a noção de um e a aporia 11 na metafísica de aristóteles · se pudéssemos perguntar ao...

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1 Wellington Damasceno de Almeida A Noção de Um e a Aporia 11 na Metafísica de Aristóteles Campinas 2013

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Wellington Damasceno de Almeida

A Noo de Um e a Aporia 11 na Metafsica de Aristteles

Campinas

2013

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

Wellington Damasceno de Almeida

A Noo de Um e a Aporia 11 na Metafsica de Aristteles

Prof. Dr. Lucas Angioni

Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, para obteno do Ttulo de Doutor em Filosofia.

Este exemplar corresponde verso final da Tese defendida pelo aluno Wellington Damasceno de Almeida, e orientada pelo Prof. Dr. Lucas Angioni.

CPG, 06/06/2013

Campinas 2013

Ficha catalogrficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Cincias HumanasMarta dos Santos - CRB 8/5892

Almeida, Wellington Damasceno, 1981- AL64n AlmA noo de Um e a Aporia 11 na Metafsica de Aristteles / Wellington

Damasceno de Almeida. Campinas, SP : [s.n.], 2013.

AlmOrientador: Lucas Angioni. AlmTese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia

e Cincias Humanas.

Alm1. Aristteles. 2. Um (Filosofia). 3. Aporia. 4. Metafisica. I. Angioni,

Lucas,1973-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia eCincias Humanas. III. Ttulo.

Informaes para Biblioteca Digital

Ttulo em outro idioma: The Notion of One and the Aporia 11 on Aristotle's MetaphysicsPalavras-chave em ingls:AristotleOne (The one in philosophy)AporiaMetaphysicsrea de concentrao: FilosofiaTitulao: Doutor em FilosofiaBanca examinadora:Lucas Angioni [Orientador]Inara ZanuzziPriscilla Tesch SpinelliAnderson de Paula BorgesNazareno Eduardo de AlmeidaData de defesa: 06-06-2013Programa de Ps-Graduao: Filosofia

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A meus pais, Joo e Emilia, e a Mirela.

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AGRADECIMENTOS

Se esta tese de doutorado digna de algum mrito, devo atribu-lo quelas pessoas que me ajudaram a chegar at aqui. Me refiro a meus pais, irmos e, especialmente, minha esposa, por sempre encontrar em tais pessoas o apoio de que precisei, quando quer que dele eu precisasse.

Tambm me refiro ao Prof. Dr. Lucas Angioni, pelos longos anos de orientao, pelo rigor e seriedade na leitura de meus textos e pela generosa hospitalidade com a qual, na companhia de sua esposa, Isabel, costuma receber alunos em sua prpria casa. Tenho por ambos muita gratido e levo comigo o sentimento de ter herdado ao longo de meus estudos, no apenas formao profissional em filosofia, mas tambm grandes amigos.

E por falar em amigos, me refiro tambm queles que fiz ao longo de meus estudos na Unicamp. As muitas conversas que com eles pude ter (eles sabem de quem falo) tornaram mais bem organizados os resultados aqui apresentados.

Tambm quero agradecer aos membros da banca examinadora, por terem aceito prontamente o convite para participar de minha defesa, pelas honestas objees e generosas sugestes que me fizeram, as quais levo comigo e das quais me valerei para melhorar os resultados dessa pesquisa.

Por fim, agradeo tambm o apoio financeiro da CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nivel Superior.

Wellington D. de Almeida

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RESUMO:

A Dcima Primeira Aporia resulta da ciso de toda a filosofia grega precedente a Aristteles em dois modos de conceber e propor os primeiros princpios (archai), em especial, o Um (to hen): (i) o modo pelo qual os Fisilogos concebiam o Um como princpio, a saber, assumindo uma natureza subjacente, diferente do Um em si mesmo, a qual no pode ser adequadamente caracterizada pelo simples fato de ser um e que denotada pelo conceito de Um, e (ii) o modo inaugurado pelos Pitagricos e mais tarde endossado por Plato, marcado pelo abandono do recurso a uma natureza subjacente e por conceber o Um em si mesmo (auto to hen) como princpio, desprovendo-o de qualquer conexo com alguma realidade que no seja rigorosamente caracterizada por ser um. Aristteles enfrenta essa aporia em Metafsica Iota 2 e, segundo a interpretao que proponho, (a) recusa o modo Pitagrico-Platnico de conceber e propor princpios, (b) endossa o modo de proceder dos Fisilogos, e, ao faz-lo, (c) retoma o projeto dos Fisilogos no ponto em que ele havia sido interrompido, a saber, durante a busca de um princpio de movimento. A partir desse cenrio, tentarei mostrar que o desfecho final da Dcima Primeira Aporia pode consistir na introduo do Primeiro Motor como candidato propriamente aristotlico (e cosmolgico) ao ttulo de Um entre os princpios.

ABSTRACT

The Eleventh Aporia results from the breakup of the entire Greek philosophy previous to Aristotle in two manners of conceiving and proposing the first principles (archai), specially the One (to hen): (i) the manner by which Physiologoi conceived the One as a principle, namely, assuming an underlying nature, different from the One in itself, not adequately characterized by the simple fact of being one and which is denoted by the concept of One, and (ii) the manner inaugurated by the Pythagoreans and later endorsed by Plato, marked by the abandonment of the appeal to an underlying nature and by conceiving the One in itself (auto to hen) as a principle, depriving it of any connection with some reality not strictly characterized by being one. Aristotle faces this aporia in Metaphysics Iota 2 and, according to the interpretation I propose: (a) refuses the Pythagorean-Platonic manner of conceiving and proposing principles, (b) endorses the course of action of the Physiologoi, and, in doing so, (c) steps back and retakes the project of the Physiologoi at the point where it was interrupted, namely, during the search for a principle of motion. From this scenario, I will try to show that the final outcome of the Eleventh Aporia can be the introduction of the Prime Mover as the properly Aristotelian (and cosmological) candidate to the title of One between the principles.

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SUMRIO

INTRODUO (15)

CAPTULO 1 RECONSTITUINDO A DCIMA PRIMEIRA APORIA (29)

1.1 A NOO DE UM COMO PRINCPIO COSMOLGICO (32)

1.2 NOUS, PHILIA KAI TO HEN (38)

1.3 HYPOKEIMENA, KINSIS KAI TO HEN (48)

1.4 PITAGRICOS, PLATO E O UM (57)

1.5 PHYSIOLOGOI VERSUS PITAGRICOS E PLATO (65)

CAPTULO 2 O DESFECHO DA DCIMA PRIMEIRA APORIA (77)

2.1 DIVISO BSICA DE IOTA 2 (80)

2.2 O CONTRASTE ENTRE OUSIALIDADE E UNIVERSALIDADE (86)

2.3 A POSIO DE ARISTTELES (109)

2.4 PROTON METRON (120)

2.5 METAFSICA NY 1 VERSUS IOTA 12 (134)

2.6 A PRIMEIRA MEDIDA E O PRIMEIRO MOTOR (153)

BIBLIOGRAFIA (168)

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INTRODUO

Se pudssemos perguntar ao prprio Aristteles quais assuntos tratados no Livro Iota da

Metafsica merecem mais ateno de nossa parte?, penso que ele at poderia titubear, mas

que ainda assim acabaria apontando para as discusses de Iota 12 e o faria com uma boa

dose de convico. A motivao maior para pensar assim vem do fato de Iota 1 apresentar

os principais sentidos do termo um (to hen) e, sobretudo, do fato de Iota 2 ser o texto no

qual Aristteles enfrenta uma das chamadas aporias superlativas, precisamente a Dcima

Primeira Aporia conforme a contagem proposta por Ross (1924) a qual, entre outras

coisas, rivaliza dois modos de conceber a noo de Um como princpio dos entes.

Em Beta 4, em passagem que apresenta a formulao mais completa e informativa da

Dcima Primeira Aporia, Aristteles descreve tal impasse como sendo o mais difcil de

considerar, e o mais necessrio para conhecer a verdade (1001a 4ss.), valendo-se de dois

superlativos (chaleptaton e anankaiotaton) que do alguma noo da importncia que o

prprio Aristteles atribua ao tema da Aporia 11. O recurso a tais superlativos tambm se

faz presente na formulao da Oitava Aporia (999a 24ss.), mas a Dcima Primeira, por

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demarcar bem as posies na histria de certo problema, leva certa vantagem. Ela

apresenta em rivalidade toda a tradio metafsica precedente filosofia de Aristteles,

dividindo-a em duas perspectivas concorrentes de concepo do Um (to hen), entendido

aqui como princpio cosmolgico: (i) a perspectiva dos Estudiosos da Natureza

(Physiologoi), que concebiam o Um como algo distinto (heteron ti), ou ainda, como uma

natureza subjacente (hypokeimens alls physes), e (ii) a perspectiva Pitagrico-

Platnica, marcada pelo abandono dessa perspectiva e por inaugurar um novo modo de

conceber o Um como princpio, a saber, como se o prprio Um em si mesmo (auto to hen)

fosse princpio/essncia de todas as coisas. Nesse cenrio, o papel de Iota 1 poderia ser o

de estabelecer e trazer discusso aquele que seria o mais relevante entre os sentidos do

termo hen, tendo em vista justamente o enfrentamento da Dcima Primeira Aporia em

Iota 2. No entanto, propor essa hiptese bem mais fcil que prov-la.

De fato, logo no incio de Iota 1, Aristteles apresenta os principais sentidos em que o

termo um (to hen) empregado primeiramente e por si mesmo (tn prton kai kath

hauta legomenn hen). Para qualquer leitor da Metafsica, a comparao com Delta 6,

captulo que trata dos vrios sentidos do termo hen, automtica e inevitvel, mesmo

porque o prprio Aristteles inicia Iota 1 fazendo aluso ao fato de j ter tratado dos vrios

sentidos em que tal termo empregado, nas discusses que delimitaram de quantos

modos cada coisa se diz (1052a 1516), em clara referncia ao livro Delta e em especial

ao captulo 61. Dessa referncia e da comparao com Delta 6, emerge a perspectiva de

que Iota 1 afunila e aprofunda alguns resultados estabelecidos no Livro Delta. Com efeito,

1 Ver Ross (1924, p. 281).

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a lista de sentidos do termo um (ou de modos de ser um) apresentada em Delta 6 por

ser exaustiva ou pelo menos pretensamente exaustiva, j que enumera no apenas os

sentidos em que o termo um empregado por si mesmo (kath hauto), mas tambm os

sentidos em que tal termo empregado segundo concomitncia ou por acidente (kata

symbebkos) bem mais heterognea que aquela encontrada em Iota 1. Por sua vez, no

captulo inaugural do Livro Iota, Aristteles j nas primeiras linhas introduz uma restrio,

anunciando que os sentidos em que se emprega o termo um na modalidade kata

symbebkos sero deixados de lado, tomando uma deciso que afunila a discusso em

direo aos sentidos em que se emprega o termo um apenas na modalidade kath hauto.

Como veremos adiante, esse afunilamento intensificado ao longo do captulo, tendo seu

desfecho na cunhagem daquele que Aristteles descrever como o sentido principal

(malista) do termo um, ou ainda, como o modo principal de ser um, o de medida

primeira para cada gnero (1052b 1819, 1053b 45). A partir de ento, Iota 2 rouba a

cena e incorpora discusso o tema da Aporia 11.

A dificuldade, por um lado, reside no fato de que a noo de hen assumida como sentido

bsico para a formulao da Aporia 11 em Iota 2 no parece facilmente identificvel com a

noo de medida primeira de cada gnero, alcanada em Iota 1, o que estabelece um certo

descompasso entre Iota 1 e Iota 2. Vale notar que, em Iota 2, Aristteles nem sequer

menciona a noo de medida primeira de cada gnero ou ao menos no o faz de modo

explcito e literal. Esse descompasso leva o leitor do Livro Iota a se perguntar sobre os

motivos que teriam levado Aristteles a buscar, em Iota 1 imediatamente antes de

enfrentar a Dcima Primeira Aporia os principais sentidos do termo um, at encurral-

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lo em seu sentido fundamental (malista), o de medida primeira de cada gnero. Afinal,

qual o papel desse sentido na Dcima Primeira Aporia? Esse sentido do termo um tem

de fato algum papel na Aporia 11?

Para resolver esse problema, bom notar, por outro lado, que o princpio henolgico ao

qual Aristteles faz aluso em Ny 1, precisamente em 1087b 331088a 15, revela ter fortes

e at mesmo indissociveis laos tanto com a noo de medida primeira (proton metron),

cunhada em Iota 1, quanto com o princpio cosmolgico que objeto de disputa em Iota 2

na Aporia 11. J no incio da passagem, Aristteles nos diz que o Um significa medida,

como se recuperasse a noo de medida primeira (proton metron) cunhada em Iota 1. Na

imediata seqncia, faz notar que em qualquer domnio, h algo distinto subjacente,

revelando um resultado que parece ter sido estabelecido em Iota 2. A passagem ainda

envolve nova meno medida primeira, bem como a explicitao de uma conseqncia

anti-platnica, a de que o Um no em si mesmo uma certa essncia, conseqncia que,

convm dizer, tambm apontada em Iota 2. Por tais detalhes, a passagem de Ny 1 poder

trazer consigo um certo desconforto a algum que eventualmente pretenda negar qualquer

relao entre a noo de medida primeira de cada gnero e o princpio cosmolgico da

Decima Primeira Aporia, ou seja, a algum que pretenda negar uma ligao forte entre

Iota 1 e Iota 2. Afinal, se a noo de hen que aparece em Iota 1 nada (ou quase nada) tem

com a noo de hen que assunto de Iota 2, por que Aristteles abordaria ambas em Ny 1

(1087b 331088a 15) como se estivesse diante de um nico e mesmo assunto?

Alm disso, penso existir pelo menos um resultado de Iota 1 que pode ter sido aproveitado

por Aristteles em Iota 2 no enfrentamento da Aporia 11. Em Iota 1 (1052b 13), entre

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outras coisas, Aristteles prope uma importante distino semntica que coloca, de um

lado, as coisas das quais o termo um se predica (poia hen legetai), e, de outro, o prprio

sentido ou a prpria definio do termo um (ti esti to heni einai kai tis autou logos). A

comparao com a distino lgica entre extenso e intenso ou denotao e conotao ,

por assim dizer, irresistvel2. Explicitamente, Aristteles no associa essa distino ao

impasse de Iota 2, mas ela parece permear as linhas gerais que perfazem cada uma das

duas alternativas da referida aporia. De fato, a tese Pitagrico-Platnica pode ser

compreendida como aquela na qual a distino semntica entre conotao e denotao no

bem explorada, na exata medida em que os proponentes da referida tese no levam em

conta o uso denotativo, mas apenas o uso conotativo do termo um, ou seja, o prprio Um

em si mesmo (auto to hen), delegando o papel de princpio cosmolgico, no a algo

distinto ou a uma natureza subjacente, denotada pelo termo hen como a gua, o Fogo,

o Ar, a Inteligncia (Nous) e a Amizade (Philia) o so na perspectiva dos Physiologoi

mas ao prprio Um considerado em si mesmo, desprovido de qualquer articulao

denotativa com alguma realidade que lhe seja exterior. A posio dos Estudiosos da

Natureza, por sua vez, marcada pelo recurso a algo distinto e a uma natureza subjacente,

seria aquela em que essa distino semntica devidamente explorada, sobretudo se for

mostrado que o recurso a algo distinto e a uma natureza subjacente equivale ou pelo

menos tem forte ligao com a operao semntica de cunho denotativo que aparece em

Iota 1. Nesse horizonte interpretativo, a distino semntica proposta em Iota 1 teria um

2 Conferir Ross (1953, vol. 2, p. 282) e Angioni (2005, p. 82-4, e 2007a, p. 50-4).

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importante papel no enfrentamento da Dcima Primeira Aporia, caso em que Iota 1 e Iota

2 estariam bem amarrados e deveriam ser lidos preferencialmente juntos.

Aqui, j podemos apontar uma das principais tarefas deste estudo: investigar at que ponto

o enfrentamento da Aporia 11 em Iota 2 depende da cunhagem da noo de medida

primeira em Iota 1 (se que de fato depende). Essa tarefa, claro, no a nica.

Em Iota 2, j nas primeiras linhas do captulo, Aristteles formula, pela terceira vez, a

aporia que objeto do presente estudo a primeira formulao aparece em Beta 1 (996a

4ss.), a segunda, em Beta 4 (1001a 4ss.). Logo aps apresentar as duas concepes

rivalizadas no referido impasse a saber, a concepo Pitagrico-Platnica e a concepo

partilhada pelos Estudiosos da Natureza Aristteles passa a atacar a primeira delas,

recorrendo a um argumento que chama a ateno por depender fundamentalmente da

polmica tese de que nenhum universal ousia tese que, bom lembrar, estabelecida

no captulo 13 do Livro Zeta da Metafsica. Em linhas gerais, Aristteles argumenta, em

Iota 2, que o Um (to hen) um princpio universal e que nenhum princpio de tal tipo pode

ser (uma) ousia (1053b 16ss.).

H vrios detalhes importantes que estou deixando de lado nesta etapa introdutria da tese,

mas dos quais pretendo tratar cuidadosamente ao logo deste estudo. Por ora, quero

observar apenas o seguinte: ao incorporar a tese de que nenhum universal ousia (1053b

16ss.) na estratgia de refutao da posio Pitagrico-Platnica, Aristteles acaba por

revelar que a Dcima Primeira Aporia (precisamente a posio Pitagrico-Platnica) est

associada a Zeta 13, isto , refutao das Formas platnicas, e que o conceito de

universal (katholou), contra o qual Aristteles argumenta em Zeta 13 e textos correlatos

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(em especial Beta 6 1003a 5ss., Zeta 16 1040b 16ss. e alguns trechos de My 10), pode ser

equivalente ao conceito de universal com o qual Aristteles qualifica a noo de Um que

perfaz a posio Pitagrico-Platnica na Aporia 11. Por isso, podemos dizer que a

reconstituio dessa posio atravs do respectivo contraste que h entre ela e a

perspectiva dos Estudiosos da Natureza pode trazer alguma contribuio compreenso da

noo de universal (katholou) que aparece em Zeta 13 e textos correlatos, e, por

conseguinte, ainda render mais um modo de compreender o sentido da tese de que nenhum

universal ousia. De fato, o que parece reprovvel por parte de Aristteles, na posio

Pitagrico-Platnica, no o mero fato de a noo de Um ser um predicado universal, que

se atribui a todas as coisas, mas tambm (e at principalmente) o fato de que Pitagricos e

Platnicos concebiam esse universal em si mesmo (auto to hen) como princpio dos entes,

isto , desprovendo-o de qualquer articulao com alguma natureza subjacente que por tal

princpio fosse denotada como o caso da gua, do Fogo, do Ar, do Ilimitado, da

Inteligncia (Nous) e do Amor (Philia) na perspectiva dos Estudiosos da Natureza.

Assim, podemos apontar mais uma das tarefas deste estudo: a investigao das relaes

entre Iota 2 e Zeta 13, ou melhor, das relaes entre a posio Pitagrico-Platnica, nos

domnios da Aporia 11, e a tese de que nenhum universal ousia, ligada refutao das

Formas platnicas.

O cumprimento dessa tarefa depende, entre outras coisas, de uma boa reconstituio da

posio Pitagrico-Platnica. Essa reconstituio, por sua vez, tambm depende de uma

reconstituio igualmente boa da Dcima Primeira Aporia. A fim de complementar o

cenrio que se desenha a partir da comparao entre as trs passagens nas quais Aristteles

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formula a Aporia 11 (a saber, Iota 2 1053b 9ss., Beta 1 996a 4ss. e Beta 4 1001a 4ss.), bem

como da relao entre Iota 1 e Iota 2, imprescindvel recuar at os relatos histricos (ou

pretensamente histricos) que Aristteles faz de seus predecessores, especialmente nos

captulos 310 do Livro Alpha da Metafsica. De fato, se a Dcima Primeira Aporia

digna de tanta importncia quanto Aristteles parece lhe atribuir ao descrev-la como o

[sc. impasse] mais difcil de considerar, e o mais necessrio para conhecer a verdade

(1001a 4ss.), e se, de fato, ela rivaliza toda a tradio metafsica grega precedente a

Aristteles, tal como corretamente observa (em minha opinio) Walter Cavini (2009),

ento, mais do que sensato imaginar que os relatos dos captulos 37 do Livro Alpha da

Metafsica possam ser lidos de tal modo que tenham como seus momentos mais

importantes tambm os mais relevantes para a Aporia 11. O que quero dizer que seria um

tanto inusitado que Aristteles concebesse a Dcima Primeira Aporia como o mais

importante dos impasses e, ainda assim, no lhe fizesse nenhum tipo de meno, nem

mesmo indireta, nos relatos de teor histrico que temos nossa disposio em Metafsica

Alpha 310.

Eis, portanto, outra tarefa dessa pesquisa: reinterpretar os relatos dos captulos 310 do

Livro Alpha da Metafsica sob a perspectiva da Dcima Primeira Aporia, a fim de checar

se, de fato, podemos encontrar ali elementos que nos permitam articul-los com a Aporia

11 e, assim, corroborar ou at mesmo complementar a reconstituio feita a partir da

comparao entre as trs passagens nas quais Aristteles a formula (Iota 2 1053b 9ss., Beta

1 996a 4ss. e Beta 4 1001a 4ss.).

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A essa altura, estamos em condies de fazer um rpido balano das tarefas listadas at

aqui. Todas elas so orientadas pelo objetivo de produzir uma boa reconstituio da

Dcima Primeira Aporia, a partir de textos que, em minha opinio, do sinais de terem

alguma ligao relevante com Iota 2. (Com efeito, at mesmo a comparao com Zeta 13,

que pode levar a discusso para um terreno de inumerveis controvrsias, pode ter alguma

utilidade na reconstituio da posio Pitagrico-Platnica em Iota 2). No entanto, ao final

desse estudo, quero estar em condies de relatar ao leitor, no apenas o que a Dcima

Primeira Aporia, quais so as alternativas nela rivalizadas, quem so os defensores de cada

alternativa e o que mais for produzido pela reconstituio desse impasse, mas tambm se

Aristteles a enfrentou a fim de lhe dar algum desfecho importante e, admitindo que assim

o tenha feito, qual o desfecho oferecido pelo prprio Aristteles. Trata-se de um desfecho

no cosmolgico, ligado a uma abordagem deflacionria da noo de Um como princpio,

tal como interpreta Laura Castelli (2010), ou Aristteles tem o seu prprio candidato ao

ttulo de Um (to hen) entre os princpios?

A resposta para essa questo deve resultar da formulao de uma proposta interpretativa

para a terceira parte de Iota 2 (1053b 24ss.). Na primeira parte do captulo (1053b 9ss.),

Aristteles formula a Dcima Primeira Aporia, na segunda parte (1053b 16ss.), passa a

refutar a posio Pitagrico-Platnica. A terceira parte, por sua vez, tem incio em 1053b

24 e se estende at o final do captulo. Nesse longo trecho, Aristteles mostra alguma

simpatia pela posio dos Physiologoi muito embora no a assuma em todos os seus

contornos e parece argumentar em favor da idia de que, de modo anlogo ao que ocorre

em todos os demais domnios de objetos ou entes entre as cores, o Um uma cor, o

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branco, entre as figuras retilneas, o Um uma figura retilnea, o tringulo, e assim por

diante entre as ousiai, o Um ser uma ousia. Assim, conclui Aristteles, tambm entre

as ousiai se deve buscar o prprio Um como uma ousia (1054a 913). Essa concluso

(ainda a ser provada como principal desfecho do captulo) sugere que Aristteles esteja

propondo um caminho bem peculiar de investigao do que seja o Um, caminho que

consiste basicamente em aceitar a candidatura apenas de ousiai ao ttulo de Um entre as

ousiai.

Por que razo Aristteles se orienta por essa via algo que est longe de ser claro para

mim. Mas parece-me certo que ele est relativizando a noo de Um, de modo a impedir

que ela seja concebida como uma noo absoluta, considerada em si mesma como

princpio, mas sim como uma noo que s pode ser adequadamente concebida a partir do

recurso ao domnio de objetos que lhe correlato. Se essa hiptese estiver correta (tambm

algo a ser provado), o desfecho de Iota 2 seria consistente com a Dcima Primeira Aporia,

j que contrastaria com a posio Pitagrico-Platnica, refutada na segunda parte do

captulo. Com efeito, ao exigir que o Um entre as ousiai seja uma ousia, Aristteles estaria

propondo um procedimento incompatvel com aquele adotado na posio Pitagrico-

Platnica, em que no se deve buscar o Um como algo distinto do prprio Um em si

mesmo por exemplo, uma cor, uma figura retilnea, uma ousia. Assim, podemos dizer

que, na posio Pitagrico-Platnica, a busca por um denotatum do termo hen seria

rejeitada em favor da concepo do prprio Um em si mesmo como princpio dos entes, ao

passo que, na posio aristotlica, inspirada na perspectiva dos Physiologoi, essa busca por

um denotatum do termo hen seria mais do que recomendada. Note-se que aqui a

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distino semntica entre conotao e denotao, proposta em Iota 1 (1052b 1ss.), d mais

sinais de estar associada Dcima Primeira Aporia.

Reconstituir e interpretar a terceira parte de Iota 2 (1053b 24ss.), a fim de compreender

qual o desfecho principal da Dcima Primeira Aporia, certamente mais uma das tarefas

pelas quais essa pesquisa se orienta. Sobretudo porque ela envolve a soluo de uma

inconsistncia importante de Iota 2. Na segunda parte do captulo (1053b 16ss.), conforme

j relatamos acima, Aristteles recorre tese de que nenhum universal ousia, tendo em

vista a refutao da posio Pitagrico-Platnica. Se (i) nenhum universal ousia e (ii) o

Um um universal, segue-se que (iii) o Um no ousia. A inconsistncia surge quando

comparamos a segunda parte de Iota 2 (1053b 16ss.) com a terceira (1053b 24ss.). Com

efeito, na terceira parte, Aristteles parece recomendar a busca do Um entre as ousiai como

a busca por uma ousia. Em tom conclusivo, diz Aristteles: tambm entre as ousiai se

deve buscar o prprio Um como uma ousia (1054a 913). Ora, se o Um no pode ser

ousia, dado que nenhum universal o pode, por que Aristteles recomenda a busca do Um

justamente entre as ousiai como uma busca por uma ousia? A hiptese de que o Um possa

ser uma ousia no foi descartada j de sada na segunda parte de Iota 2?

Esse problema parece reverberar algum desdobramento daquele formulado por James

Lesher em artigo intitulado Sobre Forma, Substncia e Universais em Aristteles: Um

Dilema, e, uma vez mais, relaciona Iota 2 com Zeta 13 e textos correlatos. Trazer uma

soluo interpretativa para esse problema envolve uma proposta interpretativa para o

contraste entre universalidade e ousialidade e tambm est entre as principais tarefas desse

estudo.

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Por fim, ainda h mais uma dificuldade proveniente dessa recomendao de se buscar o

Um entre as ousiai como uma ousia e que far parte de minhas tarefas nessa pesquisa. A

concluso geral de Aristteles, em Iota 2, parece ser a de que o Um, no domnio das ousiai,

ser uma ousia, tal como ocorre de modo anlogo nos demais domnios entre as cores, o

Um uma cor, o branco, entre as figuras retilneas, o Um uma figura retilnea, o

tringulo, e assim por diante. A considerar os exemplos, Aristteles parece querer dizer

que em cada domnio de objetos, um membro desse domnio detm uma certa primazia

sobre os demais, de modo a poder ser designado como o Um no domnio em questo.

Assim, no domnio das cores, o Um a cor branca, no domnio das figuras retilneas, o Um

o tringulo, e assim por diante. Se a reconstituio que fazemos dos exemplos de

Aristteles correta, cabe perguntar o que ser o Um entre as ousiai, j que, nesse caso,

Aristteles no oferece um candidato ou pelo menos no o faz explicitamente. Afinal, que

membro das chamadas ousiai detm primazia sobre as demais ousiai e, portanto, pode ser

designado como sendo o Um entre as ousiai? Haveria aqui alguma vaga aluso ao

Primeiro Motor?

Essa possibilidade no pode ser descartada sem comparar Iota 12 e Lambda 10, o que

tambm far parte de nossas tarefas nessa pesquisa. Refiro-me a Lambda 10 pelo fato de

haver em tal captulo a retomada de alguns dos mais promissores candidatos ao ttulo de

Um (1075a 34ss.), a saber, a Inteligncia (Nous), proposta por Anaxgoras, e o Amor

(Philia), por Empdocles. Em favor de seu prprio princpio de movimento, Aristteles

procura apontar as deficincias dos demais candidatos. Ao que tudo indica, Aristteles

concebe o Primeiro Motor, bem como a Inteligncia e o Amor, como membros

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concorrentes de uma mesma lista de candidatos ao ttulo de princpio de movimento. Ora,

se a Inteligncia e o Amor so candidatos tambm ao ttulo de Um entre os princpios,

como fica claro na Dcima Primeira Aporia, temos indcios de que o Primeiro Motor, por

concorrer com tais candidatos, pode ser o candidato propriamente aristotlico ao ttulo de

Um. Assim, a soluo ltima da Aporia 11 talvez consista precisamente na introduo do

Primeiro Motor como sendo o Um entre as ousiai. Nesse caso, o desfecho da Dcima

Primeira Aporia ainda seria de teor cosmolgico e no estaria ligado a um tratamento

inteiramente deflacionrio da noo de Um (Castelli, 2010), de modo que o papel de tal

impasse na Metafsica seria mais central do que se tem pensado recentemente, afinal, tal

desfecho revelaria que Aristteles no apenas recusou o modo Pitagrico-Platnico de

conceber e propor princpios, mas retomou o programa de pesquisa dos Estudiosos da

Natureza e lhe deu prosseguimento.

Examinar essa hiptese, atravs da comparao entre Iota 2 e Lambda 10, certamente a

tarefa mais difcil dessa pesquisa. Ao perfaz-la, espero ao menos mapear as principais

alternativas interpretativas e os problemas a serem enfrentados como, por exemplo, a

incompatibilidade (ao menos aparente) dessa hiptese com o trecho 1087b 331088a 15 de

Metafsica Ny 1. Sem mais delongas, reconstituamos a Aporia 11 e vejamos se temos

condies de superar os diversos problemas apontados nesta introduo, bem como de

cumprir as tarefas aqui prometidas.

28

29

CAPTULO I

RECONSTITUINDO A DCIMA PRIMEIRA APORIA

Em qualquer esforo de reconstituio da Aporia 11, no pode faltar o exame de trs

passagens nas quais Aristteles se prope a formul-la. Refiro-me a Metafsica Beta 1

(996a 49), Beta 4 (1001a 419) e Iota 2 (1053b 916). Daqui para frente, esses textos

sero objeto de nossa ateno, por isso, cito-os logo abaixo. O texto grego do qual fao uso

nas citaes o de W. D. Ross, as tradues, de Lucas Angioni, com pequenas e eventuais

modificaes de minha responsabilidade. No que diz respeito bibliografia secundria,

tenho recorrido sobretudo aos trabalhos de Michael Stokes (1971), Walter Cavini (2009),

Edward C. Halper (2009) e Laura Castelli (2010), a fim de confrontar os resultados a que

chego atravs da reconstituio da Aporia 11 com aqueles obtidos por tais intrpretes em

suas respectivas pesquisas as quais embora no concentrem seus esforos na Dcima

Primeira Aporia (a no ser no caso de Walter Cavini), ainda passam por tal impasse ou

pelo menos pela noo de Um, que debatida em tal impasse. Por fim, sem demorar mais,

30

vejamos como Aristteles nos relata o [sc. impasse] mais difcil de considerar e o mais

necessrio para conhecer a verdade.

Metafsica Beta 1 (996a 49):

, ,

,

, , ,

Alm disso, eis o que o mais difcil e envolve o maior impasse: o Um e o Ente, como os

Pitagricos e Plato propunham, no seriam outra coisa, mas seriam essncia dos entes?

Ou no: antes, haveria uma outra coisa subjacente (como Empdocles afirma o Amor,

outro, o Fogo, outro, gua ou Ar)?

Metafsica Beta 4 (1001a 419):

,

,

.

.

,

,

(

), , ,

31

.

.

De todos os impasses, o mais difcil de considerar, e o mais necessrio para conhecer a

verdade, o seguinte: o Ente e o Um so essncias dos entes, e cada um deles sem ser

algo distinto (isto , o Um e o Ente), ou se deve buscar o que o Ente e o Um como uma

outra natureza subjacente? De fato, alguns julgam que a natureza deles deste modo, ao

passo que outros julgam que daquele modo. Plato e os Pitagricos julgaram que o Ente

no algo distinto, tampouco o Um, mas que a natureza deles isso mesmo, como se a

essncia deles fosse o ser para o Um e o ser para o Ente. Por outro lado, os que investigam

a natureza, como Empdocles, afirmam o que, porventura, o Um, como que reportando-o

a algo mais familiar: de fato, parece dizer que o Amor que o Um (ao menos, ele que

a causa de ser um para todas as coisas); outros, por sua vez, afirmam que este Um (assim

como o Ente), a partir do qual os entes so e vieram a ser, Fogo, outros, que Ar. Do

mesmo modo, tambm os que propuseram um maior nmero de elementos, dado que lhes

necessrio afirmar que o Um e o Ente so tantos quantos afirmam ser os princpios.

Metafsica Iota 2 (1053b 916):

,

,

,

, []

.

No que concerne a sua essncia e natureza, devemos investigar de que modo se d, tal

como, nas Aporias, discorremos sobre o que o Um e de que modo preciso conceber a

32

respeito dele: como se o Um em si mesmo fosse uma essncia (conforme dizem, primeiro,

os Pitagricos e, depois, Plato), ou se, pelo contrrio, h uma natureza subjacente, e se

preciso se pronunciar de maneira mais clara, de preferncia, tal como os que investigam a

natureza; pois, entre eles, um diz que o Um o Amor, outro, o Ar, outro, o Ilimitado.

1.1 A NOO DE UM COMO PRINCPIO COSMOLGICO

A julgar pelos relatos de Aristteles, podemos dizer que a filosofia grega tinha um srio

compromisso com o conceito de Um (to hen). Os filsofos gregos, j desde o nascimento

da filosofia (sculo VI a.C.) com os milesianos Tales, Anaximandro e Anaxmenes, eram

fascinados por tal princpio, a ponto de posicionarem a busca pelo Um no centro de suas

filosofias, como se a questo mais importante para a qual a filosofia pretendesse dar uma

resposta fosse a de saber o que o Um, o princpio supremo de todas as coisas. Pelo

menos, esse o cenrio que se desenha quando dedicamos um pouco de ateno aos

exemplos de candidatos ao ttulo de Um que Aristteles menciona nos relatos h pouco

citados. Merece ateno o fato de todos os candidatos concorrentes ao ttulo de Um

tambm serem conceitos centrais das filosofias de seus respectivos proponentes.

Em Beta 1, ao se pronunciar sobre os Estudiosos da Natureza (Physiologoi), Aristteles

lista como candidatos ao ttulo de Um nada menos que a gua, o Ar, o Fogo e o Amor

(Philia). Em Iota 2, o Amor e o Ar reaparecem, ao passo que o Ilimitado (Apeiron)

acrescentado lista. Em Beta 4, por sua vez, o Amor lembrado uma vez mais, e, ao final

da passagem, Aristteles inclui entre os candidatos at mesmo conjuntos de elementos e

no apenas este ou aquele elemento tomado isoladamente, conforme costuma ocorrer no

monismo material conjuntos oriundos do chamado pluralismo material, o que indica que

33

o Um poderia ser at mesmo vrias coisas. De fato, Aristteles parece admitir que o Um

poderia ser at mesmo mais de um (elemento), a saber, tantos quantos [sc. os que

propuseram um maior nmero de elementos] afirmam ser os princpios (1001a 1819).

A lista de candidatos ao ttulo de Um no das mais homogneas: a gua, o Ar e o Fogo,

que tm como principais proponentes, respectivamente, Tales, Anaxmenes e Herclito,

so concebidos como princpios materiais corpreos, provenientes do monismo material; j

o Ilimitado (Apeiron), proposto por Anaximandro, relatado por Simplcio como portador

de uma natureza diferente daquela dos demais elementos (Simplcio, Fsica, 24, 13, DK 12

A 9), o que pode indicar que tal princpio era incorpreo; o Amor, por sua vez, candidato

de Empdocles, ora revela ter feies de um princpio motor, ora de um princpio material,

combinao que Aristteles critica explicitamente em Lambda 10 (1075b 14); a

Inteligncia (Nous), proposta por Anaxgoras, a exemplo do Amor, tambm um princpio

de movimento; e embora no seja mencionada explicitamente em nenhuma das trs

formulaes da Aporia 11, penso que ainda deva ser assumida entre os candidatos ao ttulo

de Um, sobretudo porque as formulaes da referida aporia pretendem sintetizar os relatos

de Metafsica Alpha 310, nos quais Aristteles alude, mais de uma vez, ao princpio de

movimento proposto por Anaxgoras e chega a identific-lo como sendo o Um, sob a

justificativa de que apenas a Inteligncia era pura ou sem mistura (amigs), tal como o Um

o deve ser (cf. 989b 1419); por fim, os conjuntos de elementos, aos quais Aristteles faz

aluso em 1001a 1819, colocam o monismo fora de cena, para fazer do Um uma natureza

mltipla. Para Aristteles, todos esses candidatos concorrem ao ttulo de Um e, portanto,

34

figuram como possveis respostas questo de saber o que o Um, isto , aquilo devido a

que todas as coisas, de algum modo, se conectam.

Desse cenrio, emergem vrias questes, mas uma em particular merece algum comentrio

mais detido nesta etapa inicial, a questo de saber como a noo de Um passou a ser

concebida como um princpio nas disputas filosficas. Afinal, o que teria levado os mais

eminentes filsofos gregos busca do Um? Parece-me que tudo comea com o monismo

material dos milesianos.

De fato, entre os candidatos ao ttulo de Um, o mais antigo o de Tales de Mileto, a gua.

Sendo assim, vale a pena recorrer aos relatos de Metafsica Alpha 310, a fim de verificar

se no podemos encontrar ali alguma pista sobre quais condies julgou Tales que a gua

satisfazia, para ento ser concebida como um princpio de todas as coisas3. Com efeito,

tendo em vista que, para Aristteles, a gua o Um de Tales, conhecer as razes que

levaram a gua a ser concebida como um princpio de tal ordem pode ajudar a identificar a

descrio sob a qual a gua foi pensada como sendo o Um, o que, por sua vez, pode ser

til para traar os primeiros contornos da noo de Um, entendida aqui como princpio

cosmolgico. Parece-me que o captulo 3 de Metafsica Alpha contm algumas pistas.

3 No que diz respeito a saber at que ponto se pode atribuir valor historico aos relatos de Metafsica Alpha sobre os Fisilogos, recomendo a leitura de One and Many in Presocratic Philosophy, de Michael Stokes (1971), trabalho que examina muito bem essa questo. Quanto aos nossos interesses, no preciso garantir que os relatos de Aristteles tenham de fato valor histrico, sobretudo porque, de nossa parte, o recurso a tais relatos tem por propsito a compreenso da viso de Aristteles sobre as filosofias que o precederam, tendo em vista, em ltimo caso, reconstituir e compreender a Aporia 11. O exame do valor histrico de tais relatos , certamente, digno de nosso interesse, mas pode ficar para uma etapa de pesquisa posterior aos resultados aqui apresentados.

35

De acordo com Aristteles, Tales observou que o alimento de tudo mido e que o

prprio calor surge do mido e nele se nutre (983b 2224), o que, de algum modo,

habilitaria a gua para concorrer ao ttulo de princpio de todas as coisas, dado que

princpio, para todas as coisas, aquilo de que a coisa vem a ser (983b 2425). Aristteles

no deixa explcito que conceber a gua como princpio de todas as coisas pode ser a chave

para entend-la como sendo o Um, o que ajudaria a esclarecer em que sentido o prprio

Um pensado como um princpio. Ainda assim, h boas razes para desenvolver essa

hiptese, sobretudo porque, se a gua o princpio imanente de todas as coisas, ento,

correto dizer que todas as coisas so fundamentalmente uma nica e mesma coisa, a saber,

gua, e que a multiplicidade de coisas manifestas, na verdade, acoberta uma nica

natureza, imanente em tudo o que existe4. No caso de Tales, essa natureza era a gua.

Penso que reside nesse raciocnio o fundamento da tese de que tudo um, bem como os

primeiros traos do conceito de Um como princpio filosfico na filosofia grega5. O

mesmo raciocnio se aplica ao Ar e ao Fogo, candidatos de Anaxmenes e de Herclito,

respectivamente. Quanto ao Ilimitado, de Anaximandro, mais difcil saber se ainda

estamos diante de um princpio de natureza material tal qual a dos demais elementos. Ao

menos o Ilimitado no parece ser um princpio corpreo, embora seja mais complicado

negar sua materialidade, pelo fato de ser um princpio imanente. Alm disso, o comentrio

de Simplcio (DK 12 A 9), aludido acima, ora descreve o Ilimitado como elemento das

coisas existentes, ora como uma natureza diferente dos demais elementos. Ainda assim,

4 Ver em sentido muito prximo Fsica II 1, 193a 1728. 5 Sobre a noo de hen como designadora de um substrato material, conferir Halper (2009, p. 99105).

36

certo que o Ilimitado introduzido como um fundamento de todas as coisas, o que j

encaminha para a tese de que todas as coisas so portadoras de uma nica e mesma

natureza, o Ilimitado. Assim, quer essa natureza seja a gua, o Ilimitado, o Ar ou o Fogo, o

resultado final ser sempre o mesmo: tudo um.

Podemos dizer, ento, que a primeira ocasio em que o Um foi pensado como um

princpio, ao que tudo indica, tem seu endereo no monismo material antigo, especialmente

entre os milesianos Tales, Anaximandro e Anaxmenes, mas tambm no monismo de

Herclito. Nesses domnios, o Um foi tratado como um fundamento material, de alcance

universal, capaz de sintetizar a natureza de tudo o que existe em um nico princpio para

Tales, esse princpio era a gua, para Anaximandro, o Ilimitado, para Anaxmenes, o Ar,

para Herclito, o Fogo. a esse princpio que Aristteles alude no incio de Metafsica

Alpha 3, formulando-o nos seguintes termos: o item primeiro de que tudo se constitui, do

qual tudo vem a ser e no qual, por ltimo, tudo se corrompe [...], eis o que afirmam ser

elemento e princpio dos entes (983b 811)6. Em seguida, Aristteles menciona o carter

permanente e imutvel dessa natureza que subjaz a tudo o que existe, bem como uma

conseqncia indesejada que da resulta: por isso, julgaram no ser verdade que algo vem

a ser e se destri, dado que essa natureza sempre se preservaria (983b 1113). Algumas

linhas depois, Aristteles retoma essa idia: assim, nenhuma das demais coisas viria a ser

ou se destruiria, dado que sempre haveria uma certa natureza (ou uma nica ou mais de

uma), da qual viriam a ser as demais coisas, preservando-se ela mesma (983b 1618).

Mas a passagem decisiva para corroborar a idia de que o Um surgiu como uma natureza

6 Compare-se novamente com Fsica II 1, 193a 1728.

37

material imanente em tudo o que existe tambm aparece no captulo 3 do Livro Alpha da

Metafsica, porm, um pouco mais adiante, precisamente em 984a 2934:

[...] [ ] [...],

(

),

.

[...] mas alguns que afirmaram que o subjacente era um [...], afirmaram que o Um era no

suscetvel de movimento, assim como a natureza em seu todo, e no suscetvel no apenas

a gerao e corrupo (pois isso era antigo e todos o admitiam), mas tambm a qualquer

mudana de outro tipo, e isso lhes peculiar.

Nessa passagem, Aristteles no hesita ao se referir a essa natureza subjacente, que se faz

imanente em tudo o que existe, como sendo o Um (to hen), o que indica que, de fato, o

primeiro sentido em que o conceito de Um foi pensado como um princpio entre os

filsofos gregos tem sua origem no monismo material antigo, sobretudo entre os

milesianos, sob a forma de um substrato material. Em Metafsica Delta 6 (1016a 17ss.),

Aristteles faz aluso ao tipo de um ou de unidade que resulta desse substrato material.

Entre os inauguradores desse materialismo, a introduo desse princpio trouxe

dificuldades compreenso de tipos especiais de movimento/mudana (gerao e

corrupo), ao passo que, entre os Eleatas, essas dificuldades se estenderam sobre todo e

qualquer tipo de mudana, fatos aos quais Aristteles alude ao final da passagem. Assim,

os processos de mudana passaram a ser tratados como meros movimentos exteriores que

resultavam da reconfigurao das partes elementares dessa natureza fundamental de todas

as coisas.

38

Para encerrar esta etapa, podemos resumir o que temos dito at aqui dizendo que, para

Aristteles, o Um, entendido como princpio filosfico disputado na Aporia 11, tinha como

contornos inaugurais as seguintes caractersticas: (i) era um princpio material, dado que se

fazia imanente em tudo o que existe; (ii) tinha alcance universal, na medida em que era um

princpio de todas as coisas; (iii) era eterno e imutvel, j que permanecia sempre o

mesmo; e (iv) era o comeo e o fim de tudo o que existe, dado que todas as coisas surgiam

a partir dele e nele se corrompiam. Diante de tais caractersticas, parece correto concluir

que o Um surgiu sobretudo como um princpio cosmolgico, ligado origem e ao fim de

tudo o que existe.

Na prxima seo, investigaremos de que modo a Inteligncia (Nous) e o Amor (Philia),

propostos respectivamente por Anaxgoras e Empdocles, foram concebidos como sendo o

Um na doutrina que correlata a cada um deles.

1.2 NOUS, PHILIA KAI TO HEN

J temos alguma idia das razes que levaram Aristteles a tratar a gua, o Ilimitado, o Ar

e o Fogo como candidatos ao ttulo de Um entre os princpios. No entanto, embora a

Inteligncia e o Amor sejam concebidos ao lado dos demais candidatos, de modo a compor

a lista que provm da perspectiva dos Estudiosos da Natureza na Aporia 11, no me parece

to certo que os candidatos de Anaxgoras e Empdocles faam parte dessa lista pelas

mesmas razes segundo as quais aqueles oriundos do monismo material antigo o fazem.

Por isso, a partir de agora, investigaremos as possveis descries sob as quais a

Inteligncia e o Amor podem ser compreendidos como sendo o Um entre os princpios. Ao

39

final desta etapa, teremos avanado na tarefa de reconstituir a perspectiva dos Estudiosos

da Natureza, e, assim, estaremos a meio caminho andado de reconstituir a Aporia 11.

Um certo estranhamento com essa lista de candidatos e, em especial, com a incluso da

Inteligncia (Nous) e do Amor (Philia) entre os concorrentes ao ttulo de Um, em boa

medida, algo de que no podemos fugir. O prprio W. D. Ross, ao comentar a primeira

formulao (Beta 1 996a 49) da Aporia 11, j se esfora para produzir alguma explicao

para a incluso do Amor entre os membros da lista, o que indica que tal incluso era algo

que carecia de justificao. No comentrio, Ross (1953, p. 225) nos diz o seguinte:

Love was, of course, on Empedocles view, not the hypokeimenon but one of six elements

all of which are hypokeimena. Aristotle presumably mentions it here because of its unifying

power, the notion being that the other elements are merged in love. Strictly speaking, on

Empedocles view they are not merged in love but merged in one another owing to the

operation of love.

Ross (1953, p. 402) parece supor, com Simplcio (Fsica 25, 21), que, em alguma medida,

o Amor (Philia) e o dio (Neikos) so concebidos como elementos, de modo a compor

com os demais corpos simples, no quatro, mas seis elementos (fogo, terra, gua, ar, Amor

e dio). Essa leitura tem certo respaldo em Lambda 10 (1075b 14), texto que

examinaremos logo adiante e no qual o Amor aparece como um (possvel) princpio

material. Agora, porm, cabe observar que o comentrio de Ross tem um certo ar de

correo ou de aperfeioamento do pronunciamento de Aristteles. Para Ross, ao que

parece, Aristteles no deveria ter dito que o Amor, tomado isoladamente dos demais

princpios, a natureza subjacente de todas as coisas, ou seja, que o Amor o

hypokeimenon. Mesmo porque Empdocles um pluralista! Assim, no h que se falar em

40

hypokeimenon, mas sim em hypokeimena. Mais apropriado, portanto, seria dizer que o

Amor no o hypokeimenon, mas sim um dos seis hypokeimena que, tomados em

conjunto, perfazem a natureza fundamental (e, agora sim, plural) de tudo o que existe. Ora,

se esse o ponto, ento, temos que lidar com a questo de saber por que Aristteles

menciona apenas um dos seis hypokeimena como candidato ao ttulo de Um em Beta 1

(996a 49). Ross tem o seu prprio palpite: because of its unifying power. Antes de

examinar essa hiptese, convm esclarecer que, tendo em vista evitar confuses entre os

fatores que promovem o movimento e aqueles que so movidos, designaremos como

hypokeimena apenas os ltimos, ou seja, as homeomerias, excluindo deles os motores

Amor e dio.

Pois bem, Um que se preze Um que produz efetiva unidade, e no apenas uma unidade,

digamos, de tipo material ou por substrato, concebida em termos gerais, como ocorre com

a causa primeira (983b 34) no monismo material. A gua de Tales, por exemplo, s foi

pensada como sendo o Um na exata medida em que todas as coisas tambm so pensadas

como fundamentalmente uma nica e mesma coisa, gua. Porm, em minha formulao, o

advrbio fundamentalmente faz uma enorme diferena, a ponto de sua ausncia destruir

a tese que confere noo de Um o papel de princpio de todas as coisas a tese de que

tudo um. Em outras palavras, todas as coisas so uma nica e mesma coisa apenas

fundamentalmente, essencialmente, ou ainda, segundo o tipo do substrato material, e no

mais do que dois objetos de bronze so fundamentalmente uma nica e mesma coisa:

bronze. A esse tipo de unidade por substrato material, Aristteles alude em Metafsica

Delta 6 (1016a 17ss.): [...] todos os lquidos (por exemplo, azeite, vinho) e todas as coisas

41

suscetveis de fuso se denominam um porque o subjacente ltimo de todas o mesmo

(pois todas essas coisas so gua ou ar).

Assim, a razo pela qual o Amor, na opinio de Ross, compreendido como sendo o Um

de Empdocles no a mesma pela qual os princpios materiais dos milesianos receberam

o ttulo de Um. Grosso modo, na doutrina de Empdocles, figuram, de um lado, os corpos

simples fogo, terra, gua e ar, e, de outro lado, os princpios motores Amor e dio. Cada

coisa existente concebida como um conglomerado de corpos simples, como uma unidade

organizada, cujos itens submetidos a essa organizao so, em algum sentido, inertes,

levados organizao por algum processo de natureza mvel. Porm, na medida em que os

corpos simples, por si s, so incapazes de conferir a eles prprios esse tipo de interao

mtua que os leva unidade da realidade da qual se fazem elementos, o Amor entra em

cena como fator que a produz. Assim, sem a atuao do Amor, como princpio motor dessa

interao mtua dos elementos, parece que nenhuma unidade organizada poderia existir,

mas apenas os prprios corpos simples em completa desordem, caso em que a atuao do

motor oposto, o dio, se faz dominante.

Se essa leitura adequada, ela nos deixa em condies de apontar alguns contornos da

descrio sob a qual o Amor concebido como sendo o Um de Empdocles. Ao que

parece, o Amor pensado como sendo o Um no sentido de que atua como fonte da

organizao interativa dos corpos simples, ou ainda, como fora motriz que produz a

unidade de cada realidade a partir da pluralidade inerte dos hypokeimena que a

42

constituem7. A princpio, nesse quadro cosmolgico, o Amor seria o motor da congregao

ou da mistura dos hypokeimena, ao passo que o dio seria o motor da desagregao ou da

separao dos hypokeimena.

Ross tem boas razes exegticas para recorrer a esse unifying power do Amor na

tentativa de justificar a atribuio do ttulo de Um a esse princpio. Uma delas aparece na

segunda formulao da Dcima Primeira Aporia, em que Aristteles nos diz que [...] de

fato, [sc. Empdocles] parece dizer que o Amor que o Um (ao menos, ele que a

causa de ser um para todas as coisas) [...] (1001a 1415). claro que a expresso causa

de ser um vaga e no chega propriamente a corroborar a proposta de Ross, mas apenas

no conflita ou no incompatvel com ela. No entanto, h outras passagens nas quais, de

um modo ou de outro, Aristteles faz aluso ao poder unificador do Amor, passagens

que podem ajudar a compreender melhor inclusive o que significa a expresso causa de

ser um no texto h pouco citado. Uma delas Metafsica Lambda 10, precisamente o

trecho 1075b 14, no qual Aristteles nos diz que Empdocles [...] concebe o Amor [...] a

ttulo de motor (pois ele congrega). O que chama a ateno nessa passagem a forte

associao entre e , em 1075b 3ss. Aristteles parece supor que um

princpio motor um princpio responsvel pela produo de algum tipo de congregao

7 Podemos sugerir que Aristteles estaria seguindo um princpio que aflora em Segundos Analticos 72a 2930: em todos os casos, algo se atribui mais quilo em virtude de que se atribui a cada coisa; por exemplo, mais estimvel aquilo em virtude de que estimamos. Esse princpio tambm parece aflorar em Metafsica II 1 (993b 23ss.): Cada coisa pela qual algo de mesma denominao se atribui se atribui a outras tem, ela prpria, mais do que as outras, essa mesma denominao (por exemplo, o fogo o mais quente, pois ele que causa da quentura para outras coisas). Em outras palavras, se x causa pela qual F se atribui a cada coisa, x mais F. Se o Amor, portanto, causa pela qual cada coisa uma (isto , unificada), o Amor seria o Um por excelncia.

43

ou de unidade, o que, de certo modo, justifica a atribuio do ttulo de Um ao Amor. O

prximo passo consiste em saber que coisas so essas que o Amor congrega ().

Segundo a interpretao de Ross, so os elementos materiais, ou seja, os hypokeimena.

Essa associao entre princpio de movimento e fator que produz unidade corroborada

tambm em Metafsica Alpha 4 (985a 2329), texto em que Aristteles critica os motores

opostos de Empdocles, Amor e dio, por produzirem tanto unidade quanto

multiplicidade, como se um princpio motor devesse produzir apenas unidade e jamais

multiplicidade:

.

,

,

.

Ao menos certo que, de vrios modos, seu Amor desagrega e seu dio congrega. De fato,

quando o todo separado nos elementos pelo dio, o fogo congrega-se em um s, bem

como cada um dos demais elementos; em contrapartida, quando, pelo Amor, eles

novamente agregam-se em uma s coisa, necessariamente, as partes de cada um

desagregam-se de novo.

Essa mesma crtica reaparece em Metafsica Beta 4 (1000b 912). Sob a perspectiva de

Aristteles, o dio tambm teria um certo unifying power, j que a desagregao de algo

em seus elementos materiais resultaria na separao ou no isolamento desses elementos

segundo cada tipo, e, portanto, na formao de conglomerados homemeros, cada qual

constitudo de um nico tipo de elemento, por exemplo, fogo. Esse cenrio cosmolgico

faria do dio um certo Um, dado que sua atuao produziria um tipo de unidade, a dos

44

conglomerados homemeros. Por sua vez, ao produzir a mistura dos elementos no

processo de gerao de realidades de constituio material hbrida, o Amor atuaria como

fator de desagregao dos conglomerados homemeros produzidos pelo dio, razo pela

qual seria indesejado conceb-lo como sendo o Um, afinal, sob esse ponto de vista, ele

seria um fator cuja atuao produziria a destruio dos conglomerados homemeros

oriundos da atuao do dio. Na medida em que esse desfecho indesejado e desempenha

o papel de uma crtica cosmologia de Empdocles, o seu apontamento, por parte de

Aristteles, revela o pressuposto de que um princpio de movimento deve ser um fator que

produz (exclusivamente) um certo tipo de unidade e jamais multiplicidade. Na cosmologia

de Empdocles, essa unidade ganha as feies de um resultado da interao mtua e da

mobilidade organizante que o Amor produz nos (demais) hypokeimena.

Ao que parece, ento, a descrio sob a qual o Amor indicado por Aristteles como

candidato ao ttulo de Um , de fato, aquela em que ele concebido como um fator que

atua sobre os hypokeimena, sendo responsvel por tir-los de um certo estado de inrcia

em que se encontram e promov-los a um tipo peculiar de mobilidade, um tipo que supera

aquela que lhes prpria, para trazer como produto final uma unidade que tambm

peculiar e que deve ser mais bem especificada em nosso estudo. Daramos um passo

importante se pudssemos detalhar qual o tipo de inrcia que est em jogo nesse contexto

e que tipo de unidade resulta da atuao desse princpio motor, o Amor. Assim, tambm

compreenderamos melhor a candidatura do Amor ao ttulo de Um na Aporia 11.

O referido passo pode ser dado atravs do exame de algumas passagens nas quais

Aristteles faz aluso ao princpio de movimento proposto por Anaxgoras, a Inteligncia,

45

que tambm integra a lista de candidatos ao ttulo de Um na Aporia 11. Em Metafsica

Alpha 3 (984b 8ss.), por exemplo, Aristteles encerra o captulo relatando algumas

dificuldades decorrentes de concepes materialistas que antecederam a proposta de

Anaxgoras, dificuldades que o levaram a propor a Inteligncia como princpio de

movimento. Vejamos o texto:

,

, , ,

.

. , ,

. ,

.

,

Mas, depois desses predecessores e dos princpios desse tipo dado que no so suficientes

para gerar a natureza dos entes novamente constrangidos pela prpria verdade (como

dissemos) buscaram o princpio seguinte. Do fato de alguns entes se comportarem bem e

ajustadamente, e virem a ser bem e ajustadamente, no plausvel que seja causa nem o

fogo, nem a terra, tampouco outra coisa desse tipo, nem plausvel que eles assim tenham

concebido. Tampouco cairia bem atribuir fato de tal monta ao espontneo ou ao acaso.

Assim, quando algum afirmou que, como nos animais, tambm na natureza a inteligncia

estaria inerente como causa do mundo e da inteira ordenao, ele surgiu como um sbrio,

parte dos antecessores, que se pronunciavam ao lu. Ora, sabemos claramente que

46

Anaxgoras alcanou tais argumentos, embora Hermtimo de Clazmenas tenha alguma

razo para ser antes assim designado. Os que conceberam desse modo ao mesmo tempo

consideraram que a causa de ser ajustadamente era um princpio dos entes, e a

consideraram como o tipo de causa a partir da qual o movimento se d nos entes.

Nessa passagem, a ligao entre organizao e movimento merece nossa ateno. De

acordo com Aristteles, a Inteligncia teria sido proposta por Anaxgoras, a ttulo de

princpio motor, tendo em vista explicar justamente o carter ordenado ou ajustado (kals,

eu) de alguns entes, carter esse que estava fora do alcance explicativo dos elementos. Isso

nos indica que o movimento para o qual se pretendia dar explicao atravs da busca de

um princpio motor, capaz de desfazer a indesejada inrcia que acometia os hypokeimena,

no era de qualquer tipo que viesse a calhar. O movimento para o qual se buscava

explicao era (sobretudo) de natureza ordenada, no qual os itens movidos (os elementos

ou hypokeimena) exibiam altssimo grau de interao e organizao, tal como se verifica,

presume-se, nos seres vivos. Sob essa perspectiva, de se imaginar que a unidade esperada

como resultado da atuao de um princpio de movimento sobre os chamados hypokeimena

se configurava de modo paradigmtico como a unidade orgnica dos seres vivos.

Se essa hiptese estiver correta, teremos dado aquele passo a mais na compreenso das

razes que levaram Aristteles a conceber os princpios motores de Anaxgoras e

Empdocles, a Inteligncia e o Amor, entre os candidatos ao ttulo de Um. A princpio,

nada impede que o poder unificante, ao qual Ross recorre para justificar a meno do Amor

entre os candidatos ao ttulo de Um listados na primeira formulao da Aporia 11, (Beta 1

996a 49) esteja presente tambm na Inteligncia. Por sua vez, a interatividade organizada,

promovida nos hypokeimena pela atuao da Inteligncia, na cosmologia de Anaxgoras,

47

pode tambm ter dado ignio introduo do Amor, atravs da doutrina de Empdocles,

com a diferena de que, nesta ltima cosmologia, o princpio motor ganha um par oposto,

o dio, como fator capaz de explicar a perda de interatividade dos elementos e a

conseqente desagregao (cf. 985a 29ss.). Assim, poderamos dizer que os princpios de

movimento, Inteligncia e Amor, foram concebidos como fatores capazes de promover nos

hypokeimena que lhes so correlatos um tipo de mobilidade interativa marcada por alto

grau de organizao, a ponto de impor aos elementos um nvel de ordenao que pode ser

descrita como uma unidade dos elementos que a compem e nela interagem entre si, uma

unidade que, por exigir a formulao de um princpio motor que a promova, deve ser

pensada como irredutvel natureza pura e simples dos hypokeimena. O exemplo

paradigmtico desse tipo de unidade provavelmente se realiza na unidade orgnica dos

seres vivos8, que recebe um tratamento similar em Fsica II 89, texto em que os

movimentos prprios dos corpos simples so pensados como insuficientes para explicar os

seres vivos e, por isso mesmo, exigem a introduo de um princpio adicional9. Note-se

que, em Fsica II 8, Aristteles introduz o problema a ser enfrentado no captulo aludindo

precisamente aos princpios motores de Anaxgoras e de Empdocles (198b 10ss.). Enfim,

nesses termos, parece adequado que se conceba um fator capaz de promover tal ordem de

unidade como sendo o Um (to hen).

8 Em Metafsica 1032a 19, os seres vivos so tomados como paradigmas de substancialidade, ao passo que, em 1016a 4ss., so tomados como paradigmas de unidade e continuidade. 9 Cf. Angioni 2006 e, sobretudo, 2009, p. 348-361.

48

Na prxima seo, tentarei mostrar ainda que no com o nvel de detalhe que seria ideal

para estabelecer de modo definitivo a associao entre unidade e movimento10 que

mesmo ao se pronunciar sobre sua prpria noo de hen, Aristteles no a desvencilha da

noo de movimento, mas, ao contrrio, procura, algumas vezes, at mesmo definir as

coisas que se dizem um a partir da noo de movimento.

1.3 HYPOKEIMENA, KINSIS KAI TO HEN

De acordo com a reconstituio que temos proposto at aqui a qual, no nos esqueamos,

assume os relatos de Aristteles sem colocar em questo o valor histrico deles a noo

de Um entrou em cena como uma decorrncia dos princpios materiais introduzidos pelos

milesianos. Na medida em que a gua, o Ar e o Fogo foram concebidos como princpios

imanentes de todas as coisas, a filosofia encontrou todo o ensejo de que precisava para

formular a tese de que tudo um. Com efeito, se todas as coisas so fundamentalmente

uma nica e mesma coisa, a saber, gua, Ar ou Fogo, ento, de fato, tudo um. Assim, a

noo de um que, a princpio, atuava como uma espcie de quantificador singular em

enunciados do tipo todas as coisas so fundamentalmente uma (coisa): a matria comum

que as constitui foi promovida a termo conceitual, de modo a designar precisamente

aquela nica e mesma coisa que era pensada como princpio material, imanente em todas

as coisas. A partir da, a questo o que o Um? ganhou sentido e obteve como possveis

respostas uma lista de denotata do termo Um. Na doutrina de Tales, o denotatum era a

10 De fato, seria oportuno incluir o exame de alguns textos da Fsica, nos quais Aristteles trata da noo de movimento (por exemplo, Fsica V 4, 227b 4ss.), bem como de alguns textos de Sobre o Cu, em que Aristteles se pronuncia inmeras vezes sobre o movimento circular, ao qual parece fazer rpida aluso em Iota 1 (1052a 2628).

49

gua, na de Anaximandro, o Ilimitado, na de Anaxmenes, o Ar, na de Herclito, o Fogo, e

assim por diante.

Por sua vez, na medida em que os princpios introduzidos pelos milesianos traziam de

arrasto uma certa imobilidade11 que era incompatvel com os aspectos dinmicos e

ordenados (kals) da realidade, surgiu a necessidade de buscar um novo princpio, um que

fosse capaz de explicar o dinamismo organizado exibido por certos entes, ou ainda, a

interao inteligente dos elementos, a qual, convm enfatizar, estava fora do alcance

explicativo da natureza pura e simples dos hypokeimena e exigia a introduo de um

princpio motor. Aristteles aponta Anaxgoras e Empdocles como os principais

proponentes de princpios de tal natureza, princpios que foram concebidos justamente para

dar conta desse dficit explanatrio que se instalou entre a imobilidade que resultava dos

hypokeimena e o dinamismo organizado da realidade. Esse dficit explanatrio

transformou a noo de Um, que passou a ser pensada no apenas como um conceito cuja

lista de denotata se perfazia por princpios materiais (gua, Ar, Fogo, etc.), mas como um

princpio que deveria explicar a unidade e a ordenao que sobrevinha aos hypokeimena e

que no podia ser explicada pelas caractersticas que lhes eram prprias. Assim, podemos

dizer que o Um passou a designar um princpio motor, responsvel pela promoo da

unidade organizada que acometia os elementos constituintes dos entes mais complexos.

11 Digo uma certa imobilidade porque, de fato, no se trata de uma imobilidade completa e absoluta (afinal, os corpos simples tambm possuem movimentos que lhe so prprios), mas daquela imobilidade que, em Metafsica Alpha, pensada como resultado terico indesejado, proveniente dos princpios materiais e que evitada precisamente atravs da introduo dos princpios de movimento, os quais tinham por destino explicar, no qualquer movimento, mas os movimentos ordenados, belos, etc.

50

Esse percurso d sinais de ser corroborado por algumas passagens nas quais, de fato,

Aristteles relaciona o conceito de Um com a noo de movimento. Em Metafsica Delta

6, por exemplo, Aristteles parece se referir aos entes naturais quando descreve os entes

providos de unidade no sentido mais adequado do termo. Segundo Aristteles, [...] as

coisas que so contnuas (synechs) por natureza possuem mais unidade/so mais um do

que aquelas que so contnuas por tcnica. E contnuo se denomina aquilo (considerado em

si mesmo) cujo movimento um e no pode ser de outro modo (1016a 4ss.). bom

lembrar que o captulo 6 de Metafsica Delta, do qual retiramos essa passagem, dedicado

inteiramente noo de hen. Alm do mais, o captulo 1 do Livro Iota da Metafsica no

fica para trs no que diz respeito a essa ligao entre as noes de hen e de movimento.

Nele, Aristteles tambm insiste nessa vinculao entre unidade e movimento. Entre as

coisas que so ditas um por si mesmas, Aristteles aponta o contnuo (synechs), [...]

sobretudo o que contnuo por natureza, e no por contato, nem por amarrao [...]

(1052a 19ss.), e acrescenta que, entre tais itens, [...] possui mais unidade/ mais um

aquele cujo movimento mais indivisvel e mais simples [...] (1052a 20ss.). Algumas

linhas frente, Aristteles aponta [...] o todo que possui uma configurao e uma forma,

sobretudo se for algo de tal tipo por natureza [...] e se possuir em si mesmo a causa pela

qual ele mesmo contnuo. E h de ser de tal tipo porque seu movimento nico e

indivisvel pelo lugar e pelo tempo. Na imediata seqncia, ainda acrescenta, em tom

conclusivo: [...] por conseguinte, evidente que, se algo possui por natureza o primeiro

princpio do movimento primeiro (quero dizer: da locomoo, a circunvoluo), essa

grandeza ser primeiramente uma (1052a 2628). Outra associao entre as noes de

51

um e de movimento aparece em Metafsica Delta 26, texto dedicado noo de todo

(holos) e no qual Aristteles nos diz que [...] algo contnuo e limitado, quando h uma

s coisa constituda de muitas [...], e acrescenta: Entre esses casos, so de tal tipo as

coisas por natureza, mais do que as que se do pela tcnica (como dissemos tambm a

respeito do um, pois o todo uma certa unidade) (1023b 26ss.). Embora Aristteles no

faa, aqui, uma associao explcita entre as noes de hen e de movimento, o fato de

descrever a noo de todo como sendo o contnuo (synechs) indica que a noo de

movimento deve estar presente nos bastidores, j que o contnuo por natureza possui mais

unidade na exata medida em que seu movimento mais indivisvel e mais simples (1052a

19ss.).

Tudo indica que aquilo que comporta unidade em sentido mais apropriado tambm algo

que possui movimento, o que nos faz crer que, de fato, o Um, na medida em que promove

essa unidade que se revela indissocivel do movimento, deve ser um princpio motor.

Como essa unidade se realiza em sentido mais completo e apropriado nas substncias,

sensato supor que o princpio motor capaz de promover essa unidade seja tambm o mais

promissor no que diz respeito a figurar como sendo o Um entre os princpios. Talvez seja

esse o caminho pelo qual devamos compreender o que Aristteles prepara em Metafsica

Iota 1 (1052a 3334), precisamente no trecho em que, depois de apresentar os vrios

sentidos em que algo se diz um por si mesmo, conclui que [...] ser primeiramente um a

causa do um para as essncias, como se dissesse que mais digno do ttulo de Um aquele

52

princpio que responsvel por promover a unidade que caracterstica das substncias12.

Tratando-se especificamente das substncias sublunares, podemos imaginar que essa

unidade no seja outra seno aquela que podemos descrever como uma unidade orgnica

dos seres vivos, constituda dos hypokeimena.

J se sabe que Aristteles explica essa unidade por meio de sua teleologia (cf. Angioni,

2006 e 2009). Nos captulos 89 do Livro II da Fsica, Aristteles no apenas apresenta

sua teleologia, mas o faz assumindo como ponto de partida exatamente o insucesso dos

princpios motores de Anaxgoras e Empdocles. Note-se que Aristteles chega a

manifestar uma certa decepo com o pouco uso que cada um deles faz, respectivamente,

da Inteligncia, em um caso, e dos princpios antagnicos Amor e dio, em outro caso, na

tentativa de explicar aquilo que se manifesta ajustado nos entes. Segundo Aristteles, [...]

mesmo se mencionam uma outra causa [alm dos hypokeimena], abandonam-na to logo a

tenham tocado; um, o Amor e o dio, outro, a Inteligncia (198b 10ss.). Essa decepo se

constata tambm em Metafsica Alpha 4, em passagem que j tivemos a oportunidade de

citar. De fato, em tal texto, Aristteles nos relata que Anaxgoras e Empdocles [...] quase

no se utilizam delas [sc. as causas motoras], a no ser em pequena medida. Anaxgoras

utiliza-se ao lu da Inteligncia em sua cosmogonia; isto , quando tem impasse em saber

por que causa algo se d necessariamente, ele a arrasta, mas, nos demais casos, declara

como causa do que vem a ser, em vez da Inteligncia, qualquer outra coisa. Empdocles

utiliza-se dessas causas mais do que ele, mas tampouco o faz suficientemente, nem

12 Castelli (2010, p. 150) tem uma leitura diferente: It is probably with respect to the characterization of universals as units for scientific knowledge that we must read Aristotles remark in X1 in such a way that what causes substances to be one must be one in the primary sense [].

53

encontra nelas coerncia (985a 10ss.). At mesmo no dilogo Fdon, Plato traz um relato

cujo tom revela um certo desapontamento com o pouco uso que Anaxgoras faz da

Inteligncia na tentativa de explicar as feies ordenadas dos entes. Na traduo de Paulo

F. Flor (in Os Pensadores - Pr-Socrticos, 2000), Scrates diz o seguinte: Ora, dessa

maravilhosa esperana, companheiro, logo me afastava, quando prosseguindo na leitura

vejo que o homem [sc. Anaxgoras] no fazia uso do esprito, nem o assinalava em certas

causas para ordenar as coisas, mas sim o ar, o ter, a gua e muitas explicaes

desconcertantes (97b).

Todo esse desapontamento nos faz ver que havia razovel expectativa de que os princpios

motores de Anaxgoras e Empdocles pudessem explicar o modus operandi de natureza

organizada que certas realidades exibiam. Essa leitura corrobora no captulo 4 de

Metafsica Alpha, em passagem na qual Aristteles tece alguns comentrios sobre o que

ele prprio relatou no ltimo pargrafo do captulo anterior, a saber, a introduo de um

princpio de movimento. Segundo Aristteles, ao lado de Anaxgoras, Empdocles e

Hesodo, at mesmo Parmnides teria proposto um princpio motor, precisamente o amor

(erta), como [...] primeiro de todos os deuses [...], como sendo preciso que exista entre

os entes uma causa que possa mover e congregar (kinsei kai synaxei) as coisas (984b

23ss.). Em seguida (984b 32ss.), Aristteles nos oferece mais um relato da doutrina de

Empdocles e no deixa dvidas de que o princpio de movimento proposto por ele, o

Amor, tinha por destino explicar, no um movimento qualquer, mas sim um movimento de

natureza organizada. Vejamos o texto:

54

,

,

, ,

.

,

, ,

[ ].

Por outro lado, como os contrrios das coisas boas tambm estavam presentes de modo

manifesto na natureza (isto , no apenas ordem e beleza [taxis kai to kalon], mas tambm

desordem e feira [ataxia kai to aischron]), e as coisas ruins [ta kaka] eram mais

numerosas que as coisas boas [tn agathn], assim como as feias [ta phaula] eram mais

numerosas que as belas [tn kaln], algum, deste modo, introduziu Amizade e dio; cada

um deles como causa respectiva dos opostos. De fato, se algum acompanhar e

compreender pelo pensamento e no por aquilo que Empdocles balbucia, descobrir que a

Amizade causa das coisas boas [tn agathn], e o dio, causa das coisas ruins [tn

kakn]. Por conseguinte, se algum disser que Empdocles de certo modo afirmou e

afirmou pela primeira vez que o bem e o mal [to kakon kai to agathon] so princpios,

plausivelmente dir com acerto, dado que a causa de todas as coisas boas [tn agathn] o

que bom em si mesmo (e a das ruins [tn kakn], o mal).

Essa passagem, uma vez mais, nos indica que a introduo de um princpio de movimento,

tal qual Inteligncia ou Amor, no tinha por propsito explicar um movimento qualquer,

mas sim um tipo de movimento que se revela provido de organizao e beleza, e que, por

isso mesmo, superava a capacidade explanatria dos movimentos provenientes dos

princpios materiais que precederam chegada dos princpios motores tal como relata

55

Aristteles nos captulos 3 e 4 de Metafsica Alpha. Embora a noo de movimento no

aparea de modo explcito no texto citado, podemos crer que ela ainda se faz presente,

sobretudo porque o Amor (e, em certo sentido, tambm o dio) um princpio de

movimento. Certamente, aquilo que Aristteles quer enfatizar no trecho acima que

Empdocles introduziu princpios opostos porque julgou que um princpio que explicasse

apenas os aspectos ordenados da realidade seria deficitrio justamente por no explicar

aqueles aspectos da realidade que so desprovidos de organizao. Era isso o que ocorria

na cosmologia de Anaxgoras, na qual no h um princpio capaz de explicar a desordem,

mas apenas a ordem. No entanto, o fato de no haver meno explcita noo de

movimento de modo algum a coloca fora de cena. Pelo contrrio, na medida em que a

passagem ainda trata de princpios de movimento, devemos l-la como um relato que

pressupe a noo de movimento e, mais do que isso, como um relato que a associa s

noes de ordem, beleza e bem. assumindo essa associao que Aristteles dir, mais

frente, que [...] aqueles que propem a Inteligncia (Nous) ou o Amor (Philia) consideram

tais causas a ttulo de Bem (agathos); no entanto, no as propem como se algo fosse o

caso ou viesse a ser em vista delas, mas como se os movimentos procedessem delas (988b

6ss.). Note-se que, ao criticar o fato de os princpios motores de Anaxgoras e Empdocles

serem pensados como causas das quais procedem os movimentos e no como causas em

vista das quais os movimentos se do, Aristteles d indcio de que o seu prprio princpio

de movimento (supondo que ele tenha proposto um) atuar como uma causa final (um

princpio teleolgico), em vista da qual os movimentos dos entes sero executados. Ainda

no preciso aprofundar esse assunto. Por ora, limitemo-nos a dizer que, no relato de 984b

56

32ss., citado h pouco, Aristteles nos revela que, para Empdocles, no bastava introduzir

um princpio de movimento que explicasse a mobilidade ordenada da realidade, como o fez

Anaxgoras ao introduzir a Inteligncia, mas era preciso tambm introduzir um princpio

de movimento que explicasse a mobilidade desordenada. O resultado disso o par de

motores opostos, Amor e dio.

No que diz respeito aos nossos interesses mais imediatos, convm enfatizar, para concluir

esta seo, que h uma forte ligao entre movimento e unidade, ligao que se d

sobretudo por meio de noes tais quais eu, kalos, agathos, taxis, etc., que apontam para

aspectos da realidade que so assumidos como explananda para os quais os princpios de

movimento entram em cena. Assim, os movimentos para os quais Anaxgoras e

Empdocles propuseram princpios que os explicassem foram pensados por Aristteles

como processos organizados, cujos resultados eram tipos de unidades que se realizavam

pela interao altamente ordenada dos hypokeimena que as constituam, interao que, na

opinio de Aristteles, devia envolver finalidade teleolgica e que, por isso mesmo, no

podia ser reduzida natureza pura e simples dos hypokeimena (cf. Fsica II 89). O

promotor dessa unidade, em ltima instncia, parece ser descrito como sendo o Um, de

modo que a incluso da Inteligncia e do Amor entre os candidatos ao ttulo de Um na

Aporia 11, a partir de agora j se v mais bem justificada, muito embora, conforme

apontamos acima, Aristteles tenha desqualificado tais princpios, na medida em que no

atuam propriamente como princpios teleolgicos.

Pois bem, se, na cosmologia de Anaxgoras, o papel de Um foi concedido, por Aristteles,

Inteligncia, e, na de Empdocles, ao Amor, o que diremos desse papel na filosofia (ou

57

cosmologia) do prprio Aristteles? Teria ele tambm proposto um princpio cosmolgico

que promova essa unidade? Supondo que Aristteles tenha proposto um tal princpio, qual

seria ele, isto , o que seria o Um de Aristteles? Alm do mais, qual seria a relao entre

esse princpio cosmolgico e a sua teleologia natural? Todas essas questes interessam ao

presente estudo. Porm, a ltima delas, em especial, envolve dificuldades que ainda esto

fora do alcance explicativo dos resultados a que chegamos. Por isso, ela ser deixada de

lado. Assim, concentraremos esforos nas demais questes citadas acima.

Na prxima seo, passaremos a reconstituir a outra perspectiva rivalizada na Dcima

Primeira Aporia, a saber, aquela inaugurada pelos Pitagricos e endossada por Plato.

1.4 PITAGRICOS, PLATO E O UM

At aqui, temos trabalhado apenas com um dos lados da Dcima Primeira Aporia, aquele

dos Estudiosos da Natureza, os chamados Physiologoi. J vimos que a noo de Um

comeou a ganhar as feies de um princpio cosmolgico quando passou a designar

aquela natureza material que, por estar imanente em tudo o que existe, deu todo o ensejo de

que a filosofia precisava para formular a tese de que todas as coisas so fundamentalmente

uma, a matria comum que as constitui. A partir da, j seria natural se referir a essa

matria como sendo o Um, entendido aqui como princpio (cosmolgico) de todas as

coisas. Essa matria, por sua vez, marcada por certa incapacidade de conferir a si mesma

os movimentos ajustados e belos que se manifestam nos entes que dela so constitudos,

deu ocasio busca de um novo princpio, um que pudesse dar conta daqueles aspectos da

58

realidade que so permeados por um tipo de mobilidade de natureza organizada, tal como

aquela exibida pelos hypokeimena nos seres vivos.

Porm, como toda boa aporia, tambm a Aporia 11 se constitui de duas alternativas rivais.

Ainda no sabemos se essas alternativas contrastam uma com a outra a ponto de serem

totalmente incompatveis, mas os textos nos quais Aristteles formula a Dcima Primeira

Aporia (996a 49, 1001a 419 e 1053b 916) e, por conseguinte, as apresenta, sugerem

que devemos conceb-las como alternativas mutuamente excludentes. Por isso, tendo em

vista preparar o terreno para, mais tarde, lidar com o confronto entre essas duas

alternativas, passaremos, a partir de agora, a trabalhar com a reconstituio da alternativa

que Aristteles atribui aos Pitagricos e a Plato, seu mestre.

Como ponto de partida, proponho uma rpida olhada em trs passagens nas quais

Aristteles relaciona a formulao da chamada Teoria das Idias com um problema

epistemolgico que decorre da doutrina de Herclito, problema que instaura, como

resultado aportico, a impossibilidade do conhecimento. Refiro-me precisamente a

Metafsica Alpha 6 (987a 29ss.), My 4 (1078b 12ss.) e My 9 (1086a 26ss.). A primeira

delas (987a 29ss.) integra o relato (pretensamente) histrico que Aristteles nos deixou nos

captulos 310 de Metafsica Alpha. Vejamos o que Aristteles tem a nos dizer sobre as

origens da teoria platnica das Idias:

,

,

,

,

59

, .

,

.

De fato, desde jovem tendo convivido primeiramente com Crtilo e com as opinies

heraclticas, de que todas as coisas sensveis sempre esto em fluxo e de que delas no h

conhecimento, assim [sc. Plato] as concebeu tambm depois. Mas, aceitando Scrates

que se empenhou em estudar assuntos ticos, mas nada sobre a natureza em seu todo,

procurando naqueles primeiros o universal, e sendo o primeiro a demorar o pensamento nas

definies por tal razo, julgou que isso se daria a respeito de outras coisas, e no a

respeito das sensveis, dado que seria impossvel haver definio comum de qualquer coisa

sensvel, na medida em que elas esto sempre em mudana. Assim, ele denominou os entes

de tal tipo como Idias, e julgou que todas as coisas sensveis estavam parte delas e por

elas se designavam: por participao, as coisas mltiplas seriam homnimas s Formas.

A segunda passagem que nos interessa aparece no captulo 4 de Metafsica My e embora

seja mais curta que a anterior, no menos informativa, sobretudo no que diz respeito s

razes que fizeram os proponentes da Idias conceb-las como entidades que habitam um

outro reino de realidades, um que no est ao alcance dos processos de mudana que

caracterizam o devir. Eis o texto:

,

,

.

A opinio sobre as Formas ocorreu aos que a proclamaram por terem acreditado nos

argumentos heraclticos a respeito da verdade: na medida em que todas as coisas sensveis

60

esto sempre em fluxo, para haver algum conhecimento e alguma sabedoria, seria preciso

haver outras naturezas, alm das sensveis, que permanecessem, dado que no seria

possvel haver conhecimento daquilo que est em fluxo.

Por fim, a terceira passagem com a qual lidaremos tambm pertence ao Livro My da

Metafsica de Aristteles, precisamente ao captulo 9, e nos oferece um detalhado relato

das origens da doutrina platnica das Idias e de sua relao com as opinies heraclticas.

Nela, Aristteles diz o seguinte:

. [ ]

. .

,

[]

,

. , ,

, .

,

.

, ,

, ,

.

Com relao aos que propem Idias, pode-se ver ao mesmo tempo sua orientao e o

impasse a respeito delas. Com efeito, propem as Idias ao mesmo tempo como universais,

como separadas e como coisas particulares. Ora, que isso no possvel, foi discutido

antes. E a causa pela qual os que propem Idias universais juntaram as duas coisas que

no conceberam as essncias como idnticas s coisas sensveis. Julgaram que, no domnio

61

das coisas sensveis, as coisas particulares esto em fluxo e no permanecem, nenhuma

delas, ao passo que o universal seria parte delas e seria algo distinto. Ora, tal como

dizamos nas discusses de antes, Scrates provocou isso, por suas definies, mas no as

separou das coisas particulares. E, ao no separ-las, entendeu corretamente. Isso se

evidencia pelos resultados: sem o universal, impossvel apreender o conhecimento, mas

separar a causa das dificuldades que decorrem a respeito das Idias. Os outros

considerando que, para haver certas essncias parte das sensveis que esto em fluxo,

seria necessrio que fossem separadas no dispunham de outras e propuseram as que se

dizem como universais, de modo que, por assim dizer, decorre serem as mesmas naturezas

as universais e as particulares.

No tenho condies de, aqui, avaliar em detalhe a preciso descritiva desses disputados

relatos13. Meu interesse, nessas passagens, mais geral e diz respeito ao fato de Aristteles

estabelecer uma relao de decorrncia entre a postulao das Idias e a impossibilidade de

conhecer as entidades sensveis, ou ainda, entre o devir da realidade heracltica e a

concepo das Formas como entidades separadas