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1 COMUNICAÇÃO E CULTURA Coordenação: Paula Jung ([email protected]) / Paula Puhl ([email protected]) Mesa 1 TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS CULTURAIS: DEBATE TEÓRICO-METODOLÓGICO Coordenação: Paula Puhl A NARRATIVA BIOGRÁFICA E OS ESTUDOS CULTURAIS EM PESQUISAS EM COMUNICAÇÃO/ CIBERCULTURA Guilherme Mendes Pereira 1 RESUMO A perspectiva dos Estudos Culturais tem sido uma inspiração teórica para se pensar as práticas sociais cotidianas e suas produções culturais. Todavia, pesquisas orientadas por este viés geralmente partem dos interesses do pesquisador que define relevâncias e hipóteses. Nesse sentido, sugerimos que o apoio teórico da pesquisa com narrativas biográficas pode dar maior amplitude documental, uma vez que preconiza não colonizar os sistemas de relevância dos indivíduos e suas intenções de sentido. PALAVRAS-CHAVE Metodologia da pesquisa em Comunicação Social. Estudos Culturais. Narrativa Biográfica. Cibercultura. THE BIOGRAPHICAL NARRATIVE AND CULTURAL STUDIES IN COMMUNICATION / CYBERCULTURE RESEARCH ABSTRACT The prospect of Cultural Studies has been a theoretical inspiration to think about everyday social practices and their cultural productions. However, research guided by this bias generally begin by the interests of the researcher who defines relevance and assumptions. In this sense, we suggest that the theoretical research support with biographical narratives can give us more documentary range as it advocates not colonize the systems of importance of individuals and their meaning intentions. KEYWORDS Research Methodology in Social Communication. Cultural Studies. Biographical narrative. Cyberculture. 1 Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e analista (webdesigner) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Contato: [email protected]

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COMUNICAÇÃO E CULTURA

Coordenação: Paula Jung ([email protected]) / Paula Puhl

([email protected])

Mesa 1 – TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS CULTURAIS: DEBATE

TEÓRICO-METODOLÓGICO

Coordenação: Paula Puhl

A NARRATIVA BIOGRÁFICA

E OS ESTUDOS CULTURAIS EM PESQUISAS EM

COMUNICAÇÃO/ CIBERCULTURA

Guilherme Mendes Pereira1

RESUMO A perspectiva dos Estudos Culturais tem sido uma inspiração teórica para se pensar as

práticas sociais cotidianas e suas produções culturais. Todavia, pesquisas orientadas por

este viés geralmente partem dos interesses do pesquisador que define relevâncias e

hipóteses. Nesse sentido, sugerimos que o apoio teórico da pesquisa com narrativas

biográficas pode dar maior amplitude documental, uma vez que preconiza não colonizar

os sistemas de relevância dos indivíduos e suas intenções de sentido. PALAVRAS-CHAVE

Metodologia da pesquisa em Comunicação Social. Estudos Culturais. Narrativa

Biográfica. Cibercultura.

THE BIOGRAPHICAL NARRATIVE AND CULTURAL STUDIES IN

COMMUNICATION / CYBERCULTURE RESEARCH ABSTRACT

The prospect of Cultural Studies has been a theoretical inspiration to think about

everyday social practices and their cultural productions. However, research guided by

this bias generally begin by the interests of the researcher who defines relevance and

assumptions. In this sense, we suggest that the theoretical research support with

biographical narratives can give us more documentary range as it advocates not colonize

the systems of importance of individuals and their meaning intentions. KEYWORDS

Research Methodology in Social Communication. Cultural Studies. Biographical

narrative. Cyberculture.

1 Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

(PUCRS) e analista (webdesigner) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Contato:

[email protected]

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1. Introdução

Estudos sobre as implicações das mídias nas relações sociais e produções culturais têm

crescido nos últimos anos. Destaque para as pesquisas em cibercultura, que têm

ganhado espaço e relevância no contexto acadêmico, principalmente no âmbito da

Comunicação Social.

Com a popularização das redes digitais de comunicação a partir da década de 1990, a

cibercultura, paulatinamente, começou a integrar o cotidiano de muitos. Relações

sociais e práticas culturais passaram a acontecer em um ambiente interligado

globalmente, o chamado ciberespaço, o qual borrou as percepções dos indivíduos e as

fronteiras entre o “real” e o “virtual” e (ROCHA; MONTARDO, 2005).

Em meio a essas transformações e ao surgimento de fenômenos sociais diversos foi

necessária a adaptação de metodologias de pesquisa pré-existentes às novas

especificidades (e até mesmo a criação de novas). Por exemplo: a fenomenologia

(LEMOS, 2010), os Estudos Culturais (WINOCUR, 2009), a etnografia (FRAGOSO;

RECUERO; AMARAL, 2011) e mais recentemente a chamada netnografia (ver

ROCHA; MONTARDO, 2012). Todavia, a aplicação destas (e outras tantas)

metodologias parte, de forma geral, de hipóteses iniciais e ruma para a análise

fundamentada do objeto de pesquisa. Objeto este conformado com base em

documentações amplas e distanciadas. Por exemplo, ao se analisar determinado

comportamento atrelado às redes sociais digitais, observa-se sumariamente o registro

nas redes e associa-se isso a teorias. Os pontos de vista e relatos dos indivíduos que

constituem os fenômenos estudados são normalmente desconsiderados.

Defendemos, nesse sentido, a necessidade e relevância do uso do aporte culturalista –

que é constituído e aberto à interdisciplinaridade teórica e metodológica – aliado a

pesquisa com narrativas biográficas, como uma pertinente ferramenta que pode vir a

enriquecer o entendimento de fenômenos sociais e comunicacionais, pois pode fornecer

ao pesquisador um insumo de análise mais amplo e aproximado das realidades

estudadas, pois conta com o ponto de vista e sentidos informados pelos indivíduos que

participaram e configuraram os fenômenos em questão. Uma pesquisa assim, jamais

partirá de uma certeza, mas será caracterizada pelo imprevisto e pela descoberta de

novas hipóteses ao longo do seu projeto e a partir da construção e análise do corpus.

2. Os Estudos Culturais

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O campo dos Estudos Culturais (EC) teve início na Inglaterra, no período pós-guerra.

Seu objetivo: apontar os antagonismos entre cultura e democracia. Desde seu início

estes estudos têm mostrado preocupação em analisar artefatos das culturas de massa e

popular e as práticas cotidianas, sem julgá-los em relação às produções culturais

consideradas clássicas ou “canônicas”. Nessa perspectiva, a noção de cultura passa a ser

pensada por meio de uma compreensão antropológica: consideram-se todas as

produções culturais válidas, inclusive as práticas do dia-a-dia e as inúmeras formas de

manifestação das diferentes classes sociais, explica Escosteguy (2010).

Silva (1999b) afirma que dessa forma foi possível que a cultura começasse a ser

percebida como um campo de batalha em torno da significação, no qual grupos sociais

diversos, com modos de vidas e contextos distintos, lutam para estabelecer sentidos.

Para Stuart Hall (1997a), um dos autores precursores dos EC, cultura é entendida um

conjunto de práticas sociais, resultantes dos inúmeros e variados sistemas de

significação e comunicação que os homens se valem para atribuir significados às coisas

e para codificar, instituir e regular suas relações.

Teorizações nesse tom passaram a conferir destaque a questões de identidade, de

gênero, raciais e éticas, para citar alguns exemplos. Silva (1999a) destaca aí o

envolvimento político dos EC que tem por premissa intervir na existência política e

social, opondo-se a imparcialidade em prol da crítica às relações de poder, em benefício

dos grupos marginalizados. Foi desta forma que a cultura passou a assumir uma posição

central em muitas discussões acadêmicas.

Os EC ganham fôlego em uma época a qual muitos rotulam de Pós-modernidade. Peters

(2000) afirma que nesse período passou-se a desconfiar das grandes verdades e

narrativas fundacionais, legitimadas por instituições e que imperavam no paradigma da

modernidade. Para ele, no momento pós-moderno, passou-se a dar maior ênfase à noção

de que o sujeito é social, histórica e discursivamente construído. Ou seja, não há um

núcleo ou essência que permita dizer o que ele é. Daí passa a existir um maior enfoque

nos processos de constituição das identidades e subjetividades.

O pós-estruturalismo enquanto uma importante perspectiva teórica para os Estudos

Culturais, segundo Peters (2000), foi adotado inicialmente nas universidades

estadunidenses para designar correntes teóricas diversas tanto em termos de temáticas

como em focos de análises, mas que partilhavam de inspirações em comum,

configurando uma “atitude pós-estruturalista”. Compete aqui comentar que esta vertente

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se constituiu a partir do estruturalismo2, no que ficou conhecido como a virada

linguística.

Do ponto de vista pós-estruturalista, entendemos que a linguagem constitui seus

próprios produtos, sendo estes inerentes à malha linguística e discursiva que os define.

O sujeito, por exemplo, seria constituído pela linguagem, não sendo assim a fonte de

sua enunciação. O pós-estruturalismo mantém em comum com o estruturalismo o foco

na linguagem enquanto um sistema de significação. Todavia os processos de produção

de sentido passam a ser entendidos como fluídos, indeterminados, incertos e nunca

definitivamente estabelecidos (SILVA, 1999a).

Ao destacar a ação constitutiva da linguagem além da comunicativa, modificou-se a

compreensão do seu papel na cultura e sociedade, e passou-se a questionar a relação

entre a mesma e o que entendemos por “realidades”. Percebendo que os significados das

coisas não são naturais ou intrínsecos as mesmas, ou seja, eles seriam fruto da forma

como elas são socialmente elaboradas por meio da linguagem, as hipóteses com

sentidos definitivos ou absolutos, tomadas em relação ao que percebemos no mundo ao

nosso entorno se tornam questionáveis. Em meio a estes jogos culturais e de sentido,

acabamos por perceber que os “fatos naturais” são antes acontecimentos discursivos.

Essa atitude estimulou novas reflexões em torno da centralidade que a cultura adquiriu

nas análises socioculturais. Qualquer prática social inclui e depende dos modos como os

significados são estabelecidos (ibid.).

Um dos exemplos de discussões inserida nos EC de inspiração pós-moderna e pós-

estruturalista, assinalados por Silva (1999a), diz respeito à tentativa de compreensão das

relações de gênero, destacando os aspectos culturalmente fabricados do fenômeno de

diferenciação entre homens e mulheres. Sob a perspectiva teórica dos EC, as

identidades sexuais seriam construídas discursivamente e não determinadas pela

fisiologia dos corpos. A noção de gênero pautada somente nas características biológicas

é deste modo questionável. Com base nisso abre-se margem para debates acerca dos

processos culturais que acabam por produzir desigualdades e jogos de valoração a partir

dos estereótipos marcados para cada gênero. Os estudos com base na teoria Queer3, por

exemplo, partem do argumento de que a identidade não pode ser restrita unicamente à

biologia, e está sujeita a processos históricos e culturais de construção discursiva. Como

2 Corrente teórica que foi idealizada no campo da linguística por Ferdinand de Saussure e Roman Jacobson. 3 Extrapola os questionamentos de identidade construídos pelas teorias feministas e trabalha também os gêneros “estranhos”, como

o gay e a lésbica, por exemplo, que transgridem o que se tem instituído por “normal”, “moral” e “certo”, explicam Silva (1999a) e

Louro (2001).

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argumentam Silva (ibid.) e Louro (2001) em seus estudos, o gênero e sexualidade são

construídos e reiterados pelas práticas e discursos, elaborados dentro dos inúmeros

grupos socioculturais em um processo que integra um jogo de constantes

transformações e reiterações de significados e valores ao longo dos contextos históricos.

Na atualidade, mais do que nunca, com esses grupos identitários em maior destaque,

torna-se importante percebermos como são articuladas as ditas posições de

“normalidade” e “diferença” e os significados construídos a partir destas.

Disposto esse breve sumário acerca da perspectiva da vertente pós-estruturalista dos EC,

tentamos apresentar na sequência algumas elucubrações gerais sobre a pesquisa

qualitativa nas Ciências Sociais, e, mais especificamente, a metodologia da pesquisa

com narrativa biográfica.

3 A pesquisa com Narrativa Biográfica

Na pesquisa em Comunicação Social, assim como na pesquisa em Ciências Sociais, é

usual o desenvolvimento de estudos de cunho empírico. Esse tipo de pesquisa pode ser

trabalhado por meio de métodos qualitativos ou quantitativos. Rosenthal (2014) em seu

livro Pesquisa Social Interpretativa: uma Introdução articula uma clara distinção entre

estes diferentes métodos, aprofundando o seu estudo no viés teórico-metodológico

qualitativo e interpretativo.

Tomando como base o objeto de investigação, o método qualitativo e interpretativo vai

explorar este para a descoberta de teorias e hipóteses. Ao contrário das pesquisas em

Ciências Exatas (e do que acontece em muitos estudos nos campos das Ciências Sociais

e Humanas), que partem de hipóteses fechadas e concentram os esforços durante a

pesquisa para comprová-las, os métodos qualitativos e interpretativos possuem roteiros

incertos e suscetíveis a mudanças, dado que durante esse tipo de pesquisa os enfoques e

escolhas são norteados pelas particularidades e relevâncias encontradas nos objetos

estudados (leia-se sujeitos integrantes e constituintes dos fenômenos sociais).

Deste modo, nesse tipo de pesquisa é necessário haver uma adequação entre o método

de coleta do corpus, o material documentado e a concatenação entre estes e o viés

teórico, de forma que possibilite a investigação de algo possivelmente inédito e a

reconstrução de sentidos objetivos bem como a percepção de sentidos subjetivos

adjacentes aos mesmos, explica Rosenthal (2014).

O viés interpretativo nas Ciências Sociais incide com o desenvolvimento de tradições

intelectuais como a sociologia compreensiva de orientação metodológica

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fenomenológica de Max Weber, que foi aperfeiçoada posteriormente por Alfred Schutz

e que teve derivações importantes como a pesquisa social comunicativa de Fritz Schütze

e a Gounded Theory de Barney Glaser e Anselm Strauss (ibid.).

Conforme Costa (2009), a sociologia compreensiva fundada por Weber, em seu cerne,

se abstém do entendimento da sociedade enquanto um objeto fechado regido por

verdades absolutas. Os interesses nessa perspectiva passam a ser recortes da realidade

histórica-social, visto que os fenômenos socioculturais se transformam a todo momento

em função de diferentes e variáveis facetas oriundas das individualidades (as unidades

que compõem o tecido social). E são essas individualidades que detém significação e

importância para a sociologia compreensiva. O relevante nesse tipo de perspectiva é o

entendimento de particularidades sociais e não a inserção do estudo desenvolvido em

um sistema científico canônico. Empreende-se, assim, a compreensão de ações dos

indivíduos e das consequências destas, e, a partir de interpretações, tenta-se pensar a

construção dos chamados tipos-ideais. É importante salientar que as ações sociais

individuais só fazem sentido para sociologia compreensiva na medida em que estão

orientadas ao comportamento da sociedade.

O autor (ibid.) informa ainda sobre as contribuições de Alfred Schutz para a sociologia

compreensiva em relação à produção de sentido. Para este último, o agente sempre

atribui significado as suas ações. E são estes significados que se propõe compreender

por meio da sociologia compreensiva.

Explicada, de forma breve, a relevância em se tentar compreender as micro-relações

sociais e as individualidades para o entendimento de fenômenos sociais amplos, e com

base nessa orientação teórico-metodológica da sociologia compreensiva, destacamos a

importância de Fritz Schütze (2010), o qual empreendeu esforços na pesquisa biográfica

por meio do método da entrevista narrativa.

Em linhas gerais, esse método, partindo de uma temática ampla, propõe a escolha de

indivíduos (atrelados ao tema em questão) para a elaboração de entrevistas narrativas.

Por exemplo, ao se empreender a compreensão do fenômeno de conformação de

identidades sexuais e a questão do transtorno de gênero, seria relevante trabalhar com

narrativas biográficas de indivíduos transgêneros ou transexuais. Apesar de partir de um

interesse temático, o material coletado (uma documentação histórica abrangente da vida

de alguns indivíduos) resulta, potencialmente, em algo tão amplo que é passível de ser

aproveitado em pesquisas em temáticas variadas.

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Schütze (2010) orienta que na entrevista narrativa não se deve partir de roteiro algum.

Convida-se o entrevistado/informante, em um primeiro momento, a relatar sua

biografia. Essa história serve como substrato inicial para o entrevistador pontuar

dúvidas ou questões relacionadas à mesma. Após o término da narração, o entrevistador

pode lançar questões pontuais que levem o entrevistado a explicar pontos nebulosos de

sua história, ou a complexificar determinadas situações. A espontaneidade e o

improviso narrativo são cruciais, pois só assim temos uma reconstrução narrativa

sensível de um ser humano que vivenciou e que, agora, lança sua percepção subjetiva a

luz do relato biográfico. Só após o esgotamento da narrativa é que o entrevistador

poderá, digamos assim, minar o fluxo narrativo do informante, esmiuçando a narrativa

por meio de relações exteriores correlatas ao mundo narrado. Pode-se, por exemplo,

lançar questões sobre a teorização do entrevistado. Ao fim, é possível levantar dúvidas

de curiosidade pessoal do entrevistador: como e por que tais eventos aconteceram, o

porquê de o informante ter se comportado de tal forma, etc. Com isso pode-se obter

comentários argumentativos suplementares a narrativa.

Rosenthal (2014), que trabalha com maior rigor metodológico em relação à Schütze, na

pesquisa biográfica com entrevista narrativa, destaca, dentre os fundamentos da

pesquisa social interpretativa, o princípio comunicacional, segundo o qual as sociedades

são interpretadas e constituídas por meio de interação – articula, nesse sentido, teorias

de Alfred Schutz e Erving Goffman –; e destaca o princípio de abertura na

documentação e análise do corpus. Este deverá gerar hipóteses, não o contrário. Ênfase

para a provisoriedade das hipóteses que estarão condicionadas à compreensão do objeto

de análise, ou seja, a compreensão da historicidade do indivíduo objetivamente inserido

na sociedade, e subjetivamente constituído pela mesma.

A autora (ibid.) explica que nesse tipo de estudo o pesquisador acaba tendo que

reconstruir objetivamente e reinterpretar subjetivamente os fenômenos sociais

estudados. Na entrevista narrativa, segundo a socióloga, o objetivo é acessar a visão de

mundo do entrevistado, tornando-a referência no estudo. Isso faz sentido na medida em

que compreendemos que o objeto de estudo em pesquisas sociais é um ser humano

senciente e pensante, historicamente configurado e socialmente atuante. Sob essa

perspectiva refutam-se as hipóteses totalizantes, de uma sociedade coesa e atuante de

forma mais ou menos uniforme e previsível. Com isso, também, passa-se a considerar

todos os indivíduos, suas biografias, e relações como importantes e fundamentais ao

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curso das sociedades, e, consequentemente, cruciais na conformação dos fenômenos

estudados.

Em relação à análise do conteúdo biográfico, documentado através das entrevistas

narrativas, Rosenthal (2014) explicita a teoria fundamentada (grounded theory).

Conforme este viés busca-se entender uma situação e o motivo de seus participantes

agirem de determinada maneira, bem como saber o porquê de o fenômeno em questão

ter tido tal desfecho. Para isso compara-se, codifica-se e identificam-se pontos em

comum nos materiais documentados. Hipóteses e teorias acabam por emergir dessa

análise sistemática. Ao cabo, os dados terminam por sustentar as teorias e hipóteses

desenvolvidas.

4 Conclusão: uma aproximação entre metodologias

Tendo em vista que o objeto de análise nas Ciências Sociais e Comunicação Social são

compostos pelas relações de indivíduos pensantes, dinâmicos e que, constantemente,

lutam por significação, transformando suas práticas sociais e culturas a todo o

momento, fica evidente a necessidade de romper com o paradigma vigente

institucionalizado: de tratar seu objeto de estudo (os fenômenos sociais) enquanto algo

fixo e uniforme, e que pode, em tese, ser observado de forma genérica e distanciada.

Por meio dos EC, através de análise de produtos culturais, podemos empreender estudos

sobre questões atreladas a vida cotidiana, identidade, relações de poder, produção

cultural e de sentido (HALL, 1997a, 1997b, 1997c; SILVA, 1999a; ESCOSTEGUY,

2010). Todavia, em muitos estudos inspirados por este viés, parece faltar a perspectiva

dos produtores dessas práticas e culturas. Nesse sentido, o aporte teórico-metodológico

da pesquisa biográfica com entrevista narrativa pode vir a complementar de forma

enriquecedora as pesquisas culturalistas. Ao invés de lançar reconstruções

interpretativas atreladas a percepções distanciada do pesquisador, como ocorre

tradicionalmente, pode-se contar com relatos mais fidedignos (obviamente não livres de

subjetividade), que podem colaborar com o entendimento dos significados imanentes as

práticas e produtos culturais estudados.

Trazendo novamente a referência ao fenômeno social do transtorno de gênero e da

percepção do corpo potencializados pelos cibermeios e produções culturais nas redes

digitais, por exemplo, além de podermos analisar, sob o enfoque culturalista, seus

desdobramentos mais aparentes, como, por exemplo, manifestações e interações

registradas em redes sociais, comentários textuais, vídeos e imagens; podemos

acrescentar a isso narrativas biográficas de indivíduos que experenciam e participam do

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contexto estudado. Por meio da análise de algumas narrativas de histórias de vida

podemos ter um respaldo e arcabouço teórico importante para o melhor entendimento

dos produtos culturais e práticas problematizadas.

Evidencia-se, com essa aproximação, a apreensão e compreensão de problemas sociais,

e a partir das análises, possivelmente, pode-se instigar reflexões e ações para promover

mudanças. Consegue-se, com isso, uma aplicação social mais efetiva dos esforços e

recursos empreendidos no desenvolvimento da pesquisa indo além de elucubrações

teóricas mais generalistas e abstratas, usualmente restritas ao ambiente acadêmico.

Procuramos neste breve texto argumentar sobre a relevância da aproximação dos

referidos vieses teórico-metodológicos como uma forma de romper com paradigmas de

pesquisa vigentes no âmbito da Comunicação Social/cibercultura. Sugerimos, em

pesquisa futuras, um aprofundamento mais detalhado acerca da aproximação entre os

EC e a metodologia de pesquisa com narrativa biográfica, bem como a montagem de

um escopo metodológico mais aprofundado para a aplicação em temas e objetos de

pesquisa em Comunicação Social/cibercultura.

Referências

COSTA, Tomás da. Alfred Schutz e o mundo social interpretado, UFRJ

(Departamento de Filosofia), 2009. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Estudos culturais: uma introdução. In: SILVA, Tomaz

Tadeu da (Org.). O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica,

2010. p. 133-166. FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de pesquisa

para a internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso

tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº2, p. 15-46, jul./dez. 1997a. __. The work of representation. In: HALL, Stuart (org). Representations and signying

produces. London: Sage / Open University, 1997b. p. 1-74. __. The spectacle of the ‘other’. In: HALL, Stuart. Representation. Cultural

Representations and Signifying Practices. London: Open University, 1997c. p. 223-

290. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.

Porto Alegre: Sulina, 2010. LOURO, Guacira Louro. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação. In:

Estudos Feministas, v.9, n. 2, Florianópolis, 2001. P.541-553. PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte:

Autêntica, 2000. p.7-46. ROCHA, P. J.; MONTARDO, S. P. Netnografia: incursões metodológicas na

cibercultura. In: Revista da Associação nacional dos Programas de Pós-graduação em

Comunicação – Compós, dez./2005, pp. 1-22. Disponível em:

<http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/55/55>. Acesso

em: 15 out. 2012.

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ROSENTHAL, Gabriele. Pesquisa Social Interpretativa – uma introdução. Porto

Alegre: Edipucrs, 2014. SCHUTZ, Alfred; LUCKMANN, Thomas. The Strcuctures of the Life-World.

Northwestern University Press, 1973. SCHÜTZE, Fritz. “Pesquisa biográfica e entrevista narrativa”, In: Weller, Wivian;

Pfaff, Nicolle (Org.), Metodologias da pesquisa qualitativa em educação – Teoria e

prática. Petrópolis: Editora Vozes, 2010. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do

currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999a. __. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte:

Autêntica, 1999b. WINOCUR, Rosalia. Robinson Crusoe ya tiene celular. México: Siglo XXI, 2009.

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Cultura Popular X Redes Sociais: As novas

apropriações da rede

Francinete Louseiro de Almeida4

RESUMO

O artigo estuda as novas apropriações da conversação em rede. O objeto de estudo

escolhido é o facebook do grupo folclórico maranhense, Bumba – boi - de – Morros.

Apresenta-se uma fundamentação sobre o folclore e, em seguida, o histórico do referido

grupo. É desenhada uma conceituação de alguns termos das novas tecnologias em

comunicação como: cibercultura, convergência, rede social, conversação e apropriação

PALAVRAS – CHAVE: Comunicação Social; Redes Sociais e Conversação em rede

INTRODUÇÃO

O folclore é um tema de enorme abrangência e inesgotável potencial como

objeto de estudo, razão pela qual continua sendo um campo relevante de pesquisa. Não

se pode descartar o fato de que o folclore é a memória viva de um povo, pelo contrário,

é preciso reafirmar cada vez mais essa tradição para que se resgate todo um princípio e

constituição de uma sociedade. Nesse sentido, a comunicação, e em especial falando

agora, as novas tecnologias de comunicação, são de total importância, visto que elas não

somente pensam no tempo presente e criam estratégias para a divulgação dessas

tradições, mas também criam formas e maneiras de fazer com que essas tradições sejam

guardadas e lembradas.

O presente artigo é um recorte da pesquisa que trabalha na perspectiva de

entender, através do olhar de uma administração pública e pelos seus profissionais da

comunicação organizacional, as estratégias de comunicação utilizadas no evento São

João do Maranhão, que identificam e representam um determinado povo, a saber, em

específico, o povo maranhense. Como a pesquisa parte da perspectiva de entender a

comunicação do evento como um todo, neste artigo será estudado apenas as estratégias

de comunicação utilizadas por um grupo que compõe o folclore maranhense. E para o

estudo abordaremos essa comunicação na área digital, as formas e as inovações que são

trazidas por essa área para que os grupos folclóricos possam divulgar os seus trabalhos.

4 Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense - UFF; Doutorando em

Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica – PUCRS; Professora do Departamento de

Comunicação da Universidade Federal do Maranhão – [email protected];

[email protected]

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O FOLCLORE

Inicia-se esta fundamentação teórica destacando que toda sociedade é

identificada e reconhecida também pelas suas atrações folclóricas. De acordo com a

Carta do Folclore Brasileiro, podemos conceituar o Folclore como:

Folclore é o conjunto das criações culturais de uma

comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual

ou coletivamente, representativo de sua identidade social.

Constituem-se fatores de identificação da manifestação

folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade,

funcionalidade. (COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE,

1995, p. 01)

Nessa conceituação, nota-se que o folclore é a expressão de tradições, de forma

coletiva ou individual. Essas expressões nos remetem a uma representação de identidade

social, uma identificação do que somos, do que fomos e do que seremos. Assim, por

meio das manifestações folclóricas, percebem-se tradições e construções, origens,

crenças, símbolos, modos e costumes de um povo. No Brasil, a Congada, em Minas -

Gerais; o Boi – Bumbá no Amazonas; a Farroupilha, no Rio Grande do Sul; o Maracatu,

em Pernambuco; a festa do Sírio de Nazaré, no Pará; as Cavalhadas, no Espírito Santo;

o Carnaval, no Rio de Janeiro e o Bumba – meu - boi no Maranhão, entre tantas outras,

são festas folclóricas representativas da identidade cultural do país, uma tradição que é

cultivada e reconstruída a cada período festivo.

A identidade de um povo é constituída por todo um patrimônio de referências

simbólicas que justificam, reafirmam e alicerçam o seu viver e constituem os cenários

que são formadores dos imaginários sociais. Para Baczko (apud LIMA, 2004, p. 179)

Os imaginários sociais constituem [...] pontos de

referência no vasto sistema simbólico que qualquer

coletividade produz e através do qual [...] ela se percebe,

se divide e elabora os seus próprios objetivos. É assim

que, através dos seus imaginários sociais, uma

coletividade designa a sua identidade; elabora certa

representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e

das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns;

constrói uma espécie de código de “bom

comportamento”, designadamente através da instalação

de modelos formadores.

Tais concepções levam-nos a afirmar que os imaginários sociais se estabelecem

nos e pelos cenários de representação social, nos quais os indivíduos, além de

designarem a sua própria identidade, constituem ainda as representações de si e do

mundo que os rodeia. Nesse contexto, os processos de comunicação são poderosos

construtores de imaginários sociais, tornando-se fortes construtores da sociabilidade.

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Pelo exposto, pode-se afirmar que o objeto de estudo deste artigo, o Bumba Boi

de Morros, é uma brincadeira do São João do Maranhão e constitui-se num cenário de

representações e imaginários sociais. Neste espaço, criam-se identidades, elaboram-se

representações e impõem-se crenças. É oportuno destacar que, nas sociedades

modernas, a tradição se nutre da contemporaneidade dos meios de comunicação, tendo

em vista que, cada vez mais, as manifestações tradicionais ou folclóricas são também

midiáticas. Nesse contexto, das interações que decorrem do processo que retira a

manifestação folclórica do seu lugar de origem e a reporta ao mundo, estão imbricadas

as dimensões empresariais (o folclore se torna um negócio); as dimensões políticas,

sobretudo pela ingerência do poder público (no caso do Maranhão, o poder executivo

tem participação bastante acentuada nas manifestações culturais), além, claro, da

dimensão sociocultural.

Nessa dimensão sociocultural, e entendendo como a sociedade desenvolveu sua

cultura ao longo do tempo, podemos pensar as novas formas de se comunicar e de criar

as relações sociais. Na atual sociedade novas configurações aparecem e se concretizam.

Com a pós-modernidade, um novo ambiente de comunicação entra em cena, e já se fala

nas novas tecnologias de comunicação.

O que chamamos de novas tecnologias de comunicação e

informação surge a partir de 1975, com a fusão das

telecomunicações analógicas com a informática, possibilitando

a veiculação, sob um mesmo suporte – o computador -, de

diversas formatações de mensagens. (LEMOS, 2010, p.68)

É nesse novo ambiente que este artigo pretende entender as formas utilizadas por

um grupo do folclórico maranhense, o Bumba Boi de Morros, o qual será apresentado

no próximo ponto.

O BUMBA BOI DE MORROS

O Bumba - meu - boi de Morros foi fundado no dia 23 de junho de 1976. O

grupo foi fruto de um trabalho educativo da professora Terezinha Bacelar juntamente

com os professores e amigos: Maria Marlene Ferreira Lobato (principal idealizadora),

Maria Aparecida Ferreira Lobato, Maria do Socorro Araújo Ferreira, José Ribamar

Muniz Lobato e Valter Ferreira, da Escola Normal Monsenhor Bacellar. Esse trabalho

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tinha como objetivo recuperar uma tradição do início do século que estava esquecida na

região do Munim, município de Morros no estado do Maranhão.

O primeiro nome do grupo foi Alegria dos Estudantes e após um período de

paralisação das atividades, Zuza Lobato, organizador de diversos tipos de festejos e

amante do Bumba – meu - boi, juntamente com sua esposa Maria Izabel Muniz Lobato,

fizeram ressurgir o Bumba – meu - boi de Morros, agora com o nome de Sonho

Realizado. Zuza Lobato esteve à frente da brincadeira até o ano de 1981, pois veio a

falecer em 1982, ano em que a brincadeira não se apresentou. Porém em 1983 a

brincadeira retorna tendo como diretores a viúva, dona Maria Izabel Lobato, e o seu

filho, José Carlos Muniz Lobato.

O atual Bumba – boi – de – Morros gravou seu primeiro disco vinil no ano de

seu retorno, em 1983. De lá pra cá, a brincadeira já gravou vários Cd’s e se apresentou

em vários lugares do país e do mundo, inclusive em festivais no Japão e na Alemanha. .

A brincadeira que começou na cidade de Morros, hoje já conta com mais de 160

brincantes e se caracteriza principalmente pelas inovações que são propostas todos os

anos. Essa é uma característica desse grupo folclórico, que sempre tenta inovar e

aprimorar dentro do folclore maranhense, inclusive no que tange às suas formas de

comunicação e divulgação, pois foi um dos primeiros grupos a aderir às novas

tecnologias de comunicação com a criação de seu site e a utilização de redes sociais,

como Twiter e facebook.

AS NOVAS CONFIGURAÇÕES EM COMUNCAÇÃO

Na metade do séc. XX várias modificações foram percebidas na sociedade e isso

afetou diretamente os meios de comunicação. Com o advento da internet a informação é

percebida de forma bidirecional entre grupos e indivíduos. Muitos teóricos discutem o

assunto, pois de certa forma a estrutura de poder midiático massivo convencional é

abalado e considera- se agora a cibercultura.

A cibercultura será uma configuração sociotécnica onde haverá

modelos tribais associados às tecnologias digitais, opondo-se

ao individualismo da cultura do impresso, moderna e

tecnocrática. Com a cibercultura, estamos diante de um

processo de aceleração, realizando a abolição do espaço

homogêneo e delimitando por fronteiras geopolíticas e do

tempo cronológico e linear, dois pilares da modernidade

ocidental. (LEMOS, 2010, p. 72)

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Entre as principais características da cibercultura encontra-se a descentralização

e a interatividade. Na era da cibercultura espaço e tempo são reconsiderados. A

tendência não será mais da utilização do espaço homogêneo, onde as informações são

veiculadas de forma linear com o objetivo de alcançar o maior número de público. Da

mesma forma, o tempo agora é primordial, pois nessa nova configuração, onde as

telecomunicações se juntaram com a informática, as informações ganham velocidade na

divulgação e tem-se agora o período da instantaneidade.

Com a aceleração da informação, seja através do espaço ou do tempo, os

conteúdos da comunicação são repensados, pois as informações não chegam apenas

através dos meios formais de comunicação, elas se propagam também com a utilização

de computadores interligados em forma de rede pela internet. Esses conteúdos são

replicados por várias plataformas de mídia, pois se chegou a era da convergência.

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de

múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos

mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos

públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer

parte em busca das experiências de entretenimento que

desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir

transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e

sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam

estar falando. (JENKINS, 2009, p. 29)

A convergência trouxe uma mudança cultural bem marcada, o consumidor agora

é ativo, ele vai atrás das informações, e para isso, fica à vontade para escolher qual

plataforma mais lhe interessa nesse novo sistema de mídias. Fazendo um paralelo com o

objeto de estudo desse trabalho, nota-se que o Bumba Boi de Morros esta em diferentes

plataformas midiáticas. Eles hoje se utilizam do facebook e do Twitter, além do que,

possuem o seu próprio site. O grupo percebeu a necessidade de alcançar os seus

públicos através desses meios de comunicação, e isso só reafirma o que o autor nos diz,

quando ele afirma sobre um comportamento migratório que vai a busca das experiências

de entretenimento que desejam.

Como o objetivo desse artigo será estudar a utilização das redes sociais por um

grupo da cultura popular e entendendo aqui, que as mudanças que ocorreram na pós-

modernidade trouxeram o advento da cibercultura e o fenômeno da convergência

explicando essa busca por terrenos midiáticos diferentes, cabe agora entender as redes

sociais e como acontece a conversação na rede.

Para se conhecer primeiro a rede social utiliza-se os estudos de Recuero: “Uma

rede social é definida como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições

ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais)” (RECUERO,

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2011, p. 24). Importante perceber nesse conceito os dois pontos principais: Pessoas &

Conexões. As redes sociais são constituídas de pessoas e das conexões estabelecidas por

elas. A palavra rede é usada como forma de se entender as conexões que são formadas

e como se torna impossível separar essas conexões. Através da rede percebe-se como se

formam as estruturas sociais, ou seja, as estruturas sociais são formadas pela

comunicação mediada por computadores, que cria através da conversação as relações

entre os indivíduos.

Para definir conversação, utiliza- se aqui o conceito trazido por RECUERO

A conversação é, portanto, um processo organizado, negociado

pelos atores, que segue determinados rituais culturais e que faz

parte dos processos de interação social. Não se trata apenas

daqueles diálogos orais diretos, mas de inúmeros fenômenos

que compreendem os elementos propostos e constituem as

trocas sociais e que são construídos pela negociação, através da

linguagem, de contextos comuns de interpretação pelos atores

sociais. (RECUERO, 2012, p.31)

A conversação da qual o conceito se refere, diz respeito a que acontece na

comunicação mediada por computador. Essa conversação se utiliza de um conjunto de

práticas sociais e de uma linguagem digital capaz de estabelecer as interações. É

somente através da conversação que pode haver as interações e onde se realizam as

relações sociais no ciberespaço. Essa conversação só é possível porque ela em si se

organiza e cria suas estratégias. Só haverá interação se houver comunicação, e não são

apenas diálogos orais, são formas e estratégias de se comunicar que foram criadas e

institucionalizadas no ciberespaço.

É importante que se diferencie conversação de comunicação mediada por

computador. A conversação são apropriações; são formas de utilização das ferramentas

da comunicação mediada por computador. O que se vê hoje nas redes sociais são essas

formas de apropriações, que geram as relações e interações. Lemos define apropriação

como:

...a apropriação como a essência da cibercultura. Para o autor, a

apropriação é o produto do uso da tecnologia pelo homem,

tendo duas dimensões, uma simbólica e uma técnica. É nesse

sentido que também utilizamos o conceito aqui. A apropriação

técnica compreende o aprendizado do uso da ferramenta. A

simbólica compreende a construção de sentido do uso dessa

ferramenta, quase sempre de forma desviante, ou seja, com

práticas que vão sair do espaço de design de uso desta.

(LEMOS apud RECUERO, 2012, p.35)

A partir do conceito de Lemos que se entenderá a utilização do facebook pelo

grupo folclórico Bumba Boi de Morros. As conversações se apropriaram das

ferramentas dessa rede social nos dois sentidos colocados pelo autor, no sentido técnico,

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porque existe alguém que alimenta a página e compreende o uso da ferramenta, e a

apropriação simbólica, que é bem percebida, pois é dado um sentido para as postagens e

conversações que até então são elaboradas pela brincadeira. A seguir serão apresentadas

as formas e utilizações do facebook do Bumba Boi de Morros.

ANÁLISE DO FACEBOOK DO BUMBA BOI DE MORROS

Num grupo folclórico, como o citado neste artigo, é preciso toda uma estrutura

para que a brincadeira aconteça e essa estrutura não é apenas física, mais

principalmente, humana. Existe um grupo de pessoas envolvidas nesse grupo que já

criam as conexões. Essas conexões, que no caso específico, parte de pessoas reais e se

transfere para as conexões na rede, com pessoas que não possuem proximidade física,

só acontecem porque independente da aproximação, existem laços sociais que dão a liga

nessa conexão e de certa forma criam as interações.

Parte-se desse princípio para que aja um entendimento aqui do que iremos

apresentar. A estratégia do grupo folclórico analisado é justamente criar um clima de

interação perante aqueles que são o seu público, mesmo antes do período de suas

apresentações. Além da divulgação de um trabalho, criam-se várias conexões com

aqueles que admiram a brincadeira, todos se sentem participantes também, pois

acompanham passo a passo as realizações do grupo.

Apesar de que o espaço não nos permitirá apresentar aqui todas as publicações

importantes que relata o que esta sendo dito, será feita uma espécie de linha do tempo

para mostrar um pouco do que foi abordado. Como informação inicial o Facebook do

Boi de Morros possui 4660 amigos

Publicação de 05 de janeiro que apresentou o tema da brincadeira para o ano de 2015.

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Publicação do dia 20 de janeiro. Não traz nenhuma informação sobre o grupo em si,

mas faz uma homenagem a um personagem do folclore maranhense que veio a falecer

nesse dia.

Publicação do dia 23 de janeiro.Numa tentativa de democratizar o acesso à brincadeira,

o grupo abre inscrições onde podem participar pessoas de todo o estado e não apenas

moradores da cidade de Morros.

Publicação foi do dia 23 de março. Aqui já havia acontecido a seleção de novos

brincantes e estava começando o período dos ensaios.

Publicação feita em maio que divulga a blusa que será vendida para as pessoas que

apreciam a brincadeira.

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Publicação feita no dia 05 de junho convidando o público para a apresentação da

indumentária de 2015.

Fotos retiradas do Facebook: https://www.facebook.com/boidemorros?fref=ts

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção desse artigo não foi analisar o facebook do referido grupo folclórico

a partir de uma análise quantitativa e nem com relação aos comentários. Nosso pano de

fundo é analisar a apropriação do facebook enquanto espaço de conversação capaz de

criar e fomentar conexões aumentando os laços e as interações sociais. Com relação a

este assunto, o que pode ser percebido é que o referido grupo se utiliza dessa ferramenta

de forma satisfatória, pois ao publicar as informações do grupo que são de interesse do

seu público alvo, ele esta criando interações e aumentando os seus laços sociais.

Para fechar esse artigo é válido fazer uma reflexão. No caso específico dessa

análise, o que vemos são as conversações em rede fomentando e aprimorando os laços

sociais entre os públicos de interesse do grupo estudado. No entanto, todo esse trabalho,

todas as publicações, é uma espécie de preparação para o momento do encontro “real”,

para o momento onde o público poderá ver de perto a sua brincadeira preferida. Pode -

se concluir então, que as novas tecnologias, e aqui em especial, a rede social, é uma

apropriação tecnológica que facilita e aprimora o relacionamento, seja entre pessoas, ou

entre organizações. Elas não existem para assumir o lugar de..., elas existem para

caminhar junto, aperfeiçoando e melhorando a vida dos seres humanos.

BIBLIOGRAFIA

BERGER, Peter L. A construção social da realidade: tratado de sociologia do

conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1985.

COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE, p. 01, 1995 Disponível em:

<http://www.fundaj.gov.br/geral/folclore/carta.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2014.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 6. ed. Rio de Janeiro:

DP&A, 2001.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2ed. São Paulo: Aleph, 2009.

LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 5 ed.

Porto Alegre, Sulina, 2010.

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20

LIMA. Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Editora

Fundação Perseu Abramo, 2006.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 9.

ed. Petropólis: Vozes, 2012.

RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. 2ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.

_______________. A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e

redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.

https://www.facebook.com/boidemorros?fref=ts acessado entre 15 à 19 de junho.

http://www.boidemorros.com/ acessado em 17 de junho.

]

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Mesa 2 – NARRATIVAS AUDIOVISUAIS

Coordenação Aline Bianchini

O Drama do Tráfico de Pessoas em Salve Jorge: da tela à segunda tela

Denise Avancini Alves5

Fabiane Sgorla6

RESUMO:

O artigo analisa o tráfico de pessoas – considerado um tema da esfera dos direitos

humanos – a partir da dramatização acionada nos produtos digitais da novela Salve

Jorge, exibida pela Rede Globo, em 2013. A telenovela é geradora de visibilidade de

temas sociais e a inclusão de tais conteúdos no melodrama é reconhecida como

merchandising social. Pesquisamos como se efetiva a abordagem do tráfico de pessoas

em Salve Jorge, considerando a projeção do tema nas estratégias transmidiáticas

realizadas no site da emissora.

Palavras-chave: tráfico de pessoas, dramatização, telenovela, transmídia, Salve Jorge

INTRODUÇÃO

O tráfico de pessoas é uma das maiores violações aos direitos humanos na

atualidade. Seduzidas pela promessa de uma vida melhor, pessoas são aliciadas por

redes criminosas responsáveis pelo terceiro comércio ilegal mais lucrativo do mundo,

depois dos tráficos de drogas e armas.

É definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como “o recrutamento,

o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à

ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano,

ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de

pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha

autoridade sobre outra para fins de exploração” (PROTOCOLO DE PALERMO, 2003).

Movimentando, anualmente, mais de 30 bilhões de dólares, é considerado o terceiro7

maior negócio em giro de capital no mundo.

5 Doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS e Professora na PUCRS. Contato:

[email protected] 6 Doutora em Comunicação pela Unisinos e Professora na PUCRS. Contato: [email protected]

7 Perde para o tráfico de drogas e comercialização ilegal de armas.

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Em termos de classificação internacional, existem quatro finalidades de tráfico

reconhecidas pela ONU: para fins de exploração sexual; de remoção de órgãos, tecidos

e partes do corpo humano; de trabalho escravo; de casamento servil.

No Brasil, o tema foi colocado em pauta pelo Governo Federal em 2004, com a

publicação de decretos que promulgam a convenção das Nações Unidas contra o crime

organizado transnacional e protocolos adicionais. Desde então, tem sido discutido na

esfera federal com o lançamento de Planos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

(2008 e 2013), bem como a realização de simpósios para discutir o problema de ordem

internacional. Entre 2005 a 2011, as vítimas de tráfico de pessoas para fins de

exploração sexual totalizaram mais de 450 casos mapeados pelo Ministério das

Relações Exteriores, sendo considerado um negócio que apresenta variação conforme a

economia mundial.

Na apropriação midiática pelo viés do entretenimento, a telenovela assume esse

assunto como elemento central. O tráfico de pessoas foi abordado em Salve Jorge,

escrita por Gloria Perez e exibida pela Rede Globo entre 22 de outubro de 2012 e 17 de

maio de 2013. A inclusão de temas sociais nas tramas das telenovelas é reconhecida

como uma estratégia de merchandising social e é neste espaço midiático privilegiado da

ficção que também se constitui a narrativa de um problema social.

Além da veiculação tradicional da novela pela televisão, a Rede Globo tem

investido em produção de conteúdo para a web, tendo em vista a “penetração e o

crescimento sustentado da internet na Ibero-América e o acelerado uso das redes sociais

virtuais na região” (LOPES; OROZCO, 2014, p.55). Nessa tendência, a emissora tem

disponibilizado no portal na internet (GShow) os capítulos da telenovela, bem como

conteúdos exclusivos como materiais complementares à trama, o que amplia a oferta do

tema e extrapola o horário televisivo.

Nesse sentido, o presente estudo se propõe a questionar como o tráfico humano -

tema social do campo dos direitos humanos - foi tratado em Salve Jorge, considerando o

tratamento do drama na segunda tela. Entre os materiais, situamos para essa pesquisa a

História em Quadrinhos e o Dossiê do Tráfico que remetem às narrativas

transmidiáticas à medida que expandem o universo do ficcional em outro ambiente

televisivo para o digital.

Para realizar esse percurso, utilizamos como metodologia a pesquisa

bibliográfica, a pesquisa documental e análise dos discursos na ordem de observar as

relações de poder e a análise do contexto, promovendo reflexões sobre a realidade social

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produzida. A abordagem teórica privilegia os conceitos relacionados à comunicação de

temas sociais e o merchandising social na telenovela.

REDE GLOBO E MERCHANDISING SOCIAL EM TELENOVELA

A Rede Globo é a maior emissora do Brasil, equilibrando o que é considerado

sucesso comercial com a qualidade artística. Segundo dados do OBITEL (Observatório

Ibero-Americano de Ficção Televisiva), no Brasil, existem seis redes nacionais de

televisão aberta, sendo cinco privadas – Globo, SBT, Record, Band e Rede TV! – e uma

pública, TV Brasil. Em 2012, com exceção de duas (TV Brasil e Rede TV!), todas

produziram e exibiram ficção televisiva (OBITEL, 2013).

No que se refere à audiência individual, a Globo permanece na liderança com

40,7% da TV aberta. A emissora é considerada a maior produtora de ficção televisiva no

país, tendo sido responsável por 31 das 41 produções nacionais inéditas. São cerca de

2.500 horas anuais de novelas e programas e 1.800 horas anuais de telejornalismo.

No ano de 2012, entre os televisores sintonizados exclusivamente em canais de

televisão, a Globo obteve 44,7% de share. A emissora também confirmou sua

hegemonia na programação, sendo que os 47 programas mais vistos em 2012 foram da

Globo (OBITEL, 2013). Além disso, mais de 80% das horas de ficção produzidas e

exibidas em 2013 foram de telenovela, reforçando seu peso na composição da grade de

programação da televisão brasileira.

As temáticas dominantes nas principais ficções de 2012 referem-se aos seguintes

contextos: “relações familiares, vingança, ambições, adultério, revelações de identidade,

disputas entre classes sociais, preconceitos raciais, de classe e de gênero, abandono de

menores, corrupção” (OBITEL, 2013, p. 148-149). A inserção de tais temas nos enredos

de produtos televisivos é cunhada por merchandising social, sendo, portanto, a

“veiculação de mensagens educativas, reais ou ficcionais, nos enredos ou tramas das

telenovelas, minisséries ou outros programas de entretenimento” (COMUNICARTE,

2006).

Assim, o merchandising social se caracteriza pelas inserções planejadas e

sistemáticas, com objetivos definidos, utilizando mensagens socioeducativas. Segundo

Schiavo (2002), merchandising social consiste na inserção intencional e motivada por

estímulos externos, de questões sociais nas tramas das telenovelas.

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Através do merchandising social, criam-se oportunidades para

interagir com as telenovelas, compondo momentos da vida dos

personagens e fazendo com que eles atuem como formadores

de opinião e/ou como introdutores de inovações sociais.

Enquanto estratégia de mudança de atitudes e adoção de novos

comportamentos, o merchandising social é instrumento dos

mais eficientes, tanto pelo elevado número de pessoas que

atinge quanto pela forma como demonstra a efetividade do que

é promovido (SCHIAVO, 2002, p.2).

A seguir, é possível observar a quantidade de cenas produzidas pela Rede Globo

em telenovelas ao longo do período de 2000 a 2012, conferindo uma média de 840

inserções ao ano.

Quadro 1. Número de cenas de merchandising social na teledramaturgia da TV

Globo por ano

Ano Cenas de merchandising social

2000 580

2001 483

2002 1.138

2003 1.188

2004 1.008

2005 1.551

2006 925

2007 792

2008 613

2009 858

2010 837

2011 452

2012 500

Total 10.925 Fonte: JESUS, Silvia Terezinha Torreglossa.(2103, p.27)

Em Salve Jorge, produzida pela Rede Globo, o merchandising social se

localizou no tema do tráfico de pessoas, sendo apresentado na trama veiculada nos

capítulos na TV aberta bem como nos materiais de apoio produzidos para o portal

GShow, detalhados adiante.

SALVE JORGE E O TRÁFICO DE PESSOAS

Salve Jorge, escrita por Glória Perez, estreou no horário nobre na TV Globo, no

dia 22 de outubro de 2012, encerrando sua exibição em 17 de maio de 2013 (reprise do

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último capítulo no dia 18 de maio). Com 179 capítulos, a média de audiência da

telenovela foi de 33,6. O tema Tráfico de Pessoas é o cerne social do enredo, abrindo o

primeiro capítulo da novela com cenas de um leilão da protagonista na Turquia (país-

cenário onde a exploração sexual é praticada, tendo como aliciadas personagens que

moram no Rio de Janeiro). As vítimas do tráfico para fins de exploração sexual são

exploradas por uma quadrilha com a ‘justificativa’ de dívida adquirida pela viagem,

ameaça familiar e restrição de acesso aos documentos, configurando-as como

imigrantes ilegais naquele país.

A novela inicia seus primeiros 30 segundos retratando imagens da Turquia

(ambientada em trilha). As cenas apresentam uma plástica colorida, com imagens que

representam espaços turísticos do país, especialmente as cidades de Capadócia (balões)

e de Istambul (Bósforo, mesquitas). Na sequência, apresenta o leilão da uma mulher,

que se reconhece em seguida como a protagonista da trama, numa projeção temporal de

8 meses da narrativa.

A cena é filmada no interior de uma mansão, numa sala, e ao centro, numa

espécie de tablado, está a personagem traficada – Morena, mãe solteira, que vive com a

mãe e cria sozinha um filho, compõe o núcleo central da trama. No episódio, ela se

apresenta bem maquiada, vestida com adereços elegantes e com roupa sensual. Ao

redor, homens de diversas nacionalidades (idiomas sobrepostos fazem a vez do off da

cena), vestindo ternos, fumando charuto, bebendo e conversando, admirando sua beleza,

mas principalmente o produto que ela representa. Na sequência, um homem interessado

se levanta e vai tocar e cheirar a jovem. Esse mesmo homem faz a proposta e sai com a

traficada que, por sua vez, apresenta repulsa e angústia na cena. A mercadoria se

estabelece. Logo após, entra mais uma jovem, quase como uma linha produtiva.

Figura 1. Frames do primeiro capítulo da novela Salve Jorge

Fonte: Rede Globo, 2013

Salienta-se que conteúdos contextuais foram explorados em Salve Jorge,

especialmente para trazer a perspectiva multicultural Turquia-Brasil, típica das novelas

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de Glória Perez. Tais conteúdos também foram explorados no âmbito digital, como

vídeos com curiosidades sobre a Mesquita Azul (atrações de Istambul), por exemplo, e

elementos que marcam a cultura daquele país. As extensões transmídia8 também deram

conta dos significados de expressões usadas na novela, com a produção de um

dicionário9 interativo trazendo definição e pronúncia de palavras comumente citadas em

Salve Jorge.

Nesse contexto vale reforçar o olhar de Fechine et al. (2013), que indica que os

“broadcasters também já operam com o conceito de ‘segunda tela’, uma expressão que

designa a oferta de conteúdos interativos complementares, e preferencialmente

sincronizados, com a programação por meio de aplicativos desenvolvidos para tablets e

smartphones, por exemplo” (2013, p.21). Tais dispositivos podem ser utilizados ara

ampliar o conteúdo referente ao programa, tendo como ênfase a articulação da TV com

as redes sociais. A autora reforça que “todas essas novas experiências com a televisão

estão associadas a novas formas de produção e distribuição dos conteúdos televisivos”

(p.21), cunhada como transmídia.

Nesse sentido, a Rede Globo vem investindo em produção de conteúdo para a

web, disponibilizando, além dos capítulos das novelas, materiais complementares no

site, com conteúdo exclusivo. Em Salve Jorge, diversos materiais foram produzidos.

Dentre os observados, destaca-se a composição de uma história em quadrinhos (HQ)

elaborada com o percurso de uma personagem que não apresentou um final feliz

esperado no melodrama. Trata-se da traficada Jéssica que desempenhou um papel

relevante para a discussão sobre o tema Tráfico de Pessoas, mas sua história não teve

sequência até o final da trama, sendo assassinada ao logo da veiculação de Salve Jorge.

Para manter viva na memória a personagem e ampliando as possibilidades de

dinâmicas de interação com a ficção, a Rede Globo publicou no site da novela a história

estilizada num formato HQ (Figura 2), contendo os seguintes título e linha de apoio: “O

8 Para apresentar uma narrativa transmidiática “é necessário que haja uma expansão do universo ficcional em diferentes plataformas, sendo fundamental que cada um dos conteúdos dispersos seja autônomo e independente entre si. Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games, ou experimentado como atração de um parque de diversão”. Já, crossmídia refere-se ao “cruzamento de diversos meios com a mesma narrativa, portanto sem autonomia de conteúdo em cada plataforma”. (JACKS, N. e OIKAWA, E., 2013, p.182). 9 Disponível em <http://gshow.globo.com/novelas/salve-jorge/Fique-por-dentro/noticia/2012/11/

dicionario-turco-conheca-o-significado-e-a-pronuncia-das-palavras-de-salve-jorge.html>. Acesso em 19

de abril de 2014.

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Drama de Jéssica: reveja a história da traficada em quadrinhos”. “Loira lutou muito ao

lado de Morena e terminou assassinada por Lívia”10.

Figura 2. HQ: “O Drama de Jéssica”

Fonte: Rede Globo, 2013

A história em quadrinhos resume a trajetória da personagem que, por ter sido

inspirada em um caso real, assume um novo espaço midiático. Neste caso, a Rede

Globo reproduziu algumas cenas e desenvolveu uma arte sobre os frames,

transformando a narrativa da serialização numa edição localizada em uma personagem.

10 Disponível em http://gshow.globo.com/novelas/salve-jorge/Fique-por-dentro/noticia/2013/01/o-drama-

de-jessica-reveja-a-historia-da-traficada-em-quadrinhos.html. Acesso em 19 de abril de 2014.

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O investimento em conteúdos mais visuais tende a contribuir para que as informações

possam ser assimiladas mais facilmente pelos internautas.

O material produzido pela Rede Globo apresenta um resumo da trajetória da

traficada Jéssica (vivida por Carolina Dieckman) e, ao selecioná-la, oferece à

personagem um protagonismo paralelo, evidenciado através de um discurso de

retomada contextual através do recurso de um narrador que traduz as cenas mais

emblemáticas por ela vivida na trama.

Ao transpor o texto narrativo em HQ somente de uma personagem, a emissora

oferece a ela um grau de relevância, provavelmente pelo fato de ser uma atriz

consagrada, associada ao elemento de inspiração da história de vida de Kelly, aliciada e

morta por uma quadrilha em Israel. Portanto, ao emprestar uma nova forma de tradução

do texto narrativo em HQ, pode transformar a personagem Jéssica em uma super-

heroína, comumente observado em produções desse gênero. Além disso, em HQs com

super-heróis tem-se o recurso de um disfarce para ocultar a identidade do protagonista.

Nesse caso, o disfarce é o próprio silêncio do crime.

Outro conteúdo oferecido de forma transmídia, encontra-se no Dossiê do

Tráfico11 (Figura 3), que se refere a um material disponibilizado no site da novela que

resume o que seria a documentação dos personagens envolvidos na trama pelo Tráfico

de Pessoas.

Segundo a produção do conteúdo, existem três categorias de vínculo: traficadas,

traficantes e vítimas. O site apresenta um breve resumo sobre o perfil de cada

personagem envolvido no tráfico, bem como complementa o conteúdo com fotografias e

vídeos, simulando um conjunto de arquivos que reúne informações sobre as traficadas,

os traficantes e as vítimas da operação retratada na novela.

Figura 3. Dossiê do Tráfico

11 Disponível em: <http://especiaiss3.tvg.globo.com/novelas/salve-jorge/dossie-do-trafico/>. Acesso em

19 de abril de 2014.

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Fonte: Rede Globo, 2013

A estrutura do dossiê faz alusão a uma estética visual de relatório policial, com

ficha técnica dos personagens, símbolos e ícones que remetem a elementos acionados

pela esfera legal, como carimbos e algemas.

Nesse sentido, para a análise dos discursos utiliza-se como referência a

perspectiva de Fairclough (2001), que nomina Análise Crítica do Discurso (ACD) uma

abordagem da Teoria Social do Discurso, entendendo o evento discursivo num quadro

tridimensional: texto, prática discursiva e prática social.

O autor indica que a prática discursiva é mediada por texto e prática social,

sendo constituída tanto de maneira convencional como criativa. Ou seja, a prática

discursiva é determinada pela prática social, mas também pode transformá-la em uma

relação dialética de poder. A prática discursiva contribui para reproduzir a sociedade

(identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença) e para

transformá-la, e se manifesta na forma linguística, com o uso de textos ou imagens.

Fairclough (2001, p.113) afirma que “um texto só faz sentido para alguém que nele vê

sentido, alguém que é capaz de inferir essas relações de sentido na ausência de

marcadores explícitos”.

Ao incorporar essa linha de análise para a presente estudo, localiza-se o Quadro

2, com a seguinte composição tridimensional.

Quadro 2. ACD dos produtos digitais de Salve Jorge

História em Quadrinhos Dossiê do Tráfico

Texto Há uma inovação no formato (arquitetura

do texto) com uso de recursos visuais,

onde há uma apresentação da situação

geográfica (fundo amarelo) e a descrição

Texto Apresenta uma estética visual associada à

de um relatório policial imagético, com

símbolos e ícones presentes na dimensão

policial.

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da cena (fundo branco), quando a história

é narrada por terceiros

Prática discursiva Há uma busca do conteúdo via web, com

distribuição simples, porém com

necessidade de ativação pelo internauta.

Há o protagonismo paralelo e a rotina de

produção se dá de forma única, sem a

serialidade característica da novela.

Prática social Há uma reprodução de linguagem (HQ)

que promove identidade.

Prática discursiva Percebe-se a coerência, no contexto do

‘fichamento’ dos personagens que

promove a localização deles nos seus

núcleos narrativos, oferecendo à audiência

uma complementação de conteúdo. A

busca do conteúdo é via web, com

distribuição simples e ativada pelo

internauta. Percebe-se um protagonismo

reforçado, além de uma rotina de

produção única e de reprodução, pois há

um aproveitamento de vídeos veiculados

na TV.

Prática social Há a reproduz um código que transmite

um sentido de verdade e de justiça Fonte: as autoras

Portanto, percebe-se que nos produtos digitais derivados da novela tem-se um

discurso híbrido, pois apresenta como fonte principal a própria trama do produto (Salve

Jorge) e uma possível mescla de sons, tratamento de imagens e amplitude de

abordagens em outros produtos midiáticos. Desse modo, há a presença de um discurso

heterogêneo, sendo possível localizar o debate do tráfico de pessoas como um possível

espaço de transformação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Salve Jorge produziu iniciativas que promovessem a ressignificação do que foi

abordado e exibido na TV, promovendo reenquadramentos dos fatos tratados na trama,

porém resultando em materiais exclusivos em termos estéticos e de linguagem para a

segunda tela. Tal situação promove uma dimensão relacional com o receptor,

aproximando o tema duro e criminoso que é o tráfico de pessoas ao internauta. Por

outro lado, tanto a história em quadrinhos quanto ao dossiê, fantasiam o problema,

fazendo da vítima a heroína. No caso da HQ, transforma um problema real em gibi, em

personagem onde o mal vence, quebrando a lógica esperada na dramaturgia.

Com base na dramatização do tráfico de pessoas observada nas produções

digitais de Salve Jorge, é possível corroborar que a Rede Globo, nas suas derivações do

melodrama, se torna um elemento importante na construção de significações do tema

junto à sociedade, sendo responsável por dar luz e voz ao tráfico de pessoas,

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promovendo a sua manutenção conforme o seu interesse mercadológico e reconstruindo

e reconfigurando identidades sociais.

Nesse sentido, o merchandising social em telenovelas é eficaz na promoção e na

visibilidade do tema que o próprio debate público, pois atinge o emocional, o lúdico. O

tema é transformado em mercadoria em situações que extrapolam a veiculação, através

dos produtos da emissora disponibilizados em plataformas digitais, como na História

em Quadrinhos de Jéssica ou no Dossiê do Tráfico. Portanto, o tráfico de pessoas é

reificado pela emissora, dramatizado na telenovela e nos produtos dela derivados.

REFERÊNCIAS

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monitorados. Population Media Center, 2006.

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Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira / organizado por Maria

Immacolata Vassallo de Lopes. — Porto Alegre: Sulina, 2013.

HAMBURGER, Esther. O Brasil Antenado. A sociedade da Telenovela. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

JACKS, N. e OIKAWA, E. Passione e Avenida Brasil: produção crossmídia e recepção

transmidiática? In: Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira /

organizado por Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Porto Alegre: Sulina, 2013.

JESUS, Silvia Terezinha Torreglossa de. Função educativa da telenovela brasileira: do

merchandising social à ação socioeducativa em Salve Jorge. Dissertação (Mestrado

em Comunicação Social) - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2013.

LOPES, Maria Immacolata Vassallo; GOMEZ, Guillermo Orozco. Síntese Comparativa

dos Países do Obitel em 2013, In. Estratégias de produção transmídia na ficção

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SCHIAVO, Marcio Ruiz. Merchandising social: as telenovelas e a construção da

cidadania. In: INTERCOM - CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA

COMUNICAÇÃO, 25., Salvador, 2002. Anais eletrônicos... Salvador, Sociedade

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SOUZA, Maria Carmen Jacob de; BORELLI, Sílvia; COCO, Pina; BARRETO,

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WEBER, Maria Helena: SOUZA, Carmen Jacob de. Dramatizações da Política na

Telenovela Brasileira. In: GOMES, I. M. M. (Org.). Televisão e Realidade. Salvador:

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Bebeto Alves “não é bom”:

o filme Mais Uma Canção e a sociedade do espetáculo

João Vicente Ribas – Doutorando PUCRS

[email protected]

Resumo Proponho relacionar o filme Mais uma Canção (Rene Goya Filho e Alexandre Derlam,

2012), biografia do músico Bebeto Alves, ao pensamento sobre a sociedade do

espetáculo de Guy Debord. Tal reflexão teórica visa desenvolver elementos para a

interpretação dos discursos dos cancionistas do Rio Grande do Sul, tanto em produtos

midiáticos, quanto nas entrevistas que realizarei, conforme meu cronograma de pesquisa

de doutorado. Corrobora-se assim para o entendimento da trajetória deste grupo de

músicos e de suas relações com a mídia.

Palavras-chave Comunicação. Sociedade do Espetáculo. Documentário. MPB.

Texto integral

Na sociedade do espetáculo, “o que aparece é bom, o que é bom aparece”

(Debord, 1997, pp.16-17). Portanto, esta “enorme positividade, indiscutível e

inacessível” exclui todo o resto. E serve de argumento contra reclamações dos

preteridos. Por exemplo, o discurso do compositor gaúcho Bebeto Alves, ao receber o

prêmio Açorianos de Música em 2009 pelos quase 40 anos de carreira, quando citou

ironicamente as rádios Atlântida, Ipanema e Pop Rock, “rádios que não tocam a música

da gente”. Nesta lógica, Bebeto Alves não é bom (nem quem ele incluiu em sua fala

quando disse “da gente”).

Como pode então sobreviver enquanto músico sem “aparecer” nas programações

radiofônicas? Sem aderir à atitude que por princípio o espetáculo exige: da aceitação

passiva, sem réplica, ao monopólio da aparência?

Para Guy Debord, o espetáculo é uma visão de mundo. Cria estrutura social em

que alguns vivem por procuração (separação entre palco e plateia). O que era vivido

plenamente é vivido por representação. E quanto aos que almejam estar no palco? Há

sempre esta separação?

Estas provocações visam relacionar o discurso do filme Mais uma Canção,

documentário biográfico de Bebeto Alves, ao pensamento sobre a sociedade do

espetáculo do francês Guy Debord. O objetivo é desenvolver elementos para a

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interpretação dos discursos dos cancionistas de MPB do Rio Grande do Sul, tanto em

produtos midiáticos, a exemplo do filme aqui a ser analisado, quanto nas entrevistas em

profundidade que realizarei conforme o cronograma de pesquisa de minha tese de

doutorado12.

Lançado em 2012, o filme Mais uma Canção, (direção de Rene Goya Filho e

Alexandre Derlam) é biográfico. O roteiro exalta uma trajetória de sucesso de Bebeto

Alves no Estado, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Destarte, quando o artista

reclamou em 2009 da falta de visibilidade, referia-se a outra época, mais recente.

Mas esta reclamação por mais espaço na mídia não diz respeito apenas ao

âmbito local. É central no roteiro a problematização de sua relação com o mainstream

nacional. O tema tangencia os 96 minutos de filme, dedicados também a caracterizar

Bebeto Alves como síntese de culturas da fronteira Brasil e Argentina, onde nasceu. A

sinopse oficial contém outra informação, de que o artista “encontra um conceito na

milonga – um gênero musical que elimina os limites geográficos ao sul do nosso país”.

Esse conceito teria a função de traduzi-lo e enriquecê-lo enquanto artista.

O documentário inicia com entrevistas e imagens de arquivo. Costura

depoimentos de representantes da indústria fonográfica brasileira e de colegas músicos.

Na última terça parte, mostra uma viagem de descobrimento pela Península Ibérica e

pelo norte da África, filmada em 2010, para que o músico entrasse em contato com as

raízes da milonga. Desta forma, sua identidade musical vai sendo mostrada como uma

explicação para o tensionamento com a indústria fonográfica. Fica evidente a tese de

que sua pretensa liberdade artística impediria seu enquadramento nos padrões

midiáticos. Logo nos primeiros minutos, Bebeto se apresenta e afirma que “nunca quis

ser outro cara”, no sentido de se espelhar em alguém, e que sua identidade sempre

esteve em deslocamento, pois era preciso transformações para poder se “sentir vivo”. E

no final da película, irá reafirmar seu desejo de liberdade “para poder criar de qualquer

forma”.

Voltemos à teoria de Debord. Lançado em 1967 na França, seu texto teria

influenciado as manifestações de maio de 1968, que marcariam uma geração13. Pode-se

12 Meu projeto de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS tem o objetivo de trabalhar com o circuito da cultura que envolve meios de comunicação do Rio Grande do Sul e os compositores locais de Música Popular Brasileira (MPB). 13 A partir dos anos 1950, com o desenvolvimento material, a juventude tenderia ao comportamento transitório e efêmero. Já a insurgência em que se inseria Debord propunha aos jovens “criatividade pura”, “subversão”, “liberdade de escolha”, “aventura”. “Debord e a

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afirmar que traduz o espírito de uma época, ao menos no que diz respeito a intelectuais

e artistas de esquerda no Ocidente. Será que o discurso de Bebeto Alves é consoante a

esta visão crítica da sociedade do espetáculo?

Contextualizando historicamente, vamos aqui pontuar a síntese de Júlio

Medaglia sobre o final dos anos 1960 na música brasileira. Para ele, foi um período

excitante que provocou no país um surto criador de elevado nível, semelhante ao que

ocorreu na mesma época internacionalmente, quando grandes transformações

comportamentais, artísticas e sociais impulsionadas pela guitarra em riste, tendo como

munição o rock, abalaram o mundo. “Aqui também através da cultura popular, mais

precisamente via música, é que as provocações vieram a ocorrer” (2003, p.183). O

principal resultado desse movimento teria sido o Tropicalismo, mesmo que críticos

como Roberto Schwartz (1978) apontem a ambivalência dos tropicalistas, reconhecendo

que eles também estavam integrados à sociedade de consumo.

O músico Vitor Ramil nos dá uma pista em depoimento no filme, quando afirma

que Bebeto é da geração dos seus irmãos, Kleiton e Kledir14, meio pós-tropicalista. Não

há da parte de Bebeto Alves nenhuma opinião explícita no documentário, mas se formos

resgatar uma entrevista que ele concedeu ao pesquisador Felipe Azevedo, veremos que

ele admite que o Tropicalismo teria influenciado sua forma de pensar música. O

cancionista afirmou que nos anos 60, rock and roll, cultura pop e Tropicália, “era isso

que a gente ouvia e curtia em Uruguaiana. Não tinha outra coisa (apud Azevedo, 2010).

Vale observar que quando o músico fala “outra coisa”, refere-se ao Nativismo15,

à milonga, que o influenciariam depois. Segundo ele, o único regionalismo que tocava

no rádio era dos trovadores e músicos populares, como Teixeirinha, os quais ele

conhecia como “música de grosso”.

Este período de sua biografia é retratado no documentário com um registro atual

de reencontros na cidade natal Uruguaiana. Uma sequência de cenas das ruas da cidade,

incluindo a ponte que atravessa a fronteira com a Argentina, é mostrada sob a trilha da

composição “Que se pasa?”, gravada em 1978, com versos em português e espanhol.

Internacional Situacionista transformam a problemática da juventude de um assunto socioeconômico em um assunto político” (TACUSSEL, In.: GUTFREIND; SILVA, 2003, p. 24). 14 Kleiton e Kledir formaram em 1975 o grupo Os Almôndegas, que para o pesquisador Arthur de Faria Silva (2012) foi responsável pela criação de um sistema da moderna canção popular urbana porto-alegrense.

15 Em Mídia Nativa (2003), Nilda Jacks relaciona a indústria cultural ao regionalismo latente nos anos 1980, denominado movimento Nativista, quando houve um boom de criação de Centros de Tradições Gaúchas e de festivais de música em diversas cidades do Estado.

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A seguir, participa de um programa na Rádio Charrua, onde começou a cantar

aos 9 anos. Sobre o mesmo meio de comunicação, o artista revela em depoimento que

ouvia nele muitas bandas argentinas, a exemplo de Los Gatos, sucesso no país vizinho,

pois sintonizava as estações “do lado de lá da fronteira”. Certo dia também teria

assistido ao grupo ao vivo no auditório da mesma rádio Charrua em Uruguaiana.

Por trucagem cronológica no roteiro, a posterior mudança de Bebeto para a

capital do Estado já havia sido abordada na primeira cena do filme. Trata da fundação

de sua banda Utopia, e da participação em shows coletivos, as Rodas de Som no Teatro

de Arena. Sobre este local, o artista fala que “de longe parece nada”, mas que

“historicamente ele é um monumento”. Diz que nos anos 1970 aquele lugar “se tornou

maldito, no sentido de alternativo, de uma postura artística diferente, mais criativa, num

paralelo a este sistema”. O que ele quer dizer com paralelo a este sistema? À sociedade

do espetáculo? À ditadura?

Fato é que aquela efervescência cultural ganhou mídia. Em 1974 a rádio

Continental passou a gravar os jovens músicos da cidade em seu estúdio e a tocar suas

músicas na programação, ao lado de fonogramas nacionais e internacionais. A presença

dos músicos na emissora faz parte de uma sequência de acontecimentos, incluindo a

realização de festivais, como o Musipuc, o surgimento de grupos como Os Almôndegas

que faria sucesso no país, e o estouro do programa de Julio Fürst, no papel de Mr. Lee.

De acordo com Lucio Haeser, “o fenômeno é apontado como o responsável pela criação

do que mais tarde se convencionou chamar de MPG, a Música Popular Gaúcha” (2007,

p.185). Em Mais uma Canção a abordagem daqueles anos se baseia em imagens de

arquivo, incluindo uma passagem de Julio Fürst em meio a um show. O radialista

afirma que “os concertos de Mr. Lee visam a valorização total da nossa música”.

A seguir, o jornalista Juarez Fonseca conta que a música de Porto Alegre não

tocava no rádio, até aquela iniciativa. Teve muito impacto, “surgindo uma nova música

e um novo público”. Entre as revelações de 1975 estava o grupo Utopia, de Bebeto, que

num artigo de jornal destacado no documentário, foi qualificado com os adjetivos:

inquieto, rebelde e criativo.

No entanto, é necessário refletir aqui o quanto esta relação midiática não teria

significado uma adesão ao espetáculo, visto que além do rádio, havia festivais e

concertos que atraíam milhares de pessoas. Haeser conclui que naquele momento “a

rádio vive e faz a efervescência musical da cidade, facilitando o caminho. O músicos

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não precisavam gravar um disco de sucesso para rodar na programação. E a rádio valia-

se de um diferencial: identificação com a cidade.

Voltando a Debord, vamos ler a tese de que “o espetáculo apresenta-se ao

mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como

instrumento de unificação” (1997, p.14). Assim, “o espetáculo não é um conjunto de

imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizada por imagens” (entende-se

aqui imagem num sentido mais amplo, abarcando manifestações sonoras).

Mas talvez houvesse, ao menos por parte de Bebeto Alves, uma visão mais

política e menos espetacular na época. No livro de Haeser, constam depoimentos dos

músicos que participaram da programação da Continental, narrando a primeira vez em

que ouviram suas músicas tocarem na rádio. Bebeto afirma que teria sido uma “coisa

incrível”, porque se vivia “num período complicado e difícil”. Este “período”

provavelmente seja referência à ditadura militar. Contudo, ele acredita que estava

“buscando uma verdade e exteriorizando isso”, criando e se expressando, passando uma

mensagem pras pessoas. Fazer isto naquele período para ele dava “uma sensação de

êxtase” (apud Haeser, 2007, p.192).

Esta visão mais engajada também pode ser percebida na crítica de Ney Gastal no

jornal Correio do Povo, sobre o concerto Vivendo a Vida de Lee, realizado em agosto

de 1975 e transmitido pela rádio Continental:

...estamos nos momentos iniciais de uma explosão musical que pode

ser importante para a música popular brasileira como foi a dos baianos

na época do Tropicalismo; o que não significa necessariamente que vá

ser. […] Resta agora saber quantos por aí terão capacidade de superar

as limitações que lhes foram impostas por anos de esvaziamento

cultural. Pois o magrinho, consumidor do vazio, este ser translúcido e

gelatinoso, fruto do processo em que estivemos mergulhados, começa

a desaparecer, se assim quiser a sorte, para todo o sempre (apud

Haeser, 2007, p.197)

Esta crítica faz pensar na tese de Debord de que o espetáculo “é uma visão de

mundo que se objetivou”. Ao citar os “magrinhos”, Gastal remete a teses debordianas

como “um modelo atual da vida dominante na sociedade” ou à “afirmação onipresente

da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha” (DEBORD,

2007, pp.14-15). Pois em contraposição aos músicos locais tendo atenção da mídia, só

poderia estar do outro lado a produção mundial escolhida para ser “massificada” mundo

afora, pelo “consumidor do vazio” (conforme o crítico do jornal).

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Este discurso vai ao encontro da tese de Debord sobre “a evidente perda da

qualidade, em todos os níveis, dos objetos que a linguagem espetacular utiliza e das

atitudes que ela ordena” (2007, p.28). A “forma-mercadoria” seria a categoria do

quantitativo. A sociedade moderna estaria dominada mundialmente por um movimento

de banalização, “sob a diversão furta-cor do espetáculo”.

Nos depoimentos do filme também percebemos um discurso que se opõe a um

“modelo dominante”, ou “forma-mercadoria”, ou “esvaziamento cultural”. Por exemplo,

quando o assunto é o lançamento do disco coletivo Paralelo 30 (ISAEC, 1978), do qual

Bebeto participou, Juarez Fonseca, produtor e idealizador do projeto, afirma que o

objetivo de lançar aquele produto era “a criação de uma identidade musical no Rio

Grande do Sul”. Para Nelson Coelho de Castro, “fazer cultura naquela idade do tempo

de Porto Alegre era uma irresponsabilidade”. Ele revela que aquela geração de músicos

queria viver da música, não apenas por ter uma atitude, ou se tornar conhecido, mas por

uma “vontade de fazer cultura”.

A nossa geração não ficou na janela. A gente não suportou ficar na

janela e foi pra rua, e fez, realizou. A gente nunca suportou a ideia de

ser feliz sozinho […] a gente teve vários momentos disso, celebrando

não apenas nós no palco, celebrando com a plateia, lá de cima, com

seis mil pessoas, que estavam presenciando a si próprios, a sua

geração estava celebrando o seu futuro, como produtores de saudade

(Mais uma Canção, 2012)

Este depoimento de Castro faz crer que a geração de Bebeto Alves queria

romper com a lógica do homem moderno ser demasiado espectador, numa separação

estanque entre palco e plateia. Debord desenvolve esta ideia identificando uma

proliferação de “pseudo-acontecimentos” pré-fabricados, que “decorre do simples fato

de os homens, na realidade maciça da vida social atual, não viverem acontecimentos”.

Assim, surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida,

para preservar o equilíbrio ameaçado de um “atual tempo congelado” (1997, p.130).

Portanto, mais um rompimento com a sociedade do espetáculo e a unilateralidade de sua

comunicação, manifesto nos discursos do filme.

Considerando como realidade a carreira de 40 anos do artista Bebeto Alves, que

durante este tempo não parou de compor novas canções, gravar discos e apresentar

shows em cidades do Rio Grande do Sul e do Brasil, o fato de ele não se sentir

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representado atualmente no espetáculo das rádios o exclui da sociedade moderna? Já

que, conforme Debord, “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”.

Mas o real só pode estar no espetáculo? Na linha debordiana, o espetáculo é ao

mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. “Não é um

suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do

irrealismo da sociedade real”.

No início dos anos 80, Bebeto Alves foi para o Rio de Janeiro. Podemos dizer

que foi em busca de estar no espetáculo, no centro de produção da indústria

fonográfica? Buscava existir? Em depoimento, Carlos Alberto Sion (produtor da

CBS/Sony Music) diz que as gravadoras estavam abertas à moderna música popular

brasileira e a regionalismos. Então propôs ao compositor gaúcho uma fusão das suas

raízes culturais da fronteira com a energia pop. Foi o primeiro disco solo dele, que na

visão do executivo não teve o tempo adequado para “se desenvolver no mercado”. Sion

avalia que precisaria de um a dois anos para que o mercado recebesse, absorvesse e ele

entrasse “dentro da programação da mídia”. Mas observou que um aspecto permanente

na indústria é o imediatismo. “Eles achavam que o disco tinha que acontecer sempre nos

primeiros três, quatro meses”.

Depreende-se do filme que, na sequência discográfica, André Midani (executivo

da Warner) empolgou-se com o álbum Notícia Urgente, gravado ao vivo por Bebeto

Alves. Mas a fala do artista, relatando aquele tempo, indica que algo diferente da

empolgação viria a ocorrer. Após uma pausa, declara: “Só que nesse período estoura o

rock brasileiro”. Para o músico, então, houve uma diferença, uma mudança no

tratamento. “A gravadora começou a ficar atenta àquilo que tava vendendo”.

Midani reitera que tinha uma ideia de cena nacional de músicos do sul, após a da

Bahia, que revelou Caetano Veloso, Gilberto Gil, e toda a Tropicália. Mas ressalva:

Quando eu escuto música do sul, por mais que eu adore ela, eu me

sinto muito mais transportado para o Uruguai e Argentina do que pra

Bahia, Rio de Janeiro ou São Paulo. Então é possível que este seja um

dos motivos. Por outro lado, Porto Alegre ficou como um centro de

comunicação, tô falando de televisão e coisas assim. Então o que se

faz em Porto Alegre é para Porto Alegre (André Midani, Mais uma

Canção, 2012)

Outro executivo do eixo Rio-São Paulo, Sérgio Carvalho, relata no

documentário seu trabalho com Bebeto Alves na gravação do álbum Novo País pela

Som Livre, bem pop, new wave, de acordo com a moda dos anos 1980. O fato de a

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gravadora pertencer às organizações Globo gerou uma expectativa, mas, nas palavras do

produtor, o disco “não aconteceu”. “Se tivesse entrado uma música em uma trilha de

novela, teria feito muita diferença, naquele disco”, acredita.

Estes depoimentos de executivos de gravadoras nacionais ajudam a compor a

lógica da produção capitalista, guiada, conforme Debord, pela acumulação de

mercadorias produzidas em série para o espaço abstrato do mercado, rompendo

barreiras regionais. Ou seja, neste meio de produção, um músico só pode produzir de

forma homogênea para um mercado nacional de larga escala de consumidores. Os

regionalismos devem ser “trabalhados” para se adequar às vendas por todo o país.

Após estas explicações sobre o que seria um “fracasso” de Bebeto no Rio, nos

anos 80, o filme registra o retorno do compositor pro Rio Grande do Sul. Segundo o

roteiro, houve então um “novo boom da música local”, com shows lotados no auditório

Araújo Vianna.

As idas e vindas do artista são ora criticadas, ora justificadas em argumentos do

roteiro. Quando visita a fronteiriça Uruguaiana, Bebeto Alves declara que estar no

limite de um país, ao lado de outro país, “onde os limites da realidade se perdem, se

confundem”. Nesta condição, conclui perceber que o mundo é bem maior: “Não existe

limite nenhum pra tu poder criar, viajar, pensar o mundo”. A seguir, Felipe Azevedo,

músico e pesquisador, depõe que “sem a noção de nomadismo e o conceito de fronteira,

muito particular que ele tem, não se consegue entender o Bebeto”.

A noção de nomadismo encontrada na Sociedade do Espetáculo opõe-se a um

presente perpétuo e a uma sociedade estática, ou um tempo cíclico. Mas Debord,

ressalva que o tempo cíclico também domina a experiência dos povos nômades, porque

as mesmas condições se apresentam a eles a cada momento de sua passagem. A errância

dos nômades seria apenas formal, por estar limitada a espaços uniformes. Na tese 129,

professa que “o tempo cíclico é, em si, o tempo sem conflito” (1997, p.90), pois a

estruturação definitiva excluiu a mudança. E vamos obter mais um depoimento no filme

que contrasta com a lógica espetacular: “Uma vez o Juarez Fonseca escreveu um

negócio que me marcou: o Bebeto Alves é um cara que muda sempre pra se manter fiel

a ele mesmo”.

Sérgio Carvalho também caracteriza Bebeto como alguém que não consegue

ficar parado, comentando que o artista foi para os Estados Unidos após o disco da Som

Livre. As idas e vindas, de acordo com André Midani, poderiam ser a causa dele não ter

conseguido se estabilizar na indústria fonográfica. Já, Zuza Homem de Mello, crítico

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musical, depõe sobre uma guinada radical no trabalho de Bebeto, na qual ele não teria

“sido muito feliz”. “Ele virou o timão de uma maneira muito forte, isso pode deixar a

cabeça das pessoas sem rumo”. Então, na cena seguinte, entra um arquivo do programa

Palcos da Vida (TVE/RS, 1989), em que o músico declara:

Todo trabalho que eu faço, por mais comercial que seja, e eu

considero que meu trabalho seja um trabalho comercial e gosto disso,

ele sempre tem uma parte mais conceitual, que são as armadilhas que

eu armo sempre no meu próprio trabalho. Sempre tem alguma

encrenca. As coisas não são tão fáceis assim (Mais uma Canção,

2012)

Neste depoimento, o cancionista vai novamente na contramão do espetáculo.

Pois o “fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua

superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na

contemplação espetacular” (Debord, 1997, p.121).

Em outro depoimento de arquivo, um Bebeto Alves jovem revela que sua música

Depois da Chuva interpreta bem seu sentimento de resistência: “Sempre tem alguém

querendo dizer assim: não, você já era. O sistema tentando te eliminar, quando você tem

capacidade pra lutar. Isso é uma mentira, e a gente tem que sobreviver, a gente tem que

reagir”. Nada mais debordiano. Segundo o teórico francês, para destruir de fato a

sociedade do espetáculo, é preciso que homens ponham em ação uma força prática. “A

teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da

negação da sociedade” (1997, p.132).

E vamos retomar em detalhes a declaração mais contundente do filme acerca da

mídia, na edição em sequência dos discursos de Bebeto ao receber duas condecorações

em Porto Alegre. Ao receber o Troféu Guri, conferido pelo Grupo RBS de

Comunicação, em 2010, o compositor agradece e dedica a sua geração. Na sequência do

filme, voltando ao ano anterior, na homenagem do Prêmio Açorianos:

Eu sou um pouco avesso a homenagens. Nunca recebi uma

homenagem assim tão importante na minha vida como está sendo

essa. Eu espero que seja importante pra cada um de nós. Porque o que

isso significa é o reconhecimento do trabalho, da nossa música.

Sempre fui avesso a comemorar, por exemplo, 25 anos do primeiro

show, 35 anos de briga com o Tadeu Malta, com a rádio Atlântida, 35

anos de briga com a rádio Ipanema, com a Pop Rock, com essas rádios

que não tocam a música da gente (Bebeto Alves, Mais uma Canção,

2012)

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Ainda apoiando-se no pensamento de Debord, podemos imprimir uma visão e

um questionamento crítico não só sobre a sociedade do espetáculo, mas também sobre a

atitude queixosa do artista. Pois o francês já alertava para a possibilidade de, à aceitação

dócil do que existe, poder “juntar-se a revolta puramente espetacular” (1997, pp.39-40).

Assim, a própria insatisfação tornar-se-ia mercadoria. Não é o que defende o filme Mais

uma Canção. Pelo contrário, seu discurso faz crer que a música de Bebeto Alves, por

mais que contenha um caráter de mercadoria pelo fato de ser um produto vendável, é

antes de tudo um produto de sua criatividade.

Acredito que com esta compreensão crítica da sociedade do espetáculo, poderei

interpretar o posicionamento destes artistas no relacionamento com a mídia. A flexão da

lógica espetacular, verificada neste ensaio, pela posição nômade e resistente de Bebeto

Alves, deverá ser verificada caso a caso. Mas desde já, observa-se que há muitas

semelhanças nas trajetórias dos músicos que estou estudando, como o fato de eles

estarem em constante tensão entre a indústria fonográfica nacional e a cena cultural

independente. Também o diálogo estético que propõem com as culturas local e mundial.

Trazendo este contexto para o âmbito dos Estudos Culturais, em Media

Spectacle (2003), Douglas Kellner atualiza a questão das indústrias culturais, que nas

últimas décadas teriam multiplicado-se em espetáculos midiáticos. Segundo ele, o

“espetáculo vem se tornando um dos princípios da economia, política, sociedade e vida

cotidiana” (KELLNER, 2003, p.1). Com a intensificação do espetáculo da cultura da

mídia, o entretenimento veio a ser um dos principais eixos. Hoje, o desenvolvimento de

tecnologias multimídia e os tecno-espetáculos são decisivos para moldar a cultura da

sociedade contemporânea. O pesquisador norte-americano também revê a teoria de Guy

Debord, identificando uma noção abstrata e generalizante de espetáculo. Então propõe

pesquisar exemplos específicos de mídia espetáculo, para compreender como a

experiência e a vida cotidiana são moldadas e mediadas pelos espetáculos da cultura da

mídia e da sociedade do consumo.

Kellner observa que “desde que Debord teorizou sobre a sociedade do

espetáculo nos anos 60 e 70, a cultura do espetáculo expandiu-se para todas as áreas da

vida” (tradução do autor, 2003, p.3). Uma característica que se desenvolveu muito

desde então foi a promoção. Em um mercado global ultracompetitivo as corporações

reforçam sua imagem e sua marca, com propaganda, estratégias de marketing e relações

públicas como partes essenciais do espetáculo e de suas commodities. A questão das

celebridades também ganhou importância.

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Os filmes configuram-se como terreno fértil para o espetáculo, através da

conotação hollywoodiana de glamour, moda, publicidade e excesso. Incorporam

mecânicas do espetáculo em sua forma, estilo e efeitos. E tratando de filmes, vale

refletir que o documentário sobre Bebeto Alves não adere a este estilo padrão. Mais

uma Canção está mais ligado ao jornalismo e à arte, do que ao entretenimento.

Na música popular, Kellner (Ibid., p.8) pontua a vinculação à mídia espetáculo

de artistas superstars que investem em videoclipes, concertos extravagantes,

performance da vida pessoal, como Madonna.

Concluindo, ao invés de entender a sociedade do espetáculo como um nexo de

dominação quase totalitário, Kellner (Ibid. p.11) prefere perceber a pluralidade e a

heterogeneidade dos espetáculos contemporâneos, e compreender como um terreno de

disputa, entre dominação e resistência (dialética do presente). Assim, não podemos

excluir Bebeto Alves totalmente da sociedade do espetáculo, porque ele age neste

terreno, tentando ora incluir-se, ora resistir. Talvez possamos entender que na instância

da produção (criação), o artista gaúcho defenda sua liberdade perante as regras da

sociedade do espetáculo. Mas no campo da promoção, tente adaptar-se para conseguir

reconhecimento e retorno financeiro para o seu trabalho.

Referências

AZEVEDO, Luiz Felipe Cardoso. A (des)fronteirização cultural na obra do músico Bebeto

Alves: um estudo de caso. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em Pedagogia da

Arte). Monografia. Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, 2010.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

HAESER, Lucio. Continental: a rádio rebelde de Roberto Marinho. Florianópolis:

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UFRGS, 2003.

KELLNER, Douglas. Media spectacle. Londres: Routledge, 2003.

LUCAS, Maria Elizabeth. Identidade Sonora. In. BISSÓN, Carlos Augusto; FISCHER, Luís

Augusto; GONZAGA, Sergius. Nós, os gaúchos 2. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS,

1994. pp.139-143.

MAIS uma canção. Direção: Alexandre Derlam; René Goya Filho. [S.l.]: Estação Filmes, 2012.

1 DVD (96 min), NTSC, color.

MEDAGLIA, Júlio. Música impopular. São Paulo: Global, 2003.

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44

SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964 – 1969. In: O pai de família e outros estudos.

Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1978. pp. 61-92. SILVA, Arthur de Faria. “Nóis sêmo umas almôndega”: Os Almôndegas e a gênese da

moderna canção urbana porto-alegrense. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Letras,

UFRGS, 2012.

TACUSSEL, Patrick. Perfil de uma lenda moderna. In.: GUTFREIND, Cristiane Freitas e

SILVA, Juremir Machado. Guy Debord: Antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: Edipucrs,

2007. pp.11-30.

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Mesa 3 – CONSUMO, TRANSMÍDIA, PUBLICIDADE E ENTRETENIMENTO

Coordenação Paula Jung

Juventude, gênero e consumo midiático: distinções no cenário brasileiro

Daniela Maria Schmitz

Pós-doutoranda em comunicação/ bolsista PNPD-Capes

PPGCOM UFRGS

[email protected]

Resumo

O artigo discute algumas distinções e regularidades encontradas nas práticas de

consumo midiático juvenil, sob um recorte de gênero. Os dados fazem parte de uma

pesquisa nacional comparativa da Rede Brasil Conectado que se propõe a investigar o

consumo midiático juvenil no atual contexto de convergência tecnológica, cultural e

midiática.

Palavras-chave: juventude, consumo midiático, gênero.

Introdução

A Rede Brasil Conectado16 desenvolveu nos últimos três anos uma investigação

nacional comparativa sobre o consumo midiático juvenil no atual contexto de

convergência tecnológica, cultural e midiática. O trabalho de campo se deu em três

etapas: a primeira buscou os dados contextuais (históricos, econômicos, demográficos,

culturais, midiáticos, etc.) dos estados e suas respectivas capitais, incluindo o Distrito

Federal. A segunda fase esteve focada nos jovens das capitais e regiões metropolitanas e

combinou um estudo piloto (aplicação presencial de um questionário com 168 perguntas

para 10 jovens de cada estado), com uma pesquisa exploratória (observação de uma

semana de perfis no Facebook de outros 10 jovens de cada estado)17. Os procedimentos

visavam mapear o consumo cultural e midiático de universitários entre 18 e 24 anos, de

classes populares. Já a terceira etapa consistiu na aplicação de um questionário online,

orientado pelos dados construídos nas etapas anteriores, buscando aprofundar questões e

insights, bem como explorar importantes eixos da pesquisa. Este questionário era

16 A rede é coordenada pela Dr.ª Nilda Jacks e conta com pesquisadores nos 26 Estados brasileiros mais o

DF. 17 Nos dois procedimentos buscou-se trabalhar com cinco garotas e cinco garotos.

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composto por 31 perguntas e foi respondido integralmente por 6.471 jovens entre 18 e

24 anos de todo Brasil.

Os dados aqui tratados referem-se a este último procedimento, que permaneceu

online por sete semanas entre os meses de agosto e setembro de 2014. A intenção é

apresentar algumas singularidades mais proeminentes encontradas nos dados

construídos no questionário online, ambos sob um recorte de gênero.

A noção de juventude

Entende-se a juventude como um conceito plural (Feixa, 2004; Groppo 2000;

Margulis e Urresti, 2008), condicionado e atravessado por vários aspectos que

possibilitam diferentes formas de ser jovem. O gênero, a situação social e cultural -

historicamente constituídas – as temporalidades, as nacionalidades e as etnias interferem

e participam desta construção. Esta pluralidade de formas de experienciar e as

imprecisões acerca do que se caracteriza como jovem, assim como as ambigüidades

encontradas na regulação e legitimação do que é ser um sujeito jovem levam a ser mais

conveniente, nas palavras de Margulis e Uresti (2008), a “falar de juventudes ou de

grupos juvenis antes que a juventude”18 (2008, p. 14) (traduz-se).

Aqui parte-se do princípio de que a juventude pode ser tomada como uma

categoria social (Groppo, 2000) e, assim, ultrapassa uma delimitação marcada apenas

pela faixa etária, sendo também uma representação simbólica e uma situação social.

Porém, na argumentação do mesmo autor, não é possível desconsiderar por completo o

critério idade, uma vez que ele acompanha – expresso ou subjacente – as definições

sobre o período juvenil. E é por isso que, na construção do grupo pesquisado, acabou-se

por definir um critério de idade (18 a 24 anos), embora se entenda que a juventude é

muito mais do que um intervalo etário que antecede o que se convencionou chamar de

fase adulta.

Interessa para o presente artigo, focar-se nas diferenças inscritas nas relações de

gênero que contribuem com a diversidade inscrita na cultura juvenil. Alguns

pesquisadores e, principalmente pesquisadoras, têm criticado o fato de que as

investigações que enfocam o período juvenil têm se debruçado mais largamente sobre

meninos e, mais exclusivamente aos garotos pertencentes às classes baixas, minorias e

18 No original: “hablar de juventudes o de grupos juveniles antes que la juventud” (MARGULIS &

URRESTI, 2008, p. 14).

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marginalizados. Feixa (1998) aponta para as críticas que já eram proferidas por

membros da Escola de Birmingham sobre os estudos realizados justamente pelos

pesquisadores a ela relacionados, e cita um artigo de Garber y McRobie de 1983 que já

indicava deficiências no olhar sobre a juventude feminina. Um artigo mais recente, da

pesquisadora da área da educação, Wivian Weller (2006), continua apontando para a

invisibilidade das meninas nas culturas juvenis, desde os primeiros estudos sobre

juventude da Escola de Chicago e também da Escola de Birmingham, até investigações

mais recentes realizadas na Alemanha, Portugal e Brasil. Além de operarem com o

conceito de juventude como uma só categoria, as “análises sobre a estética corporal,

modos de se vestir, preferências por estilos musicais e visões de mundo desses jovens,

entre outros aspectos, foram em grande parte realizadas com base na observação

participante e em entrevistas com sujeitos do sexo masculino”. (WELLER, 2006,

p.112). A autora ainda acrescenta que em muitos destes estudos também está impresso o

olhar masculino do próprio pesquisador. No referido artigo, Weller questiona se a

invisibilidade feminina nas pesquisas não diria respeito a uma noção muito comum nas

pesquisas sobre juventude em que a cultura juvenil é relacionada a protestos e

resistência e estes aspectos não seriam tão expressivos nas práticas das meninas.

No contexto brasileiro, a produção discente na pós-graduação em Comunicação

na primeira década dos anos 2000 corrobora a ideia de que a juventude feminina não é

enfocada em suas singularidades. Schmitz (2014) identificou que 43 trabalhos focados

de recepção dos meios dedicam-se exclusivamente ao consumo do público jovem19. E,

neste corpus, apenas uma dissertação trabalha somente com jovens do sexo feminino e

discute questões de gênero. Ademais, mesmo que o grupo investigado seja composto

pelos dois sexos, não há análises comparativas que ajudem a indicar especificidades nas

práticas juvenis femininas.

Ainda no âmbito da pós-graduação, o trabalho coordenado por Marilia Pontes

Sposito (2009) debruça-se sobre a produção nas áreas de Educação, Ciências Sociais e

Serviço Social. No período entre 1999 e 2006, foram identificadas 1.427 teses e

dissertações sobre a temática da juventude. Deste total, 133 estudam jovens, sexualidade

e/ou relações de gênero (Carvalho, Souza e Oliveira, 2009), sendo que as autoras

declaram não haver um campo de estudos em “juventude, sexualidade e gênero”, mas

um conjunto disperso e heterogêneo de investigações que tratam da temática, sendo que

19 A obra organizada por Jacks (2014) identifica, entre 5.715 teses e dissertações defendidas na área da

Comunicação, apenas 209 pesquisas empíricas de recepção na referida década.

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19 abordam apenas jovens do sexo feminino. Do apanhado realizado por Carvalho,

Souza e Oliveira (2009) pode-se dizer que há pouca discussão teórica sobre a questão de

gênero feminino e juventude, no entanto, as autoras declaram que os dados empíricos

sobre ser moça ou rapaz revelam uma grande diversidade no Brasil urbano atual.

Consumo midiático juvenil

Neste ponto, pretende-se apresentar e discutir alguns dados sobre o consumo

midiático juvenil a fim de apontar distinções nas práticas, orientadas pelas relações de

gênero. Longe de esgotar os dados que foram produzidos em campo, este texto é apenas

um pequeno recorte em que se pode ver algumas distinções entre o universo juvenil

feminino e masculino.

O entendimento que se tem do consumo midiático toma por base a

argumentação de García Canclini (2006) e sua proposta de análise sociocultural do

consumo. O autor não caracteriza o consumo midiático como uma modalidade

específica, pois integra-o ao consumo cultural: “Os produtos denominados culturais têm

valor de uso e troca, contribuem para a reprodução da sociedade e às vezes para a

expansão de capital, porém neles os valores simbólicos prevalecem sobre os utilitários e

mercantis” (GARCIA CANCLINI, 2006, p. 88) (traduz-se).

Contudo, na mesma discussão, destaca algumas especificidades do consumo de

meios, pois os produtos midiáticos possuem uma determinada autonomia que diz

respeito à dinâmica própria de produção, estilo, circulação e consumo. Portanto, a

contextualização de Canclini (2006) sobre consumo cultural permite pensar sobre o

consumo midiático como uma vertente dele, pois o autor deixa esse entendimento muito

claro quando se refere aos meios de comunicação, nomeando-os e fazendo uma

diferenciação a respeito da maior implicação econômica na produção cultural midiática.

Toaldo e Jacks (2013) ponderam que se trata tanto do consumo acerca do que a

mídia oferece nos grandes meios (televisão, rádio, jornal, revista, internet, sites, blogs,

celulares, tablets, outdoors etc.), quanto dos produtos/conteúdos oferecidos por esses

meios (novelas, filmes, notícias, informações, entretenimentos, relacionamentos, moda,

shows, espetáculos, publicidade, entre outros). Nesse contexto, afirmam as autoras, “a

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oferta da mídia inclui também o próprio estímulo ao consumo, que se dá tanto através

da oferta de bens (por meio do comércio eletrônico e da publicidade), quanto no que se

refere a tendências, comportamentos, novidades, identidades, fantasias, desejos...”

(TOALDO; JACKS, 2013, pp. 6-7).

Em função dos limites deste artigo, não serão apresentados todos os dados

quantitativos, mas algumass tabelas que apontam distinções encontradas nas práticas

dos dois gêneros. E também algumas inferências com base nos dados produzidos em

campo.

Metodologicamente, foram feitos cruzamentos nos quais a variável independente

é o gênero do respondente e as variáveis dependentes são aquelas relacionadas a seu

consumo midiático. Para inferir a validade estatística das diferenças ou semelhanças

encontradas, valeu-se do teste do quiquadrado (BARBETTA, 2007), um teste não

paramétrico (ou seja que não necessita de dados distribuídos em curva normal) utilizado

para identificar possíveis relações causais entre variáveis qualitativas nominais ou

ordinais. O resultado é significativo quando são encontradas diferenças, com menos de

5% de probabilidade20 de serem frutos de flutuações aleatórias, entre os valores

observados e aqueles que seriam esperados caso não houvesse relação entre as

variáveis. Além disso, foi feita uma análise de residuais padronizados de forma a

identificar aqueles hábitos de consumo midiático de homens e mulheres que, de fato,

parecem ter relação com o gênero, permitindo verificar o quanto homens e mulheres se

afastam da média em relação a determinado hábito21.

Sobre o perfil da amostra, elas são maioria, 53% dos respondentes são mulheres.

No entanto, não há significativas distinções na renda familiar ou na escolaridade de

garotos e garotas, mas sim, nas questões relativas ao trabalho ou à formação.

Gráfico 1

20 Em estatística convenciona-se que resultados podem ser considerados estatisticamente significativos

quando tem uma probabilidade menor do que 5% (p>0,05) de resultarem de flutuações derivadas do

tamanho da amostra ou outras perturbações aleatórias. 21 Em um nível de confiança de 95%, são considerados significativas diferenças maiores do que 1,96 ou

menores do que -1,96 desvios-padrão da média geral.

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A primeira diferença significativa no perfil da amostra é relativa ao aspecto

laboral. Enquanto as jovens se dividem praticamente meio a meio entre aquelas que

trabalham e as que não os fazem, uma leve maioria de homens trabalha. Dentre outras

coisas, isso pode denotar maior auxílio financeiro das famílias com os homens, maiores

expectativas sociais em relação aos homens e o mercado de trabalho ou mesmo uma

maior necessidade social de autonomia financeira – afinal, o padrão hegemônico coloca

a autonomia financeira como uma das características mais prezadas da masculinidade.

Entre aqueles que cursam (ou já concluíram) os estudos de nível superior, há

uma predominância na área de ciências sociais aplicadas, como administração e

comunicação22. Entre as áreas, há diferenças dignas de nota entre os gêneros: há um

predomínio masculino nas engenharias e ciências exatas e da terra, enquanto mulheres

predominam largamente nas ciências da saúde. Mais uma vez, aqui aparece a clássica

diferença entre os gêneros e as carreiras de nível superior: homens lidam com “coisas”,

enquanto mulheres lidam com outras pessoas.

Especificamente sobre as práticas de consumo concomitante de meios, tem-se o

seguinte panorama. Em atividades que requerem atenção dividida, os dados indicam que

as garotas consomem mais meios ao mesmo tempo do que os homens. Duas questões

exploraram este tipo de prática: uma em relação ao uso do computador associado a

outro meio, e outra o consumo de televisão conjuntamente com outro meio de

comunicação.

Em relação às práticas de uso do computador associado a outro meio, essa

diferença fica mais proeminente23 no caso dos livros (32,2% das mulheres associam o

22 Por tratar-se de uma rede de pesquisadores da área da comunicação, é importante demarcar que o link

para o questionário circulou amplamente entre redes de relacionamento que incluem alunos dos cursos

desta área. 23 Aqui são listados os meios que obtiverem mais de 1,96 de diferença no quiquadrado.

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uso do computador à leitura de livros, contra 24,8% dos homens) e da televisão (57,8%

das mulheres, versus 50,5% dos homens). Embora, com diferenças percentuais bem

menores em relação aos gêneros, o celular e a televisão online também são mais usados

pelas mulheres junto ao computador. Já em relação ao rádio, tablet, jornal e revista

impressa, os homens têm mais respostas positivas em relação a esse compartilhamento,

contudo, quase o dobro de garotos indica utilizar unicamente o computador (8,3%) em

relação às respostas femininas (4,3%).

No caso do consumo televisivo associado a outro meio, além de as garotas serem

maiores consumidoras (92,9%) de TV do que os jovens (88,1%), elas apresentam

significativa predominância na associação de TV aos livros (19,2% das mulheres o

fazem contra 11,5% dos homens), celular (67,4% das mulheres versus 59,2% dos

homens) e computador em atividades online (57,2% contra 51,1% dos garotos).

Todavia, mesmo que com percentuais bem menores nas distinções, as mulheres também

associam mais a prática de assistência ao uso do computador em atividades off-line, no

uso do tablet (tanto atividades online quanto off-line) e revista impressa. Já os garotos

só estão um pouco à frente no que tange ao consumo de rádio e jornal impresso, mas

quando a televisão é consumida isoladamente a diferença é maior entre os dois grupos:

7,4% dos garotos dizem só assistir a televisão, enquanto no lado feminino o índice

atinge 5,3%.

Gráfico 2

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52

No gráfico 2, embora os números indiquem que os homens preferem mais

acessar a internet em casa ou na faculdade, essa diferença fica significativa (com base

nos testes do quiquadrado) no trabalho, onde 14% das mulheres indicam acessar, em

comparação aos 11,6% de garotos. Importante destacar que embora o número de

homens que tenha indicado que trabalha seja maior do que o de mulheres, elas preferem

esse ambiente para o acesso mais do que os jovens.

Gráfico 324

No gráfico 3 é possível perceber uma predileção masculina no uso do

computador de mesa e notebook, elas indicam mais o uso de dispositivos móveis, como

celular com acesso à internet, tablet e smartphone. Contudo, a diferença na posse de

smartphones é significativa, com os garotos à frente, como mostra a tabela 1.

Tabela 1: Posse de dispositivos

Masculin

o

Feminin

o

p

Celular com acesso à

internet

27,7% 37,1% 0

24 O ambiente no caso refere-se à pergunta anterior: qual o principal ambiente de acesso à internet.

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Residuais

padronizados25

-5,0 3,9

Smartphone 66,7% 60,5% 0

Residuais

padronizados

2,4 -1,9

Tablet 16,1% 19% 0

Residuais

padronizados

-2,1 1,6

Notebook/netbook 69,4% 74,9% 0

Residuais

padronizados

-2,0 1,5

Desktop 33,1% 27,2% 0

Residuais

padronizados

3,4 -2,6

Pela tabela é possível perceber uma preferência (ou condição de posse, embora a

renda familiar não seja tão distinta entre garotos e garotas) feminina pelo celular com

acesso à internet, tablet, notebook/netbook, enquanto os garotos estão na frente na posse

de smartphone e desktop. Os três dispositivos de maior uso das jovens oferecem

mobilidade, enquanto os meninos indicam um móvel e outro não.

Algumas poucas considerações

O extenso banco de dados construído na pesquisa empreendida pelas 27 equipes

da Rede Brasil Conectado possibilita uma variada gama de cruzamentos e aqui tentou-

se, ainda que preliminarmente e de forma bem pontual, indicar algumas distinções entre

práticas de consumo midiático juvenil femininas e masculinas.

Em primeiro lugar, demarca-se que no geral dos dados que já foram analisados

não há grandes distinções entre as preferências femininas e masculinas, mas sim

nuances que delimitam algumas tendências de gostos, práticas e rituais. Aqui

apresentou-se dados que demonstram que: a) as garotas experienciam mais a

convergência midiática do que os garotos, já que elas consomem/usam ao mesmo tempo

25 Os residuais padronizados indicam quando a variável possui relevância pois a diferença esta acima de

1,96 ou menor do que -1,96 desvios-padrão da média geral.

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mais de um meio de comunicação, enquanto os garotos indicam focar sua atenção em

apenas um meio muito mais do que as jovens; b) as jovens dão preferência ao uso de

dispositivos móveis, ainda que eles possuam mais smartphone que elas; c) eles estão

mais inseridos no mundo do trabalho, mas elas acessam mais do que eles a internet no

ambiente laboral.

Mas, para além do que foi apontado nos dados aqui apresentados, as análises já

empreendidas indicam que as jovens utilizam mais dispositivos e meios que as colocam

em conexão com outras pessoas, além de serem mais afeitas ao uso do celular para

ligações, envio de SMS e uso de whatsapp do que os garotos. Já eles são maiores

usuários de Facebook e Youtube, com bastante ênfase à assistência de tutoriais neste

útimo. No geral, o consumo de televisão é baixo entre os respondentes, sendo que os

garotos ainda assistem menos TV do que as mulheres. Enfim, ainda há muito a ser

explorado nos dados produzidos em campo até que o panorama das distinções esteja

completo.

REFERÊNCIAS

BARBETTA, Pedro Alberto. Estatística aplicada às Ciências Sociais. Florianópolis: Editoria

da UFSC, 2007.

FEIXA, Carles. A construção histórica da juventude. In: CACCIA-BAVA, Augusto; FEIXA,

Carles; GONZALES CANGAS, Yanero. Jovens na América Latina. São Paulo: Escrituras,

2004.

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1999.

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Guilhermo. El consumo cultural en América Latina. Construcción teórica y líneas de

investigación. 2ª Ed. ampliada y revisada. Bogotá: Convenio Andrés Belo, 2006. p. 72-95.

GROPPO, Luís Antonio. Juventude: ensaios sobre sociologia e história das juventudes

modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

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MARGULIS, Mario (Org.). La juventud es más que una palabra. Buenos Aires: Biblos, 2008.

SCHMITZ, Daniela. Será que o jovem só vê TV? A juventude nas pesquisas de recepção. In:

Nilda Jacks. (Org.). Meios e audiências II: a consolidação dos estudos de recepção no Brasil.

1ed. Porto Alegre: Sulina, 2014, v. 1, p. 187-216.

TOALDO, Mariângela; JACKS, Nilda. Consumo midiático: uma especificidade do consumo

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Compós. Salvador/BA, 2013.

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Produção de sentido de gênero na transmidiação de Katniss Everdeen

Julherme José Pires26 Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Resumo A partir da queda no número de protagonistas mulheres nas maiores bilheterias do cinema comercial dos Estados Unidos, este trabalho investiga, pelo viés da recepção transmidiática, a contribuição de um dos exemplos mais populares das mídias na atualidade, Katniss Everdeen de Jogos Vorazes, na produção de sentidos de gênero. Propõe-se aqui, uma análise das respostas de sujeitos comunicantes, num questionário distribuído no Facebook, que mantêm ou mantiveram contato com JV. A partir daí, é possível entender como se dá a produção de sentido na curva transmidiática, como eles se alteram e como a transmidiação em si se oferece para reflexão no campo da comunicação. Palavras-chave: sentido; sujeito comunicante; transmidiação; gênero.

Introdução

Em 1973, estreava na rede de cinemas comerciais do mundo todo, a história

de uma menina que estava possuída pelo diabo. O Exorcista foi a maior bilheteria

nos cinemas dos Estados Unidos naquele ano. Nos 39 anos seguintes, os filmes que

estiveram no topo desse ranking, foram todos protagonizados por homens. Em

2013, a história de uma menina que se rebelava contra um sistema opressor em

seu país, se tornaria a maior bilheteria em território estadunidense. Jogos Vorazes:

Em Chamas quebrou com uma sequência histórica de supremacia masculina e

trouxe à tona algumas problemáticas da relação comunicação e gênero.

A participação das mulheres como protagonistas em filmes é muito baixa.

“Protagonistas mulheres figuram em 12% entre os 100 filmes de maior bilheteria

em 2014” (LAUZEN, 2015, tradução nossa) – na rede de cinemas comerciais dos

Estados Unidos. Esse percentual representa uma queda de 3% em relação a 2013 e

4% se comparado com 2002. Ou seja, além de o quadro ser baixo, nos últimos anos

houve um retrocesso. Os dados apresentados pela pesquisa de Lauzen (2015)

ainda apresentam outros agravantes. No total de participação de mulheres como

protagonistas, as de raça ou cor Branca representam 74% do total. Há registros de

26 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. E-mail:

[email protected].

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outras raças ou cores: Negra (11%), Latina (4%), Asiática (4%), de outras

nacionalidades (3%) e outras (4%).

Se por um lado JV quebrou com um dos aspectos hegemônicos do cinema,

apresenta um contexto complexo. Enquanto Suzanne Collins dá vida a Katniss nos

livros num corpo “cor de oliva”, cabelo “liso escuro” e “olhos cinzentos”, a produção

do filme demandou uma atriz branca, “naturalmente bonita, sob um aspecto

atlético masculino”27. Jennifer Lawrence, a atriz escolhida, está dentro dos padrões

estéticos femininos universais da comunicação, bem diferente da descrição da

escritora.

Nesse sentido, podemos observar que alguma coisa está acontecendo entre

a produção e o consumo midiáticos. A questão que levantamos para análise não é

se JV é um exemplo positivo ou negativo de protagonismo feminino, mas como esse

protagonismo se apresenta, quais são seus sentidos, e mais propriamente como um

problema do campo científico da comunicação, como se dá a produção de sentido de

gênero na transmidiação? Esta pergunta está no centro do entendimento dessa

forma cada vez mais presente na vida humana, que não está presa a aspectos

técnicos ou a uma passividade alienante, mas que está cada vez mais presente,

dinâmica e com poder de moldar identidades.

1. A recepção transmidiática e o sujeito comunicante

Star Wars28 foi um marco importante para um novo modelo comercial de

comunicação de massa. A franquia não ficou limitada a exibição dos filmes, mas

difundiu narrativas de seu universo em diversos outros produtos, como revista em

quadrinhos, jogos e brinquedos. Mesmo antes da popularização da Internet, esta

foi a primeira franquia cinematográfica a estender seus braços para outras

operações de mídia, propondo novos capítulos e histórias inteiras longe da telona.

A transmidiação é entendida aqui em acordo com o conceito proposto por

Fechine et al. (2013, p.26), “[...] um modelo de produção orientado pela

distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos

27 JURGENSEN, John. The Newcomers. The Wall Street Journal; 25 fev. 2011. Disponível em:

<http://www.wsj.com/articles/SB10001424052748703529004576160782323146532>. Acesso em 09 ago.

2015. 28 Aqui tratamos da “série antiga”, dirigida por George Lucas: Star Wars (1977); O Império Contra-Ataca

(1980); e O Retorno de Jedi (1983).

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associados entre si e cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas

interacionais propiciadas pela cultura participativa”. Para os autores supracitados,

a transmidiação é estimulada pelo ambiente da convergência (JENKINS, 2009).

“Bem-vindo à cultura da convergência, onde as velhas e as novas mídias colidem,

onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor

de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis” (Ibidem,

p. 29).

Nosso foco de pesquisa é na recepção transmidiática de JV. Nesse ambiente

transmidiático a recepção perde sua característica implícita na nomenclatura de

recebimento do conteúdo e fim de história. Na transmídia, a circulação e a quebra

de barreiras técnicas intensificam esse processo de comunicação entre as mídias e

os sujeitos comunicantes. Para Lopes (2011, p. 411), “[...] talvez nunca tenhamos

acompanhado tamanho fluxo de conteúdos que perpassem as diversas mídias e,

reinventando-se a partir de cada uma delas, [...] tal como observamos no momento

atual”. Isso significa uma ampliação na “fluidez e a possibilidade de caminhos de

múltiplas direções” (Ibidem).

JV aparece em 2015, na era da Internet, como uma das franquias mais

transmidiáticas da história. Sua linha de artefatos narrativos e produtos de

consumo provavelmente ultrapassa qualquer aspiração inicial de George Lucas,

mentor de Star Wars. Um breve mapeamento nos deu a ver produtos das mais

diversas linhas: 1) narrativos – livros, filmes, jogos; 2) vestíveis – maquiagem,

pulseiras, pingentes e broches; 3) colecionáveis – bonecos, bonecas e moedas. Mas

há ainda milhares de outros tipos de produtos ofertados em lojas online,

atravessando todas as linhas do consumo. Cada um desses produtos possui seus

impactos nos sujeitos comunicantes29. Dos produtos narrativos, por acrescentar na

história; dos vestíveis, por fazer com que os sujeitos se sintam parte da história; e

dos colecionáveis por aumentar a estima e os sentimentos de afeto ou orgulho que

alimentados pela franquia.

A produção de fãs também faz parte do jogo transmidiático. Aqui

mobilizamos o conceito de Cultura da Participação, de Shirky (2011). Na lógica das

mídias tradicionais, não havia possibilidades técnicas de uma comunicação de

29 Na perspectiva de Maldonado (2014, p. 26), as pessoas não são meras receptoras em seu sentido

passivo do conceito, são “sujeitos comunicantes, cidadãos que têm questões importantes para falar,

ensinar, aprender, questionar e produzir”.

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muitos para muitos, e sim de um para muitos. Para o autor, “a lógica da mídia

digital, [...] permite que pessoas antes conhecidas como espectadora agreguem

valor umas às outras” (SHIRKY, 2011, p. 41). Essa qualidade proporcionada pela

lógica digital abre novas fronteiras na produção de sentido, ampliando o fluxo

comunicacional.

A transmídia, portanto, é própria do ambiente da convergência das mídias e

da cultura da participação. Ambas, possibilidades tecnológicas e as condições

sociais, resultam no sucesso da transmídia como lógica natural da expressão

(comunicação e sociabilidade) humana.

2. Jogos Vorazes na transmídia

Este capítulo trata-se de uma análise da pesquisa exploratória desenvolvida

em julho de 2015, com o objetivo de coletar pistas, vestígios e informações

relevantes para encontrar possíveis caminhos de pesquisa. O corpus aqui se

constitui de 95 respostas a um questionário30 distribuído em dois espaços online

principais: o perfil do pesquisador no Facebook e o grupo Jogos Vorazes 74ª Edição

- Curtidores'31, também no Facebook. É importante salientar que a participação

desses sujeitos corresponde a uma das realidades de pesquisa possíveis e que as

informações trazidas a seguir servem como pistas e vestígios sobre a comunicação

transmidiática.

Entre os respondentes, 62% têm entre 11 e 17 anos, 37,8% têm entre 18 e

27 anos e 2,2% têm mais de 30 anos. Do gênero: feminino 74,7% e masculino

25,3%. Da cor ou raça: branca 63,8%, parda 24,5%, preta 8,5% e indígena 3,2%. Da

escolaridade: educação básica 60%, graduação 21,1%, pós-graduação 10,5% e

outros 8,4%.

A primeira constatação que fazemos é sobre a recepção transmidiática.

Como mostra a Figura 1, os sujeitos mantêm contato com a oferta transmidiática da

série. Apenas duas pessoas que responderam o questionário não assistiram ao

filme Jogos Vorazes (2012). 93% assistiram ao segundo filme e 90% assistiu ao

terceiro. Observamos que a média de leitura dos livros ficou em 73% do público

30 http://bit.ly/PesquisaJogosVorazes 31 Disponível em: <https://www.facebook.com/groups/520336598082472/>. Acesso em 14 nov. 2015.

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respondente, variando de 4 pontos percentuais entre o mais lido (o último livro) e

o menos lido (o segundo). Aqui é importante pontuar, que algumas pessoas

preferiram ler apenas o último livro, acreditamos que isso se deve ao contato com

as duas primeiras narrativas por meio do cinema.

Figura 1 – Recepção transmidiática de JV.

Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google Drive.

Neste primeiro gráfico notamos a importância do Facebook como

plataforma de vinculação dos sujeitos com a série. O grupo em que lançamos o

questionário tem cerca de 10.500 membros e a página oficial dos filmes32 tem

22.490.018 curtidores. Em seguida, a comunicação através de notícias mostra como

elas são importantes na formação transmídia da série. Elas não são caracterizadas

por conteúdo oficial (apesar de os relises pautarem muitas das notícias) e nem por

conteúdo de fãs, sendo problematizações jornalísticas e críticas da série. Youtube,

Fanfic e Twitter vêm logo em seguida.

O Youtube, acredito, por ser o meio em que as pessoas encontram trailers,

cenas, bastidores, entrevistas, vlogs (com críticas e tutoriais) e fanvids, dando a ver

o conteúdo audiovisual, focado especialmente nos filmes. Fanfictions, histórias

ficcionais criadas a partir da narrativa de JV, é a parte literária, própria da

produção de fãs. No site fanfic.net, JV aparece como a quinta franquia literária com

maior número de fanfics, com 43.500 publicações. E a relevância do Twitter, assim

32 https://www.facebook.com/JogosVorazesOFilme/

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como do Facebook e do Whatsapp, propõem uma conexão entre os próprios

sujeitos, gerando conversas sobre a série, em espaços autônomos e privados.

Uma minoria acessa jogos (em geral) e Role-Playing Games (RPGs). Esse

tipo de interação com a série, talvez, esteja entre as mais íntimas, junto com seguir

tutoriais de, por exemplo, como fazer a trança de Katniss e o uso de roupas e

acessórios da personagem. Apesar de serem coisas de naturezas diferentes, elas

têm algo em comum: a série como ação. Transcende o nível primário (assistir e ler)

e o secundário (produzir novas narrativas), chegando ao terceiro (a ação e

expressão técnica nos perímetros e na transformação da ficção).

A transmídia de JV, portanto, se mostra de altíssima relevância numa

pesquisa sobre sua recepção, e pode influir, sob diversos níveis, na produção de

sentido sobre suas narrativas.

3. Curva transmidiática em Jogos Vorazes

Na trama de JV, Katniss Everdeen é uma jovem de 16 anos que mora com a

mãe e a irmã mais nova. O pai morreu num acidente na mina de carvão, principal

campo de trabalho no Distrito 12, onde moram. Esse é o lugar mais afastado da

Capital, onde fica a sede do governo de Panem, o país ficcional. A história se passa

num futuro distópico em que o país fora arrasado por uma tentativa de revolução

popular contra as estruturas governamentais. Um regime totalitário se constituiu

após este evento, formando um rígido controle das atividades de toda a população,

que vive na miséria. Enquanto isso, os moradores da Capital desfrutam da riqueza

e do luxo, sustentados pelos distritos. Katniss se desafia a participar do rito anual

chamado “Jogos Vorazes” e a partir daí começa a chamar à atenção de toda a nação.

Passando pelo processo de negação, Katniss aceita o desafio de liderar

simbolicamente um levante contra tudo o que ali está posto.

Em análises anteriores, constatamos uma produção de sentidos

amplamente favorável a personagem. Há discussões intensas sobre as relações de

gênero que Katniss apresenta – inclui-se aí o feminismo. O esforço a partir daqui é

entender como as produções de sentido dos sujeitos comunicantes alteram-se

quando se tem diferentes consumos de mídia na transmidiação. A curva

transmidiática na recepção, em outros termos, representa aqui a medição dos

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contatos com as narrativas ao longo das diferentes mídias e dos sentidos

produzidos através dele.

É claro que as produções de sentido derivam de uma série de outras

dimensões (MALDONADO, 2014), especialmente da história de vida e da

subjetividade de cada sujeito. O objetivo aqui, portanto, é de examinar como as

narrativas e outros valores simbólicos relacionados à transmidiação representam

mudanças na produção de sentido dos sujeitos.

3.1 Favoritismo

Katniss Everdeen é a personagem favorita do maior número de sujeitos

(42,1%), seguida de Peeta (23,2%). Nota-se que Katniss é a favorita de menos da

metade dos sujeitos, e que o favoritismo se distribui por diversos outros

personagens. Mas para os respondentes que não leram os livros, Katniss é a

favorita de 86,7%. Entre os respondentes que leram todos os livros, Katniss é a

favorita de 36,4%. E entre os sujeitos mais conectados com a série, que declararam

manter contato por meio de 4 ou mais canais, Katniss é a favorita de 34,6%.

Constata-se aqui duas coisas. 1) os sujeitos mais envolvidos transmidaticamente

com a trama, em sua maioria, leram todos os livros; 2) a hipótese de que a Katniss

dos livros tem dimensões negativas não presentes no cinema ou porque

simplesmente outros personagens cativam o gosto dos leitores. Ou seja, percebe-se

uma alteração nos sentidos de favoritismo de forma drástica durante a curva

transmidiática.

3.2 Identificação

Figura 2: identificação dos sujeitos com Katniss, 1 “Nem um pouco” e 5

Muito”.

Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google

Drive.

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Aqui verificamos um equilíbrio pendendo para um resultado positivo sobre

a identificação dos sujeitos com Katniss. Mas na curva transmidiática, há uma

pequena alteração nos dados relativos ao envolvimento dos sujeitos com a série.

Aqueles que mantêm contato com 4 ou mais canais, declararam identificar-se mais

com a personagem do que aqueles que mantêm menos contato. Atribui-se a isso, a

condição narrativa mais aprofundada, que dá a ver a complexidade da personagem

e a possibilidade de identificar essa qualidade em si. No entanto, se considerarmos

os leitores de todos os livros, o índice na escala permanece similar ao geral. Isso

pode nos dizer que a identificação não passa ou se deve pouco em relação a

transmídia, mas tem a ver com outras dimensões da recepção.

4. Katniss enquanto mulher

Até aqui, constatamos que a transmídia é uma dimensão importante, mas

não decisiva, nas pesquisas de recepção. Esse processo comunicacional, no

ambiente da convergência e da cultura da participação, gera novos sentidos e torna

a performance de identidade (ECOSTEGUY, 2001) ainda mais complexa. O objetivo

agora é entender o processo de produção de sentido de gênero de Katniss, mais

precisamente, através da pergunta no questionário: “Você acredita que há

mulheres como Katniss no mundo real?”.

Figura 3: produção de sentido de gênero sobre Katniss Everdeen.

Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google

Drive.

Figura 4: nuvem de palavras e a frequência com que elas aparecem nas respostas.

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Fonte: tagcrowd.com

A maioria acredita que há sim mulheres como Katniss na vida real. Na figura

4, podemos ver que os sujeitos vinculam a personagem e as mulheres do mundo

real a conceitos como coragem e luta, que amam e prezam por suas famílias. Mas o

gênero não foi necessariamente considerado ou problematizado nas respostas,

principalmente quando o termo “pessoas” veio à tona. Não há relações intuitivas

de gênero nas respostas, o que nos diz sobre as percepções espontâneas dos

entrevistados.

Nos casos em que a resposta foi “não”, a questão de gênero apareceu apenas

uma vez, em que a resposta não é compreensível, mas diz algo sobre mulheres não

se importarem com a justiça. Em alguns casos, a respostas ganhas uma

complementaridade na segunda pergunta depois dela, “o que você pensa sobre

Katniss?”. Em um dos casos “não”, o respondente diz que ela é única e na outra

considera Katniss como “uma mulher corajosa que arriscou sua vida por salvar sua

irmã caçula e mudou o mundo”.

Entre os sujeitos que leram todos os livros, o percentual de “sim” foi um

pouco maior, de 93,9%, enquanto os mais conectados com a série, 4 ou mais

canais, ficaram no mesmo percentual de entendimento sobre as mulheres.

“Corajosa” foi a característica mais citada nas respostas para as duas perguntas

supracitadas. Uma resposta que representa a maioria delas é esta:

Katniss é uma garota que teve que passar por muitas coisas ela era aparentemente ninguém. Mas se mostrou forte, inteligente, corajosa. Fez o que ninguém teve coragem de fazer, enfrentou a Capital, é claro ela não é perfeita, teve seus momentos egoístas. E sim a mulheres como a Katniss, corajosas, fortes e inteligentes que dariam tudo para salvar a quem ama (DHS, 15 anos, gênero feminino).

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As questões de gênero não apareceram na maioria das respostas, e agora

precisamos pensar por quê. Outras dimensões da subjetividade dos sujeitos estão

muito mais ligadas as suas opiniões objetivas do que os meios em si. É possível que

se compararmos Katniss com outras personagens, as respostas de gênero sejam

mais proeminentes. As questões de gênero também podem estar mais

consolidadas e naturalizadas entre esse público de JV. Outro apontamento que fica

é que os próximos questionários e entrevistas precisam estar mais claros em

relação ao ponto que se quer chegar, ao abrir um canal transparente e focado com

os sujeitos respondentes. Entender se Katniss participou de um processo de

mudança, nesse sentido, continua sendo o desafio de pesquisa.

Considerações finais

A diferença de sentidos conforme a curva transmidiática aponta para

construções narrativas diferentes nas diferentes mídias e apropriações dos

sujeitos também se manifestam de maneiras distintas. A inserção dos sujeitos em

outros espaços e o acréscimo de narrativas, refletiu na diferença de alguns

aspectos importantes. Mas, a transmidiação ainda está longe de ser uma das

maiores dimensões mediadoras na produção de sentido. Os sujeitos comunicantes,

no exemplo da produção de sentido de gênero, não sofreram grandes mudanças de

sentido, partindo das referências de primeiro grau (livro e filme) a outras

dimensões de intimidade, interação e contato.

É importante notar que a maior curva da recepção transmidiática se dá

entre os leitores e espectadores e os espectadores. Nossa hipótese é de que isso tem

a ver mais com as diferenças narrativas, estéticas e técnicas das duas mídias. No

entanto, um dos aspectos sentidos nesta pesquisa, em movimentos de investigação

anteriores, é a importância do fator Jennifer Lawrence. A identificação e a

aprovação da atriz (Figura 5) chegam a ser superior do que a própria personagem

em si.

Figura 5: Identificação e aprovação de JL como Katniss, 1 “nem um pouco” e 5

“muito”.

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Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google

Drive.

Neste artigo, articulamos conceitos para entender a transmidiação ofertada

na convergência e construída por sujeitos no contexto da cultura da participação, e

experimentamos observar a curva transmidiática, enquanto desestabilizadora de

sentidos. Observamos, que no final das contas, mesmo na observação da

transmidiação, há a exigência de abordagens multifocais e olhares contínuos para

novas angulações, dimensões e mediações (MARTÍN-BARBERO, 2008) do objeto. A

transmidiação mostra-se como uma dimensão rica de pesquisa, que atravessada

por outras, pode ser muito produtiva para a pesquisa em comunicação.

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O CIBERESPAÇO E A ORIGEM DE NOVOS FENÔMENOS CULTURAIS: DA

HALLYU 2.0 À CULTURA NOBROW

Janaína Quintas Antunes

Doutoranda em Comunicação e Semiótica

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

[email protected]

Quiona Norberto Santos

Mestranda em Comunicação e Semiótica

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

[email protected]

Resumo:

A comunicação tomou novos rumos na sociedade hipermidiática contemporânea e, em

especial com a introdução do ciberespaço, deu origem a novos fenômenos culturais. O

fluxo de influências culturais, antes determinado territorial e temporalmente, passa a

ganhar uma multidimensionalidade ao tornar possível a internacionalização de todas

culturas. A ilustração de dado momento histórico se dará com exemplos de fenômenos

culturais enraizados nos novos meios comunicacionais, da Hallyu 2.0 à cultura Nobrow.

Palavras-chave: Fluxo Cultural; Consumo Cultural; Cultura Participativa; Ciberespaço;

Cibercultura; Sociedade Hipermidiática; Hallyu 2.0; Nobrow.

Resumo expandido:

A comunicação tomou novos rumos na sociedade hipermidiática contemporânea e, em

especial com a introdução do ciberespaço, se tornou o berço de novos fenômenos

culturais característicos da cibercultura, impossíveis de terem sido desenvolvidos se não

no advento desta. O fluxo de influências culturais, antes determinado territorial e

temporalmente pelos meios de comunicação tradicionais, os supera na glocalidade do

ciberespaço, e passa a ganhar uma multidimensionalidade ao tornar possível que

pessoas do mundo todo fossem influenciadas por culturas de todo o globo e de todas as

épocas simultaneamente e fora de uma ordem lógica definida. A ilustração de dado

momento da história da comunicação se dará com exemplos de fenômenos culturais

profundamente enraizados nos novos meios comunicacionais, em específico, no

ciberespaço. Estes exemplos incluem a Hallyu 2.0, isto é, a “segunda onda” de

popularização internacional da cultura sul-coreana via internet a partir de 2007. Por

meio das interações em rede entre jovens mundiais é possível entender a disseminação

global de produtos culturais locais e o desenvolvimento de estéticas híbridas, reflexos

da própria “cultura de participação” característica das redes digitais. Dessas estéticas

híbridas se chega ao exemplo final da cultura Nobrow, a evolução do hibridismo para

além deste, já que a influência cultural atemporal e a geográfica do ciberespaço produz

objetos culturais únicos, “além-híbridos”, inclassificáveis.

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Introdução

A contemporaneidade e seus novos padrões comunicacionais hipermidiáticos

nos convidam a pensar sobre as transformações na cultura humana que são

consequência direta desses. As grandes inovações tecnológicas, com especial ênfase

neste presente artigo para o ciberespaço, nos trouxeram novos hábitos e novos processos

comunicativos que reinventam a cultura hoje, assim como seu fluxo e produção.

Dessa maneira, vivemos um momento extremamente propício para a reflexão

sobre as implicações do ambiente sobre o ser humano, e vice-versa. O ambiente físico

em que um indivíduo se encontra sempre foi a sua grande fonte de influência cultural, e

o fluxo cultural se dava temporalmente no espaço físico. Contudo, no ciberespaço

tempo e espaço se perdem e uma nova cultura mundializada de circulação instantânea

emerge; fazendo o território físico gradativamente dar lugar ao virtual. Com a

disseminação universal da cibercultura, cada indivíduo sofre influência cultural de

conteúdos do ciberespaço, e mesmo as pessoas que não têm acesso a ele sofrem essa

influência de forma indireta. O ciberespaço nos trouxe a possibilidade de sermos

influenciados por diversas culturas de diferentes lugares e tempos; sendo o ambiente no

qual ocorre a internacionalização de culturas, ele possibilita sintetizar o produto criativo

da confluência de características culturais de todo planeta.

Essa influência global atemporal e ageográfica traz como consequência novos

produtos, ou novos bens culturais, novos fluxos e modos de circulação da cultura. Trata-

se de um fenômeno de articulação cultural simultaneamente local e global, assim

profundamente mergulhado no conceito tipicamente cibercultural de Glocalidade:

O glocal [...] é, antes de tudo, a invenção tecnocultural precípua e não

raro olvidada [...] de um estirão social-histórico distinguido desde o final

do século XIX por avanços sociotécnicos sem par no âmbito das

telecomunicações e que acabou por condicionar a expansão [...] do modo

de produção capitalista industrial para o universo sociomediático das

ondas eletromagnéticas, em coincidência histórica provável com sinais

evidentes de esgotamento material e presencial dessa formação social.

[...] Numa palavra, uma invenção transepocal, cuja materialidade

multitecnológica, na forma dos variados dispositivos de interconexão em

tempo real [...] está incrustada em todos os domínios sociais.

(TRIVINHO, 2012, p. 23-24).

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Glocalidade

Glocal é o sítio no qual estamos quando não nos encontramos nem no local nem

no global. Quando, por exemplo, visitamos um museu virtual, não estamos literalmente

na cidade, na localização desse museu; porém também não nos encontramos na cidade

onde nosso corpo físico se encontra, pois não estamos vivenciando o ambiente desta

localidade, mas sim o ambiente glocal da localização do museu que nos recebe pelo

virtual, aquele que se apresenta por meios virtuais que foi teletransportado pela

tecnologia.

A Glocalidade é um fenômeno mundial que atinge todas as pessoas do mundo

através do ciberespaço e atinge até mesmo as pessoas sem acesso à internet, que são

influenciados de forma indireta, pois elas sofrem essa influência ao entrar em contato,

por mais esporádico que este seja, com um individuo que tem influência direta do

ciberespaço. A cibercultura sofre uma disseminação universal proporcionada por todos

os indivíduos que têm contato com o ciberespaço.

Na Glocalidade estamos isolados, tanto no Glocal Lato Sensu quanto no Glocal

Stricto Sensu, pois no primeiro estamos isolados por falta de acesso à internet, no

segundo estamos isolados do mundo territorial ao nosso redor protegidos por um

Bunker Glocal, isto é, nossos infinitos gadgets que nos separam do ambiente físico em

que nosso corpo se encontra. Estamos isolados territorialmente, mas unidos ao mundo

todo pelo Ciberespaço. Um indivíduo pode se isolar da tecnologia, mas jamais pode

fugir do processo irreversível da Glocalidade.

O processo de Glocalização significa ainda, desenvolvimento cultural, na

medida em que permite uma miscigenação no campo cultural, uma hibridação de

conteúdos na rede sem fronteiras.

Fluxo Cultural na Cibercultura

As influências culturais que dão origem às novas formas de cultura e que se

mostram apoiadas nos subsídios que o ambiente dispõe superaram o limite da

materialidade com o ciberespaço e passaram a se expressar por meio de extensões da

realidade; o modelo de pensamento cultural sofreu inovações transcendendo o espaço

geográfico e o tempo cronológico, dando origem e desenvolvendo toda uma nova

cultura e um novo modo de circulação, repercussão e fluxo desta.

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Anteriormente éramos influenciados culturalmente pelo o que estava próximo de

nós, nossas fontes de cultura eram aquelas que estavam visíveis e acessíveis

territorialmente e temporalmente. Não tínhamos grandes possibilidades de influências

de culturas longínquas no espaço e no tempo, ao mesmo tempo havia pouco contato

com registros históricos da nossa história humana. A nova condição de Glocalidade

impõe uma restrição, a de que não é mais possível separar conteúdos que são circulantes

internacionalmente, ou nacionalmente ou localmente, ou ainda, em termos do lugar que

você ocupa e do lugar em que está seu corpo.

A evolução e o claro delineamento linear temporal da cultura deixam de existir

no advento da cibercultura, pois a Glocalidade torna possível que um indivíduo seja

influenciado por culturas e movimentos culturais que na nova ordem de conectividade

encontram-se “fora” de uma determinada ordem temporal ou geográfica.

Um artista (ou qualquer pessoa, em seu papel de produtor de cultura)

pode ser, por exemplo, conjuntamente influenciado por um artista

neolítico asiático e por um expressionista africano.

O ciberespaço nos trouxe um enorme número de possibilidades de

influências vindas de diversas culturas, de diferentes épocas e

localizações. Somos imersos em um mar de influências infinitas, muitas

vezes não sendo pessoalmente capazes de reconhecer quais são elas ou

suas origens, consequentemente enfrentando uma grande dificuldade em

nomear ou nos integrarmos a um movimento cultural singular, já que

hoje somos completamente atemporais e ageográficos. (ANTUNES,

2015, p. 5).

Os novos fenômenos culturais resultantes dessa influência em amplitude

mundial são fruto da multidimensionalidade de todos os processos de produção e da

influência cultural multiaspectal.

Novos fenômenos Culturais: Hallyu Wave 2.0

Hallyu denota a popularização internacional da cultura sul-coreana, em uma

primeira instância no continente asiático na década de 1990, devido à proximidade

cultural, e, subsequentemente no Oriente Médio e norte da África, na América e Europa,

a partir de 2007, impulsionada pelas redes sociais. O termo foi empregado

pioneiramente pelos meios de comunicação chineses para descrever o crescimento do

entretenimento coreano no país via mídia televisiva. Quanto ao conteúdo, basicamente

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constituía-se por dramas românticos e épicos, por programas de variedades e, em menor

proporção, por animações. Os principais expectadores eram mulheres de meia-idade e

apenas no final da década, despontou-se o interesse dos jovens. Gradativamente, essa

coqueluche cultural contagiou Japão, Taiwan, Hong Kong e Vietnã (JIN, 2012).

Na década seguinte, o investimento governamental coreano em democratizar o

acesso à internet e aos smartphones desencadeou o crescimento e adesão às mídias

sociais como o extinto Cyworld, bem como a popularização de jogos online,

nomeadamente o Lineage e o Aion, que se foram fundamentais no desenvolvimento da

“segunda onda”. Esta foi designada em alusão à “Web 2.0” estruturada para a criação e

a troca de conteúdos gerados pelo usuário e se apoia amplamente em plataformas de

interação social, códigos de software livres e licenças Creative Commons33 (JIN, 2012).

Nesse contexto, o processo que antes se restringia em interações entre jovens coreanos

para o mundo, torna-se do mundo para o mundo mediante YouTube, Vikki,

Dailymotion, fóruns, sites de fãs e blogs. O principal expoente transforma-se no K-Pop,

Korean Pop, sonoridade juvenil que inclui dança, Electropop, Hip Hop e R&B. Nesse

contexto, letras e melodias são tão importantes quanto o elemento visual.

Graças ao estado de convergência midiática, ou seja, conteúdos de diversas

mídias incorporados pela rede e vice-e-versa, o que é transmitido pelas emissoras

também é passível de ser visto. A televisão é essencial no funcionamento da “onda”, já

que os ídolos K-Pop aparecem proliferamente em talk shows, programas de variedades e

em K-Dramas34. Os fãs iniciam com o K-Pop e passam subsequentemente a assistir aos

programas de variedade e dramas, visto que os cantores estão massivamente presente,

dada à ligação estreita entre música e televisão no país (JIN, 2012).

É extremamente curioso pensar que o interesse pela cultura coreana apareceu

mais fortemente apenas no ano de 2009, posto que o Brasil possua a particularidade da

abundância de povos em seu cerne e dentre eles, os oriundos da Coréia do Sul, presentes

no país desde 1923. Observa-se que muitos adolescentes brasileiros depararam-se com a

Hallyu devido afinidades com a cultura Japonesa e o hábito de procurar novidades

online sobre o assunto. Ao tornarem-se fãs de K-Pop, intensificam sua participação,

procurando, recebendo, processando, criando e disseminando informações sobre o

assunto. Por meio de suas diversas interações em rede, majoritariamente com pessoas

do convívio face-a-face de idades semelhantes ou com “estranhos” por quem têm

33 Implica na liberação indiscriminada do uso, da edição e da divulgação de algo. 34 Corresponde às novelas sul-coreanas.

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alguma afinidade ou admiração35, esses jovens líderes de opinião passam a influenciar

outros membros de seus grupos a também apreciarem os conteúdos da Hallyu e, por

conseguinte, um indivíduo que foi influenciado, pode ser influenciador em outros

grupos, tal qual como narra a teoria Multi-Step Flow36. No Brasil, sites de fãs como o

SarangInGayo e o KPop Station, e os mashups37 criados desde 2005 por Carlos

Henrique Brandão, o DJ Maza, foram e são essenciais na difusão nacional da Hallyu.

A uma fascinação pela cultura Pop contemporânea do país, também despertou

fascínio pelos aspectos “tradicionais”, culminando no acordo entre embaixadas para a

criação de centros culturais — equipados com bibliotecas especializadas, onde ensinam

o Hangul, o idioma coreano, a culinária, a arte marcial tae-kwon-do, e músicas e

coreografias K-Pop —, e atraindo público para estudos graduados, como de Língua e

Literatura Coreana da USP, em grandes núcleos metropolitanos brasileiros como

Curitiba e São Paulo.

No que tange as práticas culturais híbridas desencadeadas pela Hallyu no Brasil,

destacam-se dois fatos: a criação do B-Pop e o caso do jovem gaúcho Max. O primeiro

acontecimento descreve a demanda insistente de e-mails torrenciais para empresas de

entretenimento a fim de promover audições em busca de talentos brasileiros. Apoiados

pela JS Entertainment, cinco jovens integrantes de várias regiões brasileiras formaram o

grupo Champs e anunciaram a fundação do B-Pop, (Brazilian Pop), ou pop brasileiro

cantado em português e em inglês. Como já constatado no primeiro single “we’re the

champs”, lançado em 2014, desejando combinar K-Pop, rap norte americano e

brasileiro, funk carioca e “ostentação”, MPB, J-Pop (Japanese Pop), entre outros. A

iniciativa incentivou outros grupos como o quarteto feminino independente Queens a

aderir a um esquema criativo parecido (VICE, 2014).

O segundo caso obteve fortes repercussões nas mídias nacional e internacional.

Max, um adolescente brasileiro descendente de alemães, passou por 10 procedimentos

estéticos com o propósito de parecer um coreano “nativo” e expressar sua afeição ao K-

Pop e a K-Dramas. O “Gaúcho Oriental”38 afirma que sua aparência modificada não o

35 Como é o caso da relação de vloggers/bloggers com seus seguidores. 36 Teoria baseada no postulado Two-Step Flow de Lazarsfeld e Katz, que demonstra a influência social na

difusão de informação, e atualizada, abarcando a realidade Glocal. 37 Músicas originadas da mistura e união de outras músicas. O DJ Maza mescla J-Pop, K-Pop, Pop norte-

americano, Funk e Axé Brasileiros. Sua sonoridade o transformou em referência mundial à cultura

popular coreana, até mesmo nos países asiáticos. 38 Referência ao pseudônimo online do rapaz.

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faz se sentir menos brasileiro, visto que a miscigenação é uma característica nacional

(METRO, 2014).

Novos fenômenos Culturais: Nobrow

Nobrow é o conceito para denominar este produto cultural que é influenciado em

amplitude mundial, de natureza inclassificável porque é fruto da multidimensionalidade

de todos os processos de produção e da influência cultural multiaspectal; distribuído de

algum modo por qualquer meio, seja pela internet, pela televisão, por diversas mídias.

Esta nova realidade redefiniu a cultura, fazendo-a deixar de ser apenas uma

soma de fatores culturais que resulta no hibridismo e tornando-a algo novo, único e

inclassificável; isto é, um resultado no qual não é possível reverter a operação

matemática do ciclo de influências culturais para revelar seus componentes incógnitos.

O termo Nobrow foi proposto pelo jornalista e crítico cultural John Seabrook em

2000 e utilizado academicamente pela primeira vez pelo professor Peter Swirski em seu

livro de 2005 para caracterizar essa nova tendência da cultura; foi baseado nos conceitos

de Highbrow e Lowbrow:

A expressão Nobrow faz referência à expressão highbrow (uma

denominação de cultura, artes e literatura, que as caracteriza como

“intelectuais, de alta qualidade”), e à expressão lowbrow (expressão que

caracteriza a cultura, a literatura e a arte como sem conexão ou interesse

em ideias culturais sérias/intelectuais), de maneira a representar o

conceito de cultura sem uma qualificação de lowbrow ou highbrow, sem

um direcionamento específico a determinado tipo de público, ou à

determinada área do conhecimento. Tal cultura não é nem popular, nem

erudita; nem de certo estilo, ou de outro; uma cultura não categorizada.

(ANTUNES, 2015, p.1)

A expressão Nobrow faz referência à expressão highbrow (uma denominação de

cultura, artes e literatura, que as caracteriza como “intelectuais, de alta qualidade”), e à

expressão lowbrow (expressão que caracteriza a cultura, a literatura e a arte como sem

conexão ou interesse em ideias culturais sérias/intelectuais), de maneira a representar o

conceito de cultura sem uma qualificação de lowbrow ou highbrow, sem um

direcionamento específico a determinado tipo de público, ou à determinada área do

conhecimento. Tal cultura não é nem popular, nem erudita; nem de certo estilo, ou de

outro; uma cultura não categorizada. (ANTUNES, 2015, p.1)

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Nobrow é a evolução do hibridismo, vinda da interatividade típica da

cibercultura (caracterizada como uma cultura interativa digital em tempo real), para

além do hibridismo. É a consequência do diálogo entre culturas e da troca de tradições

culturais plenamente universalizados pelo Ciberespaço, é o surgimento de uma

Criatividade independente de herança cultural local e/ou temporal. Nobrow é o

inclassificável na era da cibercultura, consequência da interatividade mundial.

Além de um novo conceito, Nobrow é também um novo processo

comunicacional, uma nova estética, uma nova perspectiva de contemplar o processo

criativo. É um novo fenômeno na história cultural que caracteriza o século XXI; ele está

surgindo como a cultura do século XXI, nascida sob condições tecnológicas e culturais

específicas da contemporaneidade. Nobrow é a articulação do mundo, é a

internacionalização de culturas de todos os lugares por meio da comunicação

proporcionada pela tecnologia; é um fenômeno glocal.

Enquanto bens culturais híbridos têm características de diversas tendências

juntas em um único trabalho, e enquanto elas podem ou não estar ligadas à cibercultura,

os bens culturais Nobrow são únicos: suas origens e influências podem ser várias e é

impossível reconhecê-las ou traçá-las, tornando sua classificação impossível. Os objetos

culturais Nobrow não são necessariamente vinculados ao digital e ao interativo; eles não

estão obrigatoriamente no Ciberespaço. Contudo, cada obra Nobrow foi influenciada

pelos traços da cibercultura; cada uma recebeu influências diretas ou indiretas de outras

produções e seus produtores do mundo inteiro pelo ciberespaço, ou como mencionado

anteriormente, são fruto do Glocal Lato Sensu; ainda que muitas obras Nobrow sejam

fruto do Glocal Stricto Sensu. É pela articulação social no ciberespaço que a estética da

cultura Nobrow e seus bens culturais são internacionalmente estabelecidos.

Breve Conclusão

A cibercultura e o ciberespaço nos permitem um enorme número de

possibilidades de interação e produção de influências infinitas vindas de diversas

culturas, de diferentes épocas e localizações, exponenciando o fluxo e a produção

cultural.

A atualidade reflete não apenas capacidades inesperadas de sínteses inovadoras

do ser humano, mas também dá acesso ao entendimento de fenômenos humanos de

maior complexidade e magnitude interacional a partir das fronteiras expandidas da

sociedade e de seus novos produtos culturais. Através da Glocalidade, subproduto da

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cibercultura, da qual todas pessoas do mundo têm acesso direto ou indireto; tivemos a

internacionalização de culturas acessível à todos. Assim, glocalização automaticamente

subentende uma maior circulação e desenvolvimento cultural.

De tal modo, com a influência cultural se dando de maneira mundializada,

atemporal e ageográfica; naturalmente surgem novos produtos culturais. E resultado

direto desse desenvolvimento cultural foram a Hallyu 2.0 e o Nobrow: o processo de

glocalização pode criar inúmeras subculturas como a Hallyu 2.0; ao mesmo tempo em

que redefine todos os parâmetros da nossa sociedade contemporânea com a cultura

Nobrow, que abrange todas as novas subculturas. A Glocalidade implica e significa

infinitas possibilidades para o desenvolvimento cultural humano.

Referências

ANTUNES, Janaína Quintas. História da Cultura Contemporânea: Cibercultura e

Cultura Nobrow. In: Simpósio Nacional de História Cultural, VII, 2014, São Paulo.

Anais do VII Simpósio Nacional de História Cultural - Escrita, circulação, leituras e

recepções. São Paulo, Edição 1, 2015, p. 1 – 8.

JIN, Dal Yong. Hallyu 2.0: The New Korean Wave in the Age of Creative Industry. II

JOURNAL Fall, University of Michigan, 2012.

METRO. Brazilian Man has 10 Operations so He Can Look Asian. 2014. Disponível

em: http://metro.co.uk/2014/06/02/brazilian-man-has-10-operations-so-he-can-look-

asian-4747511/. <Acesso em 20 de novembro de 2014.

TRIVINHO, Eugenio. Glocal: visibilidade mediática, imaginário bunker e existência

em tempo real. São Paulo: AnnaBlume, 2012.

VICE. O Champs Quer Criar o B-Pop. 2014. Disponível em:

http://noisey.vice.com/pt_br/read/o-champs-quer-criar-o-b-pop.<Acesso em 20 de

novembro de 2014.

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Mesa 4 – CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADES

Coordenação Ana Carolina Escosteguy

Eventos, memória, história e educomunicação – a FENADOCE em Pelotas

Cristina Geraldes da Porciúncula - - Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, RS39

Margareth de Oliveira Michel - Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, RS40

Jerusa de Oliveira MICHEL- Universidade de Federal de Pelotas, Pelotas, RS41

Resumo

O trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida em duas etapas: levantamento bibliográfico e

pesquisa de campo realizada que analisou diferentes aspectos da Fenadoce em Pelotas e sua

relação com áreas como memória, história e educomunicação. O evento apresenta

características relevantes: lembra a história dos doces pelotenses mesclada com a história dos

grupos étnicos que compuseram a cidade e desenvolve projetos educacionais vinculados à

temática.

Palavras-chave: Eventos, memória, história, educomunicação

Os eventos Corporativos

Os eventos corporativos tem se mostrado eficazes tanto no campo institucional, quanto

promocional e mercadológico, e podem se desenvolver nas mais diversas áreas, trazendo

expressivo retorno, expresso pelo valor agregado à sua imagem, pela adesão massiva dos

públicos, pela aceitação e cobertura da mídia, e pelo retorno de vendas. O crescimento do

setor mobilizou e aqueceu vários setores da economia e representa uma parcela respeitável

do PIB, motivando a competitividade, a qualificação dos profissionais envolvidos, em

função dos investimentos realizados. São fatores que intervem na realidade social,

construindo redes de relacionamentos, gerando sentidos para suas experiências e mostrando

entendimento e compromisso com os públicos, gerando postos de trabalho diretos e

indiretos, e desenvolvendo atitudes de cidadania empresarial e responsabilidade social.

Os eventos tornaram-se um segmento em expansão no mundo todo e o Brasil tem se

destacado neste cenário. Stefano42 em artigo publicado pela Revista dos Eventos, diz que

39 Mestre em Comunicação Social pela PUC-RS. Professora do curso de Comunicação Social da UCPEL, Pelotas, Coordenadora da Habilitação em Publicidade e Propaganda e Mestre em Comunicação Social pela PUC-RS, email: [email protected] 40 Professora do curso de Comunicação Social da UCPEL, Pelotas/RS, Mestre em Desenvolvimento Econômico e Social e Mestre em Lingüística Aplicada pela UCPEL, email: [email protected] 41 3Doutoranda e Mestre em Memoria Socia le Patreimônio Cultural. Relações Públicas da Universidade Federal de Pelotas, Mestre em Memória e Patrimônio pela UFPEL, email: [email protected] 42 www.revistadoseventos.com.br/acesso

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graças ao trabalho desenvolvido na área está ocorrendo só em São Paulo, por exemplo, “a

mais surpreendente avalanche de convenções, feiras e congressos de sua história,

alavancando 56 setores da economia local e convertendo-se em uma meca do turismo de

negócios. Tal constatção também foi feita pela ABEOC43 na pesquisa II

Dimensionamento Econômico da Indústria de Eventos no Brasil. Há um consenso no

mercado de que os eventos são o caminho mais curto para a aproximação com o

mercado, os clientes, fornecedores e com o próprio público interno das organizações.

Os eventos são um instrumento importante de comunicação de massa, e

geralmente utilizam veículos especiais, para chamar atenção e produzir no público uma

impressão favorável. Eles tem sido utilizados com a maior eficácia em todos os setores

da Comunicação Empresarial/Organizacional: relação com acionistas, com a

comunidade em geral, com fornecedores, consumidores, funcionários, distribuidores e

representantes, no posicionamento cidadão e nas ações sociais etc. São muitos os tipos

de eventos que podem ser desenvolvidos como simpósios, seminários, congressos,

conferências, mostras, exposições, feiras, e muitos outros. Nesse trabalho será abordado

o conteúdo relativo às feiras.

De acordo com a UBRAFE44 (União Brasileira dos Promotores de Feiras),

acontecem todos os anos cerca de 150 grandes feiras nacionais e internacionais de

negócios em mais de 20 cidades brasileiras. Também ocorrem centenas de feiras e

exposições menores, de caráter regional e local, realizadas em inúmeras cidades de

todos os estados do País, tornando as feiras as maiores vitrines do setor produtivo

nacional. Nelas são exibidos os mais modernos e eficazes produtos, serviços,

equipamentos, tecnologia e maquinaria; oferecem ainda grandes oportunidades de

atualização profissional em congressos, seminários e outros eventos de disseminação e

debate de idéias, tematizam atividades, produtos, regiões. Combinadas ao turismo,

movimentam o setor de serviços das cidades, gerando empregos antes, durante e depois

de sua realização, em dezenas de atividades dentro e fora dos pavilhões.

A Memória e a História

43 http://www.abeoc.org.br/2014/10/ii-dimensionamento-economico-da-industria-de-eventos-no-brasil/II

Dimensionamento Econômico da Indústria de Eventos no Brasil – 2013” teve como objetivo quantificar a

participação da indústria de eventos no PIB do Brasil, avaliar a sua contribuição no processo de geração

de emprego, renda e impostos, além de inventariar os espaços de eventos no País, suas características,

localização e dinâmica de funcionamento. 44 http://www.ubrafe.org.br/upload/guia_cor.pdf

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Memória é um tema que está presente em várias áreas de estudo no mundo

contemporâneo e é vista a partir de diferentes olhares. Do ponto de vista biológico,

memória refere-se a tudo que envolve os processos mentais e as muitas informações no

cérebro, tais como idéias, imagens e diferentes dados, tudo que por diferentes motivos

se destaque entre os registros de acontecimentos passados. “Sem memória não há vida.

É possível, inclusive, dizer que a vida é uma sequência de memórias”45.

A memória é importante para a vida dos grupos sociais porque é o

armazenamento e lembrança daquilo que é adquirido por meio da experiência, dessa

forma a aquisição de memórias é aprendizado.(IZQUIERDO, 1989). O autor cita

Marshall (1988) afirmando que há 2.000 anos atrás, Aristóteles já dizia que tudo que

está no intelecto esteve antes nos sentidos, e considera que não há memória sem

aprendizado nem aprendizado sem experiências.

É através da experiência socialmente compartilhada que ocorre transmissão da

tradição, ancorada nas lembranças e aprendizados passados que se alojam na memória

individual e coletiva, “o que possibilita a produção dos sentidos que são

compartilhados, como um processo ativo e dinâmico, fruto das relações de poderes já

instituídos que constrói aquilo que reconhecemos como parte da cultura humana.”

(BARRETO, 2007, p.164)

Segundo Pollak (1992), a memória social é um fenômeno coletivo e social,

construído coletivamente e submetido a transformações constantes e que transmite a

cultura local herdada, sendo constituída por acontecimentos vividos socialmente. Desse

ponto de vista, servem de apoio à memória três elementos: os acontecimentos vividos,

as pessoas e os lugares, elementos responsáveis pelo estabelecimento dos laços afetivos

entre as pessoas. ‘A memória costura, tece o passado no presente, compondo tramas e

enlaçando-se em novas possibilidades existenciais.’

Para Gondar (2005), a memória pode ancorar-se em diferentes suportes como o

texto, a imagem, nos sons e na comunicação oral, etc. Para o autor, a memória é seletiva

pois os indivíduos só tem recordações dos momentos a que dão importância e que

ficaram marcados subjetivamente. Ele afirma, ainda, que parte das lembranças pode ser

herdada dos acontecimentos relacionados aos seus antepassados, podendo-se inferir que

45 IZQUIERDO, Ivan.“A vida é uma sequência de memórias” Revista Instituto Humanitas UNISINOS - IHU On-Line, N°

454 – Ano XIV, 15.09. 2014,

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5689&secao=454

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os ritos, rituais e celebrações dos grupos sociais são elementos que constituem e

propagam memórias.

Constata-se, a partir das falas dos autores que a memória é uma construção

social, que é produzida a partir das relações das pessoas, de seus valores e experiências

vividas. É dinâmica pois se modifica com o tempo, porque na medida em que ele vai

passando, a história vai mudando e tomando novos rumos. Portanto, a memória não é

somente o registro histórico dos fatos, é uma combinação de construções sociais

passadas e presentes, estando em permanente reconstrução.

A memória, quem a produz é um grupo social, a história utiliza-se da

memória para seu trabalho sobre reconstituição de uma época e lugar.A

memória trabalha sobre o tempo, porém sobre um tempo experenciado pela

cultura. Nela, o tempo passado é reconstruído e revivenciado, o que traz um

efeito restaurador, uma vez que permite a ressignificação do sentido

existencial, atualizando conteúdos experimentados. A memória costura, tece

o passado no presente, compondo tramas e enlaçando-se em novas

possibilidades existenciais.(BARRETO, 2007, p.4)

A memória é importante para os grupos sociais pelo armazenamento e lembrança

daquilo que é adquirido por meio da experiência, porque “a aquisição de memórias é

aprendizado (IZQUIERDO, 1989)”, e porque é essencial para a construção tanto das

identidades pessoais quanto coletivas. “Nossa identidade, tenha ela a forma que tiver, é uma

história sobre nós mesmos, ou em última análise, uma ‘narrativa do eu’” (HALL, 2005,

p.12), por certo construída com a ajuda de nossa memória, por meio da nossa história de

vida.

História, do grego antigo historie (que significa testemunho - no sentido daquele

que vê) é a ciência que estuda o Homem e sua ação no tempo e no espaço, concomitante

à análise de processos e eventos ocorridos no passado, que é contada de acordo com a

subjetividade de cada indivíduo, mas que no seu registro deve conter valores básicos

como a veracidade e a objetividade dos fatos.

A História busca também reconstruir uma trajetória sócio-existencial

decorrida nos tempos e nos lugares, só que a partir de uma reconstrução

lógica “entendida como o trabalho que cada época realiza o que já existia

anteriormente, mas que não se podia incluir num sistema de imagens”(

SCHIMIDT & MAHFOUD, 1993, p.293).

Silva e Silva (2006) afirmam que a memória está ‘nos próprios alicerces da

História’ mas somente no final da década de 1970 ela tornou-se objeto de reflexão da

historiografia. Ao conceituarem memória, o fazem a partir de Jacques Le Goff,

afirmando que memória é a propriedade de conservar certas informações, referindo-se a

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um conjunto de funções psíquicas que dá ao indivíduo a possibilidade de atualizar

impressões ou informações passadas (ou reinterpretadas como passadas), constituindo-

se a memória social um dos meios fundamentais para se abordar os problemas do tempo

e da História.

As fontes da História podem ser orais (contos, narrativas, “causos”, cantigas,

expressões,etc.), escrita (livros, cartas, documentos oficiais, inscrições, etc.),

iconográfica (imagens, gravuras, fotos, pinturas, cinema, etc.), e de cultura material

(ruínas, artefatos, objetos, etc), entre outros.

A Educomunicação

É um conceito formulado a partir da observação do agir de grupos da sociedade

civil, ao longo da segunda metade do século XX, que se caracteriza por sua ênfase

prática e pela revisão das práticas educativas à luz da realidade representada pela

presença das tecnologias da informação e da comunicação. Menezes (2013) relata que

foram registradas ao longo da história experiências de educomunicação no ambiente

escolar, por meio do cinema, televisão, jornais impressos e até mesmo do rádio. Essas

experiências foram articuladas aos movimentos populares, no período de 1945 a 1964,

“fundamentadas na pedagogia de Paulo Freire [...]algumas experiências que envolviam

a Comunicação e a Educação: Centros Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de

Cultura Popular (MCPs) e o Movimento de Educação de Base (MEB)”.(MENEZES,

2013, p.5)

Assim, ao longo do tempo, e de diferentes formas, essa proposta de aliar

educação e comunicação foi tendo diferentes bordagens e desenvolvimento.

Quando falamos em Educomunicação, estamos nos referindo a um campo de

pesquisa, de reflexão e de intervenção social, cujos objetivos, conteúdos e

metodologia são essencialmente diferentes tanto da Educação Escolar

quanto da Comunicação Social. Investigar os fundamentos desse campo,

discutir as inter-relações dos vários tipos de saberes que se fundem na

Educação e na Comunicação constitui os principais objetivos teóricos desse

novo campo. O que sentem e pensam as pessoas de si mesmas, dos outros e

do mundo que as rodeia, não importando idade, sexo, credo ou condição

social, por sua vez, são os conteúdos trabalhados na Educomunicação.

(SOARES, S. Paulo, 200646)

46 http://www.portalgens.com.br/baixararquivos/textos/educomunicacao_o_que_e_isto.pdf. Acesso em

15/10/2015.

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A educomunicação, portanto, se caracteriza como um campo de pesquisa e ação

comprometido com outras perspectivas de aquisição de conhecimento e se apresenta

como forma de intervenção social. Ao elaborarem e realizarem um novo discurso, os

participantes do processo, experimentam enquanto grupo uma outra forma de

convivência social, pautada no respeito a cada um dos seus integrantes. Inicialmente

proposta como uma interação entre a Educação e a Comunicação (com seus meios),

atualmente a educomunicação pode ser pensada de forma mais ampla. “Na atualidade, o

estudo da construção do conhecimento por meio das interações sociais tem obtido

destaque em diferentes campos da Educação”.(VALADÃO, 2009, p.95) A autora

amplia o entendimento acerca da educomunicação afirmando:

Educomunicação – entendida aqui como um campo emergente de

intervenção social, que promove o planejamento, a implementação e a

avaliação de processos e produtos, criando e fortalecendo ecossistemas

comunicativos abertos, democráticos e participativos em espaços educativos,

presenciais ou mesmo virtuais, tendo como conseqüência a melhoria do

coeficiente comunicativo das ações educativas, incluindo nesse contexto, as

relacionadas com o uso dos recursos da informação nos processos de

aprendizagem. (VALADÃO, 2009, p.95)

A comunicação e a educação, instituições produtoras de bens simbólicos,

quando ‘alinhadas’ e trabalhando em sintonia, permitem importantes abordagens no

contexto das ações coletivas dos grupos sociais. Esses grupos sociais envolvidos,

mobilizados e unidos pela força da solidariedade, construída sobre a cultura e um

referencial de valores compartilhados pelo grupo, apresentam-se com valores, interesses

e ideais em comum, nos quais a abordagem da educomunicação relacionada aos

movimentos sociais torna-se relevante.

Acredita-se que por meio de produtos comunicacionais voltados para uma

perspectiva educacional, é possível não só informar os movimentos sociais,

mas também, e, principalmente, permitir-lhe a reflexão sobre a própria

estrutura da ação coletiva, a sua força política e o fortalecimento dos seus

direitos políticos e sociais.Mesmo porque, suas características fundamentais

são a de planejar e fornecer subsídios para o processo dialogal, bidirecional

e participativo. (MENEZES, 2013, p.10)

Tal afirmativa encontra eco em Beltrán:

O autor ressalta quatro dimensões dessa participação: educacional,

comunicacional, social e política que têm uma clara direção convergente: a

democratização. “Esta nova concepção da comunicação educativa,

participatória e associada à organização popular propõem-se contribuir para

democratizar, ao mesmo tempo, a educação, a comunicação e o conjunto das

relações sociais.” (Beltrán,1981, p. 34).

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De acordo com os autores referidos é possível afirmar que a proposta da

educomunicação, seja a partir da proposta inicial de realização através dos meios de

comunicação, ou de propostas mais amplas baseadas na pedagogia de Freire que

propunha experiências que envolviam Centros e Movimentos de Cultua Popular, é

uma metodologia que alcança sucesso por diversos fatores, sejam a forma de ensino

diferencida das chamadas ‘tradicionais’, a ludicidade envolvida, ou a integração da

educação a outros fatores, como o social cultural e político, as quais motivam os alunos

a experiências enriquecedoras, atraindo sua atenção.

O objeto de estudo – a FENADOCE

A Feira Nacional do Doce – Fenadoce – é um evento anual realizado para promover

a cultura doceira da cidade de Pelotas-RS, difundindo o trajeto histórico dos doces, que

resultam da integração de dezenas de etnias e misturam visões de mundo tanto ocidentais

quanto orientais, para todo Brasil e exterior.

O evento surgiu como ‘Festival do Doce e do Vinho’ promovido pelo Senal

Pelotas, a exemplo do “Festival do Queijo e do Vinho’ realizado pelo Senac Caxias do

Sul. Promovidos dentro de uma política nacional de valorização de atividades do

mercado informal de trabalho cada unidade Senac escolhia uma atividade que

caracterizasse sua região para buscar desenvolvê-la. Assim, em 1982 foi realizado o

primeiro Festival do Doce em Pelotas, visando destacar o doce artesanal, típico da

região47. O evento foi um sucesso e passou a realizar-se de dois em dois anos. Na sua

terceira edição, em 1986, o então prefeito Bernardo de Souza ao visistar o Festival

resolveu torná-lo público, quando passou a chamar-se FENADOCE. Posteriormente o

evento foi assumido pela Câmara de Dirigentes Lojistas de Pelotas – CDL –em 1995.

Nas primeiras edições, acontecia a cada dois anos, sempre em um local diferente da

cidade. A partir de 1990, a feira tornou-se anual e ganhou endereço fixo: o Centro de

Eventos Fenadoce.

Desde então consagrou-se como a principal atração turística da zona sul do Rio

Grande do Sul, com uma mistura de gastronomia, shows, lazer e turismo, entre outras

atividades. Pelotas recebe uma grande parcela de turistas durante a realização do evento,

vindos das mais diversas localidades do país.

47 Entrevista com Samir Curi, representante de órgãos de turismoe hotelaria locais e de servidores do

Senac Pelotas à época.

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A Feira possui diferentes espaços e ambientes como a Cidade do Doce (remete à

Pelotas histórica dos séculos XIX e XX), a Estância Princesa do Sul (destinado à

demonstrações tipicamente gaúchas de grupos de CTG da região e do estado), o Parque

de diversões, e a Praça de Alimentação. Vários eventos ocorrem ao mesmo tempo no

espaço da feira: Fenashow (eventos musicais jovens), atividades educacionais com as

escolas do miunicípio e da região, e outras atrações paralelas na cidade de Pelotas. É

possível sempre perceber uma interação da cidade com a Feira do Doce, com vários

eventos realizados no Centro Histórico e nos bairros em comemoração ao evento, a fim

de demonstrar o potencial turístico, artístico e gastronômico da cidade.

No caso da Fenadoce, a feira mostra um legado histórico e cultural transmitido pelas

doceiras tradicionais através da história oral e escrita, constituindo a memória coletiva desse

grupo social. A memória, como fato social, abriga uma dimensão simbólica que é

apreendida pelas empresas que participam do evento em foco, retendo, do passado, o que

dele ainda é vivo ou capaz de viver, na consciência do grupo. Os doces artesanais que, por

meio de um projeto de Identificação e Procedência dos doces de Pelotas, possuem Selo de

Autenticidade que é uma forma de proteger a tradição e a cultura pelotense, preservam a

memória e história do povo pelotense. Por meio de diferentes ações e projetos integrados

ocorre processo educativo que utiliza práticas comunicativas em estruturas educadoras

formais e/ou informais que ocorrem por meio de educomunicação.

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