a nova economia política brasileira - marcio porchmann

Upload: milena-tarzia

Post on 16-Oct-2015

19 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A nova economia poltica brasileira:

Marcio Pochmann*

Na dcada atual, a generalizada melhoria do quadro social se deve combinao de importantes fatores: estabilidade monetria, expanso econmica, reforo das polticas pblicas, elevao do salrio mnimo, ampliao do crdito popular, reformulao e alargamento dos programas de transferncia de renda, entre outros.

O Brasil no tem arraigada tradio democrtica. Ao longo de mais de cinco sculos de histria, o pas mal registra cinquenta anos de democracia. Isso porque a herana poltica do Imprio (1822-1889) Repblica Velha (1889-1930) foi o prolongamento do antigo e carcomido regime da democracia censitria, em que votavam e eram votados to somente homens de posse, o que significou a participao de no mais do que 5% do total da populao nos perodos eleitorais.

Desde 1932, com a introduo do voto secreto e sua ampliao para homens e mulheres, a experincia democrtica no foi contnua, tendo em vista que passou por duas interrupes abruptas durante o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar (1964-1985). Por fora disso, a economia poltica brasileira se fundamentou na apartao dos interesses das classes populares do conjunto dos objetivos da expanso das foras produtivas.

Ao mesmo tempo, as tradicionais reformas clssicas do capitalismo contemporneo, realizadas em praticamente todos os pases desenvolvidos, como a fundiria, a tributria e a social, deixaram simplesmente de ser efetivadas. Num pas de dimenso continental e grande populao, a estrutura produtiva manteve sua dinmica prisioneira, sobretudo, daqueles segmentos sociais de maior poder aquisitivo e mais privilegiados pela atuao do Estado.

Assim, a economia poltica do desenvolvimento assentou-se na mxima de primeiro crescer para depois distribuir. E o crescimento econmico possvel se tornou associado concentrao da renda e poder, o que concedeu ao Estado o papel policial a ser exercido sempre que o desconforto das classes populares comeasse a ser mobilizado.

O resultado foi uma enorme excluso social, cujos indicadores de pobreza e desigualdade tornaram o Brasil uma referncia mundial do exemplo a no ser seguido. Em 1980, por exemplo, a economia nacional encontrava-se entre as oito mais importantes do planeta, embora registrasse o primeiro lugar no ranking mundial da desigualdade de renda, com dois teros de sua populao na condio de pobreza absoluta.

Para piorar, as duas dcadas seguintes (1980 e 1990) foram de regresso social e econmica em razo da substituio das velhas polticas desenvolvimentistas pela hegemonia neoliberal. Por fora disso, o pas regrediu, em 2000, ao posto de 13 economia do mundo, com o rendimento dos proprietrios (lucros, juros, aluguis e renda da terra) respondendo por 68% da renda nacional (ante 50% em 1980) e o desemprego atingindo quase 12 milhes de trabalhadores (contra menos de 2 milhes em 1980).

Atualmente, percebe-se que foi a grande poltica que salvou o Brasil da pequenez do destino imposto pelo neoliberalismo, assim como impediu o retorno das polticas do desenvolvimentismo tradicional.

O vigor da marcha reestruturadora das polticas pblicas encadeadas pela Constituio Federal de 1988 deu o primeiro impulso, seguido depois da estruturao vertical dos grandes eixos de interveno do Estado no campo da proteo e do desenvolvimento social (sade, educao, assistncia e previdncia, infraestrutura social, trabalho, entre outros). O pas avanou no sentido j experimentado pelas economias desenvolvidas, de construo do Estado de bem-estar social.

Mesmo durante o longo perodo da superinflao (1980-1994) e a prevalncia do baixo dinamismo econmico e conteno fiscal na dcada de 1990, a regulamentao de diversas polticas pblicas no campo da assistncia e previdncia contribuiu para evitar que o contexto social desfavorvel apresentasse ainda maior regresso, para alm do crescimento do desemprego e a piora na distribuio funcional da renda.

Posteriormente, com a inflexo da poltica nacional na primeira dcada do sculo XXI, a nova economia poltica ganhou dimenso at ento indita e contribuiu decisivamente para a melhora socioeconmica generalizada no pas.

As evidncias do processo de expanso do bem-estar so expresso do padro de incluso possibilitado pela ampliao do consumo. De um lado, o enfrentamento da pobreza extrema, com o acesso renda mnima garantindo a sobrevivncia, e de outro a atuao na pobreza absoluta, por meio da complementao da renda para o consumo bsico (alimentao, habitao, transporte, entre outros).

O processo atual de incluso social um avano no contexto do capitalismo contemporneo, enunciando o conjunto de mritos da nova economia poltica brasileira. Nesse sentido, o enfrentamento das necessidades bsicas de todos, sobretudo das classes populares, gera inquestionveis melhoras nos indicadores de reduo da pobreza e da desigualdade de renda.

Assim, o movimento de incluso social, por meio da ampliao do nvel de renda na base da pirmide social que tradicionalmente era excluda do acesso aos meios bsicos de vida, segue cada vez mais a reorientao do Estado, que busca a universalizao dos servios pblicos de qualidade (educao, sade, saneamento, moradia, entre outros). Isso pode, inclusive, fazer a pobreza extrema ser superada, assim como o analfabetismo e outros estrangulamentos do desenvolvimento humano, nesta segunda dcada do sculo XXI.

Da excluso incluso socialGrande parte dos avanos atualmente alcanados pelo Brasil no campo do enfrentamento da questo social est, direta e indiretamente, associada ao conjunto das polticas pblicas motivadas pela Constituio Federal de 1988.

A consolidao de grandes e complexas estruturas verticais de interveno do Estado de bem-estar social (sade, educao, assistncia e previdncia, infraestrutura social, trabalho, entre outros) possibilitou obter resultados positivos no Brasil mais rapidamente e na mesma direo dos j alcanados pelos pases desenvolvidos.

Mas para isso foi necessrio avanar o gasto social. No ltimo ano do regime militar (1985), o gasto social realizado no Brasil representava apenas 13,3% do PIB. Com a Constituio, ele aumentou para 19%, permanecendo estacionado nesse mesmo patamar ao longo da dcada neoliberal.

A partir dos anos 2000, o gasto social retomou a trajetria ascensional, alcanando atualmente 23% do PIB. Isso se tornou possvel aps o estabelecimento de uma nova maioria poltica, comprometida com o crescimento da economia e com a melhor distribuio das oportunidades desde 2003.

Em boa medida, os avanos sociais podem ser observados na tabela desta pgina, que apresenta sinteticamente os seis grandes complexos de interveno social do Estado, bem como o contingente da populao coberta pelas diversas polticas sociais. Essa estrutura do Estado brasileiro que se encontra voltada ateno social no se distancia da registrada nas economias avanadas.

Para alm da montagem dos grandes eixos estruturadores da interveno social do Estado brasileiro e a expanso do gasto social em relao ao PIB, convm destacar dois fatores decisivos nas polticas pblicas aps a Constituio de 1988.

O primeiro resulta do movimento de descentralizao da poltica social, isto , do crescimento do papel do municpio na execuo das polticas sociais, sobretudo em termos de educao, sade e assistncia social.

Em 2008, por exemplo, o conjunto dos municpios teve participao no gasto social brasileiro 53,8% maior que o verificado em 1980.

Em sentido inverso, a participao relativa dos estados no total do gasto social foi 7,6% inferior no mesmo perodo de tempo, ao mesmo tempo que a Unio registrou presena 5,9% menor.

O segundo fator relaciona-se participao social no desenho e na gesto das polticas sociais brasileiras. De maneira geral, todas as principais polticas sociais possuem conselhos de participao social federal, estadual e municipal, quando no so acompanhadas por conferncias populares que evidenciam a maior transparncia e eficcia na aplicao dos recursos pblicos.

A sucessiva regulao das diversas polticas pblicas ao longo da dcada de 1990 teve o importante papel de impedir o maior agravamento do quadro social, para alm do crescimento do desemprego e da concentrao da distribuio funcional da renda nacional, motivados pelo baixo dinamismo econmico do perodo, assim como os constrangimentos impostos pela superinflao at 1994 e pela poltica macroeconmica de estabilizao monetria (elevados juros, valorizao cambial, conteno fiscal e ajustes no gasto social), que terminou por inibir a melhora dos resultados sociais no Brasil.

Na dcada atual, a generalizada melhoria do quadro social no Brasil se deve combinao de importantes fatores: a continuidade da estabilidade monetria, a maior expanso econmica, o reforo das polticas pblicas, a elevao real do salrio mnimo, a ampliao do crdito popular, a reformulao e o alargamento dos programas de transferncia de renda para os estratos de menor renda, entre outras aes.

Emergncia da economia socialComo se sabe, o ciclo de expanso produtivo entre as dcadas de 1930 e 1980 atribuiu economia social um papel secundrio e subordinado s decises referentes a gastos privados e pblicos. Como j dito, imperava at ento a mxima de crescer para depois distribuir, o que abriu um espao em geral estreito para o avano e autonomia relativa do gasto social no desempenho de suas funes.

Basta lembrar que a escola brasileira somente se tornou universal um sculo aps a proclamao da Repblica (1889). Somente em 1988, com a Constituio, o Brasil definiu recursos necessrios para que o ensino fundamental se tornasse capaz de atender a todas as crianas do pas.

Com a nova maioria poltica estabelecida desde 2003, percebe-se o avano do gasto social. De cada R$ 4 investidos no Brasil, um est vinculado diretamente economia social. Se for contabilizado tambm seu efeito multiplicador (elasticidade de 0,8), pode-se estimar que quase a metade de toda a produo de riqueza nacional se encontra relacionada direta e indiretamente dinmica da economia social.

Apesar disso, o impacto econmico do Estado de bem-estar social no tem sido muito bem percebido. Tanto que se mantm reinante a viso liberal-conservadora que considera o gasto social secundrio, quase sempre associado ao paternalismo de governantes e, por isso, passvel de corte.

Novas referncias tcnicas tm lanado luzes sobre a emergncia da economia social no pas. Quase um quinto das transferncias monetrias derivadas das polticas previdencirias e assistenciais da seguridade social brasileira so fontes de rendimento familiar. Antes da Constituio de 1988, as famlias no chegavam a deter, em mdia, 10% de seus rendimentos provenientes das transferncias monetrias.

Os segmentos de menor rendimento foram os mais beneficiados pela constituio do Estado de bem-estar social. Em 2008, a base da pirmide social (10% mais pobres) tinha 25% de seu rendimento dependente das transferncias monetrias, enquanto em 1978 ele era somente de 7% uma elevao de 3,6 vezes. No topo da mesma pirmide social (10% mais ricos), as transferncias monetrias respondiam, em 2008, por 18% do rendimento per capitados domiclios, ante 8% em 1978. Ou seja, um aumento de 2,2 vezes.

Em 1978, somente 8,3% dos domiclios cujo rendimento per capitadas famlias se situava no menor decil da distribuio de renda recebiam transferncias monetrias. J no maior decil, as transferncias monetrias alcanavam 24,4% dos domiclios. Quarenta anos depois, 58,3% das famlias na base da pirmide social recebem transferncias monetrias, assim como 40,8% do total dos domiclios mais ricos do pas. Aumento de sete vezes nas famlias de baixa renda e de 1,7 vez nas famlias de maior rendimento.

muito significativo o impacto das transferncias previdencirias e assistenciais sobre a pobreza. Sem elas, o Brasil teria, em 2008, 40,5 milhes de pessoas recebendo um rendimento de at 25% do salrio mnimo nacional. Com a complementao de renda pelas transferncias, o Brasil registra 18,7 milhes de pessoas com at um quarto de salrio mnimo mensal.

Resumidamente, so 21,8 milhes de pessoas que conseguem ultrapassar a linha de pobreza extrema (at 25% do salrio mnimo per capita). Em 1978, as polticas de transferncia monetria impactavam somente 4,9 milhes de pessoas.

Com a emergncia da economia social, o impacto das transferncias monetrias nas unidades da federao diferenciado. Observa-se maior peso das transferncias no rendimento mdio das famlias nos estados nordestinos, como Piau (31,2%), Paraba (27,5%) e Pernambuco (25,7%), bem acima da mdia nacional (19,3%). At a, nada muito destoante do senso comum, salvo pela constatao de o Rio de Janeiro ser o quarto estado da federao com maior presena das transferncias no rendimento das famlias (25,5%) e o estado de So Paulo receber abaixo da mdia nacional (16,4%).

J as famlias pertencentes aos estados mais ricos da federao absorvem a maior parte do fundo pblico comprometido com as transferncias monetrias. Assim, a regio Sudeste incorpora 50% do total dos recursos anualmente comprometidos com as transferncias previdencirias e assistenciais da seguridade social, ficando So Paulo com 23,5% do total, seguido do Rio de Janeiro (13,7%) e Minas Gerais (10,9%).

A economia social sustenta hoje parcela significativa do comportamento geral da demanda agregada nacional, alm de garantir a considervel elevao do padro de vida dos brasileiros, sobretudo daqueles situados na base da pirmide social, o que corresponde aos compromissos da nova economia poltica brasileira. A descoberta dessas novidades no interior da dinmica econmica brasileira atual impe reavaliar a eficcia dos velhos pressupostos da poltica macroeconmica tradicional.

*Marcio Pochmann professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA).