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A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Texto de Walter Benjamin publicado em 1955. Primeira Versão 1  Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da produção capitalista e, ao descrevê-las, previu o futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente urna exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para a sua própria supressão. Tendo em vista que a superestrutura se modifica mais lentamente que a base econômica, as mudanças ocorridas nas condições de produção precisaram mais de meio século para refletir-se em todos os setores da cultura. Só hoje podemos indicar de que forma isso se deu. Tais indicações devem por sua vez comportar alguns prognósticos. Mas esses prognósticos não se referem a teses sobre a arte de proletariado depois da tomada do poder, e muito menos na fase da sociedade sem classes, e sim a teses sobre as tendências evolutivas da arte, nas atuais condições produtivas. A dialética dessas tendências não é menos visível na superestrutura que na economia. Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate político. Elas põem de lado numerosos conceitos tradicionais - como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo - cuja aplicação incontrolada, e no momento dificilmente controlável, conduz à elaboração dos dados num sentido fascista. Os conceitos seguintes, novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstância de não serem de modo algum apropriáveis pelo fascismo. Em compensação, podem ser utilizados  para a formulação de exigências revolucionárias na política artística. Reprodutibilidade técnica Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita. Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa - a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se à estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no inicio do século XIX. Com a litografia, a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma'de criações sempre novas. Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Graças à litografia, elas começaram a situar-se no mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primórdios, quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o orno apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia.  A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos . Para estudar esse padrão, nada é mais instrutivo que examinar como suas duas funções - a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica repercutem uma sobre a outra. 1  O texto aqui publicado é inédito no Brasil. O ensaio traduzido em português por José Lino Grünnewald e publicado em A idéia do cinema (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1696) e na coleção Os pensadores, da Abril Cultural, é a segunda versão alemã, que Benjamin começou a escrever em 1936 e só foi publicada em 1955. 

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  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica

    Texto de Walter Benjamin publicado em 1955.

    Primeira Verso1

    Quando Marx empreendeu a anlise do modo de produo capitalista, esse modo de produo ainda estava em seus primrdios. Marx orientou suas investigaes de forma a dar-lhes valor de prognsticos. Remontou s relaes fundamentais da produo capitalista e, ao descrev-las, previu o futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema no somente urna explorao crescente do proletariado, mas tambm, em ltima anlise, a criao de condies para a sua prpria supresso.

    Tendo em vista que a superestrutura se modifica mais lentamente que a base econmica, as mudanas ocorridas nas condies de produo precisaram mais de meio sculo para refletir-se em todos os setores da cultura. S hoje podemos indicar de que forma isso se deu. Tais indicaes devem por sua vez comportar alguns prognsticos. Mas esses prognsticos no se referem a teses sobre a arte de proletariado depois da tomada do poder, e muito menos na fase da sociedade sem classes, e sim a teses sobre as tendncias evolutivas da arte, nas atuais condies produtivas. A dialtica dessas tendncias no menos visvel na superestrutura que na economia. Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate poltico. Elas pem de lado numerosos conceitos tradicionais - como criatividade e gnio, validade eterna e estilo, forma e contedo - cuja aplicao incontrolada, e no momento dificilmente controlvel, conduz elaborao dos dados num sentido fascista. Os conceitos seguintes, novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstncia de no serem de modo algum apropriveis pelo fascismo. Em compensao, podem ser utilizados para a formulao de exigncias revolucionrias na poltica artstica.

    Reprodutibilidade tcnica

    Em sua essncia, a obra de arte sempre foi reprodutvel. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitao era praticada por discpulos, em seus exerccios, pelos mestres, para a difuso das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reproduo tcnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na histria intermitentemente, atravs de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutvel, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo servio para a palavra escrita. Conhecemos as gigantescas transformaes provocadas pela imprensa - a reproduo tcnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importncia decisiva, de um processo histrico mais amplo. xilogravura, na Idade Mdia, seguem-se estampa em chapa de cobre e a gua-forte, assim como a litografia, no inicio do sculo XIX.

    Com a litografia, a tcnica de reproduo atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso que distingue a transcrio do desenho numa pedra de sua inciso sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu s artes grficas pela primeira vez colocar no mercado suas produes no somente em massa, como j acontecia antes, mas tambm sob a forma'de criaes sempre novas. Dessa forma, as artes grficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Graas litografia, elas comearam a situar-se no mesmo nvel que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primrdios, quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reproduo da imagem, a mo foi liberada das responsabilidades artsticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o orno apreende mais depressa do que a mo desenha, o processo de reproduo das imagens experimentou tal acelerao que comeou a situar-se no mesmo nvel que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia. A reproduo tcnica do som iniciou-se no fim do sculo passado. Com ela, a reproduo tcnica atingiu tal padro de qualidade que ela no somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformaes profundas como conquistar para si um lugar prprio entre os procedimentos artsticos. Para estudar esse padro, nada mais instrutivo que examinar como suas duas funes - a reproduo da obra de arte e a arte cinematogrfica repercutem uma sobre a outra. 1 O texto aqui publicado indito no Brasil. O ensaio traduzido em portugus por Jos Lino Grnnewald e publicado em A idia do cinema (Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1696) e na coleo Os pensadores, da Abril Cultural, a segunda verso alem, que Benjamin comeou a escrever em 1936 e s foi publicada em 1955.

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    Autenticidade

    Mesmo na reproduo mais perfeita, um elemento est ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existncia nica, no lugar em que ela se encontra. E nessa existncia nica, e somente nela, que se desdobra histria da obra. Essa histria compreende no apenas as transformaes que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura fsica, como as relaes de propriedade em que ela ingressou. Os vestgios das primeiras s podem ser investigados por anlises qumicas ou fsicas, irrealizveis na reproduo; os vestgios das segundas so o objeto de uma tradio, cuja reconstituio precisa partir do lugar em que se achava o original.

    O aqui e agora do original constitui o contedo da sua autenticidade, e nela se enraza uma tradio que identifica esse objeto, at os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa a reprodutibilidade tcnica, e naturalmente no apenas tcnica. Mas, enquanto o autntico preserva toda a sua autoridade com relao reproduo manual, em geral considerada uma falsificao, o mesmo no ocorre no que diz respeito reproduo tcnica, e isso por duas razes. Em primeiro lugar, relativamente ao original, reproduo tcnica tem mais autonomia que a reproduo manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original, acessveis objetiva - ajustvel e capaz de selecionar arbitrariamente o seu ngulo de observao, mas no acessveis ao olhar humano. Ela pode, tambm, graas a procedimentos como a ampliao ou a cmera lenta, fixar imagens que fogem inteiramente tica natural. Em segundo lugar, a reproduo tcnica pode colocar a cpia do original em situaes impossveis para o prprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivduo a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto.

    Mesmo que essas novas circunstncias deixem intacto o contedo da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. Embora esse fenmeno no seja exclusivo da obra de arte, podendo ocorrer, por exemplo, numa paisagem, que aparece num filme aos olhos do espectador, ele afeta a obra de arte em um ncleo especialmente sensvel que no existe num objeto da natureza: sua autenticidade. A autenticidade de uma coisa a quintessncia de tudo o que foi transmitido pela tradio, a partir de sua origem, desde sua durao material at o seu testemunho histrico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem atravs da reproduo, tambm o testemunho se perde. Sem dvida, s esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele a autoridade da coisa, seu peso tradicional.

    O conceito de aura permite resumir essas caractersticas: o que se atrofia na era da reprodutibilidade tcnica da obra de arte sua aura. Esse processo sintomtico, e sua significao vai muito alm da esfera da arte. Generalizando, podemos, dizer que a tcnica da reproduo destaca o domnio da tradio o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reproduo, substitui a existncia nica d obra por uma existncia serial. E, na medida em que essa tcnica permite reproduo vir ao encontro do espectador, em todas as situaes, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradio, que constitui o reverso da crise atual e a renovao da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso o cinema. Sua funo social no concebvel, mesmo em seus traos mais positivos, e precisamente neles, sem seu lado destrutivo e catrtico: a liquidao do valor tradicional do patrimnio da cultura. Esse fenmeno especialmente tangvel nos grandes filmes histricos, de Clepatra e Ben Hur at Frederico, o Grande e Napoleo. E quando Abel Gance, em 1927, proclamou com entusiasmo: "Shakespeare, Rembrandt, Beethoven, faro cinema... Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos todos os fundadores de novas religies, sim, todas as religies... aguardam sua ressurreio luminosa, e os heris se acotovelam s nossas portas" ele nos convida, sem o saber talvez, para essa grande liquidao.

    Destruio da aura

    No interior de grandes perodos histricos, a forma de percepo das coletividades humanas se transforma ao mesmo que seu modo de existncia. O modo pelo qual se organiza a percepo humana, o meio em que ela se d, no apenas condicionado naturalmente, mas tambm historicamente. A poca das invases dos brbaros, durante a qual surgiram as indstrias artsticas do Baixo Imprio Romano e a Gnese de Viena, no tinha apenas uma arte diferente da que caracterizava o perodo clssico, mas tambm uma outra forma de percepo. Os grandes estudiosos da escola vienense, Riegl Wickhoff, que se revoltaram contra o peso da tradio classicista, sob o qual aquela arte tinha sido soterrada, foram primeiros a tentar extrair dessa arte algumas concluses sob a organizao da percepo nas pocas em que ela estava e vigor. Por mais

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    penetrantes que fossem, essas concluses estavam limitadas pelo fato de que esses pesquisadores se contentaram em descrever as caractersticas formais do estilo percepo caracterstico do Baixo Imprio. No tentaram, talvez no tivessem a esperana de consegui-lo, mostrar as Convulses sociais que se exprimiram nessas metamorfoses da percepo. Em nossos dias, as perspectivas de empreender com xito semelhante pesquisa so mais favorveis, e, se fosse possvel compreender as transformaes contemporneas da faculdade perceptiva segundo a tica do declnio da aura, as causas sociais dessas transformaes se tornariam inteligveis.

    Em suma, o que a aura? uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de vero, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre ns, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graas a essa definio, fcil identificar os fatores sociais especficos que condicionam o declnio atual da aura. Ela deriva de duas circunstncias, estreitamente ligadas crescente difuso e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas "ficarem mais prximas" uma preocupao to apaixonada das massas modernas como sua tendncia a superar o carter nico de todos os fatos atravs da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistvel a necessidade de possuir o objeto, de to perto quanto possvel, na imagem, ou antes, na sua cpia, na sua reproduo. Cada dia fica mais ntido a diferena entre a reproduo, como ela nos oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematogrficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam to intimamente como, na reproduo,,a transitoriedade e a repetibilidade. Retirar o objeto do seu invlucro, destruir sua aura, a caracterstica de uma forma de percepo cuja capacidade de captar "o semelhante no mundo to aguda, que graas reproduo ela consegue capt-lo at no fenmeno nico. Assim se manifesta na esfera sensorial a tendncia que na esfera terica explica a importncia crescente da estatstica. Orientar a realidade em funo das massas e as massas em funo da realidade um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuio.

    Ritual e poltica

    A unicidade da obra de arte idntica sua insero no contexto da tradio. Sem dvida, essa tradio algo de vivo, de extraordinariamente varivel. Uma antiga esttua de Vnus, por exemplo, estava inscrito numa certa tradio entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradio na Idade Mdia, quando os doutores da Igreja viam nela um dolo malfazejo. O que era comum as duas tradies, contudo, era a unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura. A forma mais primitiva de sua insero da obra de arte no contexto da tradio se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a servio de um ritual, inicialmente mgico, e depois religioso. O que de importncia decisiva que esse modo de ser aurtico da obra de arte nunca se destaca completamente de sua funo ritual. Em outras palavras: o valor nico da obra de arte autentica tem sempre um fundamento teolgico, por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo nas formas mais profanas do culto do Belo. Essas formas, profanas do culto do Belo, surgidas na Renascena e vigente durante trs sculos, deixaram manifesto esse fundamento quando sofreram seu primeiro abalo grave. Com efeito, quando o advento da primeira tcnica de reproduo verdadeiramente revolucionria - a fotografia, contempornea do incio do socialismo - levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, que s fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu ao perigo iminente com a doutrina da arte pela arte, que no fundo uma teologia da arte. Dela resulto a teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que no rejeita apenas toda funo social, mas tambm qualquer determinao objetiva. (Na literatura, foi Mallarm o primeiro a alcanar esse estgio.) indispensvel levar em conta essas relaes em um estudo que se prope estudar a arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. Porque elas preparam o caminho para a descoberta decisiva: com a reprodutibilidade tcnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na histria, de sua existncia parasitria, destacando-se do ritual: obra de arte reproduzida cada vez mais a reproduo de uma obra de arte criada para ser reproduzida. A chapa fotogrfica, por exemplo, permite uma grande variedade de cpias; a questo da autenticidade das cpias no tem nenhum sentido. Mas, no momento em que o critrio da autenticidade deixa de aplicar-se produo artstica, toda a funo social da arte' se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra prxis: a poltica.

    Nas obras cinematogrficas, a reprodutibilidade tcnica do produto no , como no caso da literatura ou da pintura, uma condio externa para sua difuso macia. A reprodutibilidade tcnica do filme tem seu fundamento imediato na tcnica de sua produo. Esta no apenas permite, da forma mais imediata, a difuso em massa da obra cinematogrfica, como a torna obrigatria. A difuso se torna obrigatria, porque a produo de um filme to cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, no pode mais pagar

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    um filme. O filme uma criao da coletividade. Em 1927, calculou-se que um filme de longa metragem, para ser rentvel, precisaria atingir um pblico de nove milhes de pessoas. certo que o cinema falado representou, inicialmente, um retrocesso; seu pblico restringiu-se ao delimitado pelas fronteiras lingsticas, e esse fenmeno foi concomitante com a nfase dada pelo fascismo aos interesses nacionais. Mais importante, contudo, que registrar esse retrocesso, que de qualquer modo ser em breve compensado pela sincronizao, analisar sua relao com o fascismo. A simultaneidade dos dois fenmenos se baseia na crise econmica. As mesmas turbulncias que de modo geral levaram tentativa de estabilizar as relaes de propriedade vigentes pela violncia aberta, isto , segundo formas fascistas, levaram o capital investido na indstria cinematogrfica, ameaado, a preparar o caminho para o cinema falado. A introduo do cinema falado aliviou temporariamente a crise. E isso no somente porque com ele as massas voltaram a freqentar as salas de cinema, como porque criou vnculos de solidariedade entre os novos capitais da indstria eltrica e os aplicados na produo cinematogrfica, Assim, se numa perspectiva externa, o cinema falado estimulou interesses nacionais, visto de dentro ele internacionalizou a produo cinematogrfica numa escala ainda maior.

    Valor de culto e valor de exposio

    Seria possvel reconstituir a histria da arte a partir do confronto de dois plos, no interior da prpria obra de arte, e ver o contedo dessa histria na variao do peso conferido seja a um plo, seja a outro. Os dois plos so o valor de culto da obra e seu valor de exposio. A produo artstica comea com imagens a servio da magia. O que importa, nessas imagens, e que elas existem, e no que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleoltico nas paredes de sua caverna, e um instrumento de magia, s ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no mximo, ele deve ser visto pelos espritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de arte: certas esttuas divinas somente so acessveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Mdia so invisveis, do solo, para o observador. medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasies para que elas sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de uni lugar para outro, maior que a de uma esttua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua prpria natureza, no era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa. A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com os vrios mtodos de sua reprodutibilidade tcnica, que a mudana de nfase de um plo para outro corresponde a uma mudana qualitativa comparvel que ocorreu na pr-histria. Com efeito, assim como na pr-histria a preponderncia absoluta do valor de culto conferido obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mgico, e s mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderncia absoluta conferida hoje a seu valor de exposio atribui-lhe funes inteiramente novas, entre as quais a "artstica", a nica de que temos conscincia, talvez se revele mais tarde como secundria. Uma coisa certa: o cinema nos fornece a base mais til para examinar essa questo. certo, tambm, que o alcance histrico dessa refuncionalizao da arte, especialmente visvel no cinema, permite um confronto com a pr-histria da arte, no s do ponto de vista metodolgico como material. Essa arte registrava certas imagens, a servio da magia, com funes prticas, seja como execuo de atividades mgicas, seja a titulo de ensinamento dessas prticas mgicas, seja como objeto de contemplao, qual se atribuam efeitos mgicos. Os temas dessa arte eram o homem e seu meio, copiados segundo exigncias de uma sociedade cuja tcnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade a anttese da nossa, cuja tcnica a mais emancipada que jamais existiu. Ms essa tcnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza, no menos elementar que a sociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econmicas. Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou, mas h muito no controla, somos obrigados a render, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte pe-se a servio desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instncia, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepes e reaes exigidas por um aparelho tcnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho tcnico do nosso tempo o objeto das inervaes humanas - essa a tarefa histrica cuja realizao d ao cinema o seu verdadeiro sentido.

    Fotografia

    Com a fotografia, o valor de culto comea a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposio. Mas o valor de culto no se entrega sem oferecer resistncia. Sua ltima trincheira o rosto humano. No por acaso que o retrato era o principal tema das primeiras fotografias. O refgio derradeiro valor de culto foi o culto

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    da saudade, consagrada aos amo ausentes ou defuntos. A aura acena pela ltima vez na expresso fugaz de um rosto nas antigas fotos. o que Ihes d sua beleza melanclica e incomparvel. Porm, quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposio supera, a primeira vez o valor de culto. O mrito inexcedvel de Atget ter radicalizado esse processo ao fotografar as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justia, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Tambm esse local deserto. fotografado por causa dos indcios que ele contm. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da histria. Nisso sua significao poltica latente. Essas fotos orientam a recepo num sentido predeterminado. A contemplao livre a lhes adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas. Ao mesmo tempo, as revistas ilustradas comeam a mostrar-lhe indicadores de caminho - verdadeiros ou falsos pouco importa. Nas revistas, as legendas explicativas se tornam pela primeira vez obrigatrias. evidente que esses textos tm um carter completamente distinto dos ttulos de quadro. As instrues que o observador recebe dos jornais ilustrados atravs das legendas se tornaro, em seguida, ainda mais precisas e imperiosas no cinema, em que a compreende cada imagem condicionada pela seqncia de todas imagens anteriores.

    Valor de eternidade

    Os gregos s conheciam dois processos tcnicos par reproduo de obras de arte: o molde e a cunhagem. As moedas e terracotas eram as nicas obras de arte por eles fabricadas em massa. Todas as demais eram nicas e tecnicamente irreprodutveis. Por isso, precisavam ser nicas e construdas para a eternidade. Os gregos foram obrigados, pelo estgio sua tcnica, a produzir valores eternos. Devem a essa circunstancia o seu lugar privilegiado na histria da arte e sua capacidade de marcar, com seu prprio ponto de vista, toda a evoluo artstica posterior. No h dvida de que esse ponto de vista se encontra no plo oposto do nosso. Nunca as obras arte foram reprodutveis tecnicamente, em tal escala e amplitude, como em nossos dias. O filme uma forma cujo caracterstico em grande parte determinado por sua reprodutibilidade. Seria ocioso confrontar essa forma em todas as suas particularidades, com a arte grega. Mas num ponto preciso esse confronto possvel. Com o cinema, a obra de arte adquiriu um atributo decisivo, que os gregos ou no aceitariam considerariam o menos essencial de todos: a perfectibilidade O filme acabado no produzido de um s jato, e sim montado a partir de inmeras imagens isoladas e de seqncias imagens entre s quais o montador exerce seu direito de escolha - imagens, alis, que poderiam, desde o incio da filmagem, ter sido corrigidas, sem qualquer restrio. Para produzir A opinio pblica, com uma durao de 3 000 metros Chaplin filmou 125 000 metros. O filme, pois, a mais perfectvel das obras de arte. O fato de que essa perfectibilidade se relaciona com a renncia radical aos valores eternos pode ser demonstrado por uma contraprova. Para os gregos, cuja arte visava a produo de valores eternos, a mais alta das artes era a menos perfectvel, a escultura, cujas criaes se fazem literalmente a partir de um s bloco. Da o declnio inevitvel da escultura, na era da obra de arte montvel.

    Fotografia e cinema como arte

    A controvrsia travada no sculo XIX entre a pintura e a fotografia quanto ao valor artstico de suas respectivas produes parece-nos hoje irrelevante e confusa. Mas, longe de reduzir o alcance dessa controvrsia, tal fato serve, ao contrrio, para sublinhar sua significao. Na realidade, essa polmica ou a expresso de uma transformao histrica, que como tal no se tornou consciente para nenhum dos antagonistas. Ao se emancipar dos seus fundamentos no culto, na era da reprodutibilidade tcnica, a arte perdeu qualquer aparncia de autonomia. Porm a poca no se deu conta da refuncionalizao da arte, decorrente dessa circunstncia.

    Ela no foi percebida, durante muito tempo, nem sequer no sculo XX, quando o cinema se desenvolveu. Muito se escreveu, no passado, de modo to sutil como estril, sobre a questo de saber se a fotografia era ou no uma arte, sem que e colocasse sequer a questo prvia de saber se a inveno da fotografia no havia alterado a prpria natureza da arte.

    Hoje, os tericos do cinema retomam a questo na mesma perspectiva superficial. Mas as dificuldades com que a fotografia confrontou a esttica tradicional eram brincadeiras infantis em comparao com as suscitadas pelo cinema. Da a violncia cega que caracteriza os primrdios da teoria cinema - topogrfica. Assim, Abel Gance compara o filme com os hierglifos. "Nous voil, par un prodigieux retour en arrire, reve-nussur le plan d'xpression des Egyptiens... Le langage des image nest pas encore au point parce que nos yeux ne sont pas encore faits pour elles. II n'y a pas encore assei de respect, e culte, pour ce qu'elles

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    exprinient." Ou, como escreve Sverin-Mars: "'Quel art eut un rve...plus potique Ia fois et plus rel. Considr ainsi, le cinmatographe deviendrait un moyen d'expressioii tout falt exceptionnei, et dans son, inosphre ne devraient se mouvoir que des personnages de peiise Ia plus supricure, aux nionients le plus parlaits et les plus mystrieux de leur course".2 revelador como o esforo de conferir ao cinema a dignidade da "arte" obriga esses tericos, com uma inexcedvel brutalidade, a introduzir na obra elementos vinculados ao culto. E, no entanto, na poca em que foram publicadas essas especulaes, j existiam obras como a opinio pblica ou Em busca do ouro, o que no impediu Abel Gance de falar de uma escrita sagrada e Sverin-Mars falar do cinema como quem fala das figuras de Fra Angelico. tpico que ainda hoje autores especialmente reacionrios busquem na mesma direo o significado do filme e o vejam, seno na esfera do sagrado, pelo menos na do sobrenatural. Comentando a transposio cinematogrfica, por Reinhardt do Sonho de uma noite de vero, Werfel observa que a tendncia estril de copiar o mundo exterior, com suas ruas, interiores, estaes, restaurantes, automveis e praas, que tm impedido o cinema de incorporar-se ao domnio da arte. O cinema ainda no compreendeu seu verdadeiro sentido, suas verdadeiras possibilidades... Seu sentido est na sua facilidade caracterstica de exprimir, por meios naturais e com uma incomparvel fora de persuaso, a dimenso do fantstico do miraculoso e do sobrenatural."3.

    Cinema e teste

    Fotografar um quadro um modo de reproduo; fotografar num estdio um acontecimento fictcio outro. No pioneiro caso, o objeto reproduzido uma obra de arte, e a re-produo no o . Pois o desempenho do fotgrafo manejando sua objetiva tem to pouco a ver com a arte como o de um maestro regendo uma orquestra sinfnica: na melhor das hipteses, um desempenho artstico. O mesmo no ocorre no caso de um estdio cinematogrfico. O objeto reproduzido no mais uma obra de arte, e a reproduo no o tampouco, como no caso anterior. Na melhor das hipteses, a obra de arte surge atravs da montagem, na qual cada fragmento a reproduo de um acontecimento que nem constitui em si uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado. Quais so esses acontecimentos no-artsticos re-produzidos no filme?

    A resposta est na forma sui generis com que o ator cinematogrfico representa o seu papel. Ao contrrio do ator de teatro, o intrprete de um filme no representa diante de um pblico qualquer a cena a ser reproduzida, e sim diante de uni grmio de especialistas - produtor, diretor, operador, engenheiro do som ou da iluminao, etc. - que a todo o momento tem o direito de intervir. Do ponto de vista social, uma caracterstica muito importante. A interveno de uni grmio de tcnicos , com efeito, tpica do desempenho esportivo e, em geral, da execuo de um teste. uma interveno desse tipo que determina, em grande parte, o processo de produo cinematogrfica. Como se sabe, muitos trechos so filmados em mltiplas variantes. Um grito de socorro, por exemplo, pode ser registrado em vrias verses. O montador procede ento seleo, escolhendo uma delas como quem proclama um recorde. Um acontecimento filmado no estdio distingue-se assim de um acontecimento real como uni disco lanado num estdio, numa competio esportiva, se distingue do mesmo disco, no mesmo local, com a mesma trajetria e cujo lanamento tivesse como efeito a morte de um homem. O primeiro ato seria a execuo de um teste, mas no o segundo.

    Porm a execuo desse teste, por parte do ator de cinema, tem uma caracterstica muito especial. Ela consiste em ultrapassar um certo limite que restringe num mbito muito estreito o valor social dos testes. Esse limite no se aplica competio esportiva, e sim aos testes mecanizados. O esportista s conhece, num certo sentido, os testes naturais. Ele executa tarefas impostas pela natureza, e no por uni aparelho, salvo casos excepcionais, como o do atleta Nurmi, de quem se dizia que "corria contra o relgio". Ao contrrio, o processo do trabalho submete o operrio a inmeras provas mecnicas, principalmente depois da introduo da cadeia de montagem. Essas provas ocorrem implicitamente: quem no as passa com xito, excludo do processo do trabalho. Elas podem tambm ser explcitas, como nos institutos de orientao profissional. Num e noutro caso, aparece o limite acima referido. Ele consiste no seguinte: essas provas no podem ser mostradas, como seria desejvel, e como acontece com as provas esportivas. E esta a especificidade do cinema: ele torna mostrvel a execuo do teste, na medida em que transforma num teste essa "mostrabilidade". O intrprete do filme no representa diante de um pblico, mas de um aparelho. O diretor ocupa o lugar exato que o controlador ocupa num exame de habilitao profissional. Representar luz dos refletores e ao mesmo tempo atender s exigncias do microfone uma prova extremamente rigorosa. Ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade humana diante do aparelho. O interesse desse desempenho imenso. Porque diante de um

    2 Lart cinmatographque 11. Paris, 1927. p. 101 e 102. 3 Werfel, Franz. Ein Sommernachtstraum, Ein Film von Shakespeare u Reipihardi. Ncues WienerJournal, citado por Lu, 15 de novembro de 1935.

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balces e nas fbricas, durante o dia de trabalho. noite, as mesmas massas citaram os cinemas para assistirem vingana que o intrprete executa em nome delas, na medida em que o ator no somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca esse aparelho a servio do seu prprio triunfo.

    O intrprete cinematogrfico

    Para o cinema menos importante o ator representar diante do pblico um outro personagem, que ele representar a si mesmo diante do aparelho. Pirandello foi um dos primeiros a pressentir essa metamorfose do ator atravs da experincia do teste. A circunstncia de que seus comentrios, no romance Si gira, limitam-se a salientar o lado negativo desse processo, em nada diminui o alcance de tais observaes. Elas no so afetadas, tampouco, pelo fato de que est se referindo ao cinema mudo, pois o cinema falado no trouxe a esse processo qualquer modificao decisiva. O importante que o intrprete representa para um aparelho, ou dois, no caso do cinema falado. "O ator de cinema", diz Pirandello, "sente-se exilado. Exilado no somente do palco, mas de si mesmo. Com um obscuro mal-estar, ele sente o vazio inexplicvel resultante do fato de que seu corpo perde a substncia, volatiliza-se, privado de sua realidade, de sua vida, de sua voz, e at dos rudos que ele produz ao deslocar-se, para transformar-se numa imagem muda que estremece na tela e depois desaparece em silncio. A cmara representa com sua sombra diante do pblico, e ele prprio deve resignar-se a representar diante da cmara."4

    Coma representao do homem pelo aparelho, a auto - alienao humana encontrou uma aplicao altamente criadora. Essa aplicao pode ser avaliada pelo fato de que a estranheza do intrprete diante do aparelho, segundo a descrio de Pirandello, da mesma espcie que a estranheza do homem, no perodo romntico, diante de sua imagem no espelho, tema favorito de Jean-Paul, como se sabe. Hoje, essa imagem especular se torna destacvel e transportvel. Trans portvel para onde? Para um lugar em que ela possa ser vista pela massa. Naturalmente, o intrprete tem plena conscincia desse fato, em todos os momentos. Ele sabe, quando est diante da cmara, que sua relao em ltima instncia com a massa. ela que vai control-lo. E ela, precisamente, no est visvel, no existe ainda, enquanto o ator executa a atividade que ser por ela controlada. Mas a autoridade desse controle reforada por tal invisibilidade. No se deve, evidentemente, esquecer que a utilizao poltica desse controle ter que esperar at que o cinema se liberte da sua explorao pelo capitalismo. Pois o capital cinematogrfico d um carter contra-revolucionrio s oportunidades revolucionrias imanentes a esse controle. Esse capital estimula o culto do estrelato, que no visa conservar apenas a magia da personalidade, h muito reduzida ao claro putrefato que emana do seu carter de mercadoria, mas tambm o seu complemento, o culto do pblico, e estimula, alm disso, a conscincia corrupta das massas, que o fascismo tenta por no lugar de sua conscincia de classe.

    A arte contempornea ser tanto mais eficaz quanto mais se orientar em funo da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original. bvio, luz dessas reflexes, por que a arte dramtica de todas a que enfrenta a crise mais manifesta. Pois nada contrasta mais radicalmente com a obra de arte sujeita ao processo de reproduo tcnica, e por ele engendrada, a exemplo do cinema, que a obra teatral, caracterizada pela atuao sempre nova e originria do ator. Isso confirmado por qualquer exame srio da questo. Desde muito, os observadores especializados reconheceram que "os maiores efeitos so alcanados quando os atores representam o menos possvel". Segundo Arnheim, em 1932, "o estgio final ser atingido quando o intrprete for tratado como um acessrio cnico, escolhido por suas caractersticas... e colocado no lugar certo".5 H outra circunstncia correlata. O ator de teatro, ao aparecer no palco, entra no interior de um papel. Essa possibilidade muitas vezes negada ao ator de cinema. Sua atuao no unitria, mas decomposta em vrias seqncias individuais, cuja concretizao determinada por fatores puramente aleatrios, como o aluguel do estdio, disponibilidade dos outros atores, cenografia, etc. Assim, pode-se filmar, no estdio, um ator saltando de um andaime, como se fosse uma janela, mas a fuga subseqente ser talvez rodada semanas depois, numa tomada externa. Exemplos ainda mais paradoxais de montagem so possveis. O roteiro pode exigir, por exemplo, que um personagem se assuste, ouvindo uma batida na porta. O desempenho do intrprete pode no ter sido satisfatrio. Nesse caso, o diretor recorrer ao expediente de aproveitar a presena ocasional do ator no local da filmagem e, sem aviso prvio, mandar que disparem um tiro s suas costas. O susto do intrprete pode ser registrado nesse momento e includo na verso final. Nada

    4 Citado por Leon Pierre-Quint: Signification du cinma. In: LArt Cinmatographique II. Paris, 1927. p. 14-5. 5 Arnheim, Rudolf, Film als Kunst. Berlim, 1923. p. 176-7.

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    demonstra mais claramente que a arte abandonou a esfera da "bela aparncia", longe da qual, como se acreditou muito tempo, nenhuma arte teria condies de florescer.

    O procedimento do diretor, que para filmar o susto do personagem provoca experimentalmente um susto real no intrprete, totalmente adequado ao universo cinematogrfico. Durante a filmagem, nenhum intrprete pode reivindicar o direito de perceber o contexto total no qual se insere sua prpria ao. A exigncia de um desempenho independente de qualquer contexto vivido, atravs de situaes externas ao espetculo, comum a todos os testes, tanto os esportivos como os cinematogrficos. Esse fato foi ocasionalmente posto em evidncia por Asta Nielsen, de modo impressionante. Certa vez, houve uma pausa no estdio. Rodava-se um filme baseado em O idiota, de Dostoievski. Asta Nielsen, que representava o papel de Aglaia,conversava com um amigo. A cena seguinte, uma das mais importantes, seria o episdio em que Aglaia observa de longe o prncipe Mishkin, passeando com Nastassia Filippovna, e comea a chorar. Asta Nielsen, que durante a conversa recusara todos os elogios do seu interlocutor, viu de repente a, atriz que f azia o papel de Nastassia, tomando seu caf da manh, enquanto caminhava de um lado para outro. "Veja, assim que eu compreendo a arte de representar no cinema", disse Asta Nielsen a seu visitante, encarando-o com olhos que se tinham enchido de lgrimas, ao ver a outra atriz, exatamente como teria que fazer na cena seguinte, e sem que um msculo de sua face se tivesse alterado.

    As exigncias tcnicas impostas ao ator de cinema so diferentes das que se colocam para o ator de teatro. Os astros cinematogrficos s muito raramente so bons atores, no sentido do teatro. Ao contrrio, em sua maioria foram atores de segunda ou terceira ordem, aos quais o cinema abriu uma grande carreira. Do mesmo modo, os atores de cinema que tentaram passar da tela para o palco no foram, em geral, os melhores, e na maioria das vezes a tentativa malogrou. Esse fenmeno est ligado natureza especifica do cinema, pela qual menos importante que o intrprete represente um personagem diante do pblico que ele represente a si mesmo diante da'cmara. O ator cinematogrfico tpico s representa a si mesmo. Nisso, essa arte a anttese da pantomima. Essa circunstncia limita seu campo de ao no palco, mas o amplia extraordinariamente no cinema. Pois o astro de cinema impressiona seu pblico, sobretudo porque parece abrir a todos, a partir do seu exemplo, a possibilidade de "fazer cinema". idia de se fazer reproduzir pela cmara exerce uma enorme atrao sobre o homem moderno. Sem dvida, os adolescentes de outrora tambm sonhavam em entrar no teatro. Porm o sonho de fazer cinema tem sobre o anterior duas vantagens, decisivas. Em primeiro lugar, realizvel, porque o cinema absorve muito mais atores que o teatro, j que no filme cada intrprete representa somente a si mesmo. Em segundo lugar, mais audacioso, porque a idia de uma difuso em massa da sua prpria figura, de sua prpria voz, faz empalidecer a glria do grande artista teatral.

    Exposio perante a massa

    A metamorfose do modo de exposio pela tcnica de produo visvel tambm na poltica. A crise da democratizao pode ser interpretada como utopia crise nas condies de exposio do poltico profissional. As democracias expem o poltico de forma imediata, em pessoa, diante de certos representantes. O Parlamento seu pblico. Mas, como as novas tcnicas permitem ao orador ser ouvido e visto por um nmero ilimitado de pessoas, a exposio do poltico diante dos ap relhos passa ao primeiro plano. Com isso os parlamentos atrofiam, juntamente com o teatro. O rdio e o cinema no modificam apenas a funo do intrprete profissional, mas tambm a funo de quem se representa a si mesmo diante desses dois veculos de comunicao, como o caso do poltico. O sentido dessa transformao o mesmo no ator cinema e no poltico, qualquer que seja a diferena entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo tornar "mostrveis", sob certas condies sociais, determinadas aes de modo que todos possam controla-las e compreend-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condies naturais. Esse fenmeno determina um novo processo de seleo, uma seleo diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeo, o astro e o ditador.

    Exigncia de ser filmado

    A tcnica do cinema assemelha-se do esporte no sentido de que nos dois casos os espectadores so semi-especialistas. Basta, para nos convencermos disso, escutarmos um grupo de jovens jornaleiros, apoiados em suas bicicletas, discutindo resultados de uma competio de ciclismo. No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam com clareza que todos tm a oportunidade de aparecer na tela. Mas isto no tudo. Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o respeito de ser filmado. Esse fenmeno pode ser ilustrado pela situao histrica dos escritores em nossos dias. Durante sculo, houve uma separao rgida entre um

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    pequeno nmero de escritores e um grande nmero de leitores. No fim do sculo passado, a situao comeou a modificar-se. Com a ampliao gigantesca da imprensa, colocando disposio dos leitores passado, a situao comeou a modificar-se uma quantidade cada vez maior de rgos polticos, religiosos, cientficos, profissionais e regionais, um nmero crescente de leitores comeou a escrever, a princpio espordica No incio, essa possibilidade limitou-se publicao de sua correspondncia na seo "Cartas dos leitores". Hoje em dia, raros so os europeus inseridos no processo de trabalho que em princpio no tenham uma ocasio qualquer para publicar um episdio de sua vida profissional, uma reclamao ou uma reportagem. Com isso a diferena essencial entre autor e pblico est a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferena funcional e contingente. A cada instante, o leitor est pronto a converter-se num escritor. Num processo de trabalho cada vez mais especializado, cada indivduo se torna bem ou mal um perito em algum setor, mesmo que seja num pequeno comrcio, e como tal pode ter acesso condio de autor. O mundo do trabalho toma a palavra. Saber escrever sobre o trabalho passa a fazer parte das habilitaes necessrias para execut-lo. A competncia literria passa a fundar-se na formao politcnica, e no na educao especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos.

    Tudo isso aplicvel sem restries ao cinema, onde se realizaram numa dcada deslocamentos que duraram sculos no mundo das letras. Pois essa evoluo j se completou em grande parte na prtica do cinema, sobretudo do cinema russo. Muitos dos atores que aparecem nos filmes russos no so atores em nosso sentido, e sim pessoas que se auto-representam, principalmente no processo do trabalho. Na Europa Ocidental, a explorao capitalista do cinema impede a concretizao da aspirao legtima do homem moderno de ver-se reproduzido. De resto, ela tambm bloqueada pelo desemprego, que exclui grandes massas do processo produtivo, no qual deveria materializar-se, em primeira instncia, essa aspirao. Nessas circunstncias, a indstria cinematogrfica tem todo interesse em estimular a participao das massas atravs de concepes ilusrias e especulaes ambivalentes. Seu xito maior com as mulheres. Com esse objetivo, ela mobiliza um poderoso aparelho publicitrio, pe a seu servio a carreira e a vida amorosa das estrelas, organiza plebiscitos, realiza concursos de beleza. Tudo isso para corromper e falsificar o interesse original das massas pelo cinema, totalmente justificado, na medida em que um interesse no prprio ser e, portanto, em sua conscincia de classe. Vale para o capital cinematogrfico o que vale para o fascismo no geral: ele explora secretamente, no interesse de uma minoria de proprietrios, a inquebrantvel aspirao por novas condies sociais. J por essa razo a expropriao do capital cinematogrfico uma exigncia prioritria do proletariado.

    Toda forma de arte amadurecida est no ponto de interseco de trs linhas evolutivas. Em primeiro lugar, a tcnica atua sobre uma forma de arte determinada. Antes do advento do cinema, havia lbuns fotogrficos, cujas imagens, rapidamente viradas pelo polegar, mostravam ao espectador lutas de boxe ou partidas de tnis, e havia nas Passagens aparelhos automticos, mostrando uma seqncia de imagens que se moviam quando se acionava uma manivela. Em segundo lugar, em certos estgios do seu desenvolvimento as formas artsticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde sero obtidos sem qualquer esforo pelas novas formas de arte. Antes que se desenvolvesse o cinema, os dadastas tentavam com seus espetculos suscitar no pblico um movimento que mais tarde Chaplin conseguiria provocar com muito maior naturalidade. Em terceiro lugar, transformaes sociais muitas vezes imperceptveis acarretam mudanas na estrutura da recepo, que sero mais tarde utilizadas pelas novas formas de arte. Antes que o cinema comeasse a formar seu pblico, j o Panorama do Imperador, em Berlim, mostrava imagens, j a essa altura mveis, diante de um pblico reunido. Tambm havia um pblico nos sales de pintura, porm a estruturao interna do seu espao, ao contrrio, por exemplo, do espao teatral, no permitia organizar esse pblico. No Panorama do Imperador, em compensao, havia assentos cuja distribuio diante dos vrios estereoscpios pressupunha um grande nmero de espectadores. Uma sala vazia pode ser agradvel numa galeria de quadros, mas indesejvel no Panorama do Imperador e inconcebvel no cinema. E, no entanto, cada espectador, nesse Panorama, dispunha de sua prpria seqncia de imagens, como nos sales de pintura. Nisso, precisamente, fica visvel a dialtica desse processo: imediatamente antes que a contemplao das imagens experimentasse com o advento do cinema uma guinada decisiva, tornando-se coletiva, o principio da contemplao individual se afirma, pela ltima vez, com uma fora inexcedvel, como outrora, no santurio, a contemplao pelo sacerdote da imagem divina.

    Pintor e cinegrafista

    A realizao de um filme, principalmente de um filme sonoro, oferece um espetculo jamais visto em outras pocas. No existe, durante a filmagem, um nico ponto de observao que nos permita excluir do nosso campo visual as cmaras, os aparelhos de iluminao, os assistentes e outros objetos alheios cena. Essa excluso somente seria possvel se a pupila do observador coincidisse com a objetiva do aparelho, que

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    multas vezes quase chega a tocar o corpo do intrprete. Mais que qualquer outra, essa circunstncia torna superficial e irrelevante toda comparao entre uma cena no estdio e uma cena no palco. Pois o teatro conhece esse ponto de observao, que permite preservar o carter ilusionstico da cena. Esse ponto no existe no estdio. A natureza ilusionstica do cinema de segunda ordem e est no resultado da montagem. Em outras palavras, no estdio o aparelho impregna to profundamente o real que o que aparece como realidade "pura", sem o corpo estranho da mquina, de fato o resultado de um procedimento puramente tcnico, isto , a imagem filmada por uma cmara disposta num ngulo especial e montada com outras da mesma espcie. A realidade, aparentemente depurada de qualquer interveno tcnica, acaba se revelando artificial, e a viso da realidade imediata no mais que a viso de uma flor azul no jardim da tcnica.

    Esses dados, obtidos a partir do confronto com o teatro, se tornaro mais claros ainda a partir de um confronto com a pintura. A pergunta aqui a seguinte: qual a relao entre o cinegrafista e o pintor? A resposta pode ser facilitada por uma construo auxiliar, baseada na figura do cirurgio. O cirurgio est no plo oposto ao do mgico. O comportamento do mgico, que deposita as mos sobre um doente para cur-lo, distinto do comportamento do cirurgio, que realiza uma interveno em seu corpo. O mgico preserva a distncia natural entre ele e o paciente, ou antes, ele a diminui um pouco graas sua mo estendida, e a aumenta muito, graas sua autoridade. O contrrio ocorre com o cirurgio. Ele diminui muito sua distncia com relao ao paciente, ao penetrar em seu organismo, e a aumenta pouco, devido cautela com que sua mo se move entre os rgos. Em suma, diferentemente do mgico (do qual restam alguns traos no prtico), o cirurgio renuncia, no momento decisivo, a relacionar-se com seu paciente de homem a homem e em vez disso intervm nele, pela operao. O mgico e o cirurgio esto entre si como o pintor e o cinegrafista. O pintor observa em seu trabalho uma distncia natural entre a realidade dada e ele prprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vsceras dessa realidade. As imagens que cada um produz so, por isso, essencialmente diferentes. A imagem do pintor total, do operador composta de inmeros fragmentos, que se recompem segundo novas leis. Assim, a descrio cinematogrfica da realidade para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictrica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulao pelos aparelhos, precisamente graas ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no mago da realidade.

    Recepo dos quadros

    A reprodutibilidade tcnica da obra de arte modifica a relao da massa com a arte. Retrgrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin. O comportamento progressista se caracteriza pela ligao direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro. Esse vnculo constitui um valioso indcio social. Quanto mais se reduz a significao social de uma arte, maior fica a distncia, no pblico, entre a atitude de fruio e a atitude crtica, como se evidencia com o exemplo da pintura. Desfruta-se o que convencional, sem critic-lo; critica-se o que novo, sem desfrut-lo. No assim no cinema. O decisivo, aqui, que no cinema, mais que em qualquer outra arte, as reaes do indivduo, cuja soma constitui a reao coletiva do pblico so condicionadas, desde o incio, pelo carter coletivo dessa reao. Ao mesmo tempo em que essas reaes se manifestam, elas se controlam mutuamente. De novo, a comparao com a pintura se revela til. Os pintores queriam que seus quadros fossem vistos por uma pessoa, ou poucas. A contemplao simultnea de quadros por um grande pblico, que se iniciou no sculo XIX, um sintoma precoce da crise da pintura, que no foi determinada apenas pelo advento da fotografia, mas independentemente dela, atravs do apelo dirigido s massas pela obra de arte.

    Na realidade, a pintura no pode ser objeto de uma recepo coletiva, como foi sempre o caso da arquitetura, como antes foi o caso da epopia, e como hoje o caso do cinema. Embora esse fato em si mesmo no nos autorize a tirar uma concluso sobre o papel social da pintura, ele no deixa de representar um grave obstculo social, num momento em que a pintura, devido a certas circunstncias e de algum modo contra a sua natureza, se v confrontada com as massas, de forma imediata. Nas igrejas e conventos da Idade Mdia ou nas cortes dos sculos XVI, XVII e XVIII, a recepo coletiva dos quadros no se dava simultaneamente, mas atravs de inmeras mediaes. A situao mudou e essa mudana traduz o conflito especfico em que se envolveu a pintura, durante o sculo passado, em conseqncia de sua reprodutibilidade tcnica. Por mais que se tentasse confrontar a pintura com a massa do pblico, nas galerias e sales, esse pblico no podia de modo algum, na recepo das obras, organizar-se e controlar-se. Teria que recorrer ao escndalo para manifestar abertamente o seu julgamento. Em outros termos: a manifestao aberta do seu julgamento teria constitudo um escndalo. Assim, o mesmo pblico, que tem uma reao progressista diante de um filme burlesco, tem uma reao retrgrada diante de um filme surrealista.

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    Camundongo Mickey

    Uma das funes sociais mais importantes do cinema criar um equilbrio entre o homem e a aparelho. O cinema no realiza essa tarefa apenas pelo modo com que o homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele representa o mundo, graas a esse aparelho. Atravs dos seus grandes planos, de sua nfase sobre pormenores ocultos dos objetos que nos so familiares, e de sua investigao dos ambientes mais vulgares sob a direo genial da objetiva, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existncia, e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espao de liberdade. Nossos cafs e nossas ruas, nossos escritrios e nossos quartos alugados, nossas estaes e nossas fbricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio ento o cinema, que fez explodir esse universo carcerrio com a dinamite dos seus dcimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as runas arremessadas distncia. O espao se amplia com o grande plano, o movimento se torna mais vagaroso com a cmara lenta. evidente, pois, que a natureza que se dirige cmara no a mesma que a que se dirige ao olhar. A diferena est principalmente no fato de que o espao em que o homem age conscientemente substitudo por outro em que sua ao inconsciente. Se podemos perceber o caminhar de uma pessoa, por exemplo, ainda que em grandes traos, nada sabemos, em compensao, sobre sua atitude precisa na frao de segundo em que ela d um passo. O gesto de pegar um isqueiro ou uma colher nos aproximadamente familiar, mas nada sabemos sobre o que se passa verdadeiramente entre a mo e o metal, e muito menos sobre as alteraes provocadas nesse gesto pelos nossos vrios estados de esprito. Aqui intervm a cmara com seus inmeros recursos auxiliares, suas imerses e emerses, suas interrupes e seus isolamentos, suas extenses e suas aceleraes, suas ampliaes e suas miniaturizaes. Ela nos abre, pela primeira vez, a experincia do inconsciente tico, do mesmo modo que a psicanlise nos abre a experincia do inconsciente pulsional. De resto, existem entre os dois inconscientes as relaes mais estreitas. Pois os mltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepo sensvel normal. Muitas deformaes e estereotipas, transformaes e catstrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afetam realmente esse mundo nas psicoses, alucinaes e sonhos. Desse modo, os procedimentos da cmara correspondente aos procedimentos graas aos quais a percepo coletiva do pblico se apropria dos modos de percepo individual do psictico ou do sonhador. O cinema introduziu urna brecha na velha verdade de Herclito segundo a qual o mundo dos homens acordados comum, o dos que dormem privado. E o fez menos pela descrio do mundo onrico que pela criao de personagens do sonho coletivo, como o camondongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro. Se levarmos em conta as perigosas tenses que a tecnizao, com todas as suas conseqncias, engendrou nas massas - tenses que em estgios crticos assumem um carter psictico -, perceberemos que essa mesma tecnizao abriu a possibilidade de uma imunizao contra tais psicoses de massa atravs de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a ecloso precoce e saudvel dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episdios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um ndice impressionante dos perigos que ameaam a humanidade, resultantes das represses que a civilizao traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma exploso teraputica do inconsciente. Seu precursor foi o excntrico. Nos novos espaos de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. E aqui que se situa Chaplin, como figura histrica.

    Dadasmo

    Uma das tarefas mais importantes da arte foi sempre a de gerar uma demanda cujo atendimento integral s poderia produzir-se mais tarde. A histria de toda forma de arte conhece pocas crticas em que essa forma aspira a efeitos que s podem concretizar-se sem esforo num novo estgio tcnico, isto , -numa nova forma de arte. As extravagncias e grosserias artsticas da resultantes e'que se manifestam'sobretudo nas chamadas "pocas de decadncia" derivam, na verdade, do seu campo de foras historicamente mais rico. Ultimamente, foi o dadasmo que se alegrou com tais barbarismos. Sua impulso profunda s agora pode ser identificada: o dadasmo tentou produzir atravs da pintura (ou da literatura) os efeitos que o pblico procura hoje no cinema.

    Toda tentativa de gerar uma demanda fundamentalmente nova, visando abertura de novos caminhos, acaba ultrapassando seus prprios objetivos. Foi o que ocorreu com o dadasmo, na medida em que sacrificou os valores de mercado intrnsecos ao cinema, em benefcio de intenes mais significativas, das quais naturalmente ele no tinha conscincia, na forma aqui descrita. Os dadastas estavam menos interessados em

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    assegurar a utilizao mercantil de suas obras de arte que em torn-las imprprias para qualquer utilizao contemplativa. Tentavam atingir esse objetivo, entre outros mtodos, pela desvalorizao sistemtica do seu material. Seus poemas so "saladas de palavras", contm interpelaes obscenas e todos os destritos verbais concebveis. O mesmo se dava com seus quadros, nos quais colocavam botes e bilhetes de trnsito. Com esses meios, aniquilavam impiedosamente a aura de suas criaes, que eles estigmatizavam como reproduo, com os instrumentos da produo. Impossvel, diante de um quadro de Arp ou de um poema de August Stramm, consagrar algum tempo ao recolhimento ou avaliao, como diante de um quadro de Derain ou de um poema de Rike. Ao recolhimento, que se transformou, na fase da degenerescncia da burguesia, numa escola de comportamento anti-social, ope-se a distrao, como uma variedade do comportamento social. O comportamento social provocado pelo dadasmo foi o escndalo. Na realidade, as manifestaes dadastas asseguravam uma distrao intensa, transformando a obra de arte no centro de um escndalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigncia bsica: suscitar a indignao pblica. De espetculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agresso, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presenteia qualidade ttil, a mais indispensvel para a arte nas grandes pocas de reconstruo histrica. O dadasmo colocou de novo em circulao a frmula bsica da percepo onrica, que descreve ao mesmo tempo o lado ttil da percepo artstica: tudo o que percebido e tem carter sensvel algo que nos atinge. Com isso, favoreceu a demanda Pelo cinema, cujo valor de distrao fundamentalmente de ordem ttil, isto , baseia-se na mudana de lugares e ngulos, que golpeiam intermitentemente o espectador. O dadasmo ainda mantinha, por assim dizer, o choque fsico embalado no choque moral; o cinema o libertou desse invlucro. Em suas obras mais progressistas, especialmente nos filmes de Chaplin, ele unificou os dois eleitos de choque, num nvel mais alto.

    Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, no. Esta convida o espectador contemplao; diante dela, ele pode abandonar-se s suas associaes. Diante do filme, isso no mais possvel. Mas o espectador percebe uma imagem, ela no mais a mesma. Ela no pode ser fixada, nem como um quadro nem como algo de real. A associao de idias do espectador interrompida imediatamente, com a mudana da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma ateno aguda. O cinema a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o trfico, e como as experimenta, numa escala histrica, todo aquele que combate a ordem social vigente.

    Recepo ttil e recepo tica

    A massa a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova com relao obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O nmero substancialmente maior de participantes produziu um novo modo de participao. O fato de que esse modo tenha se apresentado inicialmente sob uma forma desacreditada no deve induzir em erro o observador. Afirma-se que as massas procuram na obra de arte distrao, enquanto o conhecedor a aborda com recolhimento. Para as massas, a obra de arte seria objeto de diverso, e para o conhecedor, objeto de devoo. Vejamos mais de perto essa crtica. A distrao e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de urna obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chins, segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distrada, pelo contrrio, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo. O exemplo mais evidente a arquitetura. Desde o incio, a arquitetura foi o prottipo de uma obra de arte cuja recepo se d coletivamente, segundo o critrio da disperso. As leis de sua recepo so extremamente instrutivas.

    Os edifcios acompanham a humanidade desde sua pr-histria. Multas obras de arte nasceram e passaram. A tragdia se origina com os gregos, extingue-se com eles, e renasce sculos depois. A epopia, cuja origem se situa na juventude dos povos, desaparece na Europa com o Fim da Renascena. O quadro uma criao da Idade Mdia, e nada garante sua durao eterna. Mas a necessidade humana de morar permanente. A arquitetura jamais deixou de existir. Sua histria mais longa que a de qualquer outra arte, e importante ter presente a sua influncia cai qualquer tentativa de compreender a relao histrica entre as massas e a obra de arte.

    Os edifcios comportam uma dupla forma de recepo: pelo uso e pela percepo. Em outras palavras: por meios tteis e ticos. No podemos compreender a especificidade dessa recepo se a imaginarmos segundo o modelo do recolhimento, atitude habitual do viajante diante de edifcios clebres. Pois no existe

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    nada na recepo ttil que corresponda ao que a contemplao representa na recepo tica. A recepo ttil se efetua menos pela ateno que pelo hbito. No que diz respeito arquitetura, o hbito determina em grande medida a prpria recepo tica. Tambm ela, de incio, se realiza mais sob a forma de uma observao casual que de uma ateno concentrada. Essa recepo, concebida segundo o modelo da arquitetura, tem em certas circunstncias um valor cannico. Pois as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem, em momentos histricos decisivos, so insolveis na perspectiva puramente tica: pela contemplao. Elas se tornam realizveis gradualmente, pela recepo ttil, atravs do hbito. Mas o distrado tambm pode habituar-se. Mais: realizar certas tarefas, quando estamos distrados, prova que realiz-Ias se tornou para ns um hbito. Atravs da distrao, como ela nos oferecida pela arte, podemos avaliar, indiretamente, at que ponto nossa percepo est apta a responder a novas tarefas. E, como os indivduos se sentem tentados a esquivar-se a tais tarefas, a arte conseguir resolver as mais difceis e importantes sempre que possa mobilizar as massas. o que ela faz, hoje em dia, no cinema. A recepo atravs da distrao, que se observa crescentemente em todos os domnios da arte e constitui o sintoma de transformaes profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenrio privilegiado. E aqui, onde a coletividade procura a distrao, no falta de modo algum a dominante ttil, que rege a reestruturao do sistema perceptivo. na arquitetura que ela est em seu elemento, de forma mais originria. Mas nada revela mais claramente as violentas tenses do nosso tempo que o fato de que essa dominante ttil prevalece no prprio universo da tica. justamente o que acontece no cinema, atravs do eleito de choque de suas seqncias de imagens. O cinema se revela assim, tambm desse ponto de vista, o objeto atualmente mais importante daquela cincia da percepo que os gregos chamavam de esttica.

    Esttica da guerra

    A crescente proletarizao dos homens contemporneos e a crescente massificao so dois lados do mesmo processo. O fascismo tenta organizar as massas proletrias recm-surgidas sem alterar as relaes de produo e propriedade que tais massas tendem a abolir. Ele v sua salvao no fato de permitir s massas a expresso de sua natureza, mas certamente no a dos seus direitos. Deve-se observar aqui, especialmente se pensarmos nas atualidades cinematogrficas, cuja significao propagandstica no pode ser superestimada, que a reproduo em massa corresponde de perto reproduo das massas. Nos grandes desfiles, nos comcios gigantescos, nos espetculos esportivos e guerreiros, todos captados pelos aparelhos de filmagem e gravao, a massa v o seu prprio rosto. Esse processo, cujo alcance intil enfatizar, est estreita mente ligado ao desenvolvimento das tcnicas de reproduo e registro. De modo geral, o aparelho apreende os movimentos de massas mais claramente que o olho humano. Multides de milhares de pessoas podem'ser captadas mais exatamente numa perspectiva a vo de pssaro. E, ainda que essa perspectiva seja to acessvel ao olhar quanto objetiva, a imagem que se oferece ao olhar no pode ser ampliada, como a que se oferece ao aparelho. Isso significa que os movimentos de massa e em primeira instncia a guerra constituem uma forma do comportamento humano especialmente adaptada ao aparelho. As massas tm o direito de exigir a mudana das relaes de propriedade; o Fascismo permite que elas se exprimam conservando, ao mesmo tempo, essas relaes. Ele desemboca, conseqentemente, na estetizao da vida poltica. A poltica se deixou impregnar, com d'Annunzio, pela decadncia, com Marinetti, pelo futurismo, e com Hitler, pela tradio de Schwabing (Bairro Bomio de Viena). Todos os esforos para estetizar a poltica convergem para um ponto. Esse ponto a guerra. A guerra, e somente a guerra, permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa, preservando as relaes de produo existentes. Eis como o fenmeno pode ser formulado do ponto de vista poltico. Do ponto de vista tcnico, sua formulao a seguinte: somente a guerra permite mobilizar em sua totalidade os meios tcnicos do presente, preservando as atuais relaes de produo. bvio que a apoteose fascista da guerra no recorre a esse argumento. Mas seria instrutivo lanar os olhos sobre a maneira com que ela formulada. Em seu manifesto sobre a guerra colonial da Etipia, diz Marinetti: "H vinte e sete anos, ns futuristas contestamos a afirmao de que a guerra antiesttica... Por isso, dizemos: ...a guerra bela, porque graas s mscaras de gs, aos megafones assustadores, aos lana-chamas e aos tanques, funda a supremacia do homem sobre a mquina subjugara. A guerra bela, porque inaugura a metalizao onfica do corpo humano. A guerra bela, porque enriquece um prado florido com as orqudeas de fogo das metralhadoras. A guerra bela, porque conjuga numa sinfonia os tiros de fuzil, os canhoneios, as pausas entre duas batalhas, os perfumes e os odores de decomposio. A guerra bela, porque cria novas arquiteturas, como a dos tanques, dos esquadres areos em formao geomtrica, das espirais de fumaa pairando sobre aldeias incendi-Ias, e muitas outras. Poetas e artistas do futurismo ... lembrai-vos desses princpios de uma esttica da guerra, para que eles iluminem vossa luta por uma nova poesia e uma nova escultural".

  • A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamin publicado em 1955.

    Esse manifesto tem o mrito da clareza. Sua maneira de colocar o problema merece ser transposta da literatura para a dialtica. Segundo ele, a esttica da guerra moderna se apresenta do seguinte modo: como a utilizao natural das foras produtivas bloqueada pelas relaes de propriedade, a intensificao dos recursos tcnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma utilizao antinatural. Essa utilizao Encontrada na guerra, que prova com suas devastaes que a sociedade no estava suficientemente madura para fazer da tcnica o seu rgo, e que a tcnica no estava suficientemente avanada para controlar as foras elementares da sociedade. Em seus traos mais cruis, a guerra imperialista determinada pela discrepncia entre os poderosos meios de produo sua utilizao insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra uma revolta da tcnica, que cobra em "material humano" o que he foi negado pela sociedade. Em vez de usinas energticas, -ia mobiliza energias humanas, sob a forma dos exrcitos. Em vez do trfego areo, ela regulamenta o trfego de fuzis, e na guerra dos gases encontrou uma: forma nova de liquidar aura. "Fiat ars, pereat mundus", diz o fascismo e espera que a guerra proporcione a satisfao artstica de uma percepo sensvel modificada pela tcnica, como faz Marinetti. a forma mais perfeita do art pour l'art. Na poca de Homero, a Humanidade oferecia-se em espetculo aos deuses olmpicos agora, ela se transforma em espetculo para si mesma. Sua auto-alienao atingiu o ponto que lhe permite viver sua prpria destruio como uni prazer esttico de primeira ordem. Eis a estetizao da poltica, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politizao da arte.

    Recepo dos quadrosCamundongo Mickey