a nova evangelização: o desafio da igreja no início do...

12

Click here to load reader

Upload: vanngoc

Post on 08-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 1 -

2017

A Nova Evangelização:

o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

D. Rino Fisichella

Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização

O sentido de uma pergunta

"O que devemos fazer?" Pelo menos duas vezes, esta pergunta aparece no Novo Testamento.

A primeira, no discurso eucarístico, quando Jesus, depois de ter realizado a multiplicação dos

pães, repreende a multidão que tinha ido procurá-lo não porque tivesse acolhido o sinal realizado,

mas porque ficara saciada pelo pão que tinha comido (cf. Jo 6,26). Diante das palavras de Jesus:

"Procurai não o alimento que perece, mas aquele que permanece para a vida eterna, o qual o

Filho do homem vos dará" (Jo 6,27), a multidão pergunta exatamente, "O que devemos fazer?".

A resposta mostra-se simples e ao mesmo tempo radical e comprometedora: "Acreditar naquele

que o Pai enviou" (Jo 6,29). A segunda vez, encontra-se a mesma pergunta nos Atos dos

Apóstolos; depois do discurso de Pedro no dia de Pentecostes, muitos "compungiram-se no seu

coração" e perguntaram aos Doze: "O que devemos fazer?". A resposta de Pedro era diferente da

do Mestre somente nos termos, mas não no conteúdo: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja

batizado em nome de Jesus Cristo para remissão de vossos pecados" (At 2,38). Tanto num como

no outro caso, à pergunta sobre o "fazer" responde-se com um chamado para o "ser"; ao primado

do agir do homem antecipa-se o primado da graça que permite que se realize atos impossíveis de

outra forma.

Paradoxalmente, também nós hoje fazemos a mesma pergunta. Depois de tantos discursos

sobre a importância da nova evangelização no mundo contemporâneo, depois de repetidas

iniciativas que viram as nossas comunidades comprometidas, parece que ainda há muito para

fazer; mais ainda, o trabalho aumenta e lança novos desafios. Por isso, é válida também para nós

1

Page 2: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 2 -

a pergunta: "O que devemos fazer?". Ela torna-se ainda mais urgente no momento em que o

objeto do nosso discurso são as gerações jovens que parecem viver uma espécie de indiferença

em relação à fé, e não só. O que devemos fazer, então? Se a resposta consistisse em encontrar

imediatamente técnicas ou iniciativas concretas, estaríamos indo de encontro ao fracasso. Não

porque não sejam importantes, mas porque não podem ser o primeiro ponto da questão. Se

desejamos "fazer" algo de eficaz, é preciso, primeiro, ter uma compreensão do fenômeno. Não é

aqui o caso de repropor análises sociológicas ou estatísticas que todos, bem ou mal, conhecemos.

Aquilo que devemos ser capazes de fazer é propor um projeto cheio de sentido e prelúdio para a

realização da própria vida. Ou seja, um projeto que possa servir de fundamento a algumas

certezas e que não fique submetido à dúvida do ceticismo. O nosso contemporâneo, temos que

confessar, está submetido malgré lui (apesar de si mesmo) a uma série de propostas efêmeras,

sem raiz, construídas apenas sobre hipóteses que frequentemente resultam em desilusões

profundas, depois de um brevíssimo instante de fascínio passageiro.

Por isso, diante desta constante pergunta, a primeira reação que espontaneamente me assalta

é a de dizer: fixemos os olhos no ser e não no fazer. O concílio recordava isso mesmo com uma

boa dose de provocação quando, retomando literalmente as palavras de Paulo VI, escrevia na

Gaudium et spes: "O homem vale mais por aquilo que «é» do que por aquilo que «tem»" (GS

35). Num contexto cultural como o nosso que, sem dúvida, tem diante de si um equivocado

primado do "fazer" e do "ter", seria perigoso para nós, pastores, cair numa armadilha destas. Se

empenhássemos as nossas forças na multiplicação das atividades e das iniciativas, esquecendo

aquilo que lhes deve servir de suporte e a finalidade em vista da qual as trazemos à existência,

chegaríamos ao fim do nosso dia com a profunda ilusão de não ter produzido muito. Damos horas

de catequese, os locais das nossas paróquias parecem muito poucos para a multiplicidade das

atividades … e mesmo assim, o que fica de tudo isto?

Na base da mudança

Aquilo que me parece prioritário, antes de mais nada, é recuperar a consciência daquilo que

determina os comportamentos das pessoas e, por conseguinte, de quais instrumentos dotar a

nossa pastoral, para que a obra formativa que depende de nós possa ser eficaz e coerente. É

Page 3: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 3 -

necessário e urgente, em primeiro lugar, compreender que estamos diante de uma mudança real

de paradigmas de pensamentos e de linguagem que já não consentem que se encare a vida, o

mundo, a relação com os outros, a fé e os grandes valores como no passado. Esta mudança, que

tem todas as caraterísticas para ser considerada epocal, passa inevitavelmente pela linguagem à

qual todos estamos submetidos. Mesmo os conceitos mais simples e habituais e os termos que

nos são mais familiares já deixaram de ser percebidos e compreendidos do mesmo modo com

que nós os pensamos. Numa palavra, estamos diante da comprovação de uma profunda

ignorância dos conteúdos basilares da fé.

Se fosse possível, na esquematização que sou obrigado a manter, diria que o nosso primeiro

objetivo deveria ser o de considerar a importância da linguagem. Uso este termo de modo

abrangente para indicar não apenas as nossas palavras, mas também os nossos gestos, as nossas

expressões e, sobretudo, os estilos de vida… enfim, tudo o que é trazido à existência pelo nosso

modo de pensar. Evitar esta passagem não serve e não torna mais atraente a nossa proposta

pastoral, como se este discurso fosse um passatempo ao qual os teólogos se devem dedicar. É

necessário entrar no sistema de pensamento que hoje se impõe como dominante e verificar não

apenas de onde provém, mas sobretudo para onde tende. Todos estamos inseridos dentro de um

movimento cultural que encontra no niilismo de Nietzsche o seu ponto forte. Isto comporta a

perda de todos os fundamentos unitários para o extremo ceticismo, segundo o qual não apenas

não é possível ter uma verdade única, como também é impossível atingi-la. De fato, tudo gira em

torno do tema da impossibilidade que o homem tem de possuir uma verdade; pelo contrário, no

que diz respeito à verdade que lhe é proposta pela fé, ele deve fazer de tudo para se libertar dela,

sob pena da sua falta de liberdade e autonomia.

Agnosticismo e relativismo tornaram-se termos comuns na nossa pregação e nas nossas

reflexões. E mesmo assim, não conseguimos compreender em toda a sua profundidade que os

nossos fiéis vivem estas realidades de modo já inconsciente, como se para eles fossem naturais,

a tal ponto que não compreendem efetivamente as objeções que levantamos a este seu modo de

pensar e de ser. A objeção que nos fazem traduz-se na obviedade da pergunta: "…Mas no final

das contas, que mal tem?". Acabamos assim por enfrentar um fato relevante na medida em que,

de um lado, nós conduzimos uma discussão teórica sobre o tema da vida, da fé e da verdade, ao

passo que, do outro lado, os comportamentos que são assumidos dependem inconscientemente

Page 4: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 4 -

de premissas que negam todo e qualquer valor comum para o reduzirem ao sentimento e ao

julgamento individual, onde tudo é permitido, desde que o outro aja como bem entender sem

causar danos à liberdade pessoal. Por isto mesmo, é necessário que empenhemos as nossas forças

para que a ação pastoral tenha em vista temas essenciais que, por essa mesma razão, são

apresentados com argumentações fundamentadas o mais solidamente possível. Entram em jogo,

a este ponto, dois elementos importantes: conteúdos breves com uma linguagem incisiva e

compreensível. Não deveremos ter medo de recorrer também a novas expressões semânticas ou

a novas parábolas da vida do dia-a-dia, desde que sejam coerentes com a verdade de sempre.

Estes elementos, porém, devem encontrar em nós uma dupla convicção: a repetitividade dos

conteúdos nas diferentes sedes do nosso ministério; não basta fazer uma bela catequese e depois

não voltar mais ao assunto. A repetitividade é um ponto basilar para incidir na memória, de cuja

falta hoje se sofre particularmente. Além disso, a paciência que sabe esperar pelo momento mais

oportuno para averiguar a comunicação dos conteúdos e a sua eficácia. Esta, porém, requer da

nossa parte o compromisso de recuperar com força o encontro interpessoal e a direção espiritual

dos nossos fiéis, verdadeiro instrumento para a transmissão viva da fé.

Um exemplo concreto é verificável se analisarmos a cultura digital. Escreve o Papa Francisco

na Evangelii gaudium: “Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior,

imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos

países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão

de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas, mas eticamente

debilitadas” (EG 62).

Perguntamo-nos: Que papel desempenha a internet na vida das pessoas e sobretudo dos mais

jovens, que são a geração em que devemos pensar de maneira profética? A pergunta não é

efetivamente retórica e é merecedora de uma análise muito mais atenta do que aquela que se tem

feito. Já se multiplicam os estudos para considerar os vários aspectos que derivam do uso da

internet. Uma breve resenha mostra em primeiro plano livros dedicados às novas patologias

produzidas por causa das horas gastas a navegar. Os recursos que nascem desta nova produção

da criatividade e do gênio humano são incríveis. Na verdade, as horas passadas diante da tela do

computador ou do celular estão modificando não pouco a nossa vida e o futuro reservará

certamente ulteriores novidades. O progresso que a tecnologia produz neste setor é

Page 5: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 5 -

impressionante e aquilo que vemos hoje não é mais que o início. O que merece uma consideração

especial, contudo, não é tanto o uso que se faz da internet, mas sobretudo que isso representa

uma nova cultura. Lentamente, mas inexoravelmente, está ganhando espaço uma nova forma de

pensamento e de organização da vida social. Os comportamentos estão se modificando porque

está se criando uma nova linguagem e a ilusão de que o que temos entre mãos seja apenas um

instrumento leva a esquecer as consequências a que, ao que parece, estamos assistindo de modo

passivo. A internet é una cultura antes de ser um instrumento de informação e coloca grandes

problemas mesmo do ponto de vista ético. Como todas as culturas, o que aparece em primeiro

plano é a incidência que tem na vida das pessoas e no seu modo de pensar e de se comportar.

Efetivamente, não é óbvio que se pergunte, por isso, se, enquanto “uso” a internet, eu sou capaz

de fazê-lo de modo a conservar a minha liberdade e a capacidade crítica de questionar sem

esperar apenas respostas.

É significativo um trecho da Homilia de Bento XVI para compreender o percurso do Sínodo.

Partindo do comentário ao milagre feito ao cego Bartimeu, ele dizia: “Esta interpretação de

Bartimeu como pessoa decaída de uma condição de «grande prosperidade» é sugestiva,

convidando-nos a refletir sobre o fato que há riquezas preciosas na nossa vida que podemos

perder e que não são materiais. Nesta perspectiva, Bartimeu poderia representar aqueles que

vivem em regiões de antiga evangelização, onde a luz da fé se enfraqueceu, e se afastaram de

Deus, deixando de O considerarem relevante na própria vida: são pessoas que deste modo

perderam uma grande riqueza, «decaíram» de uma alta dignidade – não econômica ou de poder

terreno, mas a dignidade cristã –, perderam a orientação segura e firme da vida e tornaram-se,

muitas vezes inconscientemente, mendigos do sentido da existência. São as inúmeras pessoas

que precisam de uma nova evangelização, isto é, de um novo encontro com Jesus, o Cristo, o

Filho de Deus (cf. Mc 1,1), que pode voltar a abrir os seus olhos e ensinar-lhes a estrada”.

Destas palavras emerge uma característica da nova evangelização. Ela consiste em reavivar a

fé dos cristãos. Frequentemente, de fato, parece que ela se tornou como uma brasa de fogo que

arde, mas deixou de ser uma chama viva capaz de dar sustento. Por diversos motivos, tornou-se

uma fé fraca e precisa, por isso, de um renovado impulso. Estamos falando das “pessoas

batizadas que, porém, não vivem as exigências do Batismo”. Pessoas que estão dispersas em

todos os continentes e em todas as Igrejas, especialmente aquelas em que o secularismo colheu

Page 6: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 6 -

o maior número de vítimas. É necessário ter um particular cuidado pastoral destes batizados. A

tarefa da nova evangelização é, portanto, encontrar as formas adequadas para que estes cristãos

voltem a encontrar Jesus Cristo, vivo na vida da comunidade cristã, e possam assim voltar a

descobrir a beleza da fé.

A nova evangelização é a missão que "sempre e em toda a parte" a Igreja sentiu como sua

tarefa fundamental para corresponder ao mandato do Senhor de ir por todo o mundo e fazer de

todos os povos da terra seus discípulos. Jesus de Nazaré quis a Igreja, para que fosse a

continuação viva da sua presença no meio do mundo, nunca falhando ela com esta sua tarefa;

nasceu com a missão de evangelizar e, no momento em que renunciasse a essa missão, estaria

indo contra a sua própria natureza. Anunciar o Evangelho não faz de nós melhores que os outros,

mas certamente nos torna mais responsáveis. Esta é uma missão que se torna mais evidente num

momento de crise como aquele que estamos atravessando. Estamos no final de uma época que,

no bem e no mal, marcou a história destes últimos séculos; estamos para entrar numa nova era

do mundo que ainda se mostra incerta nos seus primeiros passos e parece vacilar devido à

fraqueza do pensamento. Por este motivo, o papel dos católicos torna-se ainda mais significativo

pela riqueza da tradição que construímos no passado. Fomos convidados a ser "sal" e "luz"; para

dar sabor à vida e iluminar os que estão à procura de um sentido. Se esta responsabilidade

falhasse, o mundo ficaria sem uma palavra de esperança e nós estaríamos destinados a ser

insignificantes.

A obra de evangelização, portanto, entra em contato diretamente com as culturas, plasma-as,

transforma-as da mesma forma que é determinada por elas na sua linguagem e na sua

expressividade. Nenhuma forma de evangelização será eficaz, se a Palavra de Deus não entrar

na vida das pessoas, no seu modo de pensar e de agir para chamá-las à conversão. Isto que sempre

existiu em tempos diferentes é aquilo que, hoje, nós chamamos "nova evangelização". Não é

diferente nos nossos dias; podemos usar uma expressão diferente, mas a substância permanece

idêntica. Somos chamados a anunciar o Evangelho de maneira eficaz; isso exige, antes de mais

nada, que se frequente a Palavra de Deus, o que permite que os que escutam não apenas

verifiquem o nosso conhecimento do Evangelho, mas sobretudo que verifiquem a nossa

credibilidade que se exprime num coerente testemunho de vida. Deste processo, contudo, não

fica excluída a atenção àquilo que os nossos contemporâneos vivem e pensam; numa palavra, a

Page 7: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 7 -

"cultura" do nosso tempo. O objetivo é, portanto, refletir e encontrar as formas adequadas para

renovar o nosso anúncio a tantos batizados que deixaram de ter identidade e de compreender o

sentido de pertença à comunidade cristã, com a consequência de um forte individualismo privado

de responsabilidade pública e social. Somos chamados, enfim, a renovar o espírito missionário

para dar esse salto capaz de corresponder às exigências apresentadas pela nova situação histórica.

Neste sentido, a tarefa que nos espera não é diferente da que sempre marcou a Igreja: dar a

conhecer o verdadeiro rosto de Jesus Cristo, único salvador, revelador do amor misericordioso

do Pai que vai ao encontro de todos, sem excluir ninguém.

A este propósito, duas expressões me parecem particularmente eficazes para tornar as coisas

mais claras. A primeira indica o conteúdo, a segunda apresenta a metodologia. A nova

evangelização tem força a partir do texto da Carta aos Hebreus: “Jesus Cristo é o mesmo ontem,

hoje e sempre” (Hb 13,8). Aquilo que é anunciado permanece igual como no primeiro dia do

nosso contato com a fé. Para entrar mais ainda no cerne daquilo que trata o nosso texto, é bom

que não se descuide o seu contexto imediato. O autor mostra o seu particular interesse na coesão

da comunidade e diz: “Lembrai-vos dos vossos chefes, os quais vos anunciaram a palavra de

Deus; e, contemplando o êxito do seu procedimento, imitai a sua fé” (v. 7). Diversamente de

numerosos textos das Cartas onde ocorre frequentemente o termo presbíteros (presbyteroi) ou

bispos (episkopoi), aqui encontramos, antes, o raro caso de “hegoumenoi”, ou seja, os “chefes”,

aqueles de quem Jesus, usando o mesmo termo no evangelho, diz que devem “servir” enquanto

esperam pela sua vinda (cf. Lc 22,26). O horizonte que se abre à nossa frente pode nos ajudar a

refletir. Aos discípulos que discutem entre si quem deve ser o maior, Jesus responde que quem

governa deve ser como quem serve. Referido aos nossos dias, isto indica que, num momento

como o nosso, não raro tão confuso e com tendência ao predomínio do poder, é necessário

reafirmar o primado de um verdadeiro serviço que os crentes são chamados a desempenhar.

Todavia, o texto da carta vai mais além e mostra que a primeira tarefa reconhecida a estes

“chefes” é terem anunciado a palavra de Deus. Foi mesmo a pregação que permitiu a escuta e

esta, por sua vez, consentiu que se chegasse à fé (cf. Rm 10,14), e a partir daqui que se agisse em

favor da construção da comunidade cristã. O anúncio, como se vê, continua a ser a primeira tarefa

do ministério que os cristãos são chamados a desempenhar; não se pode renunciar a esse serviço,

sem que se esteja falhando com a responsabilidade do batismo. O autor sagrado, por fim,

Page 8: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 8 -

acrescenta algo em nada secundário, sobretudo se se considera uma vez mais o nosso momento

histórico: o estilo de vida do crente leva a que se imite a sua fé. A Carta aos Hebreus não baixa

a fasquia; a eficácia do ministério não se pode limitar à pregação; é sobretudo esta que deve

tornar-se visível num testemunho que permite perceber a sua credibilidade. Na união destes

componentes, dos quais não se pode separar a ação litúrgica tão importante no ensinamento desta

carta, configura-se a lógica da fé. Prescindir destes aspetos ou dividi-los, invalidaria o conteúdo

da evangelização e da fé. Enfim, acreditar não é um ato de adesão a um teorema, mas é

compromisso de vida que vai até à dádiva de si, porque se encontrou Jesus Cristo numa

comunidade viva que o anuncia de modo digno de fé.

A este ponto, o nosso texto central permite dar um passo ulterior, que especifica em que

consiste para pregação do apóstolo a fé recebida: consiste na pessoa de Jesus Cristo. A expressão

que o autor sagrado utiliza é categórica: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”. Não se

dá espaço a hesitação alguma, e muito mesmo a qualquer forma de neutralidade. Naqueles três

advérbios está atestada a solidez da revelação de Jesus; ele é a “pedra angular” (Mt 21,42), a

“rocha” (Mt 7,24-25), o fundamento sobre o qual construir a própria vida. Já o era “ontem”, no

momento em que se acreditou nele; o é “hoje”, quando é anunciada a sua Palavra e celebrado o

mistério da sua morte e ressurreição, e o será “para sempre” até ao fim dos tempos. Numa palavra,

Cristo é sempre o mesmo. Além disto, a Carta acrescenta algo no versículo seguinte: “Não vos

deixeis levar por doutrinas várias e estranhas; porque boa coisa é ter o coração confirmado pela

graça” (v. 9). É como se o autor sagrado enxergasse para além do seu próprio tempo – certamente

não menos fácil que o de hoje – e fixasse o olhar no futuro dos crentes, quando diversas filosofias

e ideologias viriam atentar contra a estabilidade e integridade da fé. Nada de novo nesta

perspectiva. Um olhar pelas Cartas do Novo Testamento não faz mais que confirmar a mesma

preocupação. Paulo, várias vezes, convida a não se deixar “levar ao redor pelos ventos de

doutrinas” (Ef 4,14), a não se deixar influenciar pelas “prescrições e doutrinas dos homens” (Cl

2,22), alerta mesmo contra as “doutrinas diabólicas” (1Tm 4,1) e contra os que pregam “outro

evangelho” diferente do seu (Gl 1,7-9). Pedro não lhe fica atrás, quando fala de “falsos profetas”

(2Pd 2,1), ao passo que João acrescenta a estes também “muitos sedutores” (2Jo 2,7). Talvez,

esta continue a ser nos nossos dias a forma à qual devamos prestar maior vigilância. A sedução

de pregadores que sem profundidade intelectual tocam muito nas cordas dos sentimentos,

Page 9: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 9 -

expondo utopias que prometendo sonhos de felicidade, encerram numa solidão maior. A voz das

sereias não é de outros tempos; infelizmente, pertence também aos nossos dias. Tapar os ouvidos

com cera poderia facilitar as coisas e deixar tudo numa ilusão encoberta. Ter a força de Ulisses

e permanecer ligados à arvore mestra é de poucos. Mesmo assim, é a estrada vencedora para

superar Cila e Caríbdis.

O segundo texto ao qual fazer referência é a magna carta da apologia cristã: “sempre prontos

a dar uma resposta a todo aquele que vos pedir razão da esperança que está em vós” (1Pd 3,15).

Conhecemos bem a condição da primeira comunidade a quem Pedro se dirige: dispersa,

fragmentada, submetida a muitas dificuldades e, não por último, objeto de vários tipos de

violência. Não será certamente sem motivo que o apóstolo se sente no dever de recordar àqueles

cristãos: “não estranheis a fogueira de perseguição que se ateou no meio de vós para vos pôr à

prova, como se vos acontecesse alguma coisa estranha; mas, visto que sois participantes dos

sofrimentos de Cristo, regozijai-vos, para que também, na revelação da sua glória, exulteis cheios

de júbilo. Se sois insultados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois, porque o Espírito da

glória e de Deus repousa sobre vós. Nenhum de vós, porém, padeça como homicida, ou ladrão,

ou malfeitor, ou como quem se envolve em negócios alheios; mas, se padece como cristão, não

se envergonhe; antes, glorifique a Deus nesse nome” (1Pd 4,12-16). Palavras que permanecem

com o seu significado mesmo nos nossos dias em diversas regiões do nosso pequeno mundo.

Apesar deste contexto, contudo, os crentes são chamados a “dar razão” da fé.

A Igreja é, portanto, chamada a revigorar-se a si mesma naquilo que tem de mais essencial

como é o caso do anúncio missionário. Alguém poderia insinuar que decidir por uma nova

evangelização equivale a julgar a ação pastoral levada a cabo anteriormente como falida por

negligência ou pela escassa credibilidade oferecida pelos seus homens. Mesmo esta consideração

não é privada de uma sua plausibilidade; no entanto, limita-se ao fenômeno sociológico tomado

no seu carácter fragmentário, sem considerar que a Igreja no mondo apresenta características de

constante santidade e de testemunhos dignos de fé que ainda nos nossos dias são marcados pela

oferta da própria vida. Por isso, realizar uma nova evangelização equivale, antes de tudo, a tomar

a vida cristã a sério no encontro pessoal com Jesus de Nazaré através do crescimento do sentido

eclesial.

Page 10: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 10 -

Aquilo que vejo pessoalmente no horizonte, justamente por força da nova evangelização, é a

exigência de criar um modelo antropológico capaz de realizar a necessária síntese entre o que é

fruto da conquista dos séculos anteriores e a sensibilidade com que interpretamos o nosso

presente. Em alguns aspetos, gostaria de ver no horizonte um novo humanismo. Uso

intencionalmente esta expressão, porque está cheio do significado adquirido com razão no curso

dos séculos. Ele determinou uma etapa fundamental para a cultura. O humanismo, na verdade,

marcou no seu tempo um autêntico entusiasmo que incidiu em todos os âmbitos da atividade

humana. Aquilo que constituiu a sua sorte foi justamente a vivacidade do movimento que se

levou a cabo e que envolveu o espírito do tempo a ponto de reinterpretar de modo novo as

problemáticas de sempre. O Humanismo foi a capacidade de compreender a mudança que estava

se realizando, mas do mesmo modo exprimiu a convicção de poder reler e resolver os problemas

que a humanidade desde sempre enfrentava. Não foi uma visão fragmentária do mundo, mas

unitária; do mesmo modo que era unitária a leitura do homem que tinha sido colocado no centro

da criação. Nesta fase, que se estendeu da filosofia à literatura, da arte à descoberta de novas

terras, Deus não estava excluído mas tornava-se o horizonte de sentido da procura pessoal e da

vida social.

Por que não pensar que a nova evangelização pode ser o fundamento comum e o objetivo final

partilhado para restituir a todos o sentido da própria identidade e o valor da pertença? Nota-se

frequentemente uma enfadonha repetitividade das nossas iniciativas apenas porque lhes falta o

fundamento. Parece que existe em muitos uma “pastoral do status quo” mais do que se deixar

envolver por uma dinâmica de crescimento que requer o desenvolvimento e o progresso. Penso

na importância dos sacerdotes no seu espaço de ministério peculiar e do tempo que dedicam à

preparação da homilia e da catequese. Penso nas grandes oportunidades que são oferecidas com

algumas grandes celebrações: batismo e funeral onde se podem encontrar pessoas distantes da

frequência da Igreja, que naquelas circunstâncias, contudo, estão mais facilmente abertas à

escuta, se encontrarem conteúdos que o mereçam e que levem a refletir. Penso na capacidade de

visitar as famílias da sua comunidade, para levá-las a sentir a presença do sacerdote que é

responsável por elas; sobretudo quando uma família tem pessoas doentes ou no hospital. O nosso

tempo sacerdotal deveria encontrar nestes momentos a força do encontro interpessoal como

garantia para a transmissão da fé. O momento do catecumenato que, nas nossas regiões, incide

Page 11: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 11 -

sempre sobre muitos adultos, e a necessária formação dos nossos fiéis cada vez mais ignorantes

acerca dos conteúdos básicos da fé deveria encontrar-nos muito vigilantes para propor caminhos

permanentes de fé, ainda que cansativos. O primeiro anúncio que, em muitos casos, se faz, não

pode ser confundido com toda a obra de evangelização, porque requer atenção às diferentes

situações em que nos encontramos.

Um capítulo importante seria o da catequese e da sua relação com a nova evangelização.

Parece-me que deveríamos sair do túnel em que, ao longo de decênios, se pensou a catequese

apenas em vista dos sacramentos. Se a catequese vive em função dos sacramentos e, hoje, estes

ficaram reduzidos aos da iniciação, é óbvio que falha à sua própria função que é a de permitir o

amadurecimento da fé na sua relação com as condições de vida do crente. Enfim, parece-me

fundamental recuperar uma forte identidade cristã que se possa conjugar com um correspondente

sentido de pertença à comunidade. A formação deveria ter como objetivo justamente um

recuperado sentido evangélico sem o qual a salvação não entra nas nossas casas. Uma identidade

que se torna forte num momento de fraqueza cultural, da sua tradição viva que se experimenta

na comunidade; do mesmo modo, uma comunidade forte porque espaço de identidade que

recupera o essencial: o espírito missionário que não pode ser delegado. Para o dizer com as

palavras da Evangelii nuntiandi: “A evidente importância do conteúdo da evangelização não

deve esconder a importância das vias e dos meios da mesma evangelização. Este problema do

«como evangelizar» apresenta-se sempre atual, porque as maneiras de o fazer variam em

conformidade com as diversas circunstâncias de tempo, de lugar e de cultura, e lançam, por isso

mesmo, um desafio em certo modo à nossa capacidade de descobrir e de adaptar. A nós

especialmente, Pastores da Igreja, compete o cuidado de remodelar com ousadia e com prudência

e numa fidelidade total ao seu conteúdo, os processos, tornando-os o mais possível adaptados e

eficazes, para comunicar a mensagem evangélica aos homens do nosso tempo” (EN 40).

Enfim, para concluir, o mundo de hoje tem uma profunda necessidade do anúncio do amor

cristão porque, infelizmente, conhece apenas grandes fracassos. É provavelmente aqui que nasce

o paradoxo que se abre diante dos nossos olhos e que leva a mente a refletir sobre o sentido da

nova evangelização. Olhar para o futuro com a certeza da verdadeira esperança é o que permite

que não fiquemos encerrados nem numa espécie de romantismo que olha apenas para o passado,

nem de cair num horizonte de utopia porque encandeados por hipóteses que não poderão ser

Page 12: A Nova Evangelização: o desafio da Igreja no início do ...arqrio.org/files/repository/1___Fisichella_1_27012017142334.pdf · o desafio da Igreja no início do terceiro milênio

Curso anual dos bispos do Brasil - 2017

- 12 -

correspondidas. A fé compromete no hoje que vivemos; por isso, não lhe corresponder seria

ignorância e medo; a nós cristãos, todavia, isto não é permitido. Permanecer fechados nas nossas

igrejas poderia dar-nos alguma consolação, mas esvaziaria o Pentecostes. É o tempo de

escancarar as portas e de voltar a anunciar a ressurreição de Cristo, da qual somos testemunhas.

Segundo as palavras do Santo Bispo Inácio nos inícios do cristianismo: “Não basta ser chamados

cristãos; é preciso que o sejamos de verdade” (Aos Cristãos de Magnésia, I,1). Se alguém quer

reconhecer os cristãos, deve poder fazê-lo a partir do seu compromisso de fé, não das suas

intenções.