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“Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006
A MÚSICA NA COMUNICAÇÃO ENTRE ADULTOS E CRIANÇAS: CALMA OU
DESMESURA?
Beatriz de Souza Bessa - Psicóloga. Musicista. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Memória Social - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO)
Resumo: O presente artigo pretende tecer uma reflexão sobre a música na comunicação
entre adultos e crianças, partindo de duas abordagens aparentemente antagônicas: a de Friederich
Nietzche, onde a música é uma força desmesurada e destruidora, e a linguagem maternalês, um
tipo de fala específico dirigido à criança que oferece momentos de calma e tranqüilidade.
Palavras-chave: música, Nietzsche, linguagem maternalês.
onsiderando-se como parâmetro a comunicação realizada entre adultos ao
longo de uma conversa, é crível questionar por que quando nos dirigimos a um bebê
comumente modificamos nosso jeito de falar? Segundo especialistas, esse é um
comportamento existente no mundo inteiro (KLAUS e KLAUS, 1989), que alguns
denominam de fala “motherese” (BORGES e SALOMÃO, 2003:3), “maternalês” ou
“manhês” (FERREIRA, 2000) ou simplesmente “fala dirigida à criança” (PAPALIA e OLDS,
2000). As características principais desse tipo de fala são: a presença de diminutivos,
repetições, sentenças pequenas e simplificadas, timbre de voz agudo ou uso do falsete,
ênfase nas sílabas tônicas e ritmo lento. Estudiosos afirmam que esse tipo de fala não é
utilizado apenas pelas mães, mas por todos aqueles que se dirigem a um bebê (BORGES
e SALOMÃO, 2003) e em diversas partes do mundo (KUHL ET ALL, 1997).
Conforme Papalia e Olds (2000), alguns estudos na área da psicolingüística, pediatria,
fonaudiologia e psicologia do desenvolvimento denotam a importância dessa forma de
comunicação do adulto com a criança, tanto para facilitar a aquisição da linguagem pela
criança quanto no sentido afetivo. Não obstante, as autoras afirmam que alguns cientistas
questionam se tal linguagem simplificada realmente é necessária e útil para o
desenvolvimento humano. Revelam, entretanto, que “caso os bebês pudessem votar
nesse debate, há pouca dúvida quanto ao lado que ficariam” (op. cit., p. 147), já que,
baseando-se em pesquisas experimentais, as autoras ratificam que os bebês têm uma
predileção especial pela língua motherese.
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Há evidências de que mesmo antes de nascer o bebê é envolvido pelo som. Klaus & Klaus
(1989) afirmam que “desde o período inicial da gravidez, o ambiente do útero é “uma
sinfonia de sons e vibrações” (op. cit., p.131), resultado do fluxo sanguíneo nos vasos da
mãe, das batidas do coração, do movimento intestinal e também dos ruídos externos. Os
autores também demonstram que o feto distingue tons, timbres, intensidade e altura dos
sons e, inclusive, responde a eles, movimentando partes do corpo e procurando localizá-
los: “orientar-se ao som é algo que os humanos fazem sem pensar” (op.cit., p.52). Mas a
audição fetal é seletiva e, dentre todos os sons, o feto prefere a voz materna à voz de
outras mulheres, não apresentando preferência, entretanto, da voz do pai em relação a
voz de outros homens (KLAUS e KLAUS, 1989; ATKINSON ET ALL, 1995).
Na fase puerperal o bebê já é capaz de diferenciar tons e fonemas, como distinguir, por
exemplo, a letra p da letra b. Antes mesmo de apreender os significados e as regras
gramaticais de sua língua o bebê já experimenta inúmeras sensações decorrentes dos
sons que as palavras encerram, mediante a voz do adulto. Para o bebê o que é a fala
senão um emaranhado de sons? Nesse sentido, em vez de compreender o maternalês
como um tipo específico de linguagem cujo objetivo é facilitar a comunicação da mãe com
o bebê, é possível concebê-lo como uma dimensão musical da relação entre adulto e
criança – uma dimensão elementar de comunicação, uma dimensão intuitiva. Pessoas do
mundo inteiro utilizam a música para entrar em contato com um ser que acaba de nascer
através do seu próprio instrumento musical: a voz. É possível que o maternalês seja uma
estratégia humana intuitiva de imitar a voz preferencial – a voz materna. No entanto, o que
faz que a própria mãe utilize o maternalês?
Conforme Winnicott (1999) a mãe – como todos aqueles que dirigem a palavra ao bebê –
já foi um dia bebê e tal experiência encontra-se ainda em alguma parte de seu ser, sendo
que ela pode se relacionar com o bebê evocando elementos de sua memória afetiva, de
forma intuitiva, não de modo racional e voluntário.
Quando ela era um bebê (a mãe), teve exatamente as mesmas necessidades. Ela não se lembra, mas nunca se perde uma experiência para sempre, e de alguma forma acontece de a mãe ajustar-se à dependência do seu bebê através de uma compreensão pessoal extremamente sensível. (op.cit., p.78)
Quando crianças, os adultos que atualmente lidam com bebês também experimentaram
esses cantos, essas doces palavras musicais do maternalês. Por que o mundo da criança
é invadido pela música?
Na bibliografia sobre o tema a voz materna, em geral, é concebida como um veículo
confortante, uma forma de expressão oral que ameniza a tensão do recém-nascido. (Klaus
A música na comunicação entre adultos e crianças: calma ou desmesura?
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e Klaus, 1989) revelam que “os bebês se tornam serenos ao som da voz materna e quase
imediatamente começam a virar a cabeça” (op.cit., p. 60). Segundo Oliveira “basta o bebê
‘abrir o berreiro’ para a mãe ou o responsável correr ao seu encontro para acalmá-lo,
utilizando uma ‘conversa’ lenta, melodiosa, cantada” (informação verbal). O maternalês,
portanto, seria utilizado para acalmar a criança. Nesse sentido, o elemento musical seria
um elemento confortador, gerador de equilíbrio e serenidade. Essas assertivas remetem à
idéia de que a música apresenta um misterioso poder restaurador de situações
conflituosas. A musicoterapia, disciplina que visa a cura através da música, por exemplo,
vem crescendo vertiginosamente como uma proposta de atenuação da dor, do sofrimento,
favorecendo estados de relaxamento e calma. Existem trabalhos clínicos sendo realizados
em várias áreas de reabilitação como na deficiência mental, deficiência física, na área
psiquiátrica, em geriatria, em distúrbios infantis de aprendizagem e comportamento, com
gestantes e nos estados pré e pós-operatórios (BENENZON, 1985). A cura por meio do
som já existia no antigo Egito, na velha Índia e na Grécia Antiga, e nesta, os filósofos da
escola de Pitágoras comparavam as formas físicas às manifestações musicais. Conforme
Dewhurst-Maddock:
Essas doutrinas antigas acreditavam que a vida e a saúde dependiam da continua simetria e das interligações harmônicas, que partiam do interior da mente e se expandiam para fora da sociedade e para o mundo natural. Essas mesmas simetrias e harmonias manifestavam-se em forma de som e de música. Corretamente aplicado, o som poderia provocar a cura por meio da restauração da integridade musical do corpo e da alma. (DEWHURST-MADDOCK,1999, p.14)
No âmbito da educação também deparamos com a utilização da música como uma
ferramenta preciosa para acalmar crianças. (Fuks ,1991) realizou uma pesquisa em
escolas de normalistas do Rio de Janeiro, onde colhia as diversas “musiquinhas de
comando” (op.cit., p.28) que eram cantadas pelas futuras professoras na instituição. Estas
explicaram em entrevistas posteriores por que a música era tão presente na escola.
Usava música para acalmar as crianças (op. Cit., p. 68) O gestinho é para incentivar, porque, às vezes, as crianças não entendem a letra da musiquinha, Então é importante aquele gestinho. Quando a turma fica agitada, cantamos e eles vão se acalmando [...]. (op. Cit., p. 71) Para a hora da merendinha é melhor cantar vamos lavar as mãozinhas do que dizer ‘lavem as mãos’(op.cit., p. 70)
Nas áreas de educação e saúde a música parece ser utilizada a fim de gerar um estado de
equilíbrio a corpo e mente. Para Friederich Nietzche, entretanto, as qualidades melódicas
e harmônicas da música nada têm a ver com brandura ou mansidão, pois a música nasce
de Dionísio, “Deus do caos, da desmesura, da fecundidade da terra e da noite criadora do
som”. Segundo Dias (1994), em Nietzsche “a música não pode ser entendida pelo belo,
pela serenidade” (op. Cit.,24), pois a música é uma “emoção desmesurada” (idem.).
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Compreender o sentido de Dionísio na obra de Nietzsche e sua relação com a música
implica examinarmos brevemente seu primeiro livro O Nascimento da Tragédia. Nessa
obra, vai refletir sobre o nascimento da tragédia ática na Grécia Arcaica, analisando a
duplicidade de afetos existentes no mundo helênico e as expressões artísticas derivadas
de dois impulsos estéticos: o apolíneo e o dionisíaco. Enquanto Dionísio, único filho de
Zeus com uma mortal, Sêmele, retrata as forças caóticas, a embriaguez, as paixões, a
fragmentação do eu, a vertigem, o entusiasmo - elementos presentes em seus cultos
orgiásticos de música e dança que invadiram a Grécia, Apolo é a medida, o belo, a
temperança, a luminosidade, a forma, a ordem, a individuação. O filósofo alemão crê que o
mundo olímpico, de deuses homéricos, heróicos, poderosos e belos foi construído pelos
helenos contra a dor e o sofrimento a que estavam expostos. O uno originário, o uno
primordial – representado pela violência dionisíaca, o princípio criador, a força criadora - é
a verdadeira essência, sendo a beleza apolínea pura aparência. A essência da natureza
não é a ordem, o equilíbrio ou a quietude, a essência é a dor, a destruição, a desmesura e
o sofrimento, é devir. Essa tensão – única fonte de criação de todas a outras coisas – não
é expressa de forma individual, não é uma fonte unitária, pois em Nietzsche a criação não
é um mergulho no eu e sim o extremo oposto – o rompimento com o principium
individuationis, com o eu, ação que torna possível a reconciliação do homem com a
natureza e o cosmos. Não é a emoção, o sentimento, a vontade humana que expressa a
volúpia dionisíaca, e sim a completa desintegração do eu e desses desejos humanos,
superficiais. A partir desse estilhaçamento é que são produzidas as individualidades e as
formas. Assim, o belo nasce da disformidade, e nós humanos somos obras de arte desse
movimento tempestuoso de criação do mundo, pois também adquirimos forma. No caso
grego, as esculturas magistrais dos deuses olímpicos, que mesmo representando forças
da natureza revestiam-se de forma humana, comportavam tal antropomorfismo porquanto
o aspecto familiar e inteligível afastava os terrores relativos a forças obscuras e
incontroláveis.
O que resta no mundo que não se reveste de forma, podendo ser concebido por Nietzsche
como a metáfora do devir essencial da natureza? O som. O som escapa à forma, e é,
portanto em Nietzsche, a expressão mais clara do uno primordial. Nietzsche não fala em
som, mas em música, e sua obra vai demonstrar como a tragédia grega nasce da música,
não dos diálogos ou do texto, e sim do coro. Não obstante, quando Nietzsche se refere a
música como expressão da unidade originária, está, na realidade, valorizando o som, pois
para ele a essência da música comporta: o poder emocional dos tons, o fluxo da melodia e
a harmonia. Ritmo e dinâmica não expressariam o que verdadeiramente a música
significa, seriam apenas auxílios, “aspectos plásticos no interior da música” (NIETZSCHE,
1980, p.4), ou seja, seriam elementos apolíneos, neles incluídos o tempo e o espaço.
A música na comunicação entre adultos e crianças: calma ou desmesura?
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Dessa forma Nietzsche delineia um elogio ao som (pois o que é música sem ritmo, sem
contagem de tempo?) em detrimento da dimensão temporal da música. Para ele os
gestos, desencadeados pelo ritmo e pela dinâmica musical, são um elemento superficial,
já que a harmonia tem a primazia – é ela que contém o “fundamento originário invisível”
(Idem. 1992, p.30), onde só existe lugar para a intensidade e para a emoção.
Mesmo que a melodia esteja acompanhada de gestos, texto, dança ou qualquer outro
componente mimético a “eterna significação da música” (idem) não pode ser extraída
desses simples acompanhamentos da música, visto que é o som “o meio mais importante
para se desembaraçar da individualidade. Nietzsche revela como a poesia – arte da
linguagem - nasceu da canção popular, esta “em contraposição à poesia épica, totalmente
apolínea” (Idem, 1992, p.48), e que, portanto, como a poesia nasceu da música:
A canção popular se nos apresenta, antes de mais nada, como espelho musical do mundo, como melodia primigenia, que procura agora uma aparência onírica paralela e a exprime na poesia. A melodia é, portanto, o que há de primeiro e mais universal, podendo por isso suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos.
A melodia “incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens” (op.cit:49),
e as palavras criadas pela melodia se empenham em imitá-la. Nesse sentido, o filósofo
alemão aponta que “a lírica depende do espírito da música, quanto a própria música, em
sua mais completa ilimitação, não precisa da imagem e do conceito, mas apenas o tolera
junto de si” (op.cit.,p.51). A linguagem poética, portanto, nasce da melodia, e quanto mais
a palavra se aproximar do sentido da música, buscando se firmar não como conceito, mas
como sonoridade, mais a linguagem pode se assemelhar à música – mas para seu
desgosto, nunca ser como a música.
A discussão sobre o aspecto tonal das palavras Nietzsche desenvolve em um fragmento
póstumo que constituía parte de uma versão anterior do Nascimento da Tragédia. Ele
começa por associar a simbólica gestual à palavra, sendo as duas expressões - gesto e
palavra- apolíneas, que não são geradas a partir de uma necessidade da música, sendo
apenas “alegorias” desta.
Pode ocorrer, embora um espírito puramente musical não o exija, que à pura linguagem dos tons, embora esta, auto-suficiente, não careça de qualquer auxilio, sejam acrescidas e subordnadas palavras, ou ate mesmo uma ação intuitivamente representada (Ibidem,1980, p. 1)
A música tem uma natureza pré-figurativa e as capacidades de figuração, representação e
forma são estritamente apolíneas. Segundo Nietzsche a música não apresenta uma forma,
mas algo em eterno processo de erupção, de fragmentação, de estilhaçamento. A
natureza verdadeira do som desconhecemos, pois o discurso não é capaz de captá-lo, de
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compreendê-lo, pois ele não é o visível, mas o extremo oposto: o invisível. Nossa cultura
apolínea, a cultura do olhar, da imagem, da visão, tenta, em vão, criar formas que
correspondam às músicas, mas se é incapaz de definir em imagem o que é musical, pois a
música nega qualquer expressão imagética finita. O que se torna imagem cabe em um
determinado espaço, e dessa forma, se limita.
No entanto, o que há nas palavras? Considerando a nona sinfonia de Beethoven,
Nietzsche conclui que de fato, “absolutamente nada ouvimos do poema de Schiller” (op.cit:
8). É possível compreender as palavras de um cântico, de uma ópera, não apenas como
frutos do empobrecimento musical. Uma palavra de uma canção pode ser valorizada, e, à
primeira vista, existirá uma submissão dos elementos musicais em relação aos diálogos e
verbalizações. No entanto, em um segundo momento, se nos atermos aos sons imanentes
da voz, teremos aí também um elemento musical. Dessa forma, as palavras são tratadas
como “instrumentos humanos” (idem), submergindo o conteúdo da palavra no “mar
universal do som”(idem). Aqui, a palavra é apenas o intermediário do som, sendo o texto
um simples material para o coro se fazer música - um mero serviçal. É por esse motivo
que Nietzsche analisa em a nona sinfonia de Beethoven, que coro da ópera transforma a
poesia de Schiller em uma obra musical.
Nesse momento lanço mão dos escritos de Paul Zumthor para compreender que não é
apenas a música erudita que apresenta e gera tais forças arrebatadoras. Pesquisando
sobre literatura e oralidade, atravessando aldeias, visitando as mais diversas localidades e
observando as formas poéticas existentes em cada região do globo – Zumthor esteve no
Brasil em 1997 - o autor acredita haver na literatura uma certa “nostalgia da voz”.
Nietzsche criticava arduamente uma música criada a partir de uma poesia, um
empreendimento que a ele se afigura como “se um filho quisesse gerar o próprio pai”
(Ibidem,1980, p.4). Zumthor, ao contrário, analisa ser esse um empreendimento de
restauração da voz, uma possibilidade de evocar um canto promordial, esquecido, pois, de
certo, a poesia não é literatura e sim oralidade. Para Zumthor, entretanto, mais
conveniente é o termo vocalidade, pois o que se destaca não é a oralidade como forma de
transmissão e sim a voz como um objeto de poder. O autor utiliza o termo “vocalidade”,
considerando a voz não apenas um suporte para a linguagem, não apenas como um meio
de transmissão de mensagens e artefatos da cultura, mas como um elemento que tem um
valor próprio. Se a oralidade transmite algo, a voz transmite a si própria. Utilizando-se da
linguagem a voz se faz presente, pois seu desejo é se afirmar como presença. A
linguagem é apenas uma possibilidade de expansão da voz, que é, por si, uma coisa viva
e autônoma, apresentando suas próprias qualidades musicais.
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Paul Zumthor desenvolve um trabalho que reflete sobre a voz não apenas no âmbito das
ciências médicas e psi, mas principalmente no âmbito antropológico, social. Ele percorreu
o mundo em busca de poesias orais, canções e performances vocais e desejava compor
um estudo sobre a voz, questionando-se porque ainda não havia uma “ciência da voz”. Em
suas obras, que articulavam pesquisas de manifestações artísticas da Idade Média e da
contemporaneidade, Zumthor elaborou uma idéia de voz que ultrapassa a linguagem,
tornando-a um objeto central. Segundo o estudioso suíço, “a voz ultrapassa a língua, é
mais ampla do que ela, mais rica” (2005, p.63), já que a voz não é meramente o
sustentáculo da linguagem ou uma capacidade orgânica e anatômica do indivíduo.
Acreditava, no entanto, que na fala a linguagem tem uma preponderância sobre as
qualidades simbólicas da voz - tom, timbre, alcance, altura, registro, tessitura, extensão e
intensidade – mas quando cantada, a voz dissolve a linguagem, chegando a ter “espécie
de indiferença relativa à palavra” (op.cit.,p.64).
Apesar das diferenças, nesse momento é possível construir um paralelo entre Nietzsche e
Paul Zumthor, no que se refere a um entendimento sobre as características musicais da
voz e não apenas fisiológicas ou lingüísticas. Nos dois autores, a voz cantada assume um
valor ainda mais musical do que no diálogo. Por sua vez, o maternalês se situa na
encruzilhada entre o cantar e o falar. A observação do cotidiano revela ainda que esse tipo
de fala é comum também na comunicação de um adulto com uma criança de três, quatro,
cinco anos de idade, não apenas com bebês. Aqueles que trabalham com crianças, como
eu, percebe haver uma considerável diferença entre a forma de entonação da voz que um
adulto tem com uma criança de três anos e um diálogo entre dois adultos. Isso significa
que mesmo quando a criança já tem algum domínio sobre a linguagem, por volta dos 4 e 5
anos de idade, o adulto ainda enfatiza o aspecto tonal e não conceitual da fala. Assim, o
aspecto tonal não parece ser apenas uma alternativa para nossa comunicação, por
sabermos que os pequenos não têm o domínio sobre a linguagem. Como vimos, a música
como mecanismo terapêutico, curativo, tranqüilizador é comumente utilizado por
intermédio do instrumento musical humano, a voz. No que as assertivas de Nietzsche
sobre o poder dionisíaco na música ajudam a pensar a relação do adulto com a criança e a
presença da voz e da música como intermediárias dessa relação?
Há nas músicas oferecidas pelos adultos às crianças uma presença visível dos elementos
apolíneos: uso das faculdades miméticas, uso de rimas, “batida ondulante do ritmo” que
suscita a suavidade. A música de Apolo rejeita a intensidade, o frenesi, a descompostura
da música a fim de realçar sua beleza.
“Da música apolínea eram retirados prudentemente, como não apolíneos, os elementos característicos da música dionisíaca e da música em geral, o fluxo
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contínuo da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia.”(Idem,1992, p.72)
Ora, apenas no dionisíaco, afirma ainda o filósofo, “a ruptura do princípio de individuação
torna-se um fenômeno de arte” (1992, p.73). Para ele, portanto, não há como considerar
arte a música de Apolo, essa simples “arquitetura dórica de sons”(op.cit., p.24).
Em termos gerais, as músicas denominadas folclóricas e as ritualísticas, derivadas ou
relacionadas com alguma forma de ritual, como as musicas indígenas, de feitiçaria
acentuam a escansão rítmica. As músicas destinadas às crianças também se utilizam
desses recursos, objetivando, muitas vezes, atividades pedagógicas como coordenação
motora e alfabetização. As músicas encontradas por Paul Zumthor nas suas andanças
pelo mundo se encontram nessa tipificação. Entretanto, mesmo sendo o ritmo e,
conseqüentemente, a coreografia os elementos enfatizados nessas canções, lhe pareceu
que a melodia é a fonte de todo o desenvolvimento da performance.
Certas melodias, tendo sido escritas sobre um texto qualquer numa época passada, foram reutilizadas, de modo que textos diversos vêm, ao longo do tempo, articular-se numa melodia que eles exploram, que serve à sua transmissão e, de uma certa forma, os une. Tem-se assim a impressão de uma espécie de perenidade da forma musical: as palavras sendo um elemento em si mesmo tão frágil que seria incapaz de preencher sua função, se não fosse mantido e comunicado dessa maneira. (ZUMTHOR, 2005, p.75).
Nos cantos que acompanham as performances a voz se expande, a partir de melodias
eternas, e é a força de tal canto, em suas dimensões tonais e sonoras, que as eternizam.
Dessa forma, será mesmo que na música apolínea o elemento dionisíaco é inexistente?
Será possível que mesmo quando a música acalma, cura, ensina e educa o arrebatamento
que os sons produzem são totalmente refreados pela beleza apolínea?
O tema da música como um instrumento de controle na escola e na família merece a
reflexão da seguinte questão: analisar os usos das canções pelos adultos é focalizar o
ponto de vista do adulto, e não o da criança. Que trajetória percorrer para compreender o
ponto de vista da criança? Como ela experimenta a música? Até que ponto o controle
exercido pela professora não passa a ser, para a criança, uma grande experiência? Na
opinião dos adultos, a musica acalma, e certamente essa é uma estratégia que funciona –
as crianças passam a obedecer ao que lhes é solicitado. Quem trabalha e convive com
criança já deve ter percebido como a música é um instrumento bastante útil em situações
conflituosas. No entanto, a calma aparente pode ser apenas um véu sobre um êxtase, um
rebuliço - um deslumbramento poético transfigurado - já que o componente melódico,
harmônico e sonoro não se ausenta. A música deve ser o que torna a vida para a criança
mais inteligível, mais suportável, mas também mais intensa e mais poderosa. Para
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Zumthor, a voz é mais que palavra é tom, e o que será que a dimensão tonal expressa?
Talvez seja possível abarcar as músicas disciplinadoras também não apenas a partir dos
fins que elas almejam, mas a partir de um estudo de sua dimensão tonal. Dias (1994)
afirma que em Nietzsche não existe uma música totalmente dionisíaca como também
podemos verificar que não existe a música absolutamente apolínea. Caso tomarmos como
exemplo uma composição em que estão presentes apenas instrumentos percussivos,
mesmo eles apresentam cada qual seu próprio timbre, cada qual sua própria sonoridade
especifica, e dessa forma, não apenas marcam o tempo mas também produzem sons.
Se o mundo apolíneo é o universo da contemplação e do espetáculo, e tudo aquilo que se
captura pelo olhar, a intensidade dionisíaca é a dimensão do afeto. E conforme vimos
desenvolvendo, a dimensão tonal da palavra, em contraponto ao seu caráter conceitual,
expressa os territórios afetivos da existência. O arrebatamento musical dionisíaco em
Nietzsche é um afeto em estado puro. Não o sentimento, a emoção – essas já são
representações – mas o que há de mais primal, o que rompe nossa frágil individualidade e
nos conecta com o ser do mundo, ou seja, o que arrasa nossa subjetividade. Em
Nietzsche afeto não é subjetividade e sim o oposto, é a dessubjetivação, a possibilidade
de devires múltiplos e de uma conexão com o cosmos. O que ocorre quando escutamos
uma determinada música? As mais inquietantes e arrebatadoras sensações dominam
nossos corpos e, mesmo assim, podemos nos conservar serenos e calmos.
De certo, a fala dirigida à criança é utilizada pelo adulto como uma demonstração de afeto.
O adulto parece dizer à criança: “Bem, eu sei que você não entende o que eu falo, por isso
vou cantar”. No entanto, por que o adulto escolhe a música? Por que ele presume que a
criança não entende a linguagem, mas sente o som? Será que é porque os pais do mundo
inteiro têm acompanhado as pesquisas experimentais da área de cognição? É possível.
Mas é possível também que as pesquisas se tornaram legítimas por decorrerem de uma
observação apurada da relação adulto-criança, já que segundo Winnicott, os especialistas
da área da saúde têm muito que aprender com as mães. E dessa relação surge um som,
para além de todos os outros sons e ruídos, que é o som da voz. Nesse trabalho,
caracterizei o som como desmesura, a partir das contribuições nietzschianas. E o que é o
bebê? Um pequeno psicótico, segundo Winnicott, vivenciando um mundo confuso,
“passando por experiências terríveis que só podem ser descritas através de palavras
como: ser feito em pedaços, cair para sempre, morrer e morrer e morrer” (WINNICOTT,
1999, p.76). Para o psicanalista, observar o esquizofrênico e o bebê é uma prática que
contribui para o estudo desses dois modos de existência, pois “a esquizofrenia seria uma
anulação dos processos de maturação que ocorrem nas fases iniciais da infância”
(op.cit.,p.42). Winnicott confirma que o afeto é importante ingrediente para construir essa
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maturação, caso contrário, o ser humano permanece em um estado caótico. A voz cantada
seja pela mãe ou por qualquer outro adulto - o martenalês – cumpre essa função,
posteriormente surgindo como memória de uma sensação experimentada no passado. Tal
reminiscência, inconsciente, se presentifica, associando o dionisíaco ao apolíneo: enaltece
as dimensões sonoras - tão terríveis quanto às sensações que o bebê pode experimentar -
como as rítmicas, que consentem que o bebê confirme a sua sobrevivência... O adulto
retoma a sua experiência, mas não retorna passivamente aos tempos pueris – ele sabe
que sua função é outra, ele não pode convalescer - e sim sobreviver, para permitir que o
bebê à sua frente sobreviva. O adulto toma para si essa responsabilidade por vários anos,
até que a criança atinja uma maturação subjetiva que a permita transformar seu princípio
caótico.
Ou seja, o elemento dionisíaco sem a forma apolínea é a certeza da morte e do
desaparecimento. É aniquilador. Portanto, a forma apolínea, em certa medida, é
necessária para que a própria pulsão dionisíaca não destrua a si mesma. Dionísio deve
permanecer no mundo, por isso se une a Apolo, mas isso não significa uma sujeição, pois,
conforme vimos, embora residam elementos apolíneos na música, eles são secundários.
O bebê, em seu estado existencial dionisíaco, tem na música uma experiência
fundamental: seu estado caótico pode gerar formas, unindo-se às imagens e permitindo a
sua sobrevivência. Não é necessário abandonar Dionísio, basta deixar que ele crie.
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