a nova evangelização: o desafio da igreja no início do...
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Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
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2017
A Nova Evangelização:
o desafio da Igreja no início do terceiro milênio
D. Rino Fisichella
Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização
O sentido de uma pergunta
"O que devemos fazer?" Pelo menos duas vezes, esta pergunta aparece no Novo Testamento.
A primeira, no discurso eucarístico, quando Jesus, depois de ter realizado a multiplicação dos
pães, repreende a multidão que tinha ido procurá-lo não porque tivesse acolhido o sinal realizado,
mas porque ficara saciada pelo pão que tinha comido (cf. Jo 6,26). Diante das palavras de Jesus:
"Procurai não o alimento que perece, mas aquele que permanece para a vida eterna, o qual o
Filho do homem vos dará" (Jo 6,27), a multidão pergunta exatamente, "O que devemos fazer?".
A resposta mostra-se simples e ao mesmo tempo radical e comprometedora: "Acreditar naquele
que o Pai enviou" (Jo 6,29). A segunda vez, encontra-se a mesma pergunta nos Atos dos
Apóstolos; depois do discurso de Pedro no dia de Pentecostes, muitos "compungiram-se no seu
coração" e perguntaram aos Doze: "O que devemos fazer?". A resposta de Pedro era diferente da
do Mestre somente nos termos, mas não no conteúdo: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja
batizado em nome de Jesus Cristo para remissão de vossos pecados" (At 2,38). Tanto num como
no outro caso, à pergunta sobre o "fazer" responde-se com um chamado para o "ser"; ao primado
do agir do homem antecipa-se o primado da graça que permite que se realize atos impossíveis de
outra forma.
Paradoxalmente, também nós hoje fazemos a mesma pergunta. Depois de tantos discursos
sobre a importância da nova evangelização no mundo contemporâneo, depois de repetidas
iniciativas que viram as nossas comunidades comprometidas, parece que ainda há muito para
fazer; mais ainda, o trabalho aumenta e lança novos desafios. Por isso, é válida também para nós
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a pergunta: "O que devemos fazer?". Ela torna-se ainda mais urgente no momento em que o
objeto do nosso discurso são as gerações jovens que parecem viver uma espécie de indiferença
em relação à fé, e não só. O que devemos fazer, então? Se a resposta consistisse em encontrar
imediatamente técnicas ou iniciativas concretas, estaríamos indo de encontro ao fracasso. Não
porque não sejam importantes, mas porque não podem ser o primeiro ponto da questão. Se
desejamos "fazer" algo de eficaz, é preciso, primeiro, ter uma compreensão do fenômeno. Não é
aqui o caso de repropor análises sociológicas ou estatísticas que todos, bem ou mal, conhecemos.
Aquilo que devemos ser capazes de fazer é propor um projeto cheio de sentido e prelúdio para a
realização da própria vida. Ou seja, um projeto que possa servir de fundamento a algumas
certezas e que não fique submetido à dúvida do ceticismo. O nosso contemporâneo, temos que
confessar, está submetido malgré lui (apesar de si mesmo) a uma série de propostas efêmeras,
sem raiz, construídas apenas sobre hipóteses que frequentemente resultam em desilusões
profundas, depois de um brevíssimo instante de fascínio passageiro.
Por isso, diante desta constante pergunta, a primeira reação que espontaneamente me assalta
é a de dizer: fixemos os olhos no ser e não no fazer. O concílio recordava isso mesmo com uma
boa dose de provocação quando, retomando literalmente as palavras de Paulo VI, escrevia na
Gaudium et spes: "O homem vale mais por aquilo que «é» do que por aquilo que «tem»" (GS
35). Num contexto cultural como o nosso que, sem dúvida, tem diante de si um equivocado
primado do "fazer" e do "ter", seria perigoso para nós, pastores, cair numa armadilha destas. Se
empenhássemos as nossas forças na multiplicação das atividades e das iniciativas, esquecendo
aquilo que lhes deve servir de suporte e a finalidade em vista da qual as trazemos à existência,
chegaríamos ao fim do nosso dia com a profunda ilusão de não ter produzido muito. Damos horas
de catequese, os locais das nossas paróquias parecem muito poucos para a multiplicidade das
atividades … e mesmo assim, o que fica de tudo isto?
Na base da mudança
Aquilo que me parece prioritário, antes de mais nada, é recuperar a consciência daquilo que
determina os comportamentos das pessoas e, por conseguinte, de quais instrumentos dotar a
nossa pastoral, para que a obra formativa que depende de nós possa ser eficaz e coerente. É
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necessário e urgente, em primeiro lugar, compreender que estamos diante de uma mudança real
de paradigmas de pensamentos e de linguagem que já não consentem que se encare a vida, o
mundo, a relação com os outros, a fé e os grandes valores como no passado. Esta mudança, que
tem todas as caraterísticas para ser considerada epocal, passa inevitavelmente pela linguagem à
qual todos estamos submetidos. Mesmo os conceitos mais simples e habituais e os termos que
nos são mais familiares já deixaram de ser percebidos e compreendidos do mesmo modo com
que nós os pensamos. Numa palavra, estamos diante da comprovação de uma profunda
ignorância dos conteúdos basilares da fé.
Se fosse possível, na esquematização que sou obrigado a manter, diria que o nosso primeiro
objetivo deveria ser o de considerar a importância da linguagem. Uso este termo de modo
abrangente para indicar não apenas as nossas palavras, mas também os nossos gestos, as nossas
expressões e, sobretudo, os estilos de vida… enfim, tudo o que é trazido à existência pelo nosso
modo de pensar. Evitar esta passagem não serve e não torna mais atraente a nossa proposta
pastoral, como se este discurso fosse um passatempo ao qual os teólogos se devem dedicar. É
necessário entrar no sistema de pensamento que hoje se impõe como dominante e verificar não
apenas de onde provém, mas sobretudo para onde tende. Todos estamos inseridos dentro de um
movimento cultural que encontra no niilismo de Nietzsche o seu ponto forte. Isto comporta a
perda de todos os fundamentos unitários para o extremo ceticismo, segundo o qual não apenas
não é possível ter uma verdade única, como também é impossível atingi-la. De fato, tudo gira em
torno do tema da impossibilidade que o homem tem de possuir uma verdade; pelo contrário, no
que diz respeito à verdade que lhe é proposta pela fé, ele deve fazer de tudo para se libertar dela,
sob pena da sua falta de liberdade e autonomia.
Agnosticismo e relativismo tornaram-se termos comuns na nossa pregação e nas nossas
reflexões. E mesmo assim, não conseguimos compreender em toda a sua profundidade que os
nossos fiéis vivem estas realidades de modo já inconsciente, como se para eles fossem naturais,
a tal ponto que não compreendem efetivamente as objeções que levantamos a este seu modo de
pensar e de ser. A objeção que nos fazem traduz-se na obviedade da pergunta: "…Mas no final
das contas, que mal tem?". Acabamos assim por enfrentar um fato relevante na medida em que,
de um lado, nós conduzimos uma discussão teórica sobre o tema da vida, da fé e da verdade, ao
passo que, do outro lado, os comportamentos que são assumidos dependem inconscientemente
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de premissas que negam todo e qualquer valor comum para o reduzirem ao sentimento e ao
julgamento individual, onde tudo é permitido, desde que o outro aja como bem entender sem
causar danos à liberdade pessoal. Por isto mesmo, é necessário que empenhemos as nossas forças
para que a ação pastoral tenha em vista temas essenciais que, por essa mesma razão, são
apresentados com argumentações fundamentadas o mais solidamente possível. Entram em jogo,
a este ponto, dois elementos importantes: conteúdos breves com uma linguagem incisiva e
compreensível. Não deveremos ter medo de recorrer também a novas expressões semânticas ou
a novas parábolas da vida do dia-a-dia, desde que sejam coerentes com a verdade de sempre.
Estes elementos, porém, devem encontrar em nós uma dupla convicção: a repetitividade dos
conteúdos nas diferentes sedes do nosso ministério; não basta fazer uma bela catequese e depois
não voltar mais ao assunto. A repetitividade é um ponto basilar para incidir na memória, de cuja
falta hoje se sofre particularmente. Além disso, a paciência que sabe esperar pelo momento mais
oportuno para averiguar a comunicação dos conteúdos e a sua eficácia. Esta, porém, requer da
nossa parte o compromisso de recuperar com força o encontro interpessoal e a direção espiritual
dos nossos fiéis, verdadeiro instrumento para a transmissão viva da fé.
Um exemplo concreto é verificável se analisarmos a cultura digital. Escreve o Papa Francisco
na Evangelii gaudium: “Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior,
imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos
países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão
de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas, mas eticamente
debilitadas” (EG 62).
Perguntamo-nos: Que papel desempenha a internet na vida das pessoas e sobretudo dos mais
jovens, que são a geração em que devemos pensar de maneira profética? A pergunta não é
efetivamente retórica e é merecedora de uma análise muito mais atenta do que aquela que se tem
feito. Já se multiplicam os estudos para considerar os vários aspectos que derivam do uso da
internet. Uma breve resenha mostra em primeiro plano livros dedicados às novas patologias
produzidas por causa das horas gastas a navegar. Os recursos que nascem desta nova produção
da criatividade e do gênio humano são incríveis. Na verdade, as horas passadas diante da tela do
computador ou do celular estão modificando não pouco a nossa vida e o futuro reservará
certamente ulteriores novidades. O progresso que a tecnologia produz neste setor é
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impressionante e aquilo que vemos hoje não é mais que o início. O que merece uma consideração
especial, contudo, não é tanto o uso que se faz da internet, mas sobretudo que isso representa
uma nova cultura. Lentamente, mas inexoravelmente, está ganhando espaço uma nova forma de
pensamento e de organização da vida social. Os comportamentos estão se modificando porque
está se criando uma nova linguagem e a ilusão de que o que temos entre mãos seja apenas um
instrumento leva a esquecer as consequências a que, ao que parece, estamos assistindo de modo
passivo. A internet é una cultura antes de ser um instrumento de informação e coloca grandes
problemas mesmo do ponto de vista ético. Como todas as culturas, o que aparece em primeiro
plano é a incidência que tem na vida das pessoas e no seu modo de pensar e de se comportar.
Efetivamente, não é óbvio que se pergunte, por isso, se, enquanto “uso” a internet, eu sou capaz
de fazê-lo de modo a conservar a minha liberdade e a capacidade crítica de questionar sem
esperar apenas respostas.
É significativo um trecho da Homilia de Bento XVI para compreender o percurso do Sínodo.
Partindo do comentário ao milagre feito ao cego Bartimeu, ele dizia: “Esta interpretação de
Bartimeu como pessoa decaída de uma condição de «grande prosperidade» é sugestiva,
convidando-nos a refletir sobre o fato que há riquezas preciosas na nossa vida que podemos
perder e que não são materiais. Nesta perspectiva, Bartimeu poderia representar aqueles que
vivem em regiões de antiga evangelização, onde a luz da fé se enfraqueceu, e se afastaram de
Deus, deixando de O considerarem relevante na própria vida: são pessoas que deste modo
perderam uma grande riqueza, «decaíram» de uma alta dignidade – não econômica ou de poder
terreno, mas a dignidade cristã –, perderam a orientação segura e firme da vida e tornaram-se,
muitas vezes inconscientemente, mendigos do sentido da existência. São as inúmeras pessoas
que precisam de uma nova evangelização, isto é, de um novo encontro com Jesus, o Cristo, o
Filho de Deus (cf. Mc 1,1), que pode voltar a abrir os seus olhos e ensinar-lhes a estrada”.
Destas palavras emerge uma característica da nova evangelização. Ela consiste em reavivar a
fé dos cristãos. Frequentemente, de fato, parece que ela se tornou como uma brasa de fogo que
arde, mas deixou de ser uma chama viva capaz de dar sustento. Por diversos motivos, tornou-se
uma fé fraca e precisa, por isso, de um renovado impulso. Estamos falando das “pessoas
batizadas que, porém, não vivem as exigências do Batismo”. Pessoas que estão dispersas em
todos os continentes e em todas as Igrejas, especialmente aquelas em que o secularismo colheu
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o maior número de vítimas. É necessário ter um particular cuidado pastoral destes batizados. A
tarefa da nova evangelização é, portanto, encontrar as formas adequadas para que estes cristãos
voltem a encontrar Jesus Cristo, vivo na vida da comunidade cristã, e possam assim voltar a
descobrir a beleza da fé.
A nova evangelização é a missão que "sempre e em toda a parte" a Igreja sentiu como sua
tarefa fundamental para corresponder ao mandato do Senhor de ir por todo o mundo e fazer de
todos os povos da terra seus discípulos. Jesus de Nazaré quis a Igreja, para que fosse a
continuação viva da sua presença no meio do mundo, nunca falhando ela com esta sua tarefa;
nasceu com a missão de evangelizar e, no momento em que renunciasse a essa missão, estaria
indo contra a sua própria natureza. Anunciar o Evangelho não faz de nós melhores que os outros,
mas certamente nos torna mais responsáveis. Esta é uma missão que se torna mais evidente num
momento de crise como aquele que estamos atravessando. Estamos no final de uma época que,
no bem e no mal, marcou a história destes últimos séculos; estamos para entrar numa nova era
do mundo que ainda se mostra incerta nos seus primeiros passos e parece vacilar devido à
fraqueza do pensamento. Por este motivo, o papel dos católicos torna-se ainda mais significativo
pela riqueza da tradição que construímos no passado. Fomos convidados a ser "sal" e "luz"; para
dar sabor à vida e iluminar os que estão à procura de um sentido. Se esta responsabilidade
falhasse, o mundo ficaria sem uma palavra de esperança e nós estaríamos destinados a ser
insignificantes.
A obra de evangelização, portanto, entra em contato diretamente com as culturas, plasma-as,
transforma-as da mesma forma que é determinada por elas na sua linguagem e na sua
expressividade. Nenhuma forma de evangelização será eficaz, se a Palavra de Deus não entrar
na vida das pessoas, no seu modo de pensar e de agir para chamá-las à conversão. Isto que sempre
existiu em tempos diferentes é aquilo que, hoje, nós chamamos "nova evangelização". Não é
diferente nos nossos dias; podemos usar uma expressão diferente, mas a substância permanece
idêntica. Somos chamados a anunciar o Evangelho de maneira eficaz; isso exige, antes de mais
nada, que se frequente a Palavra de Deus, o que permite que os que escutam não apenas
verifiquem o nosso conhecimento do Evangelho, mas sobretudo que verifiquem a nossa
credibilidade que se exprime num coerente testemunho de vida. Deste processo, contudo, não
fica excluída a atenção àquilo que os nossos contemporâneos vivem e pensam; numa palavra, a
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"cultura" do nosso tempo. O objetivo é, portanto, refletir e encontrar as formas adequadas para
renovar o nosso anúncio a tantos batizados que deixaram de ter identidade e de compreender o
sentido de pertença à comunidade cristã, com a consequência de um forte individualismo privado
de responsabilidade pública e social. Somos chamados, enfim, a renovar o espírito missionário
para dar esse salto capaz de corresponder às exigências apresentadas pela nova situação histórica.
Neste sentido, a tarefa que nos espera não é diferente da que sempre marcou a Igreja: dar a
conhecer o verdadeiro rosto de Jesus Cristo, único salvador, revelador do amor misericordioso
do Pai que vai ao encontro de todos, sem excluir ninguém.
A este propósito, duas expressões me parecem particularmente eficazes para tornar as coisas
mais claras. A primeira indica o conteúdo, a segunda apresenta a metodologia. A nova
evangelização tem força a partir do texto da Carta aos Hebreus: “Jesus Cristo é o mesmo ontem,
hoje e sempre” (Hb 13,8). Aquilo que é anunciado permanece igual como no primeiro dia do
nosso contato com a fé. Para entrar mais ainda no cerne daquilo que trata o nosso texto, é bom
que não se descuide o seu contexto imediato. O autor mostra o seu particular interesse na coesão
da comunidade e diz: “Lembrai-vos dos vossos chefes, os quais vos anunciaram a palavra de
Deus; e, contemplando o êxito do seu procedimento, imitai a sua fé” (v. 7). Diversamente de
numerosos textos das Cartas onde ocorre frequentemente o termo presbíteros (presbyteroi) ou
bispos (episkopoi), aqui encontramos, antes, o raro caso de “hegoumenoi”, ou seja, os “chefes”,
aqueles de quem Jesus, usando o mesmo termo no evangelho, diz que devem “servir” enquanto
esperam pela sua vinda (cf. Lc 22,26). O horizonte que se abre à nossa frente pode nos ajudar a
refletir. Aos discípulos que discutem entre si quem deve ser o maior, Jesus responde que quem
governa deve ser como quem serve. Referido aos nossos dias, isto indica que, num momento
como o nosso, não raro tão confuso e com tendência ao predomínio do poder, é necessário
reafirmar o primado de um verdadeiro serviço que os crentes são chamados a desempenhar.
Todavia, o texto da carta vai mais além e mostra que a primeira tarefa reconhecida a estes
“chefes” é terem anunciado a palavra de Deus. Foi mesmo a pregação que permitiu a escuta e
esta, por sua vez, consentiu que se chegasse à fé (cf. Rm 10,14), e a partir daqui que se agisse em
favor da construção da comunidade cristã. O anúncio, como se vê, continua a ser a primeira tarefa
do ministério que os cristãos são chamados a desempenhar; não se pode renunciar a esse serviço,
sem que se esteja falhando com a responsabilidade do batismo. O autor sagrado, por fim,
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acrescenta algo em nada secundário, sobretudo se se considera uma vez mais o nosso momento
histórico: o estilo de vida do crente leva a que se imite a sua fé. A Carta aos Hebreus não baixa
a fasquia; a eficácia do ministério não se pode limitar à pregação; é sobretudo esta que deve
tornar-se visível num testemunho que permite perceber a sua credibilidade. Na união destes
componentes, dos quais não se pode separar a ação litúrgica tão importante no ensinamento desta
carta, configura-se a lógica da fé. Prescindir destes aspetos ou dividi-los, invalidaria o conteúdo
da evangelização e da fé. Enfim, acreditar não é um ato de adesão a um teorema, mas é
compromisso de vida que vai até à dádiva de si, porque se encontrou Jesus Cristo numa
comunidade viva que o anuncia de modo digno de fé.
A este ponto, o nosso texto central permite dar um passo ulterior, que especifica em que
consiste para pregação do apóstolo a fé recebida: consiste na pessoa de Jesus Cristo. A expressão
que o autor sagrado utiliza é categórica: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”. Não se
dá espaço a hesitação alguma, e muito mesmo a qualquer forma de neutralidade. Naqueles três
advérbios está atestada a solidez da revelação de Jesus; ele é a “pedra angular” (Mt 21,42), a
“rocha” (Mt 7,24-25), o fundamento sobre o qual construir a própria vida. Já o era “ontem”, no
momento em que se acreditou nele; o é “hoje”, quando é anunciada a sua Palavra e celebrado o
mistério da sua morte e ressurreição, e o será “para sempre” até ao fim dos tempos. Numa palavra,
Cristo é sempre o mesmo. Além disto, a Carta acrescenta algo no versículo seguinte: “Não vos
deixeis levar por doutrinas várias e estranhas; porque boa coisa é ter o coração confirmado pela
graça” (v. 9). É como se o autor sagrado enxergasse para além do seu próprio tempo – certamente
não menos fácil que o de hoje – e fixasse o olhar no futuro dos crentes, quando diversas filosofias
e ideologias viriam atentar contra a estabilidade e integridade da fé. Nada de novo nesta
perspectiva. Um olhar pelas Cartas do Novo Testamento não faz mais que confirmar a mesma
preocupação. Paulo, várias vezes, convida a não se deixar “levar ao redor pelos ventos de
doutrinas” (Ef 4,14), a não se deixar influenciar pelas “prescrições e doutrinas dos homens” (Cl
2,22), alerta mesmo contra as “doutrinas diabólicas” (1Tm 4,1) e contra os que pregam “outro
evangelho” diferente do seu (Gl 1,7-9). Pedro não lhe fica atrás, quando fala de “falsos profetas”
(2Pd 2,1), ao passo que João acrescenta a estes também “muitos sedutores” (2Jo 2,7). Talvez,
esta continue a ser nos nossos dias a forma à qual devamos prestar maior vigilância. A sedução
de pregadores que sem profundidade intelectual tocam muito nas cordas dos sentimentos,
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expondo utopias que prometendo sonhos de felicidade, encerram numa solidão maior. A voz das
sereias não é de outros tempos; infelizmente, pertence também aos nossos dias. Tapar os ouvidos
com cera poderia facilitar as coisas e deixar tudo numa ilusão encoberta. Ter a força de Ulisses
e permanecer ligados à arvore mestra é de poucos. Mesmo assim, é a estrada vencedora para
superar Cila e Caríbdis.
O segundo texto ao qual fazer referência é a magna carta da apologia cristã: “sempre prontos
a dar uma resposta a todo aquele que vos pedir razão da esperança que está em vós” (1Pd 3,15).
Conhecemos bem a condição da primeira comunidade a quem Pedro se dirige: dispersa,
fragmentada, submetida a muitas dificuldades e, não por último, objeto de vários tipos de
violência. Não será certamente sem motivo que o apóstolo se sente no dever de recordar àqueles
cristãos: “não estranheis a fogueira de perseguição que se ateou no meio de vós para vos pôr à
prova, como se vos acontecesse alguma coisa estranha; mas, visto que sois participantes dos
sofrimentos de Cristo, regozijai-vos, para que também, na revelação da sua glória, exulteis cheios
de júbilo. Se sois insultados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois, porque o Espírito da
glória e de Deus repousa sobre vós. Nenhum de vós, porém, padeça como homicida, ou ladrão,
ou malfeitor, ou como quem se envolve em negócios alheios; mas, se padece como cristão, não
se envergonhe; antes, glorifique a Deus nesse nome” (1Pd 4,12-16). Palavras que permanecem
com o seu significado mesmo nos nossos dias em diversas regiões do nosso pequeno mundo.
Apesar deste contexto, contudo, os crentes são chamados a “dar razão” da fé.
A Igreja é, portanto, chamada a revigorar-se a si mesma naquilo que tem de mais essencial
como é o caso do anúncio missionário. Alguém poderia insinuar que decidir por uma nova
evangelização equivale a julgar a ação pastoral levada a cabo anteriormente como falida por
negligência ou pela escassa credibilidade oferecida pelos seus homens. Mesmo esta consideração
não é privada de uma sua plausibilidade; no entanto, limita-se ao fenômeno sociológico tomado
no seu carácter fragmentário, sem considerar que a Igreja no mondo apresenta características de
constante santidade e de testemunhos dignos de fé que ainda nos nossos dias são marcados pela
oferta da própria vida. Por isso, realizar uma nova evangelização equivale, antes de tudo, a tomar
a vida cristã a sério no encontro pessoal com Jesus de Nazaré através do crescimento do sentido
eclesial.
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Aquilo que vejo pessoalmente no horizonte, justamente por força da nova evangelização, é a
exigência de criar um modelo antropológico capaz de realizar a necessária síntese entre o que é
fruto da conquista dos séculos anteriores e a sensibilidade com que interpretamos o nosso
presente. Em alguns aspetos, gostaria de ver no horizonte um novo humanismo. Uso
intencionalmente esta expressão, porque está cheio do significado adquirido com razão no curso
dos séculos. Ele determinou uma etapa fundamental para a cultura. O humanismo, na verdade,
marcou no seu tempo um autêntico entusiasmo que incidiu em todos os âmbitos da atividade
humana. Aquilo que constituiu a sua sorte foi justamente a vivacidade do movimento que se
levou a cabo e que envolveu o espírito do tempo a ponto de reinterpretar de modo novo as
problemáticas de sempre. O Humanismo foi a capacidade de compreender a mudança que estava
se realizando, mas do mesmo modo exprimiu a convicção de poder reler e resolver os problemas
que a humanidade desde sempre enfrentava. Não foi uma visão fragmentária do mundo, mas
unitária; do mesmo modo que era unitária a leitura do homem que tinha sido colocado no centro
da criação. Nesta fase, que se estendeu da filosofia à literatura, da arte à descoberta de novas
terras, Deus não estava excluído mas tornava-se o horizonte de sentido da procura pessoal e da
vida social.
Por que não pensar que a nova evangelização pode ser o fundamento comum e o objetivo final
partilhado para restituir a todos o sentido da própria identidade e o valor da pertença? Nota-se
frequentemente uma enfadonha repetitividade das nossas iniciativas apenas porque lhes falta o
fundamento. Parece que existe em muitos uma “pastoral do status quo” mais do que se deixar
envolver por uma dinâmica de crescimento que requer o desenvolvimento e o progresso. Penso
na importância dos sacerdotes no seu espaço de ministério peculiar e do tempo que dedicam à
preparação da homilia e da catequese. Penso nas grandes oportunidades que são oferecidas com
algumas grandes celebrações: batismo e funeral onde se podem encontrar pessoas distantes da
frequência da Igreja, que naquelas circunstâncias, contudo, estão mais facilmente abertas à
escuta, se encontrarem conteúdos que o mereçam e que levem a refletir. Penso na capacidade de
visitar as famílias da sua comunidade, para levá-las a sentir a presença do sacerdote que é
responsável por elas; sobretudo quando uma família tem pessoas doentes ou no hospital. O nosso
tempo sacerdotal deveria encontrar nestes momentos a força do encontro interpessoal como
garantia para a transmissão da fé. O momento do catecumenato que, nas nossas regiões, incide
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sempre sobre muitos adultos, e a necessária formação dos nossos fiéis cada vez mais ignorantes
acerca dos conteúdos básicos da fé deveria encontrar-nos muito vigilantes para propor caminhos
permanentes de fé, ainda que cansativos. O primeiro anúncio que, em muitos casos, se faz, não
pode ser confundido com toda a obra de evangelização, porque requer atenção às diferentes
situações em que nos encontramos.
Um capítulo importante seria o da catequese e da sua relação com a nova evangelização.
Parece-me que deveríamos sair do túnel em que, ao longo de decênios, se pensou a catequese
apenas em vista dos sacramentos. Se a catequese vive em função dos sacramentos e, hoje, estes
ficaram reduzidos aos da iniciação, é óbvio que falha à sua própria função que é a de permitir o
amadurecimento da fé na sua relação com as condições de vida do crente. Enfim, parece-me
fundamental recuperar uma forte identidade cristã que se possa conjugar com um correspondente
sentido de pertença à comunidade. A formação deveria ter como objetivo justamente um
recuperado sentido evangélico sem o qual a salvação não entra nas nossas casas. Uma identidade
que se torna forte num momento de fraqueza cultural, da sua tradição viva que se experimenta
na comunidade; do mesmo modo, uma comunidade forte porque espaço de identidade que
recupera o essencial: o espírito missionário que não pode ser delegado. Para o dizer com as
palavras da Evangelii nuntiandi: “A evidente importância do conteúdo da evangelização não
deve esconder a importância das vias e dos meios da mesma evangelização. Este problema do
«como evangelizar» apresenta-se sempre atual, porque as maneiras de o fazer variam em
conformidade com as diversas circunstâncias de tempo, de lugar e de cultura, e lançam, por isso
mesmo, um desafio em certo modo à nossa capacidade de descobrir e de adaptar. A nós
especialmente, Pastores da Igreja, compete o cuidado de remodelar com ousadia e com prudência
e numa fidelidade total ao seu conteúdo, os processos, tornando-os o mais possível adaptados e
eficazes, para comunicar a mensagem evangélica aos homens do nosso tempo” (EN 40).
Enfim, para concluir, o mundo de hoje tem uma profunda necessidade do anúncio do amor
cristão porque, infelizmente, conhece apenas grandes fracassos. É provavelmente aqui que nasce
o paradoxo que se abre diante dos nossos olhos e que leva a mente a refletir sobre o sentido da
nova evangelização. Olhar para o futuro com a certeza da verdadeira esperança é o que permite
que não fiquemos encerrados nem numa espécie de romantismo que olha apenas para o passado,
nem de cair num horizonte de utopia porque encandeados por hipóteses que não poderão ser
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correspondidas. A fé compromete no hoje que vivemos; por isso, não lhe corresponder seria
ignorância e medo; a nós cristãos, todavia, isto não é permitido. Permanecer fechados nas nossas
igrejas poderia dar-nos alguma consolação, mas esvaziaria o Pentecostes. É o tempo de
escancarar as portas e de voltar a anunciar a ressurreição de Cristo, da qual somos testemunhas.
Segundo as palavras do Santo Bispo Inácio nos inícios do cristianismo: “Não basta ser chamados
cristãos; é preciso que o sejamos de verdade” (Aos Cristãos de Magnésia, I,1). Se alguém quer
reconhecer os cristãos, deve poder fazê-lo a partir do seu compromisso de fé, não das suas
intenções.