a noção de psíquico na teoria do imaginário em sartre

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    907PSICOLOGIA USP, So Paulo, 2011, 22(4), 907-925

    A NOO DE PSQUICA NOO DE PSQUICA NOO DE PSQUICA NOO DE PSQUICA NOO DE PSQUICO NAO NAO NAO NAO NA TEORIA DO IMATEORIA DO IMATEORIA DO IMATEORIA DO IMATEORIA DO IMAGINRIO DE SARGINRIO DE SARGINRIO DE SARGINRIO DE SARGINRIO DE SARTRETRETRETRETRE11111

    Bianca Spohr

    Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:A definio da Psicologia como cincia e de seu objeto de estu-

    do tem sido discutida ao longo dos anos de desenvolvimento desta disciplina. E, embora os

    psiclogos reconheam a importncia desta problemtica e tenham se dedicado a ela, ainda se

    consideram distantes de uma delimitao consensual. Considerando esta situao, este estudo

    apresenta a teoria do imaginrio de Sartre como um instrumento para se compreender o ps-

    quico objeto de estudo da Psicologia. Para tanto, realizada a anlise das obras LImaginairee

    La Transcendance de LEgode Sartre, pois estudar a imaginao e seu correlato, o imaginrio,

    pressupe o estudo da conscincia e seu correlato, o psquico. possvel concluir que Sartre

    forneceu importantes contribuies para a elucidao do psquico a partir de sua teoria do

    imaginrio porque reformulou a noo de imagem atravs da reconstituio da conscincia e

    do psquico e porque afirmou a imaginao como uma conscincia autnoma que representa,

    em essncia, a noo de liberdade.

    PPPPPalaalaalaalaalavrvrvrvrvras-chaas-chaas-chaas-chaas-chavvvvve:e:e:e:e:Sartre. Imaginao. Imaginrio. Conscincia. Psquico.

    1 Este trabalho fruto da dissertao de Mestrado em Filosofia defendida pela autora em 2009 pela Universidade Federal

    de Santa Catarina UFSC. Seu ttulo A Compreenso do Psquico na Teoria do Imaginrio de Sar tre e pode ser acessada

    no endereo eletrnico

    http://www.tede.ufsc.br/tedesimplificado/tde_arquivos/31/TDE-2010-03-03T150203Z-1316/Publico/PFIL0107-D.pdf.

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    2 A palavra psquico usada neste trab alho como sinnimo de ego, eu ou personalidade, e designa, confor-

    me dito no resumo, o objeto de estudo da Psicologia. Esta equiparao tem base na obra de Sartre: o

    psquico o objeto transcendente da conscincia reflexiva, tambm o objeto da cincia chamada psi-

    cologia (Sartre, 1936/2003, p. 113). No entanto, ao longo deste trabalho, a palavra mais usada ser ego

    porque a utilizada por Sartre na obra em que ele desenvolve este tema.

    Este estudo resultado de uma dissertao de Mestrado em Filoso-fia que pretendeu fazer uma articulao entre Filosofia e Psicologia utili-

    zando uma teoria filosfica para compreender um problema psicolgico. preciso, ento, perguntar: de que maneira Sartre e sua teoria do imagi-nrio se relacionam com a Psicologia? Ou como a teoria do imaginriosartriana pode fornecer elementos para a compreenso da conscincia edo psquico2?

    A imagem foi o primeiro tema propriamente psicolgico sobre oqual Sartre se debruou e atravs do qual iniciou a discusso com os sis-temas filosficos de seu tempo e a construo de uma compreenso pr-pria do psquico. O dilogo com filsofos e tambm com psiclogos sefazia necessrio porque as teorias psicolgicas tinham como base os sis-temas filosficos vigentes.

    A Psicologia da poca, amplamente influenciada pelas perspecti-vas empirista e mecanicista, logo tornou-se alvo do olhar crtico sartriano.Entre os muitos aspectos considerados por Sartre como problemticosnessas teorias estavam a separao entre o fisiolgico e o psicolgico,tomados isoladamente (sendo que todo fenmeno psquico psicofsi-co, isto , implica um sujeito que corpo-conscincia); as ligaes de cau-salidade externa para explicar os fenmenos psquicos (e no de com-preenso); e a supresso do sentido das condutas humanas (todo atohumano significativo). E a psicanlise uma das principais foras daPsicologia desde seu surgimento, mas tambm um movimento indepen-dente desta disciplina ocupou lugar de destaque nas reflexes sartrianas,sendo referenciada desde os primeiros livros do filsofo.

    A teoria freudiana foi feliz, segundo o existencialista, ao recolocaro acento na significao dos fatos psquicos (Sartre, 1938/2006, p. 49),o que devolveu ao psiquismo o seu dinamismo e mostrou que todo atohumano remete para algo alm dele. Mas a noo de inconsciente e asligaes de causalidade rgida entre os fenmenos psquicos no pa-reciam compatveis com as perspectivas abertas por Freud. A ideia deuma conscincia cindida que no sabe de si ou que ignora os significa-dos atribudos por ela prpria parecia impossvel para Sartre. E, do mes-mo modo, as explicaes psicanalticas pareciam sofrer de uma contra-dio profunda: mesclavam, ao mesmo tempo, noes de causalidade ede compreenso.

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    De posse dessas crticas, Sartre lanou-se na empreitada de elabo-rar uma nova teoria psicolgica, comeando pelo estudo da imagem. A

    situao encontrada pelo filsofo poderia ser resumida no dizer de GrardLebrun na aba da obra LImagination:

    a imaginao gozava entre os clssicos de m-reputao.... pois tempo deromper esse fastidioso dilogo entre Descartes e Hume.... De um ou de outrolado,julga-sea imagem antes de se preocupar em dizero que ela ... A imagi-nao no um delrio e merece mais do que ser deixada por conta de umapatologia do erro ou de uma psicologia da associao. Essa a boa nova anun-ciada por Sartre em 1936: ele tira a loucura, para devolv-la a uma conscinciaclara e ampla... e assim abre caminho crtica radical de toda a psicologia.(Sartre, 1936/1964, aba)

    O texto sobre a imaginao pode ser considerado, portanto, maisdo que uma introduo psicologia existencialista da imaginao, poisali Sartre colocou no banco dos rus Descartes, Leibniz, Espinosa, Hume,Bergson e, at mesmo, Husserl. Referenciou Husserl, sobretudo de umponto de vista positivo, afirmando as perspectivas promissoras abertaspela fenomenologia e que levariam Sartre a elaborar, na obrasubsequente, uma psicologia fenomenolgica da imagem (Bertolino,1986, p. 4).

    Assim, aps um percurso permeado pelos estudos crticos sobre aimagem, o tema da contingncia e da liberdade, o problema da cons-cincia e do ego, a questo das emoes e a tese do ser e do nada, veio apblico, em 1940, LImaginaire, que incorporou toda a filosofia que vinha

    sendo desenvolvida at ento. Essa obra original consistiu na teoriasartriana da dinmica da vida imaginria (Arruda, 1994, p. 81) e a partirde ento a imaginao entrou, definitivamente, no cenrio filosfico epsicolgico no mais como um conceito entre outros, mas como um as-pecto essencial da vida humana.

    A fim de cumprir os objetivos propostos por este trabalho ser apre-sentada, na primeira parte, a noo de conscincia e de ego descrita, prin-cipalmente, em La Transcendance de LEgo. A seguir, ser elucidada, bre-vemente, a teoria da imaginao e do imaginrio a partir de LImaginairee, por ltimo e a ttulo de concluso, ser esboada uma compreenso dopsquico (ego) atravs da teoria do imaginrio de Sartre.

    1. A noo de conscincia e ego a partir de La Transcendancede LEgo

    A influncia da fenomenologia de Husserl marcou no s o estudosobre a conscincia e o ego, mas tambm as obras subsequentes de Sartre,muito embora a distncia que separava os projetos filosficos desses dois

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    autores fosse significativa. Husserl fez filosofia orientada por problemasepistemolgicos, pois queria um fundamento absoluto no s para as

    cincias, mas para a prpria filosofia e situou, por isso, o cerne da questona subjetividade transcendental entendida como fonte de todo o senti-do. Sartre, por sua vez, abordou o problema ontolgico por entender queele pressupunha qualquer discusso epistemolgica e por desejar fun-damentar o concreto.

    O contexto que deu origem discusso realizada por Sartre em tor-no do problema do ego foi aquele da tradio (filosfica) para a qual eracerta a existncia de um eu interior, habitante da conscincia. Apoiadona fenomenologia, e, ao mesmo tempo, posicionado criticamente em re-lao a ela, Sartre dedicou-se a refutar esta tese de um ego inacessvel.Desenvolveu, em La Transcendance de LEgo, uma nova ontologia do egoa fim de esclarecer a relao entre este e a conscincia, de modo a garan-tir a transparncia da conscincia e a transcendncia do ego.

    Em La Transcendance de LEgo, Sartrecomeou por reverenciar aintencionalidadeexpressa pela mxima toda conscincia conscinciadealguma coisa. Essa ideia, em Husserl, afirmava que toda conscinciavisa(est posicionada frente ) um objeto, ou seja, no h conscinciafora do ato intencional (Alves de Souza, 2000, p. 44). Para Sartre, contudo,a intencionalidade afirmava mais, pois dizia no s sobre a conscincia,mas, tambm, sobre o objeto: a conscincia e o mundo so dados deuma s vez: por essncia exterior conscincia, o mundo , por essncia,relativo a ela (Sartre, 1934/2005, p. 56). Assim, o mundo no poderia serconstitudo pela conscincia, j que o prprio modo de ser da conscin-

    cia garantiria sua transcendncia em relao a ele. A intencionalidade, deacordo com Sartre,permitiu fenomenologia detectar a conscinciacomo fato absoluto e, a um s tempo, afirmar o absoluto de opacidadecomo relativo a ela: a conscincia aparece como um fato irredutvel namedida em que no se pode converter em coisa; e a coisa, na medida emque no se pode dissolver na conscincia, tambm aparece comoirredutvel (Bertolino, 1979, p. 58). Tal seria a chave para a redefinio doego, pois no restaria nenhum contedo na conscincia, nenhum graude opacidade, ela seria pura transparncia, pura relao s coisas. O egono poderia, portanto, estar nelacomo polo unificador, seria, ao contr-rio, objeto transcendente, objeto do mundo.

    E como se caracteriza a conscincia? A lei de toda conscincia ser

    conscincia dealgo (relao a um objeto transcendente) e conscincia(de) si (transparente para si mesma). Ser conscincia designifica ser sem-pre posicional doobjeto, estar posicionada frente a algo diferente dela,que est fora dela; e enquanto ocorre, a conscincia no posiciona a simesma como objeto, ou seja, no posicional de si porque posicionaldo objeto. Ser conscincia (de) si, por sua vez, quer dizer ser pura e sim-plesmente conscincia de ser conscincia deste objeto (Sartre, 1936/2003,

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    3 O cogitoou cogito ergo sum uma das t eses centrais de Descartes e refere-se mxima penso, logo sou.

    Com isso, Descartes queria dizer que a nica coisa que no se pode duvidar de que eu penso e, portan-

    to, existo; e da deriva a concluso cartesiana: sou uma coisa pensante (Mora, 2001). Sartre parte do

    cogitocartesiano, mas aponta, de sada, os limites desta tese como princpio ltimo da filosofia. O cogito

    cartesiano ou reflexivo pressupe o cogitopr-reflexivo que o fundamenta. Tal a tese sartriana desen-

    volvida no Ltre et le Neant(O Ser e o Nada) e, pode-se dizer, central em toda a sua obra. Para maiores

    detalhes sobre este ponto, alm de uma perspectiva geral sobre a teoria da personalidade em Sartre, ver

    o artigo Liberdade e Dinmica Psicolgica em Sartre de Daniela Ribeiro Schneider atravs do link http:/

    /pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/nh/v8n2/v8n2a02.pdf.

    4 No original: Toute conscience rflchissante est, en effet, en elle-mme irrflchie (Sartre, 1936/2003,

    p. 100).

    p. 98), ser transparente para si mesma. Assim, a conscincia pode serentendida como um movimento em direo a algo fora dela no qual se

    absorve inteiramente em ser. Por ser posicional do objeto e conscincia(de) si, a conscincia interioridade absoluta e o ego no pode ter lugardentro dela e como qualquer objeto transcendente, o ego um centrode opacidade e necessita estar fora, no mundo.

    Considerando toda conscincia definida como tal, Sartre descreveudiferentes nveis de conscincia ou modos de ela estabelecer relao como mundo. O primeiro nvel de conscincia descrito por Sartre chamadoconscincia de primeiro grau ou cogito3pr-reflexivo. Essa conscincia uma relao imediata com seu objeto, uma vivncia espontnea, irre-fletida, sem previso reflexiva de resultado, sem justificativas... Eu vivo asituao em termos de liberdade absoluta (Bertolino, 1979, p. 16). Essaconscincia de primeiro grau possui, ainda, uma prioridade ontolgicaem relao conscincia de segundo grau,ela o fundo sobre o qual sed a reflexo. A conscincia de primeiro grau,sendo conscincia no tticade si mesma, deixa uma recordao no ttica que se pode consultar, oque indica que sempre possvel reconstituir o momento completo emque aparece esta conscincia irrefletida (Sartre, 1936/2003, p. 100).

    O outro nvel de conscincia chamado conscincia de segundograuou cogito reflexivo. Esse ato operado por uma conscincia dirigi-da sobre a conscincia, que toma a conscincia como objeto (Sartre, 1936/2003, p. 99). O cogitopr-reflexivo ser, portanto, condio para o cogitoreflexivo na medida em que a conscincia reflexiva, conscincia irrefleti-da que coloca uma conscincia refletida, supe a vida espontnea

    (Mouillie, 2000, p. 47). Toda conscincia que toma outra conscincia comoobjeto , em si mesma, irrefletida4: conscincia posicional doobjeto econscincia (de) si, tal como toda e qualquer conscincia. A diferena que essa conscincia de segundo grau chamada reflexionante tomauma conscincia anterior como objeto estabelecendo, sobre ela, umaposio reflexiva, crtica.

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    5 Em nota edio or iginal de La Transcendance de LEgo, V. de Coorebyter (que introduz e anota este e

    outros textos da edio aqui referida) aponta que Sartre aprofunda esta tese da identidade de conte-

    do e distino simplesmente gramatical entre o Je e o Moi (Sartre, 1936/2003, p. 188) no Ltre et le

    Nante, especialmente, no LIdiot de la Famille(O Idiota da Famlia).

    Ao ler um livro, o sujeito pura e simplesmente conscincia do li-vro, dos personagens, dos cenrios, ele mergulha complemente na leitu-

    ra. Em um segundo momento, ele pode se voltar sobre o que viveu e seposicionar frente a tais experincias conscincia de segundo grau. Osujeito que h pouco lia o livro, de repente se distrai, ouve um barulho oulembra de uma situao que viveu e passa a pensar nela. Em seguida sed conta de que no est mais prestando ateno na histria. nestemomento que o ego aparece, que o sujeito se posiciona enquanto aque-le que lia o livro e se distraiu.

    O ego nada mais , portanto, que um objeto para essa conscinciade segundo grau, de modo que essa conscincia pressupe a de primei-ro grau, dando sustentao ontolgica ao ego. E embora no se encontreo ego no primeiro grau, isso no quer dizer que o que se vive esponta-

    neamente no afete o sujeito, no tenha significado para seu ser. Ao con-trrio, neste plano que se vive concretamente quem se , onde se psicofisicamente atingido pelas experincias. Sartre chamar este aspec-to do eu de Moi, sua face passiva, que representa o ser inteiro movendo-se para o futuro, sendo seu projeto de ser (Ehrlich, 2002, p. 45). Esses vivi-dos espontneos podero ser apropriados pela conscincia, servindo deobjeto para uma conscincia de segundo grau. H aqui um movimentoefetivo do ego que nada mais do que a apreenso reflexiva de seusdiferentes perfis: a face ativa, o Je.

    importante destacar que o Jee o Moiso dois aspectos de umamesma realidade, sendo a diferenciao entre eles apenas uma questofuncional ou gramatical (Sartre, 1936/2003, p. 107)5. Em sntese, o ego

    uma unificao transcendente porque uma experincia concreta, umobjeto do mundo. O ego a totalizao das experincias singulares dosujeito com a materialidade, com seu corpo, com o tempo, com os outros,com o mundo. E s por ser de ordem subjetiva, ntima, no quer dizer queno seja concreto e mundano (Schneider, 2002, p. 208). somente atra-vs de uma operao reflexiva, crtica, e j distanciada do objeto que oego aparece e que se pode tomar posio frente ao desempenhada.Conscincia e ego no se confundem, ao contrrio, se mostram radical-mente diferentes, o que abre a possibilidade de uma nova compreensodo psquico (ego), comumente igualado conscincia e considerado seuhabitante.

    A tese da transcendncia do egopermite mostrar que subjetivida-

    de e sujeito so dois termos distintos. Por subjetividade entende-se a

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    condio de toda relao ou aquilo sem o qual no pode existir sujeito: aconscincia. E por sujeitoentende-se aquele que precisa da conscincia

    para vir a ser, para se personalizar. Assim, o ego enquanto transcendenteno o proprietrio da conscincia, seu objeto... a espontaneidade dasconscincias no poderia emanar do ego, ela vai at o ego, se rene comele... ela se d antes de tudo como espontaneidade individuada e impes-soal (Sartre, 1936/2003, pp. 126-127). Nas palavras de Sartre:

    suficiente que o Moiseja contemporneo do Mundo e que a dualidade su-jeito-objeto, que puramente lgica, desaparea definitivamente das preo-

    cupaes filosficas. O Mundo no criou o Moi, o Moino criou o Mundo: es-

    tes so dois objetos para a conscincia absoluta, impessoal, e por ela que

    ambos se encontram ligados. Esta conscincia absoluta, desde que purificada

    do Je, no tem mais nada de um sujeito...: ela pura e simplesmente uma con-

    dio primeira e uma fonte absoluta de existncia. E a relao de interdepen-dncia que ela estabelece entre o Moi e o Mundo suficiente para que o Moi

    aparea como que em perigo diante do Mundo, para que o Moi... extraia do

    Mundo todo o seu contedo. (Sartre, 1936/2003, p. 131)

    Esto dadas as condies para se compreender a distino radicalentre a conscincia e o ego, reafirmando a indispensvel relao com omundo para um sujeito personalizar-se. Liberto da interioridade imanen-te, o ego foi devolvido sua transcendncia, o que trouxe a possibilidadede o sujeito ser conhecido objetivamente.

    2. A noo de imaginao e imaginrio a partir deLImaginaire

    Ao introduzir o estudo sobre a imaginao, Sartre questionou omodo clssico de constituir todos os modos de existncia segundo otipo da existncia fsica (Sartre, 1936/1964, p. 7), ou ainda, o hbito de semover no mbito da iluso da imanncia. A chamada metafsica ing-nua da imagem forjou uma teoria que a concebeu como uma cpia dacoisa, porm de intensidade mais fraca, ou seja, caracterizada por umainferioridade metafsica em relao coisa de que imagem. E essa in-genuidade terica foi compartilhada, segundo Sartre, pelos psiclogosque estudaram a imagem, j que estes mantiveram a obscuridade acerca

    do problema da essncia e da existncia da coisa e da imagem, herdadados filsofos que os antecederam. O existencialista queria mostrar quese pode encontrar, sob essa diversidade, uma teoria nica (Sartre, 1936/1964, p. 8), mas que, para isso, seria necessrio recorrer experincia an-tes de construir uma teoria da imagem.

    A alternativa para solucionar esses repetidos malogros seria, ento,segundo Sartre, tomar a fenomenologia de Husserl como ponto de parti-

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    da, j que a prpria noo de intencionalidade est[ria] destinada a re-novar a noo de imagem (Sartre, 1936/1964, p. 109). De sada, as conse-

    quncias para a imagem foram ntidas, pois

    a imagem [enquanto uma conscincia] tambm imagem de alguma coisa.Achamo-nos, pois, diante de uma relao intencional de uma certa conscin-

    cia a um certo objeto... a imagem deixa de ser um contedo psquico; ela

    no se acha naconscincia a ttulo de elemento constituinte. (Sartre, 1936/

    1964, p. 111)

    Desde LImagination e, especialmente, em La Transcendance deLEgo, a tese da intencionalidade veio sendo reafirmada como a caracte-rstica distintiva da conscincia, qual seja, toda conscincia conscinciadealguma coisa. Essa ideia aplicada imagem significa dizer que toda

    imagem imagem dealguma coisa, isto , a imagem uma conscincia.Ao imaginar uma cadeira, para usar o exemplo de Sartre, a cadeira mes-mao objeto dessa conscincia. E a cadeira est fora da conscincia, estno mundo. Seja a cadeira percebida ou imaginada, o objeto idntico: acadeira que est ali junto mesa, ao lado do armrio. O que ocorre que a conscincia visa essa mesma cadeira de dois modos distintos. Aimagem simplesmente a relao da conscincia ao objeto: um cer-to modo que o objeto tem de aparecer conscincia ou, se preferirmos,um certo modo que a conscincia tem de se dar um objeto (Sartre, 1940/1986, p. 21).

    Um segundo aspecto que caracteriza a imagem o fenmeno de

    quase-observao. Quando se imagina se est em posio de observa-o: a conscincia se posiciona frente ao objeto. Mas no caso da imagem,ele esttico, fixo, sem tempo e espao, dado em bloco. que a conscin-cia imaginante e o seu objeto, na medida em que so contemporneos,produzem esse ato de observao que no traz nada de novo. O que existeem imagem o que est a, o que a conscincia imaginante pe comoobjeto num movimento nico. O contraste com o ato perceptivo ajuda acompreender. Ao perceber um objeto eu o observo e s me dado umlado de cada vez. Desse modo, o saber sobre esse objeto se forma lenta-mente, pois preciso percorr-lo, olh-lo atravs de seus diversos ngu-los, sem com isso esgot-lo. No caso da imagem, o saber imediato, no necessrio dar a volta no objeto, j que ele mostra de uma s vez o que

    ele . Pode-se dizer que na imagem h uma espcie de pobreza essen-cial, j que no d jamais a impresso do novo, no revela jamais umaface do objeto. Ela oferece-se em bloco. Nenhum risco, nenhuma espera-da: uma certeza... Estamos colocados na atitude de observao, mas umaobservao que no ensina nada (Sartre, 1940/1986, pp. 23-24).

    Uma terceira caracterstica da conscincia imaginante colocar seuobjeto como um nada. Toda conscincia envolve um ato posicional, de

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    crena, mas cada uma coloca o objeto sua maneira. A imagem podecolocar seu objeto de quatro maneiras diferentes: como inexistente, como

    ausente, como existente em outra parte ou como neutralizado. por issoque se pode imaginar um marciano (inexistente), um parente distante(existente em outra parte), um amigo com quem se marcou um encontro,mas que no compareceu (ausente) ou sonhar que a casa foi destrudaem um minuto e que aps alguns minutos j estava inteiramentereconstruda, com novas caractersticas, inclusive. Todas essas maneirasde colocar um objeto renem uma qualidade central: no esto ae socolocadas como tais, como ausentes. Imaginar , em suma, uma maneirade um objeto no estar a tal distncia, um meio de transpor a resistn-cia do real e se aproximar do objeto.

    Uma quarta caracterstica da conscincia imaginante a esponta-neidade. Ela uma conscincia que produz e conserva seu objeto demaneira livre, indeterminada, tal como qualquer conscincia. E a espon-taneidade envolve, necessariamente, liberdade; liberdade de agir, demover-se, de ser. A conscincia que imagina livre, no segue nenhumadireo prvia, constitui-se atravs de sua espontaneidade ou, ainda,no se prende necessidade de espcie alguma, portanto escapa ordem de qualquer determinismo (Arruda, 1994, p. 81). E a conscinciaimaginante ser dita reveladora do ser mesmo do homem porque so-mente uma conscincia livre capaz de se evadir da realidade, de neg-la e de visar um irreal (Cabestan & Tomes, 2001, p. 31). Da a razo deSartre afirmar que a imagem uma conscincia sui generis (Sartre,1940/1986, p. 37), que tem direito de cidadania tal como qualquer outra

    conscincia.Na perspectiva de uma teoria nica para a imagem, Sartre ocu-pou-se, tambm, da classe das imagens ou da famlia da imagem. Co-meou por constatar que h um certo nmero de objetos no mundoexterior que so comumente chamados de imagens, como os retratos,as caricaturas, os reflexos no espelho, as imitaes, os signos, os dese-nhos esquemticos, as manchas, etc. Mas a atitude de conscincia dian-te desses objetos seria a mesma da conscincia imaginante descrita ataqui?

    O exemplo do amigo Pierre bastante ilustrativo. Na tentativa delembrar o amigo Pierre, Sartre o faz de diversas maneiras. Primeiro, tentaproduzir uma imagem dele que vem pobre, fraca. Depois pega uma foto-

    grafia, onde consegue compor os detalhes do rosto do amigo. Ainda estincompleto e ento pega uma caricatura de Pierre. Nesse instante, a ex-presso que faltava aparece: eu reencontro Pierre (Sartre, 1940/1986, p.41). Nos trs casos (representao mental, fotografia e caricatura) se tratade tornar presente o amigo que no est aqui, ou seja, uma inteno quevisa o mesmo objeto: no terreno da percepo que eu quero fazer apa-recer o rosto de Pierre, que quero torn-lo presente. E, como no posso

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    6 Neste trabalho no temos espao para expor a ampla descrio sartriana acerca destes elementos cons-

    tituintes. Sugere-se a leit ura do original para maiores informaes a respeito.

    fazer surgir sua percepo diretamente, sirvo-me de uma certa matriaque age como um analogon, como um equivalente da percepo (Sartre,

    1940/1986, p. 42). Tanto a fotografia quanto a caricatura podem ser per-cebidas diretamente, so coisas (matria fsica). Apenas a matria (psqui-ca) da representao mental mais difcil de definir e cabe perguntar seela existe fora da inteno que a anima. Nesse exemplo, tem-se trs si-tuaes que tem a mesma forma, mas nas quais a matria varia (Sartre,1940/1986, p. 42).

    A mxima continua a valer em qualquer dos exemplos: trata-se detornar presente um objeto que no est a. uma inteno que se dirigea um objeto ausente e que no vazia: dirige-se a um contedo, que no qualquer um, mas que, em si mesmo, deve apresentar alguma analogiacom o objeto em questo (Sartre, 1940/1986, p. 45). Em sntese, a ima-gem um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou ine-xistente, atravs de um contedo fsico ou psquico que no se d em simesmo, mas a ttulo de representante analgicodo objeto visado (Sartre,1940/1986, p. 46). Tem-se, basicamente, dois tipos de matrias que ani-mam a imagem: uma que emprestada do mundo das coisas (fotos,gravuras, imitaes, etc.) e outra do mundo mental (movimentos, senti-mentos, etc.). E aqui cabe uma ressalva. No existem dois mundos, umreal e outro imaginrio. Mundo mundo real; o que varia a atitude daconscincia, o modo de visar o objeto.

    O caso da imagem mental onde um contedo psquico funcionacomo analogon , segundo Sartre, um pouco mais difcil de determinar.Operando no terreno do provvel, passa a expor os elementos constitu-

    intes da inteno imaginante: o saber, a afetividade, os movimentos6

    . Masafirma

    enfaticamente a realidade irredutvel da conscincia da imagem. s abstra-tamente que podemos separar movimentos, saber e afetividade... Jamais po-deremos reduzir efetivamente uma imagem a seus elementos, pela razo deque, como tambm todas as snteses psquicas, outra coisa e mais que a somade seus elementos. (Sartre, 1940/1986, p. 182)

    importante ressaltar o carter que a conscincia imaginante assu-me na teoria sartriana, qual seja, o de uma funo psquica. A atitudeimaginante possui caractersticas prprias irredutveis, tem um sentido euma utilidade para o psiquismo. E, na medida em que, na imagem, osobjetos so afetados por um carter de irrealidade, a reao diante detais objetos inteiramente diferente daquela no caso de uma percepo(Sartre, 1940/1986).

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    A vida imaginria constitui-se a partir de atos mgicos: imaginar fazer aparecer algo desejado visando possu-lo. S que tal objeto no

    aparece em si, como coisa, apenas como imagem: a coisa dada magica-mente. No mundo real existem adversidades e resistncias a enfrentarpara realizar um desejo, mas no mundo imaginrio no. O objeto comoimagem um irreal. Sem dvida, est presente, mas, ao mesmo tempo,est fora de alcance. No posso toc-lo, no posso mud-lo de lugar oumelhor, posso sim, mas com a condio de faz-lo irrealmente (Sartre,1940/1986, p. 240). O objeto irreal no se impe ao sujeito, solicitandouma resposta, uma ao: ele pura passividade, espera (Sartre, 1940/1986, p. 240). o movimento da conscincia que o anima e ao cessar aconscincia, o objeto aniquila-se junto com ela. Assim, entrar em relaocom um irreal uma maneira de enganar por instantes os desejos para

    exasper-los em seguida.... uma maneira de encenara satisfao (Sartre,1940/1986, p. 241).Como explicar, ento, as reaes s imagens ou os comportamen-

    tos diante do irreal? A atitude imaginante, explica Sartre, possui duas ca-madas: uma constituinte (primria) e outra denominada reao ima-gem(secundria). A camada primria, com seus elementos j descritos,constitui exatamente o objeto irreal. A camada secundria representaarticulaes diferentes, mais independentes. Mas ambas as camadas soparte da unidade da mesma conscincia. Existe uma diferena de natu-reza entre os sentimentos diante do real e os sentimentos diante do ima-ginrio. Enquanto os primeiros esto em relao com uma presena, ossegundos esto em relao com uma ausncia. O objeto real desperta o

    sentimento (a reao). J o objeto irreal recebe o sentimento de ante-mo, de modo que a reao tem um qu de pobre, seca. Na relao como real a riqueza inesgotvel, h sempre algo que ultrapassa, que nose esgota. E no caso da imaginao no, pois por causa da pobreza es-sencial das imagens, as aes imaginrias que eu projeto tm as conse-quncias que quero (Sartre, 1940/1986, p. 281). O real e o imaginriono podem coexistir. Trata-se de dois tipos de objetos, de sentimentose de comportamentos inteiramente irredutveis (Sartre, 1940/1986, pp.281-282).

    Operar no real ou no irreal implica diferentes posicionamentos porparte de um sujeito, de modo que preferir um ou outro traz implicaes

    importantes para o psiquismo. Privilegiar o imaginrio uma espcie derecusa de lidar com o carter de presenado real que nos exige, nos pres-siona e nos ultrapassa, por oposio vida fictcia, rgida, escolstica eausentedo imaginrio. E esse preferir, longe de ser uma escolha banal,se d a partir da situaodo sujeito no mundo, da condio que possuide lidar com a imprevisibilidade e a inesgotabilidade do real.

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    3. A compreenso do psquico: uma teoria da personalida-

    de em SartreCompreender o desenvolvimento de uma teoria da personalidade

    em Sartre exige tomar como ponto de partida o modo como este definea realidade humana. Afirmar a existncia como anterior essncia no apenas uma simples contraposio tradio filosfica. Ao contrrio epara alm desta ideia, existir sem qualquer determinao definir a rea-lidade humana como para-si, como movimento em direo a si, comoprocesso, como indeterminao. No h uma essncia que defina a priorio ser do sujeito. Ele precisa agir, construir seus prprios critrios, esco-lher-se. E a necessidade de escolher a expresso da liberdade enquantoconstituidora do ser da realidade humana.

    Este sujeito surge em meio ao mundo, em uma certa conjunturamaterial, familiar, social, cultural e histrica. Este contexto definir certoslimites objetivos com os quais o sujeito ter que lidar de modo a compora sua situao. A apropriao singular e subjetiva desta objetividade queo cerca atravs da mediao das coisas e dos outros ir definir o seu pro-jeto de ser. Mas como se d esse processo de apropriao subjetiva daobjetividade? As palavras de Ehrlich (2002) so esclarecedoras:

    em qualquer personalidade, o caminho sempre do concreto para o abstrato.Ou seja, encontramos sempre um sujeito, que corpo e conscincia, em certasituao material, datada, singular, em relao concreta com um objeto trans-cendente, ou seja, com outras pessoas, com as coisas, etc. Em outros termos,

    encontramos sempre um sujeito absorvido numa ao ou contemplao so-bre o mundo. A conscincia que ocorre numa situao dessas... a conscin-cia irrefletida de primeiro grau, ou em outras palavras, aquela que se absorveinteiramente no objeto. (p. 44)

    Ao se lanar no mundo o sujeito age espontaneamente, mergulhana experincia, pura e simplesmente conscincia doobjeto. Este objetoo afeta, faz com que o sujeito tenha uma determinada experimentaopsicofsica de ser. Por exemplo, quando um homem reencontra a mulheramada aps longo tempo, seu corao dispara, suas mos suam. Ele seexperimenta atrado por ela, com vontade de abra-la, beij-la. Ele noprecisa pensar (refletir) que ama a mulher para desejar estar com ela: ele

    imediatamente atrado na direo dela. No momento da ao o sujeitoest inteiramente absorvido no objeto, conscincia irrefletida, de pri-meiro grau; moi (face passiva do ego) em ato ou a experincia datotalidade de ser quem se , que o ser inteiro movendo-se para o futu-ro, sendo seu projeto de ser (Ehrlich, 2002, p. 45). Em seguida, esta si-tuao vivida no plano irrefletido ser objeto para uma nova conscin-cia, uma conscincia de segundo grau ou reflexionante, onde o ego

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    aparece em sua face ativa (je). O sujeito realiza um movimento de abs-trao, voltando-se sobre o que viveu para se apropriar, tentar integrar

    a experincia em sua histria. Ao tomar posio crtica sobre o que vi-veu na espontaneidade o sujeito tem a experincia de ser no horizonte:trata-se de uma personalidade psicofisicamente experimentando-sesendo no presente e apontando para o ser futuro por conquistar, ouseja, tem um saber de ser que aponta para um campo de possibilidadesde ser (Ehrlich, 2002, p. 45).

    As mediaesso fundamentais neste movimento de apropriaosubjetiva que o sujeito realiza constantemente. As relaes concretas comos outros e com o seu entorno serviro como mediadores entre o sujeitoe suas experincias. Um sujeito nasce em meio a um mundo j significa-do, j em curso. Tais significados esto de acordo com a poca histrica,com a conjuntura social e cultural da qual participam, bem como com amaneira pela qual sua famlia faz uso destes significados. Deste modo, ocontexto de um sujeito possui uma srie de arranjos reflexivosou modosde compreender o mundo. E o sujeito vai lanar mo destes arranjos parase apropriar das suas experincias. Aos poucos, o sujeito ir se experi-mentar atrado ou repelido por determinadas coisas ou situaes, deacordo com o jogo de foras oriundo de seu tecido sociolgico(Schneider, 2006). Pouco a pouco o sujeito vai elegendo-se, direcionandoseu ser de modo a unificar-se em um projeto. O projeto de ser o nexoque unifica as aes do sujeito: em cada ato possvel encontrar um signi-ficado que o transcende. O projeto de ser a livre eleio de um sujeitoem uma contingncia dada (Sartre, 1943/1966). Ao escolher, no presente,

    o far visando um futuro, algo que ele ainda no , e carregando um pas-sado, algo que j foi e, de certo modo, ainda . Eis outro aspecto indescar-tvel da compreenso sartriana: o tempo. As dimenses temporais soconstitutivas da realidade humana, de modo que uma personalidade re-sulta de uma sntese dialtica das experincias vividas no passado, pre-sente e futuro.

    Um sujeito se personaliza a partir das relaes concretas que es-tabelece com seu contexto material, antropolgico e sociolgico. O psi-colgico um momento do processo objetivo, a interiorizao daobjetividade (Sartre, 1960/2002). Ao apropriar-se das condies que o en-gendram, o sujeito constituiu seu psicolgico. Uma personalidade resul-ta de um processo dialtico de apropriao da objetividade (Schneider,

    2006, p. 11). Ao escolher, o sujeito elege-se em um cogitoque a cons-cincia de existncia que se impe a partir das situaes concretas(Schneider, 2006, p. 12). E como o cogito uma experimentao psicofsi-ca de ser, vivida na espontaneidade, da ordem do saber, uma certezade ser, da a razo de se impor ao sujeito como tendo que ser realizada.Por paradoxal que parea, o prprio movimento livre do sujeito queengendra seu cogito. As ocorrncias objetivas, atravs dos arranjos so-

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    920 A NOO DE PSQUICO NA TEORIA DO IMAGINRIO DE SARTRE BIANCA SPOHR

    ciolgicos, so apropriadas pelo sujeito, formando um conjunto articula-do chamado saber-de-ser: o modo como ele se reconhece sendo ou

    seu cogito. Da o porqu de a possibilidade escolhida livremente acabarse impondo ao sujeito como tendo que ser realizada, forjando sua din-mica psicolgica. A dinmica psicolgica de um sujeito nada mais doque a noo de que os atos do sujeito tm significados que remetem sua constituio psicolgica, ganhando uma dinmica transcendente scondies scio-materiais que a geraram (Schneider, 2006, p. 4). O sujei-to experimenta-se como que arrastado por foras que, no entanto, sooriundas de seu prprio contexto antropolgico e sociolgico.

    O processo regular de constituio de uma personalidade, confor-me aponta Schneider (2006), o leva a uma constante relao entre o an-tropolgico (dimenso da liberdade) e o psicolgico (dimenso da expe-

    rimentao psicofsica de ser), gerando um cogitodialetizado (p. 14). Talexpresso significa que a pessoa tem condies de lidar com as adversi-dades e contradies que surgem ao longo de sua vida. Mas pode acon-tecer desta dinmica absolutizar-se, de modo a ocorrer uma ciso entreo antropolgico e o psicolgico (Schneider, 2006, p. 14). como se a pes-soa ficasse prisioneira de seu cogito ou retida em sua dinmica psicol-gica. Nestes casos, o sujeito no consegue mais valer-se da objetividade,compreendendo toda e qualquer situao vivida a partir de uma apro-priao prvia: a psicologizao de si mesmo, processo que est nabase das psicopatologias.

    4. Consideraes finais

    A partir do exposto, cabe perguntar: como compor uma compreen-so do psquico a partir das noes de conscincia, ego, imaginao eimaginrio?

    Vimos que a conscincia a condio de toda relao e o psquico(ego) a unificao que resulta de uma srie de conscincias. A imagina-o um tipo de conscincia especfica, com caractersticas prprias eque tem o imaginriocomo seu correlato. O psquico (ou uma personali-dade) fruto de n conscincias imaginantes, reflexivas, perceptivas,emotivas e assim por diante. Quando imagina, percebe ou se emociona osujeito absorve-se inteiramente no objeto, conscincia espontnea ou

    de primeiro grau. S depois, atravs de um novo ato de conscincia, umato de segundo grau, ele poder tomar posio frente ao que viveu. Aorefletir sobre o que imaginou, percebeu ou se emocionou, o sujeito seapropria de sua experincia de modo a integr-la ou no ao conjunto desua personalidade.

    A imaginao, por suas caractersticas, um tipo de conscincia quedesempenha um papel especial: a funo irrealizante. A conscincia

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    imaginante enquanto uma conscincia que pe seu objeto como umnada, entra em relao com um virtual, com algo ausente, que no est a.

    O sujeito em relao imaginante com o mundo presente, mas o objetovisado no: eis a funo irrealizante ou nadificadora. Uma conscincia aquie agora em relao com um virtual, com algo que est distante no tempoe espao ou mesmo que no existe. uma espcie de descolamento doreal em direo a um outro mundo. Esse vislumbre para alm do dado tambm a relao com o futuro, um virtual por excelncia. a relaocom o que ainda no e que, por ser um possvel, motiva minha aopresente. No fim das contas, est-se falando da liberdade, pois ser livrenada mais do que ter que escolher, ter que comprometer-se com umfuturo por fazer. tambm ter a possibilidade sempre aberta de, a qual-quer tempo, fazer outra coisa de si mesmo. poder, pela ao, presente,alterar o campo de possibilidades futuras.

    A tese sartriana, ento, no dispensa o mundo, no dispensa a ao,no dispensa a liberdade, no dispensa e imaginao e nem a reflexo.Afirma, ao contrrio, que ser ser-no-mundo e em situao. E, enquantoliberdade, o sujeito aquilo que ele faz de si mesmo pela sua ao con-creta. Deste modo, atravs da experincia de imaginao pode trans-cender o que est dado e vislumbrar novas possibilidades. Evidente-mente, para alterar sua situao, precisa agir no mundo, enfrentar asadversidades. No entanto, esse exerccio de se descolar do real faz comque o sujeito tenha sempre sua frente uma possibilidade, algo poralcanar.

    TTTTThe notion of the psyhe notion of the psyhe notion of the psyhe notion of the psyhe notion of the psychic inchic inchic inchic inchic in SSSSSararararartrtrtrtrtreeeees theors theors theors theors theory of the imaginary of the imaginary of the imaginary of the imaginary of the imaginaryyyyy

    AbstrAbstrAbstrAbstrAbstracacacacact:t:t:t:t:The definition of psychology as a science and its object of study have been

    the focus of discussion throughout the development of this discipline. Although

    psychologists recognize the importance of this discussion and have contributed to

    this ongoing debate, they still believe they are far from reaching a general consensus.

    Thus, taking this situation into consideration, this study aims at presenting Sartres

    theory of the imaginary as an instrument for the understanding of the psychic psychologys object of study. Therefore, in order to attain this objective, this research

    analyzes Sartres LImaginaireand La Transcendance de LEgo, for the study of the

    imagination and its correlate, the imaginary, presupposes the study of consciousness

    and its correlate, the psychic. We have concluded that Sartre has offered important

    contributions for an understanding of the psychic because he reformulated the notion

    of image by means of the reconstitution of consciousness and the psychic and

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    because he stated that the imagination is a type of autonomous consciousness which

    represents, in essence, the notion of liberty.

    KeyKeyKeyKeyKeywwwwwororororordsdsdsdsds: Sartre. Imagination. Imaginary. Consciousness. Psychic.

    La notion du psyLa notion du psyLa notion du psyLa notion du psyLa notion du psychisme dans la thorie de limaginairchisme dans la thorie de limaginairchisme dans la thorie de limaginairchisme dans la thorie de limaginairchisme dans la thorie de limaginaire selon Sare selon Sare selon Sare selon Sare selon Sartrtrtrtrtreeeee

    Resum:Resum:Resum:Resum:Resum:La dfinition de la psychologie en tant que science et de son objet dtude

    fut sans cesse discut au long du dveloppement de cette discipline. Et pourtant,

    encore queue les psychologues aient reconnu limportance de cette problmatique

    et sy soient dvous, ces derniers se considrent encore loigns dune dlimitation

    consensuelle. En partant de l, cette tude prsente la thorie de limaginaire chez

    Sartre en tant quinstrument de La comprhension du psychisme objet dtude de

    la psychologie. Pour cela, nous ralisons lanalyse des oeuvres LImaginaire et La

    Transcendance de lEgode Sartre, car tudier limagination et son corrlat, limaginaire,

    prsupose ltude de la conscience et de son corrlat, le psychisme. Il est possible de

    conclure que Sartre fournit dimportantes contributions pour lucidation du

    psychisme partir de sa thorie de limaginaire. Tout dabord, parce quil reformula la

    notion de limage au travers de la reconstitution de la conscience et du psychisme. Et

    ensuite, parce quil conut limagination comme conscience autonome reprsentant,

    en essence, la notion de libert.

    MMMMMots cls:ots cls:ots cls:ots cls:ots cls: Sartre. LImagination. LImaginaire. Conscience. Psyquisme.

    La nocin de psquicLa nocin de psquicLa nocin de psquicLa nocin de psquicLa nocin de psquico en la to en la to en la to en la to en la teora del imaginario de Sareora del imaginario de Sareora del imaginario de Sareora del imaginario de Sareora del imaginario de Sartrtrtrtrtreeeee

    Resumen:Resumen:Resumen:Resumen:Resumen: La definicin de la Psicologa como ciencia y de su objeto de estudio ha

    sido discutida a lo largo de los aos de desarrollo de esta disciplina. Aunque los psi-

    clogos reconozcan la importancia de esta problemtica y hubieran estado

    dedicndose a ella, considranse, todava, distantes de una delimitacin consensual.Conllevando esta situacin, este estudio presenta la teora del imaginario de Sartre

    como un instrumento para que se comprenda lo psquico objeto de estudio de la

    Psicologa. En ese sentido, se lleva a cabo una anlisis de las obras LImaginairey La

    Transcendance de LEgo de Sartre, pues estudiar la imaginacin y su correlato, el

    imaginario, presupone el estudio de la consciencia y su correlato, lo psquico. Es

    posible concluir que Sartre ha aportado con importantes contribuciones para la

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    elucidacin del psquico a partir de su teora del imaginario ya que reformul la nocin

    de imagen a travs de la reconstitucin de la consciencia y de lo psquico, y a causa

    de haber afirmado la imaginacin como una consciencia autnoma que representa,

    en esencia, la nocin de libertad.

    PPPPPalabralabralabralabralabras claas claas claas claas clavvvvve:e:e:e:e: Sartre. Imaginacin. Imaginario. Consciencia. Psquico

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    Bianca SpohrBianca SpohrBianca SpohrBianca SpohrBianca Spohr,,,,,Psicloga, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa

    Catarina, UFSC e Doutoranda em Psicologia pela Universidade de So Paulo, USP.Endereo para correspondncia: Rua Tuim, 101, ap. 1111, Moema, So Paulo, SP, CEP:

    04514-100. Endereo eletrnico: [email protected]

    Recebido em: 24/08/2010

    Aceito: 04/05/2011