a natureza e o sagrado

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O versculo 28 do captulo 1 do Livro do Gnesis diz: (...) E Deus os abenoou (homem e mulher) e lhes disse: Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei e subjugai a Terra! Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do cu e sobre tudo que vive e se move sobre a Terra(...) A interpretao desta passagem do Antigo Testamento no sentido de que o Homem o senhor da natureza e que, portanto, ela existe para servilo, norteou o desenvolvimento das religies judaico-crists. Somente h 30 anos, quando cresceu em todo o mundo o movimento ambientalista, a Igreja catlica, que tem o maior nmero de fiis entre os cristos, foi levada a rever antigas interpretaes acerca da relao homem-natureza. Embalada pela voz dos ecologistas e mergulhada numa profunda reflexo sobre as razes bblicas, a Igreja reencontrou os ensinamentos de So Francisco de Assis (sculos XII e XIII) e refez sua leitura sobre a natureza: assim como o Homem, ela tambm uma criao de Deus.

So frutos dessa reflexo da Igreja a designao de So Francisco de Assis como o patrono da ecologia do cristianismo catlico, pelo Papa Paulo VI, no final da dcada de 70, e o surgimento de vrias ONGs catlicas na Europa, que trabalham financiando projetos ecolgicos no Terceiro Mundo. A prtica de So Francisco de Assis tambm inspirou o cineasta Franco Zefirelli a fazer o filme Irmo Sol, Irm Lua, ttulo baseado na forma como o santo se referia aos astros e natureza de um modo geral. A idia de que o Homem deve interagir com a natureza, e no domin-la, vem crescendo entre os catlicos. Um exemplo disso foi a Campanha da Fraternidade de 1986, com o tema Terra de Deus, Terra de irmos.

Senac e Educao Ambiental

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Ano 9 n.2 maio/agosto de 2000

Antres dessa nova viso, a Igreja cometeu omisses e foi conivente com a destruio da natureza ao longo de sculos, segundo o frei franciscano Volney Jos Berkenbrock, telogo, professor de Histria das Religies e de Religies Afro-Brasileiras na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG). A importncia da sensibilizao dos catlicos para as questes do meio ambiente est expressa nas estatsticas: eles so a parcela mais significativa entre os cristos. E o cristianismo que compreende tambm os protestantes, ortodoxos e anglicanos possui o maior nmero de fiis em todo o mundo: so 1,9 bilho de pessoas, o equivalente a 33% da Humanidade. Em segundo lugar nas estatsticas aparece o islamismo, com 1,2 bilho de fiis, 20% da populao mundial. Para os muulmanos, a relao com a natureza um pouco diferente. Tudo ayat, que quer dizer sinal, de Deus. E, se tudo um sinal de Deus, a natureza tambm o , assim como eu. A crise entre o Homem e a natureza compreendida por eles como sendo espiritual e traduzida em vrios livros pelo telogo e filsofo iraniano Seyyed Hossein Nasr, professor da Universidade de Chicago (EUA). Para os muulmanos, quando o Homem destri fora porque alguma coisa est destruda dentro dele. Eles se vem como parte da natureza e no fora dela explica Vitria Peres, antroploga e professora no departamento de Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG).

Prof. Jos Flvio Barros/UERJ.

foto: Vanor Correia

Rabino Nilton Bonder.

Desenvolvimento sustentado mandamento bblicoA associao entre Deus, a natureza e o Homem sempre foi feita nas diferentes culturas, ocidentais e orientais. A tradio judaica e o calendrio arcaico cristo, por exemplo, so basicamente agrcolas. As atividades, festas e comemoraes, as grandes celebraes do ano tm a ver, originariamente, com os ciclos da terra e da natureza. A Pscoa, ou Pessach para os judeus, era uma comemorao pelo incio da primavera (abril, no Hemisfrio Norte), que significava o renascimento da natureza. Na simbologia dos cristos, posteriormente, passou a ser a comemorao do renascimento da vida explica o rabino e escritor Nilton Bonder, da Congregao Judaica do Brasil. A festa de Shavout, em junho, comemorava as primeiras colheitas; e o Shukot, o fim da colheita, em outubro.10

A Bblia tem uma preocupao grande com o chamado desenvolvimento sustentado. A economia primitiva era baseada em ciclos que respeitavam a terra. O stimo ano da plantao era considerado sabtico, quer dizer, no se plantava, para que a terra pudesse descansar. No 500 ano tambm no havia plantio e era feita uma redistribuio de terra, como uma reforma agrria. A Bblia fala at de lixo, determinando a distncia mnima que poderia ficar das casas continua o rabino. Nilton Bonder cita ainda outros exemplos e mandamentos bblicos seguidos at hoje pelos judeus, como a proibio de maltratar aos animais e as referncias ao abate, para a alimentao, que deveria ser rpido, sem sofrimento. Existe uma percepo sagaz da Bblia, no Livro do Gnesis, sobre a condio de o ser humano ser o controlador desse planeta. Mas a realidade atual nos coloca diante do desafio de como vamos utilizar esse poder, como vamos respeitar a vida e as outras espcies, completa Bonder. Segundo o rabino, a preocupao do judasmo com a preservao da natureza vem aumentando ao longo dos anos. Nos EUA, grupos judeus participam ativamente das discusses das leis de restrio a certos alimentos transgnicos e pelo fim da extrao de palmito. Eles tambm fundaram institutos de reflexo e estudos sobre o meio ambiente, como o Shomrei Ha-Adama (OsSenac e Educao Ambiental

Ana Garcia, filsofa e praticante de candombl.

Lama Gangchen Rimpoche

Ano 9 n.2 maio/agosto de 2000

foto: Vanor Correia

foto: Vanor Correia

foto: Vanor Correia

Guardies da Terra), que se dedica publicao de material educativo sobre temas ecolgicos.

realmente necessria essa troca energtica explica Ana Maria Felippe Garcia, filsofa, estudiosa e praticante do candombl. Segundo Ana Garcia, depois de sofrer perseguies de toda ordem, principalmente por ser originria dos escravos, a religio tem abraado cada vez mais intensamente a luta pela preservao ambiental. Por isso, est comeando a haver uma conscientizao em relao prtica das oferendas e o impacto que isso possa causar ao meio ambiente. Alguns terreiros j orientam seus fiis para que utilizem material degradvel. O professor Jos Flvio Pessoa de Barros, coordenador do Programa de Estudos e Debates das Religies da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi consultor de uma ONG, durante 10 anos, num projeto de educao ambiental desenvolvido no Parque So Bartolomeu, em Salvador. O objetivo era sensibilizar

A natureza a prpria divindadeSe no Hemisfrio Norte a natureza era entendida como um presente de Deus, para parte dos africanos, principalmente os que influenciaram a formao das religies afro-brasileiras, ela o prprio Deus. Embora acreditem tambm haver um nico Criador, que seria Olorum, os Yorub (povo originrio da Nigria e Benin) e os Bantos (povo originrio do sul da frica) personificaram as foras da natureza e acreditam que cada uma representa uma divindade. Assim, de acordo com o candombl, religio afro-brasileira, a gua do mar

pre foi referncia para o chamado povo de santo, do candombl, mas eles sempre tiveram respeito natureza. O local comeou a ser degradado no por causa das oferendas, mas com a chegada das populaes excludas, que foram invadindo a rea, expulsas de outras partes da cidade. Essas invases punham em risco o grande reservatrio de gua que abastece a periferia de Salvador, por isso foi necessrio atuar na rea explica Jos Flvio. O resultado desse trabalho foi a demarcao do parque, a produo de bens (como o orquidrio), a implantao de coleta seletiva de lixo. Mas, segundo o professor, a poluio continua, porque no foram feitas obras de saneamento, o problema de moradia no foi resolvido e fbricas ainda extraem areia e pedras do local. Mesmo assim, Jos Flvio no duvida de que os praticantes do candombl de Salvador sejam os mais conscientes em relao preservao da natureza em todo o pas.

Oferendas, impacto ambiental e uma prtica de curaNo Rio de Janeiro, onde fica localizada a maior floresta urbana do mundo, a Floresta da Tijuca, na Zona Norte da cidade, o IBAMA

Iemanj; a gua doce Oxum; os troves e tempestades so Ians; as folhas so Ossaim; o arco-ris Oxumar; a mata Oxossi. por causa de tamanho respeito natureza que, ao contrrio do que muitos imaginam, o candombl probe que se matem animais e vegetais. Ns acreditamos que tudo energia e que, quando se faz uma oferenda, est se equilibrando a energia de quem oferece em relao quela energia da natureza. No entanto, proibido o sacrifcio de animais, e s usamos banhos e chs de ervas quando Senac e Educao Ambiental

foto: Mcio Ladeira

as comunidades vizinhas ao parque e diminuir a agresso ao ecossistema. Como se trata de um parque localizado numa extensa rea e que serve de referncia tambm para praticantes do candombl, vrios terreiros participaram do programa. O Parque So Bartolomeu um santurio ecolgico com lagoas, rios e cachoeiras da Mata Atlntica. Sem11 Ano 9 n.2 maio/agosto de 2000

foto: Vanor Correia

tentou realizar um trabalho parecido com o de Salvador. O pblico-alvo, no entanto, eram especificamente os adeptos das religies afro-brasileiras. Em 1997, o instituto realizou, em parceria com o ISER (Instituto Superior de Estudos da Religio) e o IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional), o seminrio Espao Sagrado - Meio Ambiente e Religio. proibido, pelo regulamento do parque, que os visitantes deixem resduos de qualquer espcie. E a idia do seminrio surgiu porque os funcionrios do parque reclamavam que os fiis dessas religies deixavam muitas oferendas, e isso prejudicava demais o servio de limpeza. Contamos com a participao de representantes da umbanda, do candombl, da prefeitura e da comunidade do entorno do parque, mas o encontro, infelizmente, resultou em nada. Por fim, foi proibida a entrega de oferendas conta Denise Alves, educadora ambiental do IBAMA. Na opinio de Denise, no entanto, a prtica das religies afro-brasileiras no o principal impacto sofrido pelo parque. Para tentar equilibrar a natureza e minimizar os impactos gerados pelas diversas aes do Homem, o lama budista tibetano Gangchen Rinpoche criou A Prtica de Cura do Meio Ambiente, uma srie de exerccios de mantras, visualizao e meditao que tm o objetivo de harmonizar o que eles chamam de meio interno e externo. Todas as correntes do budismo esto muito ligadas ao meio ambiente. O prprio Buda se iluminou embaixo de uma figueira. Ns entendemos o meio ambiente como sendo interno e externo, quer dizer, o que h dentro do nosso corpo, habitado por milhes de outros seres, e o que est do lado de fora. Buda conseguiu equilibrar seu corpo atravs da meditao, antes mesmo da iluminao explica Daniel Calmanowitz, diretor do Centro Dharma da Paz, em So Paulo. De acordo com a filosofia budista, as doenas (internas e externas) so fruto do desequilbrio entre as energias que formam o Universo: fogo, terra, ar, gua e ter. A prtica desenvolvida pelo lama Gangchen tem o objetivo de harmonizar os ventos desses cinco elementos. E, assim como no candombl, cada um est relacionado a uma divindade.Ano 9 n.2 maio/agosto de 2000

Existe a Grande Me do Fogo, a Grande Me da Terra, a Grande Me do Ar, a Grande Me da gua e a Grande Me do ter. Todas so manifestaes femininas de Buda. A prtica de cura deve ser feita diariamente, no tempo que o praticante tiver disponvel. Ns, do Centro Dharma da Paz, nos reunimos e fazemos os exerccios em grupo, todos os dias, para equilbrio das energias de todo o planeta. Sentimos os efeitos fsicos no corpo e no meio ambiente que nos cerca conta Daniel. H dois anos, o lama Gangchen veio de Milo (Itlia), onde mora, para levar sua prtica Amaznia, onde foi realizado o encontro Fazendo as pazes com a Amaznia, entre budistas e caboclos que vivem beira do Rio Tapajs.

culturas, a Cincia e a viso sagrada da natureza continuaram juntas, como, por exemplo, na medicina chinesa. - Outro exemplo que quando a cultura islmica atingiu seu apogeu, no imprio andaluz, tinha a idia de Cincia atrelada a uma finalidade maior. por isso que alguns autores, como Roger Garaudy, consideram que o verdadeiro renascimento teria surgido naquela ocasio, porque, at aquela poca (perodo entre os sculos XI e XV), as trs religies monotestas (islamismo, cristianismo e judasmo) conviveram harmonicamente, fato que enriqueceu muito cada uma delas. Mas esse provvel renascimento foi abortado com a expulso dos rabes da Espanha pelos reis catlicos conclui Vitria Peres.

A crise comeou na RenascenaAntes mesmo de o iraniano Seyyed Hossein Nasr falar em seus livros sobre a crise espiritual que leva o Homem a destruir a natureza, outros autores j falavam sobre isso. Mas de onde vem a crise? A antroploga Vitria Peres faz uma retrospectiva histrica e identifica no perodo da Renascena o incio da dicotomia entre Homem e Meio Ambiente. A natureza sempre foi considerada sagrada, desde os primrdios da civilizao, e, dependendo da tradio religiosa, principalmente no Oriente (budismo, islamismo, taosmo), continua sendo. No Ocidente, ela deixa de assumir esse carter a partir do renascimento europeu, quando se inicia o processo em que o Homem quer domin-la. A maior prova de que a natureza era sacralizada foi o fato de que a Cincia precisou se afastar da religiosidade para poder crescer analisa Vitria. A Cincia ocidental, a partir da, segundo a antroploga, se afasta da idia de finalidade. Para que, ou para quem, ela existe? E, quando se afasta da religiosidade, passa a ter uma viso instrumental da natureza, passa a enxerg-la de forma utilitria, tal qual a interpretao inicial do Livro do Gnesis. Vitria acredita, que a, de alguma forma, as vises da religiosidade da poca, no Ocidente especialmente o catolicismo, porque era predominante permitiram esse caminho cientfico, j que, em outras12

Principais correntes religiosas do planetaCristianismo (catlicos, protestantes, ortodoxos, anglicanos) 1,9 bilho de pessoas 33% da Humanidade* Islamismo 1,2 bilho de pessoas 20% da Humanidade* Hindusmo 800 milhes de pessoas 13% da Humanidade* Budismo 353 milhes de pessoas** Judasmo 13 milhes de pessoas** Ateus 907 milhes de pessoas**

*Fonte: Revista Veja, de 1o de maro de 2000. **Fonte: Folha de So Paulo, de 26 de dezembro de 1999.

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