das reas inundveis do Panta-nal iniciou-se pela plancie do Rio Paraguai, pois esta se situa em posio topogrfica mais baixa e coletora das guas que provm dos planaltos que circundam o Pantanal. A plancie respondeu, po-rm, de forma setorizada e desigual, como apon-tam os dados sedimentolgicos, palinolgicos e geocronolgicos de Bezerra (1999), que indicam individualizao das lagoas Negra e Castelo, res-pectivamente, por volta de 10.200 e 5.190 anos antes do presente. A elevao do nvel fretico regional, controlado pela plancie do Rio Para-guai, que funciona como nvel de base da maioria dos megaleques fluviais, promoveu ampliao das reas inundveis, de jusante para montante, em todas as sub-bacias que compem a bacia do alto Rio Paraguai. A umidificao no foi sncrona nem linear no tempo, pois oscilaes menores ocorre-ram no Holoceno, o que condicionou mudanas biogeogrficas, especialmente a revegetao da rea.

    Essa umidificao setorizada da grande depres-so pantaneira favoreceu a ampliao de cerrados, campos cerrados e cerrades no dorso do macrole-que aluvial do Taquari, numa conquista leste-oeste dos espaos geoecolgicos regionais (p. 43).

    O Pantanal Mato-Grossense funciona como um notvel interespao de transio e contato compor-tando fortes penetraes de ecossistemas dos cer-rados; uma participao significativa de floras cha-quenhas; incluses de componentes amaznicos e pr-amaznicos; ao lado de ecossistemas aquticos e subaquticos de grande extenso nos pantanais, de suas grandes plancies de inundao. Espre-midas nos patamares e encostas de serranias, por entre paisagens chaquenhas e matas decduas ou semidecduas de encostas, ocorrem relictos de uma flora outrora mais extensa, relacionada ao grande perodo de expanso das caatingas pelo territrio brasileiro, ao fim do Pleistoceno (p. 40).

    Devido sua posio geogrfica e histria geolgica, o Pantanal incorpora, assim, elementos de trs biomas distintos dominantes no seu en-torno: floresta semideccua amaznica (noroeste), cerrado (leste) e savana estpica chaquenha (su-doeste). Espcies da flora endmica so poucas em comparao com espcies daqueles biomas (Prance e Schaller, 1982). Alm da coexistncia de espcies dos trs biomas acima relacionados, AbSber des-tacou o fato de que ocorrem tambm espcies do que considerado o nico bioma genuinamente brasileiro, a caatinga, considerando sua ocorrncia no Pantanal como evidncia de que este bioma ocu-pava uma rea muito mais ampla no territrio bra-sileiro no Pleistoceno tardio.

    Figura 18. Tipos de lagos segundo Wilhelmy (1958, apud AbSber, 1988): lagos de lbulos internos de meandros (U); lagos entre diques marginais imbrica-dos (D).

  • 486

    O Pantanal Mato-Grossense e a Teoria dos Refgios

    Segundo AbSber (1988), a existncia de es-pcies da caatinga e a recomposio paisagstica do Pantanal no Holoceno so evidncias inequvocas da existncia de refgios florestais nos trpicos.

    As pulsaes dos climas secos com ampliaes das floras de caatingas, realizadas em diferentes pocas do Quaternrio, nos esclarecem sobre fatos ecol-gicos muito mais delicados e importantes, correla-cionados com as mudanas de marcha dos proces-sos fisiogrficos e paleoclimticos. Os componentes das floras de caatingas que permaneceram nas ter-ras no alagveis, dos bordos do grande Pantanal, so relictos indelveis que balizam uma complexa histria (p. 21).

    Foram necessrios 12 a 13.000 anos para recompor a tropicalidade na depresso pantaneira: a histria dessa recomposio paisagstica, atravs de uma retomada da explorao biolgica dos espaos her-dados dos climas secos, sendo um dos grandes epi-sdios da dinmica das floras e faunas, a partir de refgios situados em diferentes stios das terras altas circunvizinha (p. 45).

    A origem da teoria de especiao em refgios ecolgicos data do sculo XIX. No sculo XX, foi utilizada no estudo de diferentes regies do planeta. Os trabalhos de Haffer (1969) e Vanzolini e Willia-ms (1970), realizados independentemente e publi-cados praticamente ao mesmo tempo, lanaram os fundamentos para a aplicao da teoria dos refgios na regio neotropical amaznica. A contribuio de AbSber foi muito importante para a formulao da teoria, como relataram Vanzolini e Williams (1970): Nos ltimos anos, sob a orientao de Aziz Nacib AbSber, conseguimos montar um corpo de infor-mao geogrfica que j permite correlacionar alguns ciclos induzidos dos padres de diferenciao com eventos paleoclimticos independentemente docu-mentados. Posteriormente, AbSber enriqueceu sobremaneira a teoria dos refgios, apresentando no-vos dados e interpretaes em vrias publicaes (e.g. Brown e AbSber, 1979). Consideraes conceituais foram tambm apresentadas no trabalho sobre o Pan-tanal (AbSber, 1988), como na passagem abaixo:

    Em sua essncia, a teoria dos refgios cuida das repercusses das mudanas climticas quatern-rias sobre o quadro distributivo de floras e fau-nas, em tempos determinados, ao longo de es-paos fisiogrficos, paisagstica e ecologicamente mutantes. Tal como ela foi elaborada no Brasil, pela contribuio de diferentes pesquisadores, a teoria dos refgios diz respeito, sobretudo, identifi-cao dos momentos de maior retrao das florestas

    tropicais, por ocasio da desintegrao de uma tro-picalidade relativa preexistente. Nessa contingncia, massas de vegetao outrora contnuas, ou mais ou menos contnuas, ficaram reduzidas a manchas re-gionais de florestas, em stios privilegiados (p. 44).

    Crticas teoria dos refgios foram apre-sentadas em vrios trabalhos, questionando princi-palmente as interpretaes de aridez na Amaznia durante o ltimo mximo glacial no final do Pleis-toceno, o que motivou propostas de abandono da teoria. Haffer e Prance (2002) rebateram vrias das crticas, especialmente as de Collinvaux et al. (2000, 2001), apontando que os argumentos contrrios teoria dos refgios so muito simplistas e que des-consideram resultados publicados em inmeros tra-balhos sobre a Amaznia.

    Em que pese o fato de que a teoria dos ref-gios seja tema controverso e alvo de crticas acir-radas, ela tem sido defendida, por pesquisadores de diversas reas, como uma teoria que explica satisfa-toriamente muitos fatos e muitas constataes. Para AbSber, a teoria dos refgios explica satisfatoria-mente a complexidade fitogeogrfica do Pantanal.

    Temos insistido em que um dos mais importantes corpos de ideias referentes aos mecanismos padres de distribuio de floras e faunas na Amrica Tro-pical foi a chamada teoria dos refgios. No exa-gerado dizer que essa teoria nascida de considera-es sobre as flutuaes climticas do Quaternrio na Amrica do Sul e Central, constituiu-se numa das mais srias tentativas de integrao das cincias fisiogrficas com as cincias biolgicas, ocorridas depois do Darwinismo (p. 44).

    A teoria dos refgios envolveu consideraes sobre os atuais espaos geoecolgicos inter e subtropicais e conhecimentos sobre a estrutura superficial de suas paisagens, com vistas ao esclarecimento dos cenrios e processos que ocorreram no Quaternrio Antigo, quando existiam outros arranjos e dinmi-cas de distribuio de floras e faunas. Essa forma de conhecimento, marcadamente multidisciplin-ria, particularmente frtil para uma sondagem dos efeitos e consequncias das flutuaes paleo-climticas quaternrias, que determinaram interfe-rncias morfolgicas, pedognicas e fitogeogrficas, muito sensveis nos espaos amaznicos e tropicais atlnticos do Brasil, com repercusses sensveis no domnio dos cerrados e notveis modificaes no quadro fsico, geoecolgico e bitico do Pantanal Mato-Grossense (p. 44-45).

    Consideraes finais

    A releitura do artigo de AbSber (1988) trouxe surpresas extremamente interessantes, pois permitiu

  • 487

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    entender muitas colocaes antes no percebidas em sua plenitude. Somente depois de muitos anos dedi-cados a pesquisas no Pantanal foi possvel aquilatar o alcance das ideias apresentadas e vislumbrar novos caminhos a trilhar na busca de aprender um pouco mais sobre este fascinante lugar que a natureza nos brindou.

    Desde a publicao do trabalho, avanamos muito na compreenso de muitas das questes co-locadas por AbSber, ampliamos os horizontes do conhecimento, mas a percepo de que h muitas questes ainda por responder, porque permanece v-lida a afirmativa:

    O Pantanal a mais espessa bacia de sedimentao quaternria do Pas. O pacote detrtico poupado em seu interior possui de 400 a 500 m de sedimen-tos acumulados. O significado paleoclimtico des-se material empilhado por subsidncia, durante o Pleistoceno, ainda est para ser recuperado (p. 40).

    Apesar de reconhecer que o conhecimento so-bre a evoluo geolgica e geomorfolgica do Panta-nal ainda est em sua infncia, AbSber apresentou uma sntese evolutiva, alicerce para futuras pesqui-sas:

    Cumpre pr um pouco de ordem nos conhecimen-tos acumulados sobre a evoluo dos paleoclimas quaternrios, desde a dissecao do pediplano cuia-bano at a formao da Bacia do Pantanal, pedi-mentos dos seus bordos, baixos terraos cascalhen-tos, paleossolos dos calcrios Xarais, baixos ter-raos cascalhentos, paleoleques aluviais, plancies mendricas e grandes banhados pantaneiros. Os eventos parecem ter ocorrido um pouco nessa or-dem de citao. Condies ambientais rsticas vm acontecendo desde a poca mais antiga dos proces-sos de pedimentao. O pedimento intermedirio superior foi o mais amplo e exatamente aquele que deixou menor nmero de indicadores correlativos. O pedimento intermedirio inferior, responsvel pelo nvel das colinas onduladas, embutidas nos pediplanos e/ou pedimentos mais altos, contm paleossolos carbonatados na zona dos patamares de serranias (Corumb) e resduos retrabalhados de cascalhos fluviais antigos na regio de Cuiab. Nes-sa mesma rea os baixos terraos fluviais do vale do Rio Cuiab revelam condies muito speras de deposio fluvial, comportando depsitos clsticos fluviais grosseiros e angulosos, denotando um clima temporariamente muito rstico. E, por fim, ainda dentro do Pleistoceno Terminal, sobreveio a fase dos grandes leques aluviais no interior da depres-so detrtica (Bacia do Pantanal), e chos pedre-gosos documentados pelas sucessivas descobertas de legtimas stone lines em reas to distantes entre si quanto as colinas onduladas de Corumb ou as

    vertentes das colinas cuiabanas. Isso tudo termina, mais ou menos bruscamente, entre 13 e 12.000 anos antes do presente, quando se inicia o lento e descontnuo processo de reumidificao do interior e bordos da grande depresso (p. 43).

    O Pantanal lugar de contrastes e de mudan-as, geograficamente localizado numa encruzilhada de trs grandes biomas, cujos limites avanam e re-cuam com as flutuaes climticas. Tais biomas ocu-pam domnios morfoclimticos distintos (AbSber 1970, 1977). Embora contestada por vrios pesqui-sadores, a teoria dos refgios explica muitos dos as-pectos da fitogeografia do Pantanal.

    No fora o desenvolvimento da teoria dos refgios e as consideraes sobre os antigos espaos ocu-pados pelos climas secos do Quaternrio Antigo, dificilmente poderamos compreender a presena desses pequenos refgios de flora do domnio das caatingas, abandonados no sudoeste da depresso pantaneira, quando da retrao dos climas secos e ampliao diferenciada dos climas tropicais midos e submidos (p. 45).

    O Pantanal um lugar de rios nmades com os quais necessrio aprender a conviver. Para que se possa ter desenvolvimento sustentvel da regio e para que as polticas de conservao no sejam ape-nas peas de retrica, necessrio compreender seus sistemas naturais, sua dinmica hdrica e sedimen-tar, e como so influenciados pelo que ocorre no seu entorno. Neste aspecto, AbSber lanou alerta, cada vez mais atual e urgente:

    Devido dificuldade de escoamento, reconhecida por todos os pesquisadores da hidrologia regional, certo que um processo cumulativo de poluio hdrica vai afetar sobremaneira as guas das gran-des plancies submersveis existentes nessa poro centro-ocidental da regio pantaneira. Um maior controle das condies das guas que entram no Pantanal Mato-Grossense, a partir das passagens obsequentes dos rios nascidos nos planaltos, parece ser uma medida inadivel, para garantir uma maior integridade fsica, hidrogeoqumica e geoecolgica para a diversidade biolgica dos pantanais (p. 28).

    Agradecimentos

    O autor externa seus agradecimentos aos edi-tores pelo convite para elaborao deste texto; ao CNPq pela concesso bolsa PQ; e FAPESP pelo apoio ao projeto Sistemas Deposicionais do Qua-ternrio (Pleistoceno tardio/Holoceno) da Bacia do Pantanal Mato-Grossense, Centro-Oeste do Brasil (processo 07/55987-3).

  • 488

    BROWN JR, K. S. & ABSBER, A. N. 1979. Ice-age forest refuges and evolution in the Neotropics: correlation of palaeoclimatological, geomorphological and pedological data with modern biological endemism. Paleoclimas, So Paulo, 5: 1-30.

    CATTO, A. J. 1975. Anlise geolgica e geofsica da Bacia do Pantanal Matogrossense. Rio de Janeiro: Petrobrs. 23p. (DEPEX/SEDOT 5296),

    CLAPPERTON, C. 1993. Quaternary Geology and Geomorphology of South America. Amsterdam, Elsevier, 779p.

    COLINVAUX, P. A.; De OLIVEIRA, P. E.; BUSH, M. B. 2000. Amazonian and neotropical plant communities on glacial time-scales: e failure of the aridity and refuge hypotheses. Quaternary Science Reviews, 19: 141-169.

    CUNHA, J. 1943. Cobre de Jaur e lagoas alcalinas do Pantanal (Mato Grosso). Boletim DNPM / LPM, 6: 1-53.

    FENG, M.; VAN DER LEE, S.; ASSUMPO, M. 2007. Upper mantle structure of South America from joint inversion of waveforms and fundamental-mode group velocities of Rayleigh waves. Journal of Geophysical Research, 112: B04312, 16p.

    FRANCO, M. S. M. & PINHEIRO, R. 1982. Geomorfologia. In: Brasil Ministrio das Minas e Energia. Secretaria Geral. (Ed.). Projeto RADAMBRASIL. Folha SE.21 Corumb e parte da Folha SE.20. Rio de Janeiro, MME/SG/RADAMBRASIL. p.161-224. (Levantamento de Recursos Naturais, 27)

    FREITAS, R. O. 1951. Ensaio sbre o relvo tetnico do Brasil. Revista Brasileira de Geografia, 13: 171-222.

    HAFFER, J. 1969. Speciation in Amazonian forest birds. Science, 165: 131-37.

    HAFFER, J. & PRANCE, G. T. 2002. Impulsos climticos da evoluo na Amaznia durante o Cenozico: sobre a teoria dos refgios da diferenciao bitica. Estudos Avanados, So Paulo, 16: 175-206.

    HORTON, B. K. & DECELLES, P. G. 1997. e modern foreland basin system adjacent to the Central Andes. Geology, 25: 895-898.

    JUNK, W. J.; BROWN, M.; CAMPBELL, I. C.; FINLAYSON, M.; GOPAL, B.; RAMBERG, L.; WARNER, B. G. 2006. e comparative biodiversity of seven globally important wetlands: a synthesis. Aquatic Sciences, 68: 400-414.

    KING, L. C. 1956. Geomorfologia do Brasil Oriental. Revista Brasileira de Geografia, 18: 147-265.

    KLAMMER, G. 1982. Die Palovste des Pantanal von Mato Grosso und die pleistozne Klimageschichte der brasilianischen Randtropen. Zeitschrift fr Geomorphologie, 26: 393-416.

    KUKAL, Z. 1990. e rate of geological processes. Earth-Science Reviews, 28: 7-284.

    LEIER, A. L.; DECELLES, P. G.; PELLETIER, J. D. 2005. Mountains, monsoons, and megafans. Geology, 33: 289-292.

    MARTONNE, E. 1943. Problemas morfolgicos do Brasil tropical atlntico. Revista Brasileira de Geografia, 1(4): 523-550.

    MELO, M. S.; RICCOMINI, C.; HASUI, Y.; ALMEIDA, F. F. M.; COIMBRA, A. M. 1985. Geologia e ontinentais do sudeste do Brasil. Revista Brasileira de Geocincias, 15: 193-201.

    PETRI, S. & FULFARO, V. J. 1981. Geologia da Chapada dos Parecis, Mato Grosso, Brasil. Revista Brasileira de Geocincias, 11: 274-282.

    PRANCE, G. T. & SCHALLER, J. B. 1982. Preliminary study of some vegetation types of the Pantanal, Mato Grosso, Brazil. Brittonia, 34: 228-251.

    ROSS, J. L. S. & SANTOS, L. M. 1982. Geomorfologia. In: Brasil Ministrio das Minas e Energia. Secretaria Geral. (Ed.) Projeto RADAMBRASIL. Folha SD.21 Cuiab. Rio de Janeiro: MME/SG/RADAMBRASIL, p.193-256. (Levantamento de Recursos Naturais, 26)

    SHIRAIWA, S. 1994. Flexura da litosfera continental sob os Andes Centrais e a origem da Bacia do Pantanal. Instituto Astronmico e Geofsico, Universidade de So Paulo, So Paulo, 86p. Tese de Doutoramento

    SOARES, A. P.; SOARES, P. C.; ASSINE, M. L. 2003. Areais e lagoas do Pantanal, Brasil: herana paleoclimtica? Revista

    Referncias

    ABSBER, A. N. 1949. Regies de circundesnudao ps-cretceas no Planalto Brasileiro. Boletim Paulista de Geografia, 1: 3-21.

    ABSBER, A. N. 1954a. Bacia do Paran-Uruguai. Estudo de geomorfologia aplicada. In: Condies geogrficas e aspectos geoeconmicos da Bacia do Paran-Uruguai. So Paulo. p.76-93.

    ABSBER, A. N. 1954b. O Planalto dos Parecis na regio de Diamantino (Mato Grosso). Boletim Paulista de Geografia, 17: 63-72.

    ABSBER, A. N. 1970. Provncias geolgicas e domnios morfoclimticos no Brasil. Geomorfologia, So Paulo, 20: 1-26.

    ABSBER, A. N. 1977. Os domnios morfoclimticos na Amrica do Sul. Primeira aproximao. Geomorfologia, So Paulo, 52: 1-22.

    ABSBER, A. N. 1988. O Pantanal Mato-Grossense e a teoria dos refgios. Revista Brasileira de Geografia, 50: 9-57. (Especial Cinquentenrio, tomo 2)

    ABSBER, A. N. 2006. Brasil: paisagens de exceo: o litoral e o Pantanal Mato-Grossense. Cotia-SP, Ateli Editorial, 182p.

    ABSBER, A. N. & BIGARELLA, J. J. 1961. Superfcies aplainadas do primeiro planalto do Paran. Boletim Paranaense de Geografia, 4/5: 116-125.

    ALMEIDA, F. F. M. 1945. Geologia do sudoeste Matogrossense. Boletim do DNPM/DGM, 116: 1-118.

    ALMEIDA, F. F. M. 1958. O Planalto Paulistano. In: Azevedo, A. (ed.) A cidade de So Paulo. So Paulo, Associao dos Gegrafos Brasileiros. v. 1 (A Regio de So Paulo), p. 113-167.

    ALMEIDA, F. F. M. 1959. Traos gerais da geomorfologia do Centro-Oeste brasileiro. In: Almeida, F. F. M. & Lima, M. A. (Ed.) Planalto Centro-Ocidental e Pantanal Matogrossense. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, Guia de Excurso n 1 do XVIII Congresso Internacional de Geografia, 7-65.

    ALMEIDA, F. F. M. 1964. Geologia do centro-oeste mato-grossense. Boletim da Diviso de Geologia e Mineralogia, 215: 1-133.

    ALMEIDA, F. F. M. 1965. Geologia da Serra da Bodoquena (Mato Grosso). DNPM/DGM, 219: 1-96.

    ALMEIDA, F. F. M. & CARNEIRO, C. D. R. 1998. Origem e evoluo da Serra do Mar. Revista Brasileira de Geocincias, 28: 135-150.

    ASSINE, M. L. 2003. Sedimentao na Bacia do Pantanal Mato-Grossense, Centro-Oeste do Brasil. Instituto de Geocincias e Cincias Exatas, Universidade Estadual Paulista - Unesp, Campus de Rio Claro, Tese de Livre-Docncia, 106p.

    ASSINE, M. L. 2004. A bacia sedimentar do Pantanal Mato-Grossense. In: Mantesso Neto, V.; Bartorelli, A.; Carneiro, C. D. R. & Brito Neves, B. B. (Org.) Geologia do Continente Sul-Americano: Evoluo da Obra de Fernando Flvio Marques de Almeida. So Paulo: Beca. p. 61-74.

    ASSINE, M. L. 2005. River avulsions on the Taquari megafan, Pantanal wetland, Brazil. Geomorphology, 70: 357-371.

    ASSINE, M. L. & SOARES, P. C. 2004. Quaternary of the Pantanal, west-central Brazil. Quaternary International, 114: 23-34.

    ASSINE, M. L.; PADOVANI, C. R.; ZACHARIAS, A. A.; ANGULO, R. J. & SOUZA, M. C. 2005. Compartimentao geomorfolgica, processos de avulso fluvial e mudanas de curso do Rio Taquari, Pantanal Mato-Grossense. Revista Brasileira de Geomorfologia, 6: 97-108.

    BEZERRA, M. A. O. 1999. O Uso de Multi-traadores na Reconstruo do Holoceno no Pantanal Mato-Grossense, Corumb, MS. Centro de Cincias Biolgicas e da Sade, Universidade Federal de So Carlos, So Carlos, Tese de Doutorado, 214p.

    BRASIL, A. E. & ALVARENGA, S. M. 1989. Relevo. In: IBGE (Ed.) Geografia do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1 (Regio Centro-Oeste). p. 53-72.

    BRAUN, E. W. G. 1977. Cone aluvial do Taquari, unidade geomrfica marcante da plancie quaternria do Pantanal. Revista Brasileira Geografia, 39: 164-180.

  • 489

    A Obra de Aziz Nacib Ab'Sber 25

    USSAMI, N.; SHIRAIWA, S.; DOMINGUEZ, J. M. L. 1999. Basement reactivation in a sub-Andean foreland flexural bulge: e Pantanal wetland, SW Brazil. Tectonics, 18: 25-39.

    VANZOLINI, P. E. & WILLIAMS, E. E. 1970. South American anoles: Geographic differentiation and evolution of the Anolis chrysolepis species group (Sauria, Iguanidae). Arquivos de Zoologia, 19:

    WEYLER, G. 1962. Projeto Pantanal: relatrio final dos poos perfurados no Pantanal Matogrossense. Ponta Grossa. Petrobrs / DEBSP. 27p.

    WEYLER, G. 1964. Projeto Pantanal. Relatorio Final de abandono dos poos SBst-1A-MT (So Bento), FPst-1-MT (Faz. Piquiri) e LCst-1A-MT (Lagoa do Cascavel). Ponta Grossa,. Ponta Grossa. Petrobras/DEBSP.

    Brasileira de Geocincias, 33: 211-224.SOARES, P. C.; RABELO, L.; ASSINE, M. L. 1998. e

    Pantanal Basin: recent tectonics, relationship to the Transbrasiliano Lineament. In: INPE, 9 Simpsio Brasileiro Sensoriamento Remoto., Santos, v.CD ROM, p.11p.

    STANISTREET, I. G. & MCCARTHY, T. S. 1993. e Okavango Fan and the classification of subaerial fan systems. Sedimentary Geology, 85: 115 - 133.

    TRICART, J. 1982. El Pantanal: un ejemplo del impacto geomorfologico sobre el ambiente. Informaciones Geograficas (Chile), 29: 81-97.

    USSAMI, N.; PADILHA, A. L.; FISSEHA, S.; PORSANI, J. L.; SOUZA, L. A. P.; BOGGIANI, P. C.; CARVALHO, M. J. 2000. Investigaes geofsicas integradas na plancie do Pantanal Mato-Grossense: implicaes tectnicas e hidrogeolgicas de sub-superfcie. In: 3 Simpsio sobre Recursos Naturais e Scio-Econmicos do Pantanal, Corumb, v.Resumos, p.125.