a nuvem - bienal do mercosul

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Uma antologia para professores,mediadores e aficionados da9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre

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  • ANUVEM

  • Foi, sem dvida, um fenmeno, um caso novo e estranho do tipo acredite se quiser. No mnimo, foi uma anomalia. E, assim, dia aps dia, novas pessoas chegavam a Porto Alegre para vivenci-lo. Artistas, cientistas, meteorologistas e at mesmo sismlogos, caadores de tornados, outros especialistas do clima e aficionados. Um novo tipo de cpula social se formou s mar- gens do Guaba, local de acampamentos e deli-beraes. A razo para esse agrupamento foi a observao de um raro cmulo no cu. Era uma Nuvem estranha mente imvel. A Nuvem no se movia naturalmente com a mudana do tempo, tampouco era minimamente provocada por mquinas de vento artificiais. A Nuvem estava simplesmente ali, anco rada atmosfera. E foi crescendo lentamente, inchando com o passar das semanas.

    Teorias do surgimento da Nuvem variavam. Alguns alegavam que era, de fato, Laputa, enca-lhada por causa de alguma revoluo magntica acontecendo naquela ilha flutuante. Sismlogos e escritores tinham inventado essa teoria, obser-vando que o solo de Porto Alegre tremia, mesmo com a ausncia de falhas geol gicas, e argu-mentando que a fico j havia previsto outros acontecimentos, e at mesmo geografias. Outros consideravam a Nuvem um OVNI camuflado. To logo essa teoria comeou a circular, recepes de boas-vindas a seres extraterrestres comea-ram a ser cuidadosamente [continua na contracapa]

    ARTE | FILOSOFIA | TECNOLOGIA | EDUCAO

  • A NUvEm Uma antologia para professores, mediadores e aficionados da 9a Bienal do mercosul | Porto Alegre

  • 9 BiENAL dO mErcOSUL | POrTO ALEGrEFundao Bienal de Artes Visuais do Mercosul

    A

    NUVEM

  • 23

    O rOmance da LuaJLiO vErNE

    29

    a LuaviLm FLUSSEr

    38

    a mediO dO mundO

    ANNETTE HOrNBAcHEr

    46

    SObre a impOrtncia

    dOS deSaStreS naturaiS

    WALTEr dE mAriA

    49

    eSperandO Gaia. a cOmpOSiO de

    um mundO em cOmum pOr meiO da arte e da pOLtica

    BrUNO LATOUr

    75

    aS revOLueS cOmO mudanaS

    de cOncepO de mundO

    THOmAS KUHN

    111

    O SatLite e a Obra de arte

    na era daS teLecOmunicaeS

    EdUArdO KAc

    123

    a cincia e a tica da curiOSidade

    SUNdAr SArUKKAi

    146

    cincia e arte: nOvOS paradiGmaS

    na educaO e reSuLtadOS

    prOfiSSiOnaiSLiNdy JOUBErT

    169

    arteSanatOS recenteS

    ABrAHAm crUzviLLEGAS

    177

    pOr que mediar a arte?

    mAriA LiNd

    191

    entreviSta cOm eduardO viveirOS

    de caStrOrEviSTA SExTA-FEirA

    7

    apreSentaOPATriciA FOSSATi drUcK

    9

    SObre nuvenS e perturbaO

    atmOSfrica SOFA HErNNdEz cHONG cUy

    14

    de uma chuva de ideiaS S

    redeS de fOrmaOmNicA HOFF

    213

    bibLiOGrafia

  • 7Realizada na cidade de Porto Alegre, Brasil, a Bienal do Mercosul tem se caracterizado pela criatividade, inedi-tismo e profundidade com que aborda, a cada edio, novos temas e conceitos atravs da arte, da educao e da formao de uma economia criativa na cultura.

    Alm disso, por meio de um eficaz sistema de gesto e de um intenso programa de relacionamentos, contando ainda com o apoio dos governos federal, estadual e municipal, alm de empresrios e da comunidade, a Bienal do Mercosul tem possibilitado o pleno atendimento aos desafios curatoriais; uma forte integrao entre os diversos agentes culturais e a sociedade; o conhecimento e a aplicao das melhores prticas de gesto e de produo cultural; e um ambiente profcuo s artes e ao reconhecimento de seu relevante papel na formao da cidadania.

    com muita satisfao que estamos lanando, com esta publicao, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre e seu projeto pedaggico, que hoje uma relevante

    APRESENTAOPATriciA FOSSATi drUcK

  • 8 9

    O que afeio? Um amor medido, uma forma de carinho, uma emoo equilibrada? Se isso, ou parece com algo do tipo, por que o tempo nos afeta? Ningum diz que o tempo nos ama, se importa conosco ou sente qualquer coisa por ns. Assim mesmo, uma condio climtica sentida. Seus efeitos afetam. O curioso que falar sobre o tempo tipicamente considerado uma conversa casual, uma forma essencial de comunicao ftica, a chamada conversa fiada, a menos que, claro, o assunto vire o aquecimento global. Essa ltima abordagem envolve certa autoridade sobre o tempo ao menos uma relao mais evidente entre cultura e natureza, uma reciprocidade afetiva entre o comportamento social e a conduta do tempo.

    No h dvidas de que o tempo mexe com as pessoas, seja minimamente, dramaticamente ou intensamente. A viso de um raio de sol pode provocar um piscar de olhos, despertar um sorriso nos lbios. Um cu nublado pode trazer melancolia. Um trovo pode fazer algum estremecer. O raio, causar aflio. E, claramente, condies

    SObRE NuvENS E PERTuRbAO ATmOSfRicA

    SOFA HErNNdEz cHONG cUy

    referncia na educao da arte e na formao de pblico no Brasil. Nas oito edies realizadas, atendeu mais de 1 milho de estudantes. Nesta edio, ocupa especial espao.

    Em portugus, o ttulo da 9a Bienal Se o clima for favorvel. Tenho certeza de que o tempo ser favorvel, sim, e teremos uma mostra realmente memorvel dando continuidade ao excelente trabalho desenvolvido pela Fundao Bienal de Artes Visuais do Mercosul em outras edies , que acolher todos os porto-alegrenses e todos os que aqui estejam abaixo da Nuvem e que enviar, como um vendaval, as boas-novas da arte latino--americana aos quatro cantos do mundo.

  • 10 11

    O ttulo do livro refere-se a duas espinhas dorsais intrnsecas, ainda que intangveis, desta Bienal. Em primeiro lugar nuvem (Cloud, em ingls) o nome casual dado ao servidor digital no qual a pesquisa curato-rial arquivada, catalogada e acessada por qualquer membro da equipe, a qualquer hora, onde quer que ele esteja. Ele , podemos dizer, um lugar para informao compartilhada, um tesouro em comum. Em segundo lugar, o ttulo A nuvem tambm se refere chuva como condensao de informao de forma conhecvel, trans-formada em ideias por meio dos prazeres de brainstorm- ing 1 uma atividade praticada recorrentemente, mais que um mtodo rigoroso, pela equipe da Bienal. Surpreenden- temente, nos primeiros estgios da organizao da Bienal que inaugura suas exposies meses depois do lana-mento de A nuvem , muitas das sesses de brainstorm centraram-se no lugar da informao na apresentao pblica da arte. Se de incio essa preocupao pareceu demasiadamente introspectiva, olhando agora, em retro- cesso, ela faz todo sentido; afinal, se a expresso e a comuni- cao so princpios do fazer artstico, compartilhar e levar a pblico so as bases da produo de exposies.

    A nuvem apenas uma das instncias pelas quais esta Bienal convida o pblico a refletir sobre os meca-nismos de apresentao e os ambientes espaciais nos quais descobertas e insights so criados, comunicados e com-partilhados publicamente. Este livro e as publicaes, exposies e iniciativas vindouras que, juntas, compem a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre, do ateno a culturas de trabalho existentes e imaginadas. Isso envolve observar e pensar sobre aspectos de recluso e abertura, assim como sobre o privado ou o pblico, em processos que envolvem experimentao, seja no campo da arte ou

    extremas de tempo tambm provocam diferentes tipos de efeitos. Furaces desalojam comunidades. Chuvas torrenciais causam enchentes, lanando sonhos para longe. Secas limitam colheitas. Terremotos destroem reas construdas. algo pessoal fsico e psicolgico. Tendemos a chamar o segundo tipo de efeito de desastre; o tempo um fenmeno natural. social eco lgico e econmico.

    O tempo tambm funciona como linguagem, como ideias expressas em imagens ou articuladas em figuras de linguagem que expressam atmosferas emocionais e climas polticos. So esses tipos de perturbaes atmosf-ricas que vm com suas prprias foras interiores e exteriores, seja como posies singulares ou como movimentos sociais que influenciam, impul sionam a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. O ttulo desta edio da Bienal , em portugus, Se o clima for favorvel; em espanhol, Si el tiempo lo permite; em ingls, Weather Permitting. Esses ttulos, usados coloquialmente como locues e no como nomes prprios, so um convite para refletir sobre quando e como, por quem e por que certos trabalhos de arte e ideias ganham ou perdem visibilidade em um dado momento no tempo.

    O ttulo deste livro, A nuvem, tambm traz uma histria em seu nome, mas primeiro algumas palavras para voc, o seu leitor. Este livro especialmente criado para educadores, mediadores e todos os futuros aficiona-dos da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. uma antologia de textos (narrativas e ensaios, tratados filosfi-cos e declaraes de artistas) que influenciaram a con-ceituao da Bienal e, mais importante, que podem inspirar modos de vivenciar e articular a arte contempo-rnea e a cultura em geral.

  • 12 13

    9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. Para fazer este incio possvel, para reunir este material e torn-lo pblico para voc, leitor, agradeo equipe curatorial da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre Raimundas Malaauskas, Mnica Hoff, Bernardo de Souza, Sarah Demeuse, Daniela Prez, Jlia Rebouas e Dominic Willsdon. Agradeo, tambm, aos artistas participantes que inspiraram nossas leituras ou sugeriram autores e textos aqui includos. Agradeo, especialmente, a Mnica Hoff, por assumir a liderana na tarefa de reunir esta antologia, e a Luiza Proena e Ricardo Romanoff, pela ateno e cuidado editorial. Finalmente, este livro e, em ltima anlise, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre como um todo, no seriam possveis sem o incansvel apoio de Patricia Fossati Druck, presidente da Fundao Bienal de Artes Visuais do Mercosul, e o trabalho dedi-cado dos membros de seu conselho e equipe. Juntos, eles formam um time dos sonhos que me deixa, e deixaria voc, ou qualquer um, flutuando agradavelmente como uma nuvem.

    NOTA

    1 A expresso, utilizada para referir-se a processos que exploram a criati- vidade por meio da elaborao e da troca de ideias em grupo, significa, em portugus, tempestade cerebral ou chuva de ideias. [N.T.]

    em outras reas. Em cada uma de suas interaes, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre aborda a arte e as ideias como portais, como ferramentas e disparadores para vivenciar nossa contemporaneidade de forma mais consciente e sensual.

    A promessa da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre identificar, propor e modificar sistemas de convices em transformao e o modo como avaliamos a experi-mentao e a inovao. Ela pretende levantar questes ontolgicas e tecnolgicas por meio da prtica artstica, da fabricao de objetos e de ns de experincia. Esta edio da Bienal pode ser considerada um ambiente para encontrar recursos naturais e cultura material sob uma nova luz, e para especular sobre as bases que marca-ram as distines entre descobertas e invenes, assim como os valores da sustentabilidade e da entropia.

    Para que isso ocorra, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre junta a arte de artistas visuais s vozes de outros que se dedicam aos pontos de encontro da cultura e da natureza. Ela rene trabalhos considerando diferentes tipos de perturbaes atmosfricas que impelem desloca-mentos de viagem e deslocamentos sociais, avanos tecnolgicos e o desenvolvimento mundial, expanses verticais no espao e exploraes transversais pelo tempo. Esta Bienal envolve olhar para os sentimentos que esses movimentos provocam, olhar para os afetos que se manifestam. Ela requer habitar, garimpar, investigar e explorar o que est abaixo e acima da esfera social o que palpvel e tnue, o que est no fundo do mar e na atmosfera, o que est subterrneo e no espao sideral.

    A nuvem no apenas um ponto de incio para considerar e tratar dessas questes. A publicao deste livro tambm marca o incio das atividades pblicas da

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    conta o que pode vir depois. Chuva de vero, intensa e torrencial, lava a alma e refresca o dia, mas no manda o calor embora. Garoa fina no inverno amplifica a sensao de frio e avisa que a noite ser de forte geada. Chuvas fortes favorecem a colheita, mas em demasia acabam com a lavoura. O que poderia anunciar, ento, uma chuva de ideias? Seria o prenncio de uma grande tormenta, seria a garantia de uma boa safra?

    Com o fim primeiro de servir como material de investigao, leitura e deleite para educadores, mediado-res, artistas e pblico curioso e aficionado da arte, a presente antologia constitui uma intensa chuva de ideias. Consiste numa viagem cientfico-literria da lua cosmologia indgena; da natureza s telecomunicaes; das revolues da cincia s ticas da curiosidade; dos satlites crise ecolgica; dos desastres naturais arte que anuncia o campo de pensamento com o qual se relaciona a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. Entendida como uma rede, materializa-se como uma publicao de carter transversal com muitos incios, inmeros meios e infindveis fins.

    Para isso, toma como ponto de partida o espao sideral.O texto que inaugura esta antologia, O romance da

    Lua, foi escrito em 1865 por Jlio Verne. Nele, o grande escritor francs, um dos pais da fico cientfica, desnuda a lua minuciosamente como se fora um objeto de desejo. Com uma linguagem ora cientfica, ora potica que toma o leitor pela riqueza de detalhes, Verne anuncia um projeto de conquista do territrio lunar que, na prtica, vingaria exatamente um sculo depois. Na sequncia, e ainda em tom literrio, partimos do espao sideral rumo ao campo da cincia a da linguagem. O segundo texto, publicado no Brasil em 1979 por Vilm Flusser, versa

    Toda antologia , por excelncia, uma chuva de ideias. A nuvem no diferente. Concebida com um fim imediato e outro a longo prazo, ela no versa sobre um nico tema, no corresponde a uma nica voz, nem impe uma leitura linear ao seu leitor. Como uma nuvem que se forma no cu para preparar a chuva que regar a terra, a presente antologia um conjunto de ideias-partculas condensadas a partir de um dado fenmeno, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre.

    Assim como as ideias, a formao das nuvens anuncia uma mudana de clima e as mudanas, como sabemos, podem ser sutis como uma garoa de outono ou arreba-tadoras como uma chuva de granizo no vero.

    Andorinhas a mil braas, cu azul sem jaa; andori-nha rente ao cho, muita chuva com trovo, Maro ventoso, abril chuvoso, Nvoa no lodo, chuva de novo, diz o dito popular.

    Da mesma forma que a nuvem, a chuva nunca representa apenas um fim em si mesma, mas algo que

    DE umA chuvA DE iDEiAS S

    REDES DE fORmAOmNicA HOFF

  • 16 17

    mais que o cidado, que o agricultor ou que o ecologista ou que uma minhoca, no nos esqueamos dela, afirma Latour.

    E o que hoje uma minhoca, amanh pode ser um pato, provavelmente argumentaria Thomas Kuhn ao ler o comentrio de Latour. Em As revolues como mudan-as de concepo do mundo, sexto texto a compor esta imensa nuvem, o fsico e filsofo da cincia norte-ameri-cano nos regala com uma preciosa reflexo acerca das revolues cientficas e de como elas no mudam nossa percepo sobre o mundo, mas o mundo em si. Ao passo que se o mundo j no mais o mesmo, tampouco ns o somos. E se ns j no somos, o mundo tampouco o . Ao usar como exemplo uns culos com lentes invertidas, Kuhn discorre sobre a construo da percepo e atesta que as revolues cientficas so tambm revolues dos sentidos. Alm de necessrio, o pensamento de Kuhn um importante portal para compreendermos as relaes de similitude entre arte e cincia.

    A paixo dos artistas pela cincia, como sabemos, no recente. Tem como marco inicial o sculo Xiv, com os experimentos renascentistas, e apogeu conceitual, ps--Revoluo Industrial, na primeira metade do sculo XX, com os futuristas, amantes das mquinas, da aventura, da velocidade e das alturas. Desde ento, a relao entre arte e cincia tem se estreitado a olhos nus. Em O satlite e a obra de arte na era das telecomunicaes, publicado em 1986, Eduardo Kac reflete sobre como artistas passaram a se relacionar e se valer dos sistemas de telecomunicaes via satlite em suas prticas. A construo de um foguete, a manipulao de cdigos de DNA e o envio de objetos, mensagens e imagens para o espao tornaram-se aes presentes no processo de criao de muitos artistas.

    sobre a lua como construo cultural. A partir de um bem-humorado ensaio e com uma inteligncia multicul-tural, o autor traa uma rede de relaes para discutir a existncia da lua como elemento da natureza e como produto da cultura.

    Em A medio do mundo, Annette Hornbacher discute as dimenses culturais da chamada crise ecolgica a partir do questionamento da concepo moderna de cincia e consequente processo de industria-lizao e do conceito ocidental de natureza, colocando em xeque o lugar da prpria crise. Como um atravessa-mento potico ao ensaio de Hornbacher, mas no menos poltico se o analisarmos a fundo, no texto seguinte, o artista Walter De Maria nos presenteia com uma breve reflexo sobre a beleza e a importncia dos desastres naturais. Devemos ser gratos por eles, nos diz De Maria.

    Bruno Latour, por sua vez, em Esperando Gaia, quinto texto desta antologia, nos arremessa, com certo sarcasmo e sabedoria, no olho do furaco das discusses sobre a crise ecolgica, tomando como ponto de partida o que ele chama de uma srie de desconexes acerca da relao moral que estabelecemos com a natureza (ou com a noo que temos dela). Como uma espcie de elogio ao desaparecimento do sublime (aquilo que nos faz infi-nitamente menor que a Natureza e que nos possibilita a melancolia), Latour ironiza a culpa (e a falta dela tam-bm) e sugere que estejamos atentos medida das (e a como se medem as) coisas. Mais que compreender a escala, preciso entender como ela produzida. Para ele, a natureza uma montagem de entidades contra ditrias que precisam ser compostas conjuntamente. Ningum encara a Terra globalmente e ningum enxerga um sistema ecolgico a partir do Nada, o cientista no

  • 18 19

    conceito ocidental tomando em conta a produo material e imaterial de uma comunidade, um grupo, uma etnia? Em Artesanatos recentes, o artista e educador mexicano Abraham Cruzvillegas, descendente de purpechas, parte de binmios tradicionais como o individual e o massivo, o manual e o industrial, e arte e artesanato para refletir sobre a sobrevivncia do artesanato no contexto capitalista contemporneo. Para construir sua reflexo, Cruzvillegas questiona sua funcionalidade, sua cientificidade (natural ou social) e sua pureza cultural. Ao longo do texto, ele parece nos per-guntar a todo momento: como mediar essa relao?

    Maria Lind, crtica e curadora sueca, muda o foco e o sujeito da questo e nos pergunta: Por que mediar a arte? Em seu ensaio, Lind ressalta que deve haver maior empenho e responsabilidade por parte de artistas e curadores em pensar sobre como comunicar o seu objeto, sua mensagem, seu pensamento em detrimento de um possvel excesso de didatismo proveniente da educao (da arte) no contexto das instituies culturais atuais. Lind nos diz: Estamos diante de um paradoxo evidente: um excesso de didatismo e, simultaneamente, uma necessidade renovada de mediao. Ento, me pergunto: como mediar diferentes perspectivas?

    Por fim, fechando a rede de vozes que orientam esta antologia e, portanto, o pensamento da 9a Bienal, temos a mediao em si. Ou a desmediao. Na entrevista realizada com o antroplogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro sobre sua trajetria como pesquisador das sociedades indgenas situadas no norte do Brasil, ao mesmo tempo descemos s profundezas do que nos constitui como seres vivos humanos e no humanos e subimos aos cus para reposicionar mais uma vez nosso

    Para Sundar Sarukkai, o ponto de conexo entre esses dois campos de conhecimento historicamente separados a curiosidade. Para o fsico e filsofo indiano, a curiosi-dade um catalisador do conhecimento. No texto A cincia e a tica da curiosidade, Sarukkai nos diz: por estarmos insatisfeitos com as respostas que obtemos, bolamos novas maneiras de pensar. Por sermos curiosos, descobrimos mtodos. Descobrimos a cincia. Estudos recentes tm comprovado que crianas e cientistas tm uma maneira de pensar e aprender muito semelhante. Acredita-se que as crianas, mais que os adultos, sejam capazes de inventar teorias incomuns para resolver problemas. Ao pensar de forma hipottica, os pequenos so to astutos e inovadores em seus argumentos e questes quanto os cientistas. Mas, por que, quando se trata da arte, a maior parte das experincias educacionais ainda orbitam galxias localizadas a bilhes de quilme-tros da cincia?

    Lindy Joubert atribui essa distncia fsica ao pensa-mento contemporneo que busca separar arte e cincia em duas esferas distintas de aprendizado. Em Cincia e arte: novos paradigmas na educao e resultados pro-fissionais, a artista e educadora australiana prope uma reviso e um realocamento dos modelos educacionais atuais luz das conexes entre arte e cincia. Para tanto, constri seu ensaio a partir do relato de experincias que tm nessa relao sua condio de existncia. Assim como Sarukkai, Joubert acredita na curiosidade como fora motriz por trs da inteligncia humana, logo, como mola propulsora das experincias cientficas e artsticas.

    E se, em vez da relao com a arte, estivssemos falando da relao entre cincia e artesanato? Faria alguma diferena? Como estabelecer o que cincia

  • 20 21

    A nuvem a nossa maneira discursiva e carinhosa de dar incio a tudo isso!

    De uma chuva de ideias a uma efetiva rede de formao de conhecimento e afetos isso tudo o que podemos desejar. Se o clima for favorvel, claro.

    entendimento de natureza e cultura. E se o que Viveiros de Castro (nos) faz parece ser uma mediao a priori, por outro lado, ela uma desmediao completa. Diz-nos o pesquisador que, diferentemente da lgica binria de construo do pensamento qual estamos acostumados na cultura ocidental e, portanto, afeita a constantes mediaes, nas sociedades indgenas, sobretudo do Alto Xingu, h uma espcie de interao entre as dimenses fsica e moral, natural e cultural, orgnica e sociolgica. Tudo faz parte de um s corpo, e esse corpo tanto individual como coletivo. Ou seja, corpo-corporal e corpo-social, ao mesmo tempo. Viveiros de Castro se vale da sua teoria do perspectivismo amerndio para, nessa entrevista, colocar-nos constantemente no lugar do outro vendo o outro animal, humano ou coisa sempre como sujeito. Logo, como algo que tem uma inteno, como algo que se relaciona.

    Possibilitar encontros, ativar relaes, atuar como corpo-corporal e corpo-social o que prope o projeto pedaggico da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre com o programa Redes de Formao. Como uma iniciativa de formao integrada para educadores, mediadores e pblico curioso e aficionado da arte, a educao na 9a Bienal se amplia no espao e no tempo a fim de colocar em dilogo, numa nica rede, agentes comumente situa-dos em redes isoladas. Assim, se o clima for favorvel, de maio a novembro de 2013, atravs de dilogos abertos, laboratrios, oficinas, intercmbios universi trios, residncias de educadores e mediadores, e viagens de campo, o projeto pedaggico da 9a Bienal estar fun-dindo Porto Alegre com Manaus, Osrio com Montevidu, a Vila Mrio Quintana com Roterd, para citar alguns, numa grande rede de conhecimento e afetos.

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    Temp 1

    0C Umidade 6

    6% Vento 1

    0 K

    m/h

    2013-05-16 19:27

    (1865)

    O ROmANcE DA LuAJLiO vErNE

    NA POcA Em que o Universo ainda era um caos, um observador dotado de uma viso infinitamente pene-trante e colocado no centro desconhecido no qual gravita o mundo teria visto mirades de tomos enchendo o espao. Mas, aos poucos, foram ocorrendo mudanas; os tomos, at ento errantes, obedeceram a uma lei de atrao e se combinaram quimicamente, de acordo com suas afinidades, transformando-se em molculas e formando aglomerados nebulosos espalha-dos pelas profundezas do cu.

    Esses aglomerados iniciaram um movimento de rotao em torno do seu ponto central. Esse centro, pelo movimento de rotao, se condensou progressivamente. medida que seu volume diminua pela condensao, o movimento de rotao se acelerava, resultando numa estrela principal, centro do aglomerado volumoso. As outras molculas do aglomerado se comportaram como a estrela central e tambm se condensaram pelo movimento de rotao acelerado progressivamente,

  • 24 25JLiO verne

    sofridas pelos corpos celestes, desde os primeiros dias do mundo.

    Mesmo sendo uma estrela de quarta grandeza, o Sol, centro do nosso Universo, enorme. Em volta dele gravitam os planetas, sados das entranhas do grande astro. E, entre esses servos que giram em torno do rei em rbitas elpticas, alguns possuem satlites. A Terra tem apenas um satlite, a Lua. E esse satlite que o gnio audacioso dos americanos pretendia conquistar.

    O astro noturno, pela sua rotatividade prxima, sempre dividiu com o Sol a ateno dos habitantes da Terra. No entanto, o esplendor da luz do Sol nos obriga a baixar os olhos.

    A loura Febe, mais humana, se deixa contemplar na sua graciosidade modesta; ela doce ao olhar, pouco ambiciosa.

    Os primeiros povos dedicaram um culto particular a essa casta deusa. Os egpcios chamavam-na de sis; os fencios, de Astarteia; e os gregos a adoraram com o nome de Febe, explicando seus eclipses pelas visitas misterio-sas de Diana ao belo Endimio.

    Mesmo que os antigos tenham compreendido as qualidades morais da Lua do ponto de vista mitolgico, eles nada conheciam da selenografia, que a parte da Astronomia que estuda a Lua, especialmente em relao aos seus aspectos fsicos.

    Vrios astrnomos de pocas distintas descobri- ram certas particularidades, confirmadas hoje em dia pela cincia.

    Entre eles podemos citar Tales de Mileto, que viveu muitos sculos antes de Cristo e foi o primeiro a afirmar que a Lua era iluminada pelo Sol. Muito depois, Coprnico, no sculo Xv, e Tycho Brahe 1, no sculo Xvii, explicaram

    O rOmance da Lua

    gravitando em torno da estrela central, na forma de inmeras estrelas. Estava formada a nebulosa.

    A uma dessas nebulosas, com milhes de estrelas, o homem deu o nome de Via Lctea.

    Se o observador examinasse uma das mais modestas e menos brilhantes dessas estrelas uma estrela de quarta grandeza que orgulhosamente chamamos de Sol , teria visto todos os fenmenos da formao do Universo se repetirem.

    De fato, o Sol, em estado gasoso e composto de molculas mveis, tambm iniciou um movimento de rotao. Esse movimento, fiel s leis da Mecnica, foi se acelerando com a diminuio do volume e chegou um momento em que a fora centrfuga prevaleceu sobre a fora centrpeta, que tende a empurrar as molcu-las para o centro.

    Ento, outro fenmeno teria sido visto pelo observa-dor. As molculas situadas no plano do equador escapa-ram, como a pedra de um estilingue cuja correia arre-bentasse subitamente, e formaram vrios anis concntricos em torno do Sol, como os de Saturno. Por sua vez, esses anis de matria csmica, tomados por um movimento de rotao em torno da massa central, se teriam quebrado e formado os planetas.

    Se o observador concentrasse a ateno nos plane-tas, veria que eles se comportaram exatamente como o Sol, tambm formando anis csmicos, dando origem a astros de ordem inferior que chamamos de satlites.

    Portanto, do tomo para a molcula, da molcula para o aglomerado nebuloso, do aglomerado nebuloso para a nebulosa, da nebulosa para a estrela principal, da estrela principal para o Sol, do Sol para o planeta e do planeta para o satlite, temos a srie de transformaes

  • 26 27JLiO verne

    NOTAS

    1 Astrnomo dinamarqus (15461601). (N. T. da edio original.)

    2 O mapa da Lua mais exato e mais detalhado do perodo pr-fotogrfico foi feito por Wilhelm Beer (17971850), banqueiro e astrnomo amador, e Johann Heinrich von mdler (17941874), astrnomo profissional e diretor do Observatrio de dorpat. (N. T. da edio original.)

    O rOmance da Lua

    totalmente o Sistema Solar e o papel desempenhado pela Lua no conjunto dos corpos celestes.

    Nessa poca, os movimentos do nosso satlite j haviam sido quase todos explicados, mas pouco se sabia sobre sua constituio fsica. Galileu explicou os fenme-nos de luz produzidos em certas fases, pela existncia de montanhas. Houve grande discusso entre vrios astr-nomos em relao altura dessas montanhas. Mas foram os pacientes estudos de Beer e Mdler 2 que resolveram a questo. Graas a eles, a altura das montanhas da Lua perfeitamente conhecida hoje em dia.

    Tambm se chegou concluso de que no havia atmosfera na Lua. Portanto, os selenitas, para viverem nessas condies, deveriam ser bem diferentes dos habitantes da Terra.

    Enfim, graas a novos mtodos e a instrumentos aperfeioados, os cientistas levaram bem mais longe as prodigiosas observaes sobre a superfcie lunar. No entanto, ainda havia muitos pontos obscuros que os americanos esperavam poder esclarecer algum dia.

    Quanto intensidade da luz da Lua, no havia mais nada a aprender sobre esse aspecto. Sabia-se que trezentas mil vezes mais fraca do que a do Sol e que seu calor no tem influncia nos termmetros.

    O Clube do Canho tinha a inteno de completar esses conhecimentos sobre a Lua e acrescentar outros, em todos os seus aspectos: cosmogrfico, geolgico, poltico e moral.

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    Temp 1

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    PERTENciA, AT REcENTEmENTE, classe das coisas visveis, mas inacessveis ao ouvido, cheiro, tato ou gosto. Agora, alguns homens tocaram nela. Isto ter tornado a Lua menos duvidosa? Descartes afirma que devemos duvidar dos nossos sentidos porque, entre outras razes, eles se contradizem mutuamente. At agora, a Lua era percebida por um nico sentido. No houve contradio de sentidos, portanto. Agora, tal contradio se tornou possvel. Podemos, doravante, duvidar da Lua, mas de maneira diferente. Por exemplo: como sabemos que alguns tocaram nela? Por termos visto o evento na Tv e por termos lido nos jornais a respeito. Imagens na Tv so duvidosas, podem ser truques. Se vm acompanhadas da inscrio live from the Moon, passam a ser, no apenas duvidosas, mas suspeitas. Quem diz est chovendo, e isto a verdade, diz menos que aquele que diz apenas est chovendo. E quanto aos jornais, a sua credibilidade no absoluta. De maneira que podemos duvidar que a Lua foi tocada. Mas tal dvida ser ainda menos razovel

    (1979)

    A LuAviLm FLUSSEr

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    formigas? No ser antropomorfismo dizer que a Lua vista por formigas? Se eu construir uma lente estrutural-mente idntica ao olho da formiga, verei a Lua? Ou haver senso comum apenas aos olhos humanos, o qual manda aos homens verem a Lua? Haver doena de vista ocidental que me manda ver fases da Lua, e outra doena mais geralmente humana que manda ver a Lua?

    Quando olho a Lua em noites claras no vejo o satlite da NASA, embora saiba que o que vejo satlite da NASA. Continuo vendo satlite natural da Terra, a minha viso no integra o meu conhecimento. Tal falta de integrao do conhecimento pela viso caracteriza determinadas situaes, as chamadas crises. provvel que os gregos do helenismo sabiam que a Lua bola, mas continuavam a ver uma deusa nela. provvel que os melansios saibam ser a Lua satlite da NASA, mas continuam vendo smbolo de fertilidade nela. Em situao de crise a cosmoviso no consegue integrar o conhecimento.

    Para ver a Lua, preciso olh-la. No preciso escutar o vento para ouvi-lo. Posso, mas no preciso. Para ver, preciso gesticular com os olhos e com a cabea. Levar os olhos para o cu. Preciso fazer o que os cachorros fazem para ouvir ou cheirar: gesticulam com o nariz e os ouvidos. Seu mundo deve ser diferente do nosso. Para ns, sons e cheiros so dados, mas luzes so provocadas pela ateno (gesticulao) que lhes damos. Para cachor-ros, sons e cheiros so igualmente provocados. Vivemos em dois mundos: um dado e outro provocado pela aten-o que lhe damos. Nisto a vista se parece com o tato: dirige-se para o fenmeno a ser provocado. A explicao objetiva que a vista recepo de emisses de ondas eletromagnticas (como o ouvido recepo de ondas

    a Lua

    que a outra: a Lua ser fico ou realidade? Menos razovel, porque menos razovel duvidar da cultura que da natureza. Duvidar da natureza razovel, se for feito metodicamente, porque resulta nas cincias da natureza. Mas duvidar da cultura (da Tv e dos jornais) aparente-mente em nada resulta. J que a Lua passou (conforme Tv e jornais) do campo da natureza para o da cultura, melhor no mais duvidar dela. Passou da competncia dos astrnomos, poetas e mgicos para a dos polticos, advogados e tecnocratas. E quem pode duvidar destes? A Lua doravante propriedade imobiliria (embora mvel) da NASA. Pode haver maior prova de realidade? A Lua real estate = estado real, e todas as dvidas a seu respeito cessaram. Mas, ainda assim, h certos problemas. Relativos, no tanto prpria Lua, mas ao nosso estar-no-mundo. Problemas confusos. Falarei em alguns dentre eles.

    Quando olho a Lua em noites claras, no vejo um satlite da NASA. Vejo um C, ou um D ou um crculo luminoso. Vejo fases da Lua. A Lua muda de forma. Aprendi que tal mudana aparente, que a Lua mesma no muda de forma. Por que aparente? A sombra da Terra no ser to real quanto o a Lua? O senso comum manda que eu veja mudanas no da Lua em si, mas da minha percepo da Lua. Tal senso comum no se estende a povos primitivos. Tais povos veem a Lua nascendo, morrendo e renascendo. Vejo a lua, no apenas com os olhos, mas tambm com o senso comum minha cultura. Tal senso comum me manda ver fases da Lua, mas no (ainda), propriedade da NASA.

    Ser a viso o sentido mais comum que o senso comum, isto , comum a todos os que tm olhos? Todos os que tm olhos podem ver a Lua? Mquinas fotogrficas e

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    Meu olhar provou que a Lua no imaginao minha, mas por enquanto nada provou quanto ao seu ser natureza ou cultura. Sim, provou-o. A lua cabeuda. Impe suas regras de jogo. S vejo onde ela est por uma necessidade dela prpria, necessidade esta chamada leis da natureza. As coisas da cultura no so assim cabeudas. Esto onde devem estar para servir-me. Se quero ver meus sapatos, olho na direo em que devem estar, vejo-os e utilizo-me deles. Isto a essncia da cultura. Se quero ver a Lua enquanto fenmeno da natureza, embora saiba que atualmente a Lua no mais est onde est por necessidade, mas agora est onde deve estar para servir de plataforma para viagens rumo a Vnus. Ainda no sou capaz de ver a utilidade da Lua. Vejo-a cabeudamente intil. Vejo-a como se fosse ainda satlite natural da Terra.

    Mas meu olhar no deu resposta satisfatria minha pergunta. No perguntei porque vejo a Lua como coisa natural a despeito da NASA, mas porque a vejo assim a despeito do fato de ser ela, desde sempre, produto do aspecto urnico da minha cultura. No perguntei, portanto, pela minha incapacidade de integrar conheci-mento novo, mas pela minha incapacidade de rememo-rar origens. Devo ajudar meu olhar para provoc-lo a dar resposta a uma pergunta assim difcil. Por que no vejo que a Lua foi originalmente provocada por minha cul-tura, mas a vejo como se fosse dada? A resposta comea a articular-se. Porque sou ambivalente quanto minha cultura. De um lado, admito que minha cultura com-posta de coisas que esperam, fielmente, serem por mim utilizadas. De outro lado, devo admitir que no posso passar sem tais coisas. Por isso, a Lua o exato contrrio dos meus sapatos. A Lua necessria, mas dispensvel.

    a Lua

    sonoras) encobre o fato que olhos so mais parecidos com braos que com ouvidos. Buscam, no ficam parados. Isto importante em casos como o a Lua, a qual visvel, mas no audvel. Foi buscada, no foi negativa-mente percebida.

    Culturas que no levantam o seu olhar para o cu, mas concentram sua ateno no solo (as chamadas telricas) no buscam, no produzem a Lua. Culturas que passam o tempo olhando o cu (as chamadas urni-cas), pr-duzem a Lua que passa a ocupar papel importante em tais culturas. A Lua , neste sentido, produto de determinadas culturas. Como ento posso afirmar que a NASA transformou a Lua de fenmeno natural em fenmeno cultural (em instrumento de astronutica) ao t-la tocado? Se a Lua sempre tem sido produto da cultura urnica que a nossa? Para res-ponder a tal pergunta, devo olhar a Lua mais de perto.

    Que significa olhar de perto? Pode significar aproximar-se da Lua subindo montanha ou em foguete. Pode significar aproxim-la com telescpio e truques semelhantes. Mas no preciso significar isto. Como a Lua no um dado, mas um buscado pela ateno dada a ela olh-la de perto pode significar olh-la com maior ateno para v-la mais claramente. Pois se, em noites claras, eu for olh-la com tal maior ateno, verei porque a vejo enquanto fenmeno da natureza. No posso v-la quando e onde quero. Embora deva querer v-la para v-la, tal querer meu condicionado pela prpria Lua. A Lua provocada pelo meu querer v-la, mas tal querer se d dentro das regras de jogo da prpria Lua. A Lua impe sobre mim suas prprias regras de jogo. Por isso, difcil duvidar dela e manipul-la. A Lua no minha imaginao, uma coisa da natureza.

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    retorno natureza. Bastaria cortar as verbas da NASA e a Lua voltaria a ser assunto para poetas, e escaparia competncia dos tecnocratas. Porque o romantismo (a partir de Rousseau at inclusive os hippies) isto: cortar as verbas da NASA. Mas ter sido isso um retorno? No, ter sido um avano. Antes da NASA, a Lua era produto da cultura urnica ocidental que tinha por meta projetada a sua derradeira manipulao pela NASA. Os nossos antepassados neolticos olharam para a Lua (e assim a pr-duziram) a fim de transform-la, em ltima instn-cia, em plataforma para Vnus. E isto que estamos vendo quando para ela olhamos, ns, os seus descenden-tes: smbolo de fertilidade, deusa, satlite natural, so vrias fases do caminho rumo plataforma. Vemos a Lua sempre como potencial plataforma, embora no o saiba-mos conscientemente. A NASA est em germe dentro do primeiro olhar dirigido rumo Lua.

    Pois cortar as verbas da NASA seria um passo alm da prpria NASA. Transformaria a Lua em objeto de lart pour lart, desnecessrio, dispensvel, e cantvel por poetas. E a um tal objeto podemos chamar objeto de natureza em sentido existencialmente sustentvel. Tal transformao de cultura em natureza est se dando por todos os cantos. Nos Alpes, nas praias, nos subrbios das grandes cidades. Os romnticos do sculo Xviii desco-briram a natureza (isto , a inventaram), e os romnticos do nosso fin de sicle a esto realizando. Um dos mtodos de tal transformao se chama ecologia apli-cada. Se tal mtodo for aplicado Lua, ela virar natu-reza. De maneira que quando formos olhar, em noites claras, a Lua, e a virmos enquanto fenmeno da natureza, estaremos vendo no o passado pr-NASA da Lua, mas o seu estado ps-NASA. A nossa viso ser proftica, isto ,

    a Lua

    Os sapatos so deliberados (desnecessrios), mas indis-pensveis. A Lua impe suas regras sobre mim por sua cabeuda necessidade. Os sapatos me oprimem por sua desnecessria indispensabilidade. Por isso, no posso ver que a Lua foi, originalmente, provocada por minha cultura. Por que teria minha cultura provocado algo necessrio e dispensvel?

    que minha viso deformada por um preconceito que faz parte do senso comum da minha cultura: tudo que necessrio e dispensvel chamo natureza, tudo que desnecessrio e indispensvel chamo cultura. Progresso transformar coisas necessrias e dispens-veis em desnecessrias e indispensveis. Natureza anterior cultura, e progresso transformar natureza em cultura. Quando a NASA tocou a Lua e a transformou em plataforma, foi dado mais um passo em direo ao progresso.

    Tal preconceito do senso comum logicamente contraditrio, ontologicamente falso, existencialmente insustentvel, e deve ser abandonado. E, se conseguir afast-lo, verei a Lua mais claramente. Vejo agora, surpreso, que a Lua, longe de ser fenmeno da natureza em vias de transformar-se em cultura, , e sempre foi fenmeno da cultura que est comeando a transformar--se em natureza. Eis o que , na realidade, cultura: conjunto de coisas necessrias que se tornam progressi-vamente mais indispensveis. E eis o que , na realidade, natureza: conjunto de coisas desnecessrias e dispen-sveis. Natureza produto tardio e luxo da cultura. O meu olhar para a Lua o prova, da seguinte maneira:

    Imaginemos por um instante que a NASA tivesse realmente transformado a Lua de natureza em cultura. Ento seria um caso excepcionalmente feliz para um

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    a Lua

    inspirada pelo romantismo. E, com efeito, isto que sempre fazemos: olhamos a Lua romanticamente. Por isso a vemos como se j fosse objeto da natureza, e no como sabemos que ela : objeto de uma cultura que visa transform-la em plataforma.

    Resposta perturbadora esta. A Lua vista como objeto de natureza, isto , como derradeiro produto da nossa cultura. Como, em tal situao, engajar-me em cultura, se ela tende a transformar-se em sua prpria traio, em romntica natureza? Tal pergunta, no entanto, no toca a Lua. Ela continua imperturbvel em seu caminho necessrio e por enquanto dispensvel. Perguntar assim nada adianta. Nada adianta levar at ela os olhos. Lift not your eyes to it, for it moves impotently just as you and I.

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    demonstrou ser um mito eurocntrico, a ideia da conser-vao da natureza tambm pode se revelar insuficiente. Ambas permanecem no contexto de um projeto moderno de realidade que parte do problema, e no a sua soluo.

    Para clarificar em que consiste este projeto especi-ficamente moderno e como ele se diferencia de outras circunstncias mundiais, preciso, antes de tudo, tradu-zir o diagnstico cientfico de mudanas climticas e de industrializao em categorias culturais. Ao faz-lo, logo descobrimos que as causas das mudanas climticas no so simplesmente antropognicas e sim consequn-cias concretas daquela cultura europeia contempornea cuja viso de mundo e de humanidade gerou a indus-trializao moderna. A crise ecolgica global, portanto, expressa o efetivo domnio da viso de mundo e do modelo de vida eurocntricos quer dizer, da cultura ocidental em relao a outras formas de vida, s quais impe sem piedade seus efeitos colaterais.

    Por outro lado, a crescente conscincia da crise ecolgica aponta que h muito mais em questo do que a mera eroso de litorais longnquos: o que est em jogo no nada menos do que a amplitude e a capacidade de resistncia de uma viso de mundo eurocntrica baseada na cincia que tem sido, ao longo de muitos sculos, o paradigma do progresso e o motor de um modelo de industrializao que se autoconsidera a vanguarda do desenvolvimento humano. Esta orgulhosa autoconfiana comeou a ruir no exato momento em que se evidenciou que, se a cincia moderna abriu dimenses jamais imaginadas do domnio da natureza, infelizmente tambm produz efeitos colaterais que no capaz de antecipar nem de controlar. Para dissolver a contra- dio entre a dominao da natureza pela tcnica e a

    NumA RARA uNANimiDADE, os representantes da poltica mundial e das cincias naturais atribuem o ameaador aquecimento do clima da Terra ao antropognica, ou seja, macia emisso de gases de efeito estufa a qual, por sua vez, consequncia direta da industrializao.

    Faz pouco tempo que essa constatao vem sendo oficialmente aceita pelos polticos do mundo inteiro. No entanto, desde o incio os efeitos negativos da industriali-zao sobre o meio ambiente natural das pessoas tm sido reconhecidos e lamentados. Ainda no sculo XiX iniciou-se principalmente nos EuA um movimento de defesa da natureza que levou construo idealizada de uma natureza intocada pelo homem e carente de prote-o. Esse movimento desembocou na criao de reservas naturais a salvo da explorao industrial, bem como na ideia de povos naturais que, como representantes dos primrdios da histria da humanidade, conviveriam em harmonia com uma natureza eternamente em equil-brio. Da mesma maneira que o conceito de povo natural

    (2008)

    A mEDiO DO muNDOANNETTE HOrNBAcHEr

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    tcnica. A tentativa de atingir um estgio de falta total de sofrimento humano atravs da conquista racional da natureza gera precisamente aquele conceito cultural que continua sobrevivendo na dinmica da industrializao global e cuja promessa se constitui em humanizar a natureza, transformando-a em paraso terrestre.

    De l para c, este ideal j se espatifou nos efeitos indesejados e incontrolveis da industrializao, e foi assim que as sociedades industriais passaram a perceber a mudana irreversvel do clima, antes de tudo, como crise profunda de sua identidade cultural.

    No um acaso, portanto, que, neste contexto, tenham sido descobertas tribos pr-industriais nas selvas da Amrica Latina at o Sudeste Asitico consideradas guardis da Terra e cuja forma de vida vista como alternativa ecocntrica dominao tcnica e antropo-cntrica da natureza. Mas essa alternativa romntica se baseia em premissas questionveis: pressupe que a falta de industrializao equivalha adaptao a um equilbrio ecolgico atemporal e exclua interferncias humanas macias. Essa viso no apenas ignora as diferenas fundamentais entre o conceito moderno de natureza e projetos de mundo extraeuropeus, mas tambm pressupe prematuramente que a crise ecolgica deva ser pensada como alienao da sociedade humana da natureza.

    Na verdade, a utopia de Bacon sugere mais a conclu-so oposta, a de que a crise ecolgica no se fundamenta tanto no distanciamento do homem em relao natu-reza, e sim, pelo contrrio, na vontade especificamente moderna de humanizar totalmente a natureza como nunca antes. O conceito moderno de natureza se destaca principalmente pelo fato de oscilar entre dois extremos, o

    a mediO dO mundO

    incontrolvel mudana climtica, ser preciso, portanto, mais do que uma soluo tcnica talvez uma mudana do paradigma da viso eurocntrica de mundo e de estilo de vida que, em ltima anlise, dissesse respeito ao prprio conceito de natureza?

    Num primeiro momento, limitemo-nos a perguntar de que viso cultural de mundo nasceu a moderna industrializao e em que esta se diferencia das condi-es de vida de sociedades no europeias.

    comum definir-se a viso de mundo europeia moderna pela sua compreenso objetiva e metdica da natureza. importante ressaltar, porm, que esta no se fundamenta em nenhuma cognio racional, mas que reflete em primeiro lugar um programa cultural que s reconhece como sendo real o que passvel de explicao e manipulao racional, quer dizer, com uma relao de causa e efeito. Portanto, desde os primrdios a cincia emprica tem um fundamento ideolgico e, ao mesmo tempo, utpico, pois o controle racional exigido um projeto interminvel. Esta utopia se torna especialmente ntida na fbula Nova Atlntida, escrita no incio da Era Moderna pelo fundador da cincia emprica, Francis Bacon. Dor, doenas e colheitas perdidas desaparecem do mundo ideal de Bacon, marcado pela cincia e regu-lado pela tcnica, porque a natureza dentro do homem e sua volta controlada sem brechas com o objetivo de servir em seu benefcio e sua felicidade. O cientista assume o lugar do santo e substitui ademais decises polticas ao eliminar, com ajuda da tcnica, todos os conflitos humanos potenciais causados por doenas, escassez de recursos e catstrofes naturais.

    O que torna a fbula de Bacon to interessante a clareza com que ressalta o carter utpico da cincia e da

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    social: determinadas rvores, fontes de gua e formaes rochosas so vistas como traos vivos e legados de seres estranhos e mticos que devem ser respeitados e lembra-dos, pois marcaram o mundo e o homem em sua confi-gurao atual como espao vital significativo que no pode ser substitudo por leis gerais ou ser melhorado pelo ser humano.

    Esse conceito se diferencia da moderna viso do mundo basicamente por no pressupor o prprio mundo da vida como uma natureza que pode ser definida em todas as suas leis sem brecha nenhuma, e sim o reco-nhece como coexistncia historicamente mutvel de atores humanos e no humanos. A prtica humana, nesses casos, no se guia por leis naturais universais que possibilitam ingerncias humanas, e sim pelo respeito por fenmenos individuais vivenciados como a fronteira do controle humano. Na cultura aborgine tradicional, portanto, a explorao sistemtica de recursos naturais faz to pouco sentido quanto medidas de proteo natureza. O que h para proteger, isso sim, so sempre as circunstncias especiais de um mundo da vida desde sempre marcado tambm por interferncias humanas.

    Visto assim, seria interessante considerar se no o conceito moderno de uma natureza atemporal regulada por leis universais e, com ele, a alternativa da subjugao racional da natureza e da adaptao ecolgica natureza que forma o contexto conceitual da crise ecolgica. Ambas as variantes colocam a liberdade de ao humana frente a uma natureza controlvel, enquanto a mudana climtica irreversvel nos confronta com o problema irritante da historicidade imprevisvel e, com ela, da indisponibilidade da natureza. Na dinmica da mudana climtica, o prprio ser humano se torna parte de uma

    a mediO dO mundO

    de uma total dominao da natureza pelo homem e o da total adaptao do homem a um estado de equilbrio ecolgico. Em outras palavras: explorao da natureza e a conservao da natureza so duas faces da mesma viso de mundo.

    As vises de mundo de sociedades no europeias vo de encontro a esta alternativa por no imaginarem nenhuma natureza ou nenhum meio ambiente inde-pendente do homem e, consequentemente, no procura-rem nem domnio nem adaptao a um ecossistema esttico. O que encontramos aqui mais uma inter-rela-o ente atores humanos e no humanos, sendo os ltimos considerados como contrapartes de uma histria em movimento e jamais como uma natureza atemporal e muito menos intocada. Isso evidenciado exemplar-mente pelos habitantes primitivos da Austrlia que, apesar de sua tecnologia rudimentar, forjaram a aparn-cia atual de seu espao vital natural atravs de interfe-rncias macias e principalmente de queimadas. No se pode falar, neste caso, de uma adaptao passiva a uma natureza preexistente, trata-se antes de uma coevoluo dirigida pelo homem da qual fazem parte, neste caso, a transformao de vastas regies do continente austra-liano em estepes e possivelmente o extermnio de muitas espcies animais.

    O fato de essas ingerncias terem sido menos des-truidoras do que as dos colonizadores europeus tem a ver principalmente com o fato de que, para os aborgines, seu mundo da vida no uma natureza sistematicamente dominvel que o homem enfrenta como um objeto. Sua compreenso do mundo marcada pelas relaes de parentesco entre diversos cls e determinados fenme-nos do seu mundo da vida, entrelaados com a estrutura

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    tentativa de ordenao que h muito j lhe escapou, e assim se impe inesperadamente um princpio dos mitos australianos: a natureza j no mais o contra-ponto atemporal ou a base, e sim um aspecto ambiva-lente da histria humana. S na sequncia desse experi-mento revelar-se- se o conceito ocidental de natureza ainda oferece uma sada para as contradies insolveis da industrializao global, ou se ele deve ser mudado no confronto com outros conceitos, mais prximos da realidade.

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    Sem falar no cu e no oceano. Mas nos desastres imprevisveis que as mais altas

    formas tm lugar.Eles so raros e devemos ser gratos por eles.

    AchO quE OS desastres naturais tm sido encarados da maneira errada.

    Os jornais sempre dizem que so ruins, uma pena.Eu gosto de desastres naturais e penso que talvez eles

    sejam a mais alta forma de arte possvel de experienciar.

    No acredito que a arte possa confrontar-se com a natureza.

    Coloque o melhor objeto que voc conhece ao lado do Grand Canyon, das Cataratas do Nigara, das sequoias.

    As coisas grandes sempre ganham. Agora pense em uma enchente, um incndio em uma

    floresta, um tornado, um terremoto, um furaco, uma tempestade de areia.

    Pense em gelo acumulado se quebrando. Crack.Se todas as pessoas que vo a museus pudessem ao

    menos sentir um terremoto.

    (1960)

    SObRE A imPORTNciA DOS

    DESASTRES NATuRAiSWALTEr dE mAriA

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    Resumo: No h uma nica instituio capaz de cobrir, inspecionar, dominar, gerir, lidar ou simplesmente traar problemas ecolgicos com formato e escopo de grande porte. Muitos dos problemas so demasiadamente intratveis e emaranhados em interesses contraditrios. Temos problemas, mas no temos o pblico que deveria acompanh-los. Como podemos chegar a imaginar acordos em meio a tantos interes-ses entrelaados? Sero analisadas diversas tentativas para enfrentar problemas ecolgicos por meio da conexo de ferramentas de representao cientfica, alm daquelas ligadas arte e poltica, e tambm apresentaremos o programa de Experimentao em Arte e Poltica que est sendo oferecido na Sciences Po desde setembro de 2010.

    O quE DEvEmOS fazer quando nos deparamos com uma crise ecolgica que no encontra precedentes em nenhuma das crises econmicas ou de guerra, e cuja escala certamente formidvel, mas qual estamos habituados de certa forma em funo de sua origem

    (2011)

    ESPERANDO GAiA. A cOmPOSiO DE

    um muNDO Em cOmum POR mEiO DA ARTE

    E DA POLTicABrUNO LATOUr

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    em grande parte, essa desconexo e o que fazemos em relao a isso.

    Existe alguma maneira de fazer uma ponte entre a escala dos fenmenos de que ouvimos falar e o minsculo Umwelt de dentro do qual testemunhamos, tal e qual um peixe dentro do aqurio, esse oceano de catstrofes que est para eclodir? Como podemos nos comportar de maneira sensata quando no dispomos de nenhuma estao de controle de solo para a qual possamos enviar a mensagem de socorro Houston, temos um problema?

    O mais estranho dessa distncia abismal entre nossas pequenas preocupaes egostas de humanos e as grandes questes da ecologia o fato de ela ser exata-mente aquilo que foi to valorizado por tanto tempo em tantos poemas, sermes e palestras edificantes sobre as maravilhas da natureza. Se todo esse aparato era to maravilhoso assim, isso acontecia justamente por causa dessa desconexo: sentir-se impotente, maravilhado e totalmente dominado pelo espetculo da natureza boa parte daquilo que passamos a apreciar, pelo menos desde o sculo XiX, dentro do conceito de sublime.

    Vale relembrar Shelley:

    Nos bosques selvagens, por entre as montanhas solitrias,

    Onde as cachoeiras dos arredores lanam-se para a eternidade,

    Onde a mata e os ventos rivalizam, e um amplo riorebenta e divaga incessantemente sobre suas rochas2.

    Como adorvamos nos sentir pequeninos quando ramos abarcados pelas foras portentosas das Cataratas do Nigara ou a imensido impressionante das geleiras do

    eSperandO Gaia

    demasiadamente humana? O que fazer quando nos dizem, dia aps dia, e de maneiras cada vez mais estri-dentes, que a civilizao atual est condenada, e que a prpria Terra vem sendo to manipulada com isso tudo que no h meios de retomar nenhum de seus vrios estados de estabilidade do passado? O que fazer quando se l, por exemplo, um livro como o de Clive Hamilton, intitulado Requiem for a Species: Why We Resist the Truth about Climate Change 1 no qual a espcie em questo no o dod nem a baleia, mas sim ns, voc e eu? Ou ento o livro Guerras climticas: Por que mataremos e seremos mortos no sculo XXI, de Harald Welzer, que agradavel-mente dividido em trs partes: como matar ontem, como matar hoje e como matar amanh! A cada captulo, para somar os mortos, preciso acrescentar diversas ordens de magnitude sua calculadora!

    O tempo das grandes narrativas j ficou para trs, sei disso, e pode at parecer ridculo abordar uma questo to grande a partir de uma porta de entrada to pequena. Mas esse justamente o motivo pelo qual desejo fazer isso: o que podemos fazer quando as perguntas so grandes demais para todos, e especialmente quando so grandes demais para o escritor, ou seja, para mim?

    Um dos motivos pelos quais nos sentimos to impotentes quando solicitados a nos preocupar com a crise ecolgica, o motivo pelo qual eu, para incio de conversa, me sinto to impotente, por causa da total desconexo entre o alcance, a natureza e a escala dos fenmenos, alm do conjunto de emoes, hbitos de pensamento e sentimentos que seriam necessrios para lidar com essas crises nem mesmo para reagir a elas, mas simplesmente para dedicar algo mais que um simples ouvido distrado. Por isso, este ensaio vai abordar,

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    termos de terawatts, intensificou-se de tal forma a ponto de se tornar a principal fora geolgica agindo sobre a Terra.

    O que to irnico nesse argumento do antropoceno que ele surge justamente quando os filsofos de van-guarda falavam de nosso tempo como sendo o ps--humano; e exatamente na poca em que outros pensa-dores sugeriam chamar esse mesmo momento de fim da histria. Parece que tanto a histria quanto a natu-reza tm mais de uma carta na manga, considerando que estamos presenciando agora o aumento na veloci-dade e nas propores da histria no com uma aborda-gem ps-humana, mas sim com algo que poderamos chamar de reviravolta ps-natural! Se verdade que o antropo capaz de literalmente moldar a Terra (e no apenas metaforicamente por meio de seus smbolos), estamos testemunhando agora um antropomorfismo sob efeito de esteroides.

    Em seu excelente livro Eating the Sun 4, Oliver Morton oferece uma escala de energia bastante interes-sante. Nossa civilizao global movida por cerca de treze terawatts (TW), enquanto o fluxo de energia do centro da Terra de cerca de quarenta terawatts. Sim, estamos no patamar da tectnica das placas. Claro que esse dispndio de energia no nada se comparado aos 170 mil TW que recebemos do sol, mas representa bas-tante coisa se comparado produo primria da bios-fera (130 TW). E se todos os humanos consumissem tanto quanto os norte-americanos, operaramos na base de 100 TW, ou seja, o dobro das placas tectnicas. Isso uma faanha e tanto. um avio? a natureza? No, o Super-Homem! Acabamos nos transformando em Super-Homem sem nos darmos conta de que, l de dentro da cabine telefnica, no s trocamos de roupa,

    eSperandO Gaia

    rtico, ou ainda a paisagem desolada e seca do Saara. Que sensao deliciosa perceber nosso tamanho em comparao com o das galxias! Somos pequenos quando comparados Natureza, mas, no que diz respeito moralidade, somos muito maiores que at mesmo Sua mais grandiosa demonstrao de poder! Tantos poemas, tantas meditaes sobre a falta de comensurabilidade entre as foras duradouras da natureza e os pequenos humanos franzinos que alegam conhec-la ou domin-la.

    Ento, seria possvel dizer, afinal, que essa descone-xo sempre existiu e que ela a origem interna desse sentimento do sublime.

    O universo perptuo das coisasFlui pela mente e revolve suas rpidas ondasOra escurecidas ora resplandecentes ora refletindo

    a obscuridade Ora emprestando seu esplendor, de cujas nascentes

    secretasA fonte do pensamento humano retira seus tributos3.

    Entretanto, o que atende por sublime ultimamente, agora que somos convidados a considerar outra descone-xo, desta vez entre nossas aes humanas gigantescas, de um lado, e nossa total falta de compreenso daquilo que fizemos coletivamente, de outro?

    Vamos refletir um minuto sobre o que significa a noo de antropoceno, essa incrvel inveno lexical proposta por gelogos para classificar o perodo atual. Acabamos nos dando conta de que o sublime evaporou assim que deixamos de ser considerados como esses seres humanos franzinos dominados pela natureza, mas, pelo contrrio, como um gigante coletivo que, em

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    junto com a moralidade, tivessem trocado de lado. O verdadeiro deslumbramento atual est na pergunta: Como posso ser acusado de ter tanta culpa sem sentir culpa alguma, sem ter feito nada de mau? O ator humano coletivo a quem se atribui a realizao da ao no um personagem que pode ser pensado, dimensio-nado ou mesmo medido. Voc nunca conheceu esse ator. No se trata nem da raa humana compreendida em sua totalidade, considerando que o criminoso apenas parte da raa humana, formada por ricos e abastados, um grupo que no tem forma definida nem limites, muito menos representao poltica. Como poderamos ser ns os responsveis por tudo isso, se no h poltica, moral, pensamento, nem sequer uma entidade com sensibilidade capaz de assumir esse ns nem nin-gum que possa dizer, orgulhosamente: Pode parar por a, amigo? Basta lembrar as reunies lamentveis de Copenhague em 2009, nas quais os chefes de Estado negociaram em segredo um tratado no obrigatrio, dizendo improprios e discutindo feito crianas por causa de um saco de bolinhas de gude.

    Mas o outro motivo que levou ao desaparecimento do sublime, o motivo pelo qual nos sentimos to culpados por termos cometido crimes pelos quais no sentimos nenhuma responsabilidade, a complicao agregada trazida discusso pelos cticos do clima ou, para evitar usar um termo to positivo e venerado, os negado-res do clima.

    Devemos conferir a esses personagens o mesmo tempo para equilibrar o posicionamento dos climatologis-tas situao em que arriscaramos rejeitar nossa respon-sabilidade e nos associar aos criacionistas, lutando contra as teorias de Darwin e toda a biologia? Ou devemos

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    mas tambm crescemos imensamente! Podemos nos orgulhar disso? Na verdade, no muito, e eis o problema.

    Essa desconexo se alterou de tal forma que no gera mais nenhuma percepo do sublime desde que somos incitados a assumir responsabilidade pelas mudanas rpidas e irreversveis vivenciadas na superfcie da Terra, ocasionadas em parte como resultado da quanti-dade gigantesca de energia que gastamos: pedem-nos para que voltemos novamente o olhar para as Cataratas do Nigara, mas agora com o sentimento ranzinza de que elas podem simplesmente parar de jorrar (uma pena para as cachoeiras dos arredores que se lanam para a eternidade, como diz Shelley); pedem-nos para observar o mesmo gelo eterno, exceto pelo fato de que, agora, temos o sentimento pesaroso de que talvez ele no dure para sempre; somos mobilizados para entrever o deserto ressecado, mas acabamos percebendo que ele se expande inexoravelmente por causa do uso desastroso que faze- mos do solo! Talvez somente as galxias e a Via Lctea continuem disponveis para esse antigo jogo de humil-dade do deslumbramento, por estarem alm da Terra (e, portanto, alm de nosso alcance, por estarem situados na parte da natureza que os antigos chamavam de supralu-nar retomaremos esse assunto mais adiante).

    Como sentir o sublime quando a culpa est remo-endo suas entranhas? E remoendo de uma maneira nova e inesperada, porque claro que eu no sou responsvel por isso, muito menos voc, voc, nem voc. Nenhuma pessoa , por si s, responsvel.

    Tudo acontece como se fosse subvertido o antigo equilbrio entre a contemplao da lei moral dentro de ns e aquela das foras inocentes da natureza fora de ns. como se todos os sentimentos de deslumbramento,

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    Para resumir meu primeiro tpico, como ainda possvel querer sentir o sublime enquanto se assiste s cachoeiras eternas cantadas por Shelley, quando, nmero um, voc sente, ao mesmo tempo, que elas podem desaparecer; quando, nmero dois, voc pode ser o responsvel pelo seu desaparecimento; quando, nmero trs, voc se sente duplamente culpado por no se sentir responsvel; e considerando ainda a manifesta-o de um quarto nvel de responsabilidade, por no ter mergulhado fundo o suficiente naquilo que chamado de polmica climtica? Voc no leu o suficiente, no pensou o suficiente, no sentiu o suficiente.

    Aparentemente, no existe soluo alm de explorar a desconexo e esperar que a conscientizao humana eleve nosso senso de comprometimento moral ao nvel exigido por este que o globo de todos os globos, a Terra. Mas se nos pautarmos pelas notcias recentes, apostar nessa conscientizao um pouco arriscado, conside-rando que a quantidade de cidados americanos, chineses e at britnicos que negam a origem antrpica da mudana climtica est aumentando em vez de diminuir (at mesmo na Frana, to racionalista, um antigo ministro da pesquisa de elevada reputao, o Professor Alegre, conseguiu convencer boa parte do pblico esclarecido de que existe tanta polmica na questo climtica que, por fim, no precisamos nos preocupar com ela).

    Como acontece no filme Melancolia, de Lars von Trier, parece que todos ns preferiramos estar apre-ciando em silncio o espetculo solitrio da coliso de um planeta com nossa Terra contando apenas com a prote-o de uma cabana de criana feita com alguns galhos, com ajuda da Tia Quebra-Ao. como se o Ocidente,

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    assumir posies e nos recusar a oferecer a esses negado-res uma plataforma para poluir o que provavelmente a maior certeza que jamais teremos sobre como causamos a destruio de nosso prprio ecossistema situao em que arriscaramos ser considerados parte de uma cruzada ideolgica destinada a retomar a moral em nossas intera-es com a natureza e tambm repetir o julgamento de Galileu, como se ignorssemos a voz solitria da razo lutando contra a multido de especialistas?

    No de admirar que, diante dessa nova desconexo, muitos de ns passemos da admirao diante das foras inocentes da natureza a uma completa prostrao e, por vezes, at damos alguma trela aos negadores do clima.

    Como argumentado por Clive Hamilton em Requiem for a Species, de certa forma somos todos negadores do clima, pois no temos nenhuma percepo desse perso-nagem coletivo o antropo do antropoceno, o humano da catstrofe feita pelos humanos. por meio de nossa prpria indiferena embutida que chegamos a negar o conhecimento de nossa cincia. Pense um pouco: seria timo voltar a um passado onde a natureza ainda pudesse ser sublime, e ns, pequenos humanos franzinos, na mais plena irrelevncia, estivssemos nos deleitando no sentimento interno de nossa superioridade moral em relao pura violncia da natureza. De algum modo, essa desconexo a verdadeira origem da negao em si.

    O que significa ser moralmente responsvel em tempos de antropoceno, quando a Terra moldada por ns, por nossa falta de moralidade exceto pelo fato de que no existe um ns reconhecvel de maneira aceitvel a quem possamos relegar o peso de tal responsabilidade , e at mesmo esse lao que conecta nossa ao coletiva sua consequncia colocado em xeque?

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    redes cientficas seu tamanho, sua composio, sua longa histria e assim por diante. At mesmo agriculto-res dependem do conhecimento especial dos agrnomos, dos cientistas do solo e outros. E isso ainda mais verda-deiro quando falamos do clima global: por definio, o globo no global, mas sim um modelo de escala que se conecta por meio de redes seguras e confiveis a estaes onde pontos de dados so coletados e enviados de volta a seus modeladores. Este no um argumento relativista capaz de colocar tal cincia em dvida, mas sim um princpio relacionista que explica a solidez de disciplinas que servem para estabelecer, multiplicar e fazer a manu-teno dessas conexes.

    Sinto insistir no que parece ser uma distrao banal do assunto, mas no h meios de explorar uma sada dessa desconexo, se no esclarecermos o instrumento de dimensionamento que gera o global no mbito local. Meu argumento (na verdade, o argumento de estudos cientfi-cos) que no existe efeito de zoom: as coisas no so organizadas por tamanho como se fossem caixas dentro de caixas. Elas costumam ser organizadas por conectivi-dade, como se fossem ns conectados a outros ns.

    Ningum demonstrou isso melhor que Paul Edwards em seu timo livro sobre a cincia climtica, A Vast Machine5. Se os meteorologistas e cientistas do clima que se seguiram foram capazes de obter uma viso global, porque eles conseguiram construir modelos cada vez mais poderosos para recalibrar os pontos de dados suscitados de um nmero cada vez maior de estaes ou documentos satlites, anis circulares no tronco das rvores, registros de navegadores mortos h tempos, anlises de ncleos de gelo e assim por diante.

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    bem quando a atividade cultural de dar forma Terra est finalmente chegando ao ponto de ter significao literal, e no apenas simblica, recorresse ideia total-mente ultrapassada de usar a mgica como meio de esquecer completamente o mundo. Na impressionante cena final de um filme ainda mais surpreendente, as pessoas hiper-racionais retrocedem aos efeitos dos antigos rituais primitivos proteger mentes infantis contra o impacto da realidade. Von Trier pode ter captado exatamente o que acontece quando o sublime desaparece. Voc acha que o Juzo Final traria os mortos de volta vida? Nada disso. Quando as cornetas do julgamento soarem em seus ouvidos, voc ir se entregar melanco-lia! Nenhum novo ritual ir salvar voc. Vamos apenas nos sentar numa cabana mgica e continuar negando, negando, negando at chegarmos ao amargo fim.

    Ento o que fazemos quando estamos encarando uma questo que simplesmente grande demais para ns? Se no a negao, ento o qu? Uma das solues ficarmos atentos s tcnicas por meio das quais se obtm uma escala e aos instrumentos que tornam possvel a comensurabilidade. Afinal, a prpria noo de antropo-ceno implica tal medida comum. Se verdadeiro que o homem a medida para todas as coisas, isso tambm poderia funcionar nessa conjuntura.

    Um dos princpios dos estudos cientficos e da teoria ator-rede que um sujeito nunca deve presumir que as diferenas de escala so preexistentes e, em vez disso, deve sempre procurar saber como a escala produzida. Felizmente, esse princpio se adqua de maneira ideal crise ecolgica: no h nada da Terra enquanto Terra que no tenha chegado ao nosso conhecimento por meio das disciplinas, instrumentos, mediaes e expanses de

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    calibragem, modelagem e reinterpretao porque ele mostra que nem mesmo para os cientistas climticos h meios de traar uma correspondncia direta com a Terra. Graas aos lentos processos de calibragem de muitas instituies de padronizao, o que eles fazem acompa-nhar cuidadosamente um modelo local a partir do espao minsculo de um laboratrio. Por esse motivo, existe uma desconexo que sequer deve ser compartilhada: no temos, de um lado, os cientistas se beneficiando de uma viso globalmente completa do globo e, de outro lado, os pobres cidados comuns com uma viso local limi-tada. Existem apenas vistas locais. Entretanto, alguns de ns encaramos os modelos de escala conectados, com base em dados reformatados, por programas cada vez mais poderosos executados por instituies cada vez mais respeitadas.

    Para aqueles que desejam fazer uma ponte para solucionar essa lacuna e adentrar a nova desconexo, esse primeiro plano dos instrumentos de medida pode oferecer um recurso crucial desta vez, no mbito poltico. Para o ativista de motivao ecolgica, vo tentar envergonhar o cidado comum por no pensar globalmente o suficiente, por no ter uma percepo da Terra como tal. Ningum encara a Terra globalmente e ningum enxerga um sistema ecolgico a partir do Nada, o cientista no mais que o cidado, que o agricultor ou que o ecologista ou que uma minhoca, no nos esqueamos dela. A natureza no mais aquilo embar-cado por um ponto de vista distante em que o observador, idealmente, capaz de mergulhar em um meio para ver as coisas como um todo, mas sim uma montagem de entidades contraditrias que precisam ser compostas conjuntamente.

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    Curiosamente, exatamente isso que leva os negado-res do clima a suas negaes: eles consideram esse conhe-cimento muito indireto, muito mediado, muito distante do acesso imediato (sim, esses incrdulos So Toms episte-molgicos aparentemente acreditam apenas no conheci-mento no mediado). Eles ficam enfurecidos ao ver que nenhum ponto de dados por si s portador de algum sentido, que todos esses dados precisam ser recalculados e reformatados. Assim como faziam os negacionistas em relao aos crimes do passado, os negadores do clima utilizam, para fins de crimes futuros, um marco positi-vista para incutir lacunas naquilo que um quebra-cabea extraordinrio de interpretaes entrecruzadas de dados. No se trata de um castelo de cartas, mas sim de uma tapearia, provavelmente uma das mais bonitas, resolutas e complexas j tecidas. claro que h muitas lacunas nela, pois ter lacunas o cerne da questo da tecelagem de ns e enredos. Mas essa tapearia surpreendentemente resiliente em funo da maneira com que foi tecida que permite a recalibragem de dados por modelos e vice-versa. Parece que a histria do antropoceno (por definio, as cincias climticas so um conjunto de disciplinas histri-cas) o evento mais bem documentado que j existiu. Paul Edwards at chega a demonstrar, no final do livro, que nunca saberemos mais a respeito da tendncia atual de aquecimento global, pois nossa ao modifica suas linhas de base de tal forma, ano aps ano, que no teremos mais uma linha de base para calcular o desvio da mdia Que perversidade: testemunhar a raa humana apagando seus feitos por meio de desvios de tal magnitude que seus desvios para alm disso se tornam intraveis.

    O motivo pelo qual to importante ressaltar esse processo lento de tecelagem da tapearia que envolve

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    Mas a questo exatamente essa: fatos e opinies j esto misturados, e ficaro ainda mais misturados no futuro. O que precisamos fazer tentar no isolar novamente o mundo da cincia e o mundo da poltica como possvel imaginar manter um programa desses em funcionamento no tempo do antropoceno, que mistura todas as misturas? , mas sim decifrar por meio de uma nova metrologia o peso relativo das cosmologias enredadas. Como agora so os mundos que esto em questo, comparemos as cosmo-logias entre si. Em vez de tentar distinguir o que no mais distinguvel, faa estas perguntas-chave: que mundo esse que voc est montando, a que pessoas voc se alinha e com que entidades voc est se propondo viver?

    Afinal, isso pura e simplesmente o que permitiu h pouco aos intelectuais acompanhar como a origem antrpica dessa situao climtica estranha, um fato que foi considerado como bem estabelecido h quinze ou vinte anos, e que vem sendo reduzido aos olhos de milhes de pessoas ao nvel de mera opinio. Foi possvel para os intelectuais valer-se de maneira muito rpida dos mesmos instrumentos que nos permitem acompanhar a produo cientfica (mecanismos de busca, ferramentas de cientometria e bibliometria, mapas de blogosferas), as pessoas, os lobbies, as referncias e os fluxos de valores daqueles que insistem em transformar o assunto em polmica. Neste ponto, estou pensando no trabalho de Naomi Oreskes ou de James Hoggan. Como interes-sante ver as conexes feitas entre grandes petrolferas, fabricantes de cigarros, antiabortistas, criacionistas, republicanos e uma viso de mundo composta por poucos seres humanos e poucas entidades naturais. Se a situao coloca cosmogramas contra cosmogramas, passemos comparao de cosmogramas entre si. A poltica se

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    Esse trabalho de montagem especialmente neces-srio se imaginarmos agora o ns do qual os humanos deveriam se sentir parte integrante para assumir respon-sabilidade pelo antropoceno. Neste momento no existe um caminho que ligue meu simples ato de trocar uma lmpada diretamente ao destino da Terra: essa escada no tem degraus; essa progresso no tem patamares. Eu teria que pular, e esse pulo seria um salto mortale e tanto! Todas as montagens precisam de intermedirios: satli-tes, sensores, frmulas matemticas e modelos climti-cos, claro, mas tambm os Estados-nao, as ONGs, a conscientizao, a moralidade e a responsabilidade. Essa lio de montagem pode ser seguida?

    Um caminho diminuto rumo a essa montagem oferecido pelo trabalho de diversos intelectuais persuadi-dos por mim acerca do que chamamos de mapeamento de polmicas cientficas. Polmicas no devem ser algo de que fugimos, mas sim o que deve ser composto, ator aps ator, exatamente maneira daqueles que modelam a propaganda climtica, ator aps ator o papel de turbu-lncias areas, seguido das nuvens, do papel da agricul-tura, dos plnctons, obtendo a cada vez uma renderizao mais e mais real desse verdadeiro teatro do globo.

    Tal tentativa de mapear polmicas um exemplo dos instrumentos que, em parte, fazem uma ponte ligando a desconexo do tamanho dos problemas que enfrentamos e o pequeno alcance de nossa compreenso e ateno. Isso especialmente verdade se tomarmos as oportuni-dades oferecidas pela comunicao digital para reunir, no mesmo espao ptico, documentos produzidos pela cincia e documentos oriundos de esferas pblicas.

    Num primeiro momento, ocorre uma confuso terrvel, como se fatos e opinies estivessem misturados.

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    mos chamar de natureza. A noo capciosa de antropo-ceno modifica ambos os lados daquilo que precisa ser vinculado: o lado humano, obviamente, uma vez que somos privados da possibilidade de sentir o sublime, mas tambm o lado das foras geolgicas a que os humanos passaram a ser alinhados e comparados. Ao mesmo tempo, enquanto os humanos modificavam o formato da Terra sem ainda estarem habituados a seus novos trajes gar-gantuescos, a Terra acabou por se metamorfosear em algo que James Lovelock sugeriu chamar de Gaia. Gaia a maior trapaceira 7 da histria atual.

    No restante deste ensaio, eu gostaria de explorar o quanto Gaia pode ser diferente da Natureza das antigas. Quando reunimos essas duas mutaes, uma por parte dos terrqueos e outra por parte da Terra, podemos nos vislumbrar em posio levemente mais favorvel para suprir essa lacuna.

    Em primeiro lugar, Gaia no sinnimo de Natureza por se tratar de algo altamente e terrivelmente local. Durante o perodo estudado por Peter Sloterdijk como sendo o tempo do Globo, ou seja, do sculo Xvii at o final do sculo XX, havia alguma continuidade entre todos os elementos daquilo que poderia ser chamado de universo, porque ele fora de fato unificado mas unificado com muita rapidez. Conforme dito por Alexandre Koyr, ns deveramos ter passado de uma vez por todas de um cosmos restrito para um universo infinito. Depois de termos atravessado os limites estreitos desse regime humano, todo o resto era constitudo pela mesma substncia material: a terra, o ar, a Lua, os planetas, a Via Lctea e tudo o mais, at o Big Bang. Essa a revoluo implicada quando se caracteriza algo como sendo de Coprnico ou de Galileu: as

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    transformou nisso. Vamos colocar os mundos em rivali-dade, j que se trata de uma guerra dos mundos.

    Tentei introduzir na filosofia o conceito de composi-o e composicionismo justamente por esse motivo. No apenas por ter uma boa ligao com o termo compost 6, mas tambm porque descreve exatamente o tipo de poltica capaz de trilhar o caminho da cincia climtica. A funo pode no ser a de libertar a climatologia do peso indevido da influncia poltica ( isso o que alega o governador do Texas Rick Perry: os cientistas esto nessa para ganhar dinheiro e aproveitar a oportunidade para avanar com um plano socialista que nem Lnin conse-guiu impor aos corajosos ianques). Pelo contrrio, a funo de acompanhar os fios da meada com os quais os clima-tologistas construram os modelos necessrios para trazer cena toda a Terra. Com essa lio em mos, comeamos a imaginar como fazer o mesmo em nossos esforos para montar um corpo poltico capaz de assumir sua parte na responsabilidade pela situao cambiante da Terra.

    Afinal de contas, essa mistura de cincia e poltica exatamente o que vem embutido precisamente na noo de antropoceno: por que continuar tentando separar o que foi emaranhado pelos prprios gelogos, pessoas srias, se que isso existe? Na verdade, o prprio esprito da lngua j diz tudo isso, conectando termos como hmus, humano e humanidade. Ns, terrqueos, nascemos do solo e do p ao qual retornaremos, e por isso que o que costumamos chamar de humanidades tambm so, de agora em diante, nossas cincias.

    At aqui, insisti em um lado dessa desconexo, aquele que nos leva desamparada raa humana vestindo com relutncia a roupa de Super-Homem. Agora o momento de voltar a ateno ao outro lado, aquilo que costumva-

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    prumo facilmente, ao passo que, em resposta, Ela capaz de exigir um tipo de vingana (emprestando o termo do ttulo do livro mais spero de Lovelock) das mais estranhas, livrando-se de ns, fazendo-nos estre-mecer at deixar a existncia, por assim dizer. Ento, no final das contas, Ela muito frgil para desempenhar o papel apaziguador da antiga natureza, muito despreo-cupada com nosso destino para ser uma Me, e muito incapaz de ser aplacada por acordos e sacrifcios para ser uma deusa.

    Lembre-se da energia dispendida antigamente por muitos estudiosos para firmar a diferena entre natu-reza e nutrio 8. O que acontece agora quando nos voltamos natureza e percebemos que ns que deveramos estar cuidando dela para que no sejamos reduzidos irrelevncia com a mudana repentina de Sua situao de estabilidade? Ela ir resistir. No preci-samos nos preocupar com Ela. Ns que estamos em apuros. Ou, ento, com esse enigma do antropoceno, existe algum tipo de fita de Moebius em ao aqui, como se fssemos, simultaneamente, aquilo que a envolve j que somos capazes de amea-la enquanto Ela nos envolve j que no temos mais para onde correr. Uma bela de uma trapaceira essa Gaia.

    Apesar de no me ser possvel percorrer todos os elementos que compem a originalidade de Gaia, ainda preciso concluir com mais dois tpicos.

    A terceira e provavelmente mais importante das caractersticas de Gaia o fato de ser um conceito cient-fico. Ele no teria interesse se fosse associado em nossas mentes a alguma entidade mstica indefinida como a Aywa, a articulada Gaia do planeta de Pandora mostrada em Avatar, de James Cameron. Apesar de Lovelock ser

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    diferenas entre o mundo sublunar e o supralunar deixa- ram de existir.

    Isto posto, qual no a surpresa ao ficar sabendo, de maneira bastante abrupta, que, afinal, existe sim distin-o entre os mundos sublunar e supralunar. E ficar sabendo tambm que apenas robs e talvez uma meia dzia de astronautas ciborgues podem ir alm, mas que o resto da raa, ns que somos nove bilhes, permanecere-mos presos aqui embaixo nisso que mais uma vez se tornou uma fossa de corrupo e decadncia, como no velho cosmos ou, pelo menos, um local superlotado e repleto de riscos e consequncias indesejveis. Nada mais. Nada alm. No h escapatria. Como eu disse antes, ainda somos capazes de sentir o sublime, mas somente naquilo que resta de natureza alm da Lua, e somente quando ocupamos uma Viso do Nada. Abaixo disso, no h mais sublime. Eis aqui uma periodizao um pouco grosseira: depois do cosmos, o universo, mas depois do universo, mais uma vez o cosmos. No somos ps-moder-nos, mas sim ps-naturais.

    Em segundo lugar, Gaia no como a Natureza, indiferente a nossos apuros. No se pode dizer que Ela se importe conosco como uma deusa ou como a Me Natureza alardeada em tantos panfletos ecolgicos da Nova Era; nem como a Pachamama da mitologia inca, que foi ressuscitada recentemente como novo foco da poltica latino-americana. Apesar de James Lovelock sempre ter flertado com metforas do divino, acho essa explorao da indiferena de Gaia muito mais espinhosa: porque Ela , de uma s vez, extraordinariamente sensvel a nossas aes, mas tambm se orienta por metas que no visam nem um pouco nosso bem-estar. Se Gaia uma deusa, Ela uma divindade que conseguimos tirar do

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    do conceito de cientfico, enquanto termo cosmolgico (ou melhor, cosmopoltico) que designa a busca, bem como a domesticao e a acomodao de novas entidades que tentam encontrar seu espao em meio ao coletivo para alm daquele dos humanos, muitas vezes at deslocando estes. A melhor coisa da Gaia de Lovelock que ela reage, sente e pode se livrar de ns sem ser unificada ontologicamente. No se trata de um superorganismo dotado de qualquer tipo de operao unificada.

    exatamente essa total falta de unidade que torna Gaia um elemento politicamente interessante. Ela no uma fora soberana que reina sobre ns. Na verdade, em consonncia com o que eu encaro como uma filosofia saudvel do antropoceno, Ela no tem uma atividade mais unificada que a raa humana, de quem se espera que ocupe o outro lado dessa ponte. A simetria perfeita, considerando que no temos um conhecimento maior sobre a constituio Dela em relao ao que sabemos sobre a nossa constituio. por isso que a Gaia-em-ns ou o ns-em-Gaia, ou seja, essa estranha faixa de Moebius, to apropriada tarefa de composio. Ela precisa ser composta pea por pea, assim como ns. Aquilo que desapareceu do universo pelo menos sua parte sublu-nar foi a continuidade. Sim, ela a perfeita trapaceira.

    O quarto e ltimo artifcio que quero analisar no poderia deixar de ser bastante deprimente. Toda a desconexo que percorri aqui se constri sobre a prpria ideia de uma imensa ameaa qual reagiramos de maneira lenta e seramos incapazes de nos ajustar. Eis a mola com a qual a ratoeira foi armada. claro que, quando confrontados com uma armadilha to ameaa-dora, os mais razoveis de ns reagem com o argumento totalmente plausvel de que previses apocalpticas so

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    um cientista heterodoxo h tempos e manter em grande medida sua posio de dissidente, o verdadeiro interesse do conceito montado por ele a partir de vrios pequenos elementos, que ele montado por esses vrios pequenos elementos cuja maioria vem de disciplinas cientficas independentemente do nome sugerido a ele por William Golding. Desenvolver um conceito que no formado principalmente por contedo cientfico seria um perda de tempo, considerando que a exigncia de nosso perodo ir atrs do antropoceno ao longo de linhas que so ditadas por seu carter hbrido. O que queremos dizer com espiritualidade foi muito enfraquecido por ideias errneas da cincia para ser capaz de oferecer qualquer alternativa. Nesse sentido, o supernatural muito pior que o natural a partir do qual ele se origina. Por isso, apesar desse nome, at onde temos conhecimento de estudos religiosos comparativos, Gaia no desempenha de fato o papel mais tradicional de uma deusa. At onde sou capaz de imaginar, Gaia apenas um conjunto de loops cibernticos de eventualidades positivas e negativas como demonstrado no conhecido modelo do Daisy World [Mundo das margaridas] . Um aps o outro, esses loops apenas adquirem, por acaso, um efeito totalmente inesperado de ampliar as condies para novos loops positivos e negativos de complexidade ainda mais intrincada. No h nenhuma teleologia, nenhuma Providncia, em tal argumento.

    claro que devemos ser cuidadosos com esse rtulo: quando digo que Gaia um conceito cientfico, no uso esse adjetivo no sentido epistemolgico de algo que intro-duz uma diferena radical e rastrevel entre verdadeiro e falso, racional e irracional, natural e poltico. Abordo isso em um sentido novo e, de certa forma, muito mais antigo,

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    Profecy Fails 9, de Festinger, Riecken e Schachter), Clive Hamilton argumenta que deveramos voltar novamente as atenes ao estudo da Sra. Keech e sua predio do fim do mundo. Nossa desconexo pode no residir nessa espera do fim e, com ela, na necessidade de reorganizar nosso sistema de crenas para prestar contas de por que ele no est acontecendo (assim como os primeiros cristos tiveram de fazer quando se deram conta de que o Fim no seria a vinda de Cristo pelo cu em uma clara demonstrao de pirotecnia apocalptica, mas sim pela lenta expanso por terra do imprio de Constantino). Mas hoje para ns a desconexo poderia estar na crena de que o Juzo Final no vai acontecer de uma vez por todas. Seria um caso bem interessante e aterrador de Quando a profecia d certo! E a negao, desta vez, signifi-caria que estamos reorganizando nosso sistema de crenas de modo a no encarar a chegada do Grande Dia.

    por esse motivo que Clive Hamilton afirma de maneira estranha e aterrorizadora que a esperana que devemos deixar de lado se desejamos fazer qualquer transao com Gaia. A esperana, esperana ininter-rupta, , para ele, a fonte de nossa melancolia e a causa de nossa dissonncia cognitiva.

    Eu espero (mais uma vez a esperana!) ter mostrado por que pode ser importante e at mesmo urgente reunir todos os recursos possveis para preencher a lacuna entre o tamanho e a escala dos problemas que temos de encarar e o conjunto de estados emocionais e cognitivos que associamos s tarefas de responder ao chamado de responsabilidade, sem cair em melancolia ou negao. em boa parte p